Mostrando postagens com marcador Arte Cristã. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Arte Cristã. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A especificidade da arte sacra





Que significa “arte sacra”? A definição do conceito de “arte” é muito complexa. Difícil é também a conotação da noção de “sacro”. Obter uma resposta à pergunta inicial mediante a soma das definições do substantivo “arte” e do adjetivo “sacro” é particularmente árduo e, talvez, infrutífero. Fecundo, em contrapartida, é buscar a identidade da arte sacra nos documentos magisteriais, seguindo seu percurso quase topográfico, em que, mediante observações progressivas, descobre-se qual é o lugar e a finalidade específica da própria arte sacra.

Pode ser útil partir de um documento do Concílio Vaticano II, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, em que lemos: “dedicando-se às várias disciplinas da história, filosofia, ciências matemáticas e naturais, e cultivando as artes, pode o homem ajudar muito a família humana a elevar-se a concepções mais sublimes da verdade, do bem e da beleza e a um juízo de valor universal” (n. 57).

A arte se coloca entre as disciplinas que elevam o homem, e portanto possui uma autêntica conotação humanística, entendendo o humanismo como cultivatio animi. Esta elevação da família humana acontece mediante o conhecimento do verdadeiro, do bem e do belo. Está clara a referência às características transcedentais do ser, quer dizer, a essas características possuídas por todo aquele que é enquanto é, ou seja, a verdade, a bondade e a beleza, que são perfeições compartilhadas por Deus com toda criação. Está também que a arte se define por uma singular relação com a beleza.

Dado que a noção de arte é muito vasta e plural, é útil fazer referência à distinção entre artes liberais (as artes teóricas, que não implicam um trabalho físico, como a poesia) e as artes mecânicas (as artes que implicam trabalho manual, como a escultura e a pintura). Contudo se trata de uma distinção que o Renascimento já demonstrou superar.

É necessário também enfrentar a distinção entre artes úteis e artes belas. As artes úteis estão dirigidas a fins práticos, enquanto que as artes belas estão dirigidas à beleza. A arte, portanto, vai-se precisando em sua identidade específica, por uma relação particular com a beleza. E é precisamente neste contexto das belas artes onde devemos buscar o lugar da arte sacra. De fato, a beleza da arte expressa a beleza do criado e, por isso mesmo, do Criador, e está portanto constitutivamente aberta em relação a Deus.

Dentro das belas artes se distingue a arte religiosa, quer dizer, uma arte que expressa um sentimento religioso. Dentro, ou melhor, no cume da arte religiosa encontramos finalmente a arte sacra. Aqui torna-se iluminador citar a Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, do Concílio Vaticano II: “entre as mais nobres atividades do espírito humano estão, de pleno direito, as belas artes, e muito especialmente a arte religiosa e o seu mais alto cimo, que é a arte sacra” (n. 122).

Poderíamos dizer que entre a obra de arte religiosa e a obra de arte sacra existe a mesma relação que une e separa uma poesia que fala de Deus e uma oração: também a oração é bela, como a poesia, mas tem uma identidade específica diferente. O adjetivo “sacro” atribui-se de fato ao culto, aos ritos, aos lugares, precisamente, sacris, e da mesma forma à arte sacra e suas obras. A arte religiosa converte-se em sacra quando está dirigida ao culto sagrado, ao rito sagrado, para que “sirva com a devida reverência e a devida honra às exigências dos edifícios e ritos sagrados” (n. 123).

Portanto, a arte sacra é integramente arte, mas encontra sua identidade na sacralidade do rito ao que está destinada e que a molda por inteiro, de modo que uma obra de arte sacra deve ser de forma autêntica uma obra de arte, deve de fato estar íntima e completamente dirigida à sacralidade, deve-se fazer espelho das verdades da fé, deve-se fazer celebração e liturgia. Isso impõe uma conotação peculiar da própria obra de arte, tanto que nos documentos magisteriais encontramos também as indicações para distinguir ulteriormente a arte sacra em “autêntica” e “não autêntica”. Este caminho, que leva para uma arte não só bela mas também boa e verdadeira, realista sem exageros, simbólica sem abstrações, é tão importante que precisa de um tratamento à parte.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Quem é artista e quem é artista cristão?




Que quer dizer “ser artista”? Quem é artista? No mundo contemporâneo, surgiu a opinião de que a condição de artista não é uma condição particular, mas que todo mundo é artista, já que não servem talentos nem formação, sendo o único ingrediente necessário a criatividade livre de todo esquema. Nas biografias de muitos artistas do século XX, surgem também hábitos desordenados, atitudes excêntricas, comportamentos autodestrutivos, até o ponto de que parecer que esse tipo de vida fosse um ingrediente necessário para reconhecer o verdadeiro artista, seja um pintor, um escultor, um músico ou um poeta.
Mas além dessas posições, evidentemente pouco consistentes, permanece a pergunta: quem é o artista? A isso podemos acrescentar uma pergunta posterior, fundamental para nossas reflexões: quem é o artista cristão? Na arte cristã, ou na arte que está a serviço da Igreja e que durante séculos tem sido capaz de anunciar Cristo e alçar um hino de louvor a Deus através de inestimáveis obras, há regras ou princípios que identificam a identidade profissional, moral e espiritual do artista?

Podemos encontrar uma ajuda para nossa reflexão no Livro de pintura escrito por Cennino Cennini no final do século XIV. Ele insere a história do nascimento da arte nos acontecimentos da criação narrados no Gênesis e estabelece uma reflexão da prática artística de tipo moral: a arte não se consegue com sede de lucro, nem por vanglória, mas com uma humildade e uma perseverança tais como para suportar todo sacrifício necessário para aprender todas as regras e pôr em prática todos os princípios.

Pode-se encontrar mais ajuda à reflexão no Livro de pintura de Leonardo da Vinci, ou na recopilação póstuma de seus apontamentos e seus estudos realizada pelo aluno Francesco Melzi, da qual temos uma cópia no Codice Urbinate 1270, conservado na Biblioteca Vaticana, de que Carlo Pedretti proporcionou uma edição crítica em 1995. Leonardo indica ao artista um caminho de formação técnica e moral, onde têm uma função fundamental as regras e os princípios levados à prática até se converter em virtude.

As certezas de Cennini e de Leonardo se apoiavam em uma sólida tradição, que não colocava em dúvida a importância das regras de formação. Na antiguidade, podemos encontrar exemplos notáveis disso em Vitruvio e Plinio, mas também em Columela, no que se refere à arte da agricultura. Trata-se de uma tradição que, com inovações e novas perspectivas, chega até o século XX, testificada por inumeráveis tratados.

Desta tradição podemos extrair a importância do binômio arte e normas, e sobretudo podemos compreender quão libertador resulta esse enfoque para a criatividade do artista. Na longa história das artes, as normas têm desempenhado a importante função de formar os artistas, de fazer crescer sem oprimir, de soltar sem atar.

As normas traçam um percurso, fazendo acessível uma técnica que pode se converter na base da ação, na condição de possibilidade para o crescimento. Hoje, conseguimos entender a importância da técnica e de suas normas apenas em âmbitos muito restritos. Um exemplo é o mundo do esporte: no atletismo, no futebol... a boa execução se alcança porque é também um gesto técnico. De fato, sim uma adequada preparação técnica, não se pode praticar nenhum esporte.

No âmbito das artes, os exemplo se fazem mais difíceis. Na música continua sendo mais evidente a necessidade de possuir a linguagem e sua técnica. No âmbito da pintura, em contrapartida, as regras do mercado tomaram a dianteira, ajudadas pelos críticos que teorizam que a arte não deve ter mais vínculos nem princípios além dos – imperativos, porém não especificados – do próprio mercado. Assim é como a tão reclamada liberdade do artista de toda norma se traduz frequentemente de maneira paradoxal em dependências de todo tipo não-artísticas, como o álcool, as drogas ou outras relações que atingem radicalmente a liberdade da pessoa, ofuscando sua razão. Por outro lado, as teorias artísticas que destacam com obsessiva recorrência que o artista é um ser inadaptado e solitário acabam quase por prescrever o mal-estar psíquico e existencial como um requisito fundamental. Assim, a arte, que deve dar felicidade, converte-se em um labirinto de dor, totalmente atravessado pela ânsia de êxito. Desta maneira, à figura do artista se sobrepõe a do Fausto, disposto a fazer pacto com o Diabo, ou a de Prometeu, que desafia os deuses ao roubar-lhes o fogo.

O centro do percurso criativo do artista, em um contexto assim, é o próprio artista. Em um total egoísmo, a arte expressa o eu do artista e nada mais. Se pensarmos bem, em contrapartida, compreendemos que o artista, para sê-lo, deve possuir as regras de seu ofício, e que o pressuposto para rompê-las e superá-las é conhecê-las com precisão. Ademais, o mal-estar e a perversão não são pedidos ao artista enquanto tal, mas só ao artista tal como é teorizado por alguns críticos e comerciantes contemporâneos.

Se essas observações valem para o artista em geral, ainda mais para o artista cristão. Pode-se falar de Cristo a partir dessas posições teóricas e chegar aos cumes da arte sacra cristã? Pode o artista que trabalha para a Igreja ser identificado com a libertinagem, a ignorância de seu ofício, o narcisismo? Não estamos falando de juízo sobre a vida do artista, porque isso não deveria interessar ao historiador nem ao teórico da arte, mas estamos refletindo precisamente sobre as obras de arte, sobre a possibilidade de que sem uma formação técnica e artística, e sem virtudes cultivadas, se possam produzir obras belas adaptadas à oração e à liturgia. Ademais, acrescentando uma consideração mais importante, e é que para trabalhar para Cristo, em todo âmbito, é necessária uma adesão ao próprio Cristo. Com muita clareza, Joseph Ratzinger explica que a sacralidade da imagem implica a vida interior do artista, seu encontro com o Senhor: “A sacralidade da imagem consiste precisamente no fato de que esta deriva de uma visão interior e assim conduz a uma visão interior. Deve ser fruto de uma contemplação interior, de um encontro crente com a nova realidade do Ressuscitado e, dessa maneira, deve introduzir novamente no olhar interior, no encontro orante com o Senhor” (Joseph Ratzinger, Teologia della liturgia, Libreria Editrice Vaticana, 2010, p. 131). Acrescenta também que “a dimensão eclesial é essencial na arte sacra” (ibid.), destacando que o artista cristão não pode viver fora da Igreja.

Jesus, no Evangelho de Lucas, adverte: “onde estiver o seu tesouro, aí estará o seu coração” (Lc 12, 34). Se nosso tesouro não é Cristo, mas nós mesmos, nossos vícios, o êxito, então não se tem o coração apto para a produção de obras de arte sacra. Ainda nos ensina Jesus que “nenhum criado por servir a dois senhores (...). Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16, 13). Portanto, o artista cristão deve fazer a opção radical de pôr Cristo como único Senhor de sua vida e arte. Isso implica também a humildade de uma percurso de formação artística, moral e espiritual, com a convicção de que o trabalho artístico é uma vocação: “Como bons administradores da multiforme graça de Deus, cada um coloque à disposição dos outros o dom que recebeu. Se alguém tem o dom de falar, fale como se fossem palavras de Deus. Se alguém tem o dom do serviço, exerça-o como capacidade proporcionada por Deus, a fim de que, em todas as coisas, Deus seja glorificado, por Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o poder, pelos séculos dos séculos. Amém” (1 P 4, 10-11).

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

É possível definir a arte?




Por Rodolfo Papa*

Que é a arte? Frente a esta pergunta, vem à mente a situação descrita por Santo Agostinho no livro XI de suas Confissões, a propósito da pergunta “Que é o tempo?”: se não me pergunto, sei; se me perguntam, não sei.

Sente-se a necessidade de definir o significado do termo, ainda que ao mesmo tempo se advirta uma dificuldade definitória. De fato, circunscrever o significado da arte excluiria, talvez, novidades e experimentações, ou, ao contrário, mantê-lo fluido e susceptível de infinitas interpretações anularia, quem sabe, sua identidade.

Na teoria da arte convivem posturas diversas: tentar definir e analisar até o esgotamento de cada interrogante; ou bem renunciar a uma definição frente à proliferação das perguntas; ou inclusive identificar a arte só com um de seus aspectos: uma disciplina particular, uma corrente particular, uma época histórica particular.

A questão é difícil, e para ser enfrentada requer esclarecimentos prioritários. Tentaremos só traçar um percurso possível, sobretudo delineando suas tarefas. Antes de tudo, que quer dizer “definir”? Definir significa explica “o que é”, e portanto implica o conhecimento, ainda que não seja exaustivo, do que se define; além disso, definir não significa oprimir uma realidade dentro de uma palavra, mas, ao contrário, buscar um discurso que saiba dizer a própria realidade. Portanto, não há de se ter medo das definições, como se fossem prisões. Ademais, as definições podem ser de muitos tipos, segundo o objetivo e o tipo de conhecimento que se quer ou se pode conseguir. Pode-se definir o “nome” ou também o “objeto”. No primeiro caso, estamos frente a uma definição nominal, que pode por sua vez consistir na etimologia, na explicação do uso comum do termo, ou bem na especificação de usos particulares, relativos a um contexto ou a uma pessoa. No segundo caso, encontramo-nos frente a uma definição “real”, que pode consistir na explicitação das causas e dos princípios, ou também na determinação de gênero e diferença específica, ou também pode se diluir em uma descrição.

A tradição clássica (Aristóteles, Tomás de Aquino, só para colocar alguns nomes) nos oferece uma definição real de ars, segundo gênero e diferença: ars est recta ratio factibilium, quer dizer, a arte é a razão correta das coisas que se fazem. Portanto, o gênero é a recta ratio, e a espécie se diferencia com a referência aos factibilia, às coisas que se fazem, se produzem. A arte se coloca assim entre as virtudes dianoéticas, quer dizer, entre as perfeições da alma racional; ademais, está estreitamente conectada com o conhecimento e com a fabricação de objetos. Poderíamos dizer que a arte é um “saber fazer”. Trata-se de uma definição muito ampla, que contém todas as modalidades do “saber fazer”: desde fazer mesas a escrever poemas, desde pintar a cozinhar, desde que estejam bem feitos, com recta ratio.

Dentro desse conceito tão vasto, facilmente se estabelece uma distinção entre as artes conotadas principalmente pela beleza e as artes conotadas principalmente pela utilidade. Trata-se de uma distinção não excludente, no sentido de que também uma mesa, que é útil, pode ser bela, e também um monumento, que é belo, pode ser útil. Dentro das artes belas, vemos uma grande variedade de operações e funções, que delineiam os diversos âmbitos das disciplinas artísticas. Precisamente neste nível se estabelece o problema de uma definição comum. Parece-me que a forma melhor de proceder para contribuir para a definição de arte é buscar, agora, uma definição das diferentes disciplinas artísticas. Uma tradição que remonta a Plínio, retomada por Leonardo, diz que a primeira disciplina artística é a pintura, da qual surgiram depois a escultura e pouco a pouco todas as demais. Sabemos que no Renascimento refletiu-se muito sobre a “comparação das artes”, quer dizer, sobre a avaliação dos aspectos comuns e sobretudo dos distintos, com o fim de entender qual era a rainha das artes. Isso contribuiu para uma avaliação dos aspectos específicos de cada disciplina, com uma forte consciência dos procedimentos técnicos, aos que se dedicaram muitos tratados e manuais, como por exemplo o Livro de pintura de Leonardo. Parece-me que este caminho é muito proveitoso, porque precisamente partindo da prática da pintura, da escultura, da arquitetura... chega-se a definir o que é cada uma. E é também importante que esta reflexão tenha vindo e venha dos próprios artistas, o que evita a sensação de falta de conexão entre as artes e a teoria das artes, tão frequente na contemporaneidade.

Dentro do itinerário de busca de uma definição universal de arte, adquire um valor muito significativo a busca dos princípios e das regras que definem cada disciplina artística. Cada uma tem uma tarefa específica, meios e metodologias próprias, tradições e mestres, paradigmas e princípios. Parece-me um campo muito fecundo, que não nega desenvolvimentos e progressos, mas que ao mesmo tempo permite identificar uma disciplina e cultivá-la. Proporciona também a instrumentação teórica para reconhecer a própria disciplina, para afirmar, por exemplo, que Monet é tão pintor como Giotto, mas também para negar que decoração e performance seja pintura. De fato, as inovações que acontecem em uma disciplina podem fazer crescer notavelmente a própria disciplina, mas há inovações que, ainda que frequentemente nascem dentro dela, no entanto ficam fora e não formam parte dela. Assim, por exemplo, a pop art e a decoração não entram na disciplina da pintura, porque sobrepassam seus meios, seus fins, a tradição, o âmbito, e chegam a definir uma disciplina diversa, nova, com finalidades e formas de execução próprias: não se trata da superação da pintura, mas talvez do nascimento de uma nova disciplina artística. A distinção que se estabelece entre as artes tradicionais, pintura, escultura, arquitetura, poesia, música... se estabelece também a respeito das novas, como a fotografia, o cinema, etc. Por exemplo, os fundamentos da pintura são diferentes dos da arquitetura, e ainda que possam ter partes em comum, têm objetivos e regras diferentes.

Portanto, a definição da arte deve ser tal que possa compreender todas e cada uma das artes, que têm seus próprios princípios e fundamentos que a distinguem das demais e a definem em sua própria identidade.

--- --- ---

* Rodolfo Papa é historiador da arte, professor de história das teorias estéticas na Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Urbaniana, em Roma; presidente da Accademia Urbana delle Arti. Pintor, autor de ciclos pictóricos de arte sacra em várias basílicas e catedrais. Especialista em Leonardo Da Vinci e Caravaggio, é autor de livros e colaborar de revistas. Desde 2000, assina uma coluna de história da arte cristã na Rádio Vaticano.