quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Bulas Pontifícias




Exsurge Domine

Bula
EXSURGE DOMINE
do Sumo Pontífice Leão X
sobre os erros de Martinho Lutero



Erguei-vos, Senhor, e julgai vossa própria causa. Lembrai-vos de vossas censuras àqueles que estão o dia todo cheios de insensatez. Ouvi nossas preces, pois raposas avançam procurando destruir a vinha em cujo lagar só Vós tendes pisado. Quando estáveis perto de subir a vosso Pai, entregastes o cuidado, norma e administração da vinha, uma imagem da igreja triunfante, a Pedro, como cabeça e vosso vigário e a seus sucessores.

O javali da floresta procura destrui-la e toda fera selvagem vem devastá-la.

Erguei-vos, Pedro, e realizai o serviço pastoral divinamente confiado a Vós, como já dito. Prestai atenção à causa da santa Igreja Romana, mãe de todas as igrejas e mestra da fé, que Vós por ordem de Deus santificastes com vosso sangue. Bem que avisastes que viriam falsos mestres contra a Igreja Romana, para introduzir seitas ruinosas, atraindo sobre eles rápidas condenações. Suas línguas são de fogo, mal incansável, cheias de mortal veneno.

Eles possuem zelo amargo, discórdia em seus corações, vangloriam-se e mentem contra a verdade.

Suplicamos a vós também, Paulo, para erguer-vos. Fostes vós que esclarecestes e iluminastes a Igreja com vossa doutrina e com vosso martírio, como o de Pedro, Agora, um novo Porfírio se levanta que, como o outro do passado, cheio de erros assediou os santos apóstolos, e agora ataca os santos pontífices, nossos predecessores. Ele os reprova por violação a vosso ensinamento, em vez de implorá-los, e não tem pudor de atacá-los, de lamentá-los, e quando se desespera de sua causa, de rebaixar-se aos insultos. Ele é como os hereges" cuja última defesa" ,como disse Jerónimo,"é pôr-se a vomitar veneno de serpente com sua língua, quando vêem que suas causas estão para ser condenadas, e explodem em insultos quando se vêem vencidos". Embora tenhais dito que deveria haver heresias para testar a fé, ainda assim eles devem ser destruídos no próprio berço por vossa intercessão e ajuda, e, assim, não crescerão nem se tornarão fortes como vossos lobos.

Finalmente, que se levante toda a Igreja dos santos e a Igreja universal. Alguns, pondo de lado a verdadeira interpretação da Sagrada Escritura, estão ensandecidos pelo pai das mentiras. Sábios a seus próprios olhos, de conformidade com a antiga prática dos heréticos, interpretam essas mesmas Escrituras de modo diferente do inspirado pelo Espírito Santo, mas antes inspirados somente por seu próprio sentido de ambição, em consideração ao aplauso popular, como diz o Apóstolo. Realmente, torcem e adulteram as Escrituras. Consequentemente, de acordo com Jerónimo,"Não persiste mais o Evangelho de Cristo , mas um do homem, ou o que é pior, do demónio.

Que toda a santa Igreja de Deus, eu clamo, se levante, e com os santos apóstolos interceda perante o Deus Todo-Poderoso para estripar os erros de sua ovelha, para banir todas as heresias dos campos da fé, e para que seja de seu agrado manter a paz e a unidade de sua santa Igreja.

Custa-nos expressar, em nossa tristeza e aflição, o que chegou aos nossos ouvidos, desde há algum tempo, através de notícias de homens de confiança e do rumor geral. Ai de nós, vimos ainda com nossos olhos e lemos os muitos e diversos erros. Alguns deles já foram condenados por concílios e constituições de nossos predecessores, e formalmente contêm até a heresia dos Gregos e Boémios. Outros erros são ou heréticos, falsos, escandalosos, ou ofensivos ao ouvidos piedosos, assim como sedutores das mentes simples, originando-se de falsos intérpretes da fé que em sua orgulhosa curiosidade almejam a glória do mundo, e contrários ao ensinamento dos Apóstolos, desejam ser mais sábios do que poderiam ser. A loquacidade deles, não amparada pela autoridade das Escrituras, como disse Jerónimo, não ganharia confiança se não fizessem sua perversa doutrina parecer baseada até mesmo em testemunhos divinos, embora mal interpretados. No ponto de vista deles, o temor de Deus é coisa do passado.

Esses erros, por inspiração humana, tinham sido revividos e recentemente propagados entre os mais frívolos e ilustres da nação Germânica. Nós nos afligimos mais ainda que isso tenha acontecido ali porque nós e nossos predecessores sempre colocamos essa nação no mais alto de nossa afeição.

Depois que o império foi transferido pela Igreja Romana dos Gregos para esses germânicos , nossos predecessores e nós sempre escolhemos dentre eles advogados e defensores da Igreja. Realmente, é certo que esses germânicos , verdadeiros irmãos na fé católica , foram sempre encarniçados adversários das heresias, como testemunham aquelas louváveis constituições dos imperadores germânicos, em defesa da independência da Igreja, da liberdade, da expulsão e extinção de todos os hereges da Alemanha. Aquelas constituições formalmente emitidas e depois confirmadas por nossos predecessores, foram escritas sob as maiores penalidades, até mesmo perda de terras e soberania dos que os abrigasse ou não os expulsasse. Se elas fossem observadas hoje, nós e eles estaríamos obviamente livres deste distúrbio. Prova disto é a condenação e punição no Concílio de Constança da infidelidade dos Hussitas e Wyclifistas, assim como de Jerónimo de Praga.

Prova disto é o sangue dos Germânicos derramado tantas vezes em guerras contra os Boémios. Uma prova final é a refutação, rejeição e condenação não menos instrutivas do que verdadeiras e santas, dos erros acima, ou de muitos deles, pelas universidades de Colónia e Louvaina, as cultivadoras mais devotadas e religiosas dos campos do Senhor. Poderíamos citar muitos outros fatos que decidimos omitir a fim de que não pareça estarmos compondo uma História.

Em virtude de nosso trabalho pastoral a nós comunicado por divino favor , não podemos sob nenhuma circunstância tolerar ou subestimar por mais tempo o veneno pernicioso dos erros acima sem prejuízo à religião cristã e dano à fé ortodoxa. Decidimos incluir no presente documento alguns desses erros. A substância deles é como se segue:

É uma opinião herética, embora comum, que os sacramentos da nova Lei dão a graça do perdão àqueles que não lhes põem um obstáculo.

É tratar com desprezo tanto Paulo como Cristo dizer que não permanece o pecado numa criança após o baptismo.

As inflamáveis fontes do pecado, mesmo que seja pecado não actual, retarda a partida da alma do corpo para o céu.

Para alguém à hora da morte, a contrição imperfeita necessariamente lhe traz grande medo, o qual por si só é bastante para causar a punição do purgatório, e impedir a entrada no Reino.

Não está fundamentado na Sagrada Escritura nem nos antigos e sagrados doutores cristãos que haja três partes na penitência: contrição, confissão e satisfação.

Contrição que se adquire através de discussão, colecta e abominação dos pecados, pelos quais alguém reflecte sobre seus anos na amargura de sua alma, ponderando na gravidade dos pecados, seu número, sua baixeza, a perda da felicidade eterna e a pena da condenação eterna, essa contrição torna-o um hipócrita, ou mais, de fato, um pecador.

Há um dito altamente verdadeiro, e a doutrina concernente às contrições desse modo são muito mais dignas de atenção:"Não agir assim no futuro é a maior penitência ; a melhor penitência, uma nova vida."

De modo algum alguém presuma de confessar pecados veniais, ou mesmo todos os pecados mortais, porque é impossível que saiba todos os pecados mortais. Daí, na Igreja primitiva somente os pecados mortais óbvios eram confessados.

Enquanto quisermos confessar todos os pecados sem excepção, estaremos fazendo nada mais do que desejar nada deixar para perdão pela misericórdia de Deus.

Os pecados não serão perdoados a ninguém a não ser que o padre os perdoe e a pessoa acredite que estão perdoados; do contrário o pecado permanecerá, salvo se a pessoa acredita que eles foram perdoados; na verdade a remissão do pecado e a concessão da graça não é suficiente, mas é necessário também acreditar que eles foram perdoados.

De modo algum pode alguém ter segurança de ter sido absolvido por causa de sua contrição, mas por causa da palavra de Cristo:"Tudo o que desatardes, etc." Daí eu digo, acredite confiantemente, se você obteve a absolvição do padre, acredite firmemente de ter sido absolvido e você será verdadeiramente absolvido, seja qual tenha sido a contrição.

Se numa impossibilidade aquele que confessa não esteve contrito ou o padre não absolveu seriamente, mas como de brincadeira, se não obstante a pessoa acredita que foi absolvida, ela verdadeiramente foi absolvida.

No sacramento da penitência e da remissão do pecado o papa ou o bispo não faz mais do que o mais humilde padre; de fato, onde não há padre, qualquer cristão, mesmo uma mulher ou criança, pode igualmente fazê-lo.

Ninguém deve responder ao padre que está contrito, nem o padre poderia perguntá-lo.

Grande é o erro daqueles que se aproximam do sacramento da Eucaristia confiados em que se confessou, que não estão cônscios de nenhum pecado mortal, que antecipadamente fizeram suas preces e sua preparação; todos eles comem e bebem seu próprio julgamento. Mas se acreditam e confiam que obterão a graça , então esta fé sozinha torna-os puros e dignos.

Parece que a Igreja num Concílio comum estabeleceu que o leigo pode comungar sob ambas as espécies; os Boémios que comungam sob ambas as espécies não são hereges, mas são cismáticos.

Os tesouros da Igreja, dos quais o papa concede indulgências não são os méritos de Cristo e dos santos.

Indulgências são fraudes piedosas dos fiéis, e indultos de boas obras; e elas estão no número daquelas coisas que devem ser evitadas, e não no número daquelas que são vantajosas.

Indulgências não são proveitosas para aqueles que realmente as ganham, para a remissão da pena devida ao pecado actual, sob o ponto de vista da justiça divina.

São seduzidos aqueles que acreditam que indulgências são salutares e úteis aos frutos do espírito.

As indulgências são necessárias somente para crimes públicos, e são concedidas apropriadamente somente para os rigorosos e impacientes.

As indulgências não são necessárias nem úteis para seis espécies de homens, a saber: para os mortos e aqueles à morte, para os enfermos, para aqueles legitimamente impedidos, para aqueles que não cometeram crimes, para aqueles que cometeram crimes, mas não públicos, e para aqueles que se devotam a coisas melhores.

Excomunhões são apenas penas externas e não privam o homem das orações espirituais comuns da Igreja.

Os cristãos devem ser ensinados a apreciar as excomunhões preferentemente a temê-las.

O Pontífice Romano, o sucessor de Pedro, não é o vigário de Cristo para todas as igrejas de todo o mundo, instituído pelo próprio Cristo na pessoa do abençoado Pedro.

A palavra de Cristo a Pedro: "Tudo o que desatardes na terra," etc, se estende somente àquelas coisas atadas pelo próprio Pedro.

É certo que não está sob o poder da Igreja ou do papa decidir sobre os artigos de fé, e muito menos sobre o que concerne às leis da moral e das boas obras.

Se o papa com uma grande parte da Igreja pensou de tal ou tal modo, ele não poderia errar; ainda assim não é pecado ou heresia pensar o contrário, especialmente sobre matéria não necessária à salvação, até que uma alternativa seja condenada e a outra aprovada por um Concílio geral.

Um meio foi dado a nós para enfraquecer a autoridade de concílios, para contradizer seus actos livremente, julgar seus decretos e corajosamente confessar tudo o que pareça verdade, seja o que for que tenha sido aprovado ou desaprovado por qualquer concílio.

Algumas proposições de John Hus, condenadas pelo Concílio de Constança, são perfeitamente cristãs, totalmente verdadeiras e evangélicas; essas, a Igreja Universal não poderia condená-las.

Em toda boa obra o justo peca.

Uma boa obra muito bem feita é um pecado venial.

É contra o desejo do Espírito Santo que heréticos sejam queimados.

Ir guerrear contra os Turcos é resistir a Deus que pune nossas iniquidade através deles.

Ninguém está certo de que não esteja sempre pecando mortalmente, por causa do vício profundamente oculto do orgulho.

Livre arbítrio após o pecado é uma questão somente de palavra; e no que alguém faz enquanto está nele, peca mortalmente.

O purgatório não pode ser provado pela Sagrada Escritura que está no Cânon.

As almas do purgatório não estão certas de sua salvação, ao menos não totalmente. Nem está provado por nenhum argumento nem pelas Escrituras que elas estejam além do estado de obter méritos ou crescer no amor.

As almas do purgatório pecam sem cessar, na medida que procuram descansar e detestam a punição.

As almas libertas do purgatório pelos sufrágios dos vivos são menos felizes do que se elas prestassem satisfação por elas mesmo.

Prelados eclesiásticos e príncipes seculares não agiriam mal se destruíssem todas as bolsas de dinheiro da mendicância.

Ninguém de mente sã é ignorante ou destruidor, pernicioso, escandaloso e sedutor das mentes fiéis e simples, como são esses vários erros, contrários como são eles a toda caridade e reverência para com a santa Igreja Romana que é a mãe de todos os fiéis e mestra da fé, destruidores como são eles do vigor da disciplina eclesiástica, particularmente da obediência. Essa virtude é a fonte e origem de todas as virtudes e sem ela qualquer um é prontamente levado a ser infiel.

Eis porque nós, na enumeração supra, importante como é, desejamos proceder com grande cuidado como é adequado, e cortar o avanço dessa praga e doença cancerosa, de modo que não se espalhe mais além no campo do Senhor como um nocivo espinheiro. Levantamos, portanto, uma inquirição cuidadosa, escrutínios, discussão, exame severo, e deliberação amadurecida com cada um dos irmãos, os eminentes cardeais da santa Igreja Romana, bem como com os priores e mestres gerais das ordens religiosas, ao lado de outros profissionais e mestres peritos na sagrada teologia, no direito civil e canónico. Concluímos que esses erros ou essas pessoas não são católicas, como dito acima, e não devem ser considerados como tais. Mas, antes, são contra à doutrina e à tradição da Igreja Católica, e contra a verdadeira interpretação das sagradas Escrituras recebida da Igreja. Agostinho afirmava que a autoridade desta tinha de ser aceita tão fielmente que confirmou não teria acreditado no Evangelho sem a autoridade da Igreja Católica que tinha se responsabilizado por ela. Por conseguinte, de acordo com esses erros, ou algum deles ou vários deles, claramente se segue que a Igreja que é guiada pelo Espírito Santo estaria em erro e sempre esteve errada. Isso é contra o que Cristo por ocasião de sua Ascensão prometeu a seus discípulos (como se lê no santo Evangelho de Mateus): "Estarei convosco até a consumação do mundo" ; está contra as determinações dos santos Padres, ou determinações e leis dos concílios e do supremo Pontífice. O mal de não concordar com essas leis, conforme o testemunho de Cipriano, poderá ser combustível e causa de toda heresia e cisma.

Com o conselho e consenso desses nosso veneráveis irmãos, com deliberação amadurecida sobre cada uma das proposições supra, e pela autoridade do Deus Todo-Poderoso, dos santos apóstolos Pedro e Paulo, e de nossa própria autoridade, nós condenamos, reprovamos, e rejeitamos completamente cada uma dessas teses ou erros como heréticos, escandalosos, falsos, ofensivos aos ouvidos piedosos ou sedutores das mentes simples, e contra a verdade católica. Listando-os, nós decretamos e declaramos que todos os fiéis de ambos os sexos devem considerá-los como condenados, reprovados e rejeitados... Nós os proibimos a todos em nome da santa obediência e sob as penas de uma automática excomunhão...

Ainda mais, por causa dos precedentes erros e de muitos outros contidos nos livros ou escritos e sermões de Martinho Lutero, nós do mesmo modo condenamos, reprovamos e rejeitamos completamente os livros e todos os escritos e sermões do citado Martinho, seja em Latim seja em qualquer outra língua , que contenham os referidos erros ou qualquer um deles ; e desejamos que sejam considerados totalmente condenados, reprovados e rejeitados.

Proibimos a todos e a qualquer um dos fiéis de ambos os sexos, em nome da santa obediência e sob as penas acima em que incorrerão automaticamente, de ler, sustentar, pregar, louvar, imprimir, publicar ou defendê-los. Incorrerão nessas penas se ousarem apoiá-las de qualquer maneira, pessoalmente ou através de quem quer que seja, directa ou indirectamente, tácita ou explicitamente, pública ou ocultamente, seja em suas casas ou em outros lugares públicos ou privados. Na verdade, imediatamente após a publicação desta carta, essas obras devem ser procuradas aonde possam se encontrar, cuidadosamente, pelos ordinários e outros (eclesiásticos e regulares), e sob todas e cada uma das penas acima deverão ser queimadas publica e solenemente na presença dos clérigos e do povo.

No quanto se refere ao próprio Martinho, ó bom Deus, de que nos descuidamos ou o que deixamos de fazer? Que caridade paternal omitimos para que pudéssemos fazê-lo retroceder de tais erros? Nós até lhe oferecemos salvo conduto e o dinheiro necessário para sua viagem, apressando-o a vir sem medo ou desconfiança de qualquer espécie, que seria refutado com total caridade, e falaria não secretamente mas abertamente e face à face, segundo o exemplo de nosso Salvador e do apóstolo Paulo. Se ele tivesse feito isso, estamos certos de que ele poderia ter mudado seu coração e poderia ter reconhecido seus erros. Ele reconsideraria ter encontrado todos esses erros na Cúria Romana que atacou tão erradamente, atribuindo-lhes mais do que poderia, porque derivados de boatos vazios de homens perversos . Poderíamos ter-lhe mostrado mais claramente do que à luz do dia que os pontífices Romanos , nossos predecessores, aos quais injuriosamente atacou passando além de toda decência, nunca erraram em suas leis ou constituições, as quais ele tentou censurar. Porque, de acordo com o profeta, nem falta óleo salutar nem o médico em Galaad.

Mas ele sempre recusou a ouvir-nos e, desprezando a citação prévia e cada uma e todas as aberturas, não se dignou a vir a nós. Até agora ele tem sido contumaz. Com um espírito difícil, continuou sob censura mais de um ano. O que é pior, acrescentando mal a mal, e tomando conhecimento da citação, rompeu em insensato apelo a um concílio futuro. Isso seguramente seria contrário à constituição de Pio II e Júlio II, nossos predecessores, na qual todos os que apelassem nesse sentido deveriam ser punidos com as penas de heréticos. Em vão implorou pela ajuda de um concílio, já que abertamente admite que não acredita em concílio.

Portanto, sem nenhuma nova citação ou demora, nós procedemos contra ele com sua condenação e execração, como contra alguém cuja fé é notoriamente suspeita e de fato seguramente herética, com toda a severidade de cada uma e todas as penas e censuras antes mencionadas. Contudo, com o conselho de nossos irmãos, imitando a misericórdia do Deus Todo-Poderoso que não quer a morte do pecador mas antes que ele se converta e viva, e esquecendo todas as injúrias feitas a nós e à Sé Apostólica, decidimos usar de toda a compaixão de que somos capazes. Ë nossa esperança, tanta quanto podemos ter, que ele passe por uma mudança interior tomando o caminho da brandura que lhe propusemos, volte e se afaste de seus erros. Nós o receberemos bondosamente como ao filho pródigo retornando ao abraço da Igreja.

Portanto, o próprio Martinho e todos aqueles que aderiram a ele, e aqueles que o abrigam e o apoiam, pelo coração cheio de misericórdia de nosso Deus e a aspersão do sangue de nosso Senhor Jesus Cristo pela qual e através de quem foi realizada a redenção do género humano e a edificação da santa madre Igreja, fique sabendo que de coração exortamos e suplicamos que pare de conturbar a paz, unidade e verdade da Igreja pela qual o Salvador rezou tão insistentemente ao Pai. Que ele se afaste de seus erros perniciosos, que possa voltar para nós. Se eles querem realmente obedecer, e nos pôr cientes por documentos legais que obedeceram, encontrarão em nós a afeição do amor de um pai, o acesso à fonte dos efeitos da caridade paternal e acesso à fonte da misericórdia e da clemência.

Nós ordenamos, contudo, a Martinho que enquanto isso não ocorrer, pare com toda pregação ou com o oficio de pregador...

[- Dado em Roma, em 15 de Junho de 1520.]

Observações do Tradutor:

Para os que não estão familiarizados com o Problema Lutero e suas teses, faço aqui alguns apontamentos que poderão explicar a sequência de suas posições que culminaram nos 41 erros apontados pela Bula "Exsurge Domine". Como se trata de um resumo muito sucinto, não são citados os fatores políticos, os abusos existentes, a aversão germânica à Cúria Romana, bem como outros fatores importantes no triste episódio do Protestantismo.

Por ocasião de sua ordenação sacerdotal, em 1507, Lutero já era uma alma torturada, e até apresentava sérias perturbações psíquicas. Lutava contra as suas tentações com um temor desmesurado da justiça de Deus. A confissão não o tranquilizava. No decorrer do tempo e dessa luta, saltou para o lado contrário: "O justo vive da fé"; a consequência desse conceito - segundo ele - é que a justiça de Deus é a concessão da graça imerecida ao pecador, dispensando as boas obras com as quais os homens julgam obter merecimentos para salvar a alma (v. neste Site documento recentemente firmado por Católicos e pelos Luteranos). A concupiscência, que permanece também depois do baptismo, é pecado pura e simplesmente. Só pela fé, precisamente apenas pela fé sem as obras, é que o pecador se une a Cristo. Permanece pecador, não obstante sua justificação. Daí Lutero chega à negação do livre arbítrio, pois se o homem pudesse decidir-se por si mesmo seria seu próprio salvador e não precisaria de Cristo. Por consequência, as obras humanas por boas que pareçam, sempre são pecados mortais.

Por essa época ele toma conhecimento das indulgências que o Papa estava concedendo aos vivos e a favor das almas do purgatório. Torna-se logo contrário às indulgências e começa a pregar contra elas. Ele que lutava, com dificuldades, contra o pecado, com medo do inferno, não podia suportar essa concessão aberta a todos de graças de expiação.

Em 1517, redigiu 95 teses e as afixou, como edital, nas portas das igrejas, em Wurtenberg. Não só eram contra as indulgências, mas contra o papa que as dava. Afirmava que o papa não tinha jurisdição sobre os mortos. Afirmava que ninguém tem necessidade de indulgências porque todo cristão pode, com verdadeiro arrependimento, alcançar a plena remissão de culpa e pecado. O cristão deve esperar o céu mais pelas provações sofridas, do que por calma segurança. Por que então deixar o povo sem medo e incutir-lhe segurança com essas falsas promessas de perdão? Foi então que Lutero passou a ser divulgado e a criar polémicas. Na ocasião, ele contou com o apoio de príncipes alemães e a corrente aversão, na época, dos alemães à cúria romana.

Até então, o papa não interviera no assunto. Foi a Cúria Romana que abriu processo contra ele. Em 1518, realizou-se um interrogatório a Lutero, em Augsburgo, Alemanha, conduzido pelo núncio apostólico Caetano, sem qualquer resultado. O Cardeal apresentou as duas questões principais em jogo - a natureza da indulgência e a eficácia dos Sacramentos, querendo obter de Lutero o reconhecimento do tesouro da Igreja, dos méritos de Cristo, de onde o papa podia conceder indulgências, e retratação de sua afirmação de que só a fé confere virtude aos sacramentos. Lutero recusou ambas as coisas. Foi então que apelou, com receio de ser preso, para um Concílio Ecuménico.

Em 1519 foi convocada uma discussão em Lípsia. Ali, Lutero rejeitou o primado papal, dando-o como disposição dos homens, defendeu o herege Hus condenado no Concílio de Constança e, em consequência, fez a declaração de que os Concílios Ecuménicos também podiam errar e, peremptoriamente, enunciou o princípio de que só pode valer como verdade religiosa o que pode ser demonstrado pela Bíblia. Era o princípio formal do protestantismo - a doutrina da "sola scriptura", só a Bíblia.

A partir dessa ocasião a luta continuou não mais em forma académica, restrita aos entendidos, mas degenerou em luta popular, grosseira, de baixo calão, com graciosas injúrias ao papa e à Igreja Romana. Lutero passou a instigar seus seguidores. A luta já não girava em torno de uma teoria, mas em torno do Papa e de toda Igreja tradicional. Em seus escritos, muitos, agora escritos em alemão de modo a que o povo pudesse tomar parte, afirmava que todos os cristãos fazem parte, verdadeiramente, do estado eclesiástico, e não há discriminação entre eles, a não ser por causa do ministério. Levantava-se contra a doutrina dos sacramentos, da transubstanciação, do carácter sacrificial da santa Missa.

Afinal, quando recebeu a Bula "Exsurge Domine", Lutero considerou o Papa o anticristo e, em 10 de Dezembro de 1520, jogou-a ao fogo, publicamente, em Wurtenberg.

Estes apontamentos talvez lancem mais luz sobre a origem e propósito da Bula e, principalmente, sobre o conteúdo dos 41 tópicos de erros enumerados por Leão X.

Para estes apontamentos foi utilizado o volume "Reforma e Contra-Reforma", da Nova História da Igreja, do prof. Dr. Germano Tochle - Editora Vozes Ltda - Petrópolis - 1971.


Incarnationis mysterium

BULA DE PROCLAMAÇÃO
DO GRANDE JUBILEU
DO ANO 2000
JOÃO PAULO BISPO

SERVO DOS SERVOS DE DEUS
A TODOS OS FIÉIS QUE CAMINHAM
PARA O TERCEIRO MILÉNIO:
SAÚDE E BÊNÇÃO APOSTÓLICA!




Primeira Parte

1. Tendo o mistério da encarnação do Filho de Deus diante dos olhos, a Igreja está para cruzar o limiar do terceiro milénio. Neste momento, mais do que nunca, sentimos o dever de fazer nosso o cântico de louvor e agradecimento do Apóstolo: " Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, do alto dos Céus, nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. Foi assim que n'Ele nos escolheu antes da constituição do mundo, para sermos santos e imaculados diante dos seus olhos. Predestinou-nos para sermos seus filhos adoptivos por meio de Jesus Cristo, por sua livre vontade. (...) [Deu-nos] a conhecer o mistério da sua vontade, segundo o beneplácito que n'Ele de antemão estabelecera, para ser realizado ao completarem-se os tempos: reunir sob a chefia de Cristo todas as coisas que há no céu e na terra " (Ef 1, 3-5.9-10).

Por estas palavras, se vê claramente que a história da salvação tem o seu ponto culminante e significado supremo em Jesus Cristo. N'Ele, todos nós recebemos " graça sobre graça " (Jo 1, 16), conseguindo ser reconciliados com o Pai (cf. Rm 5, 10; 2 Cor 5, 18).

O nascimento de Jesus em Belém não é um facto que se possa relegar para o passado. Diante d'Ele, com efeito, está a história humana inteira: o nosso tempo actual e o futuro do mundo são iluminados pela sua presença. Ele é " o Vivente " (Ap 1, 18), " Aquele que é, que era e que há-de vir " (Ap 1, 4). Diante d'Ele, deve dobrar-se todo o joelho no céu, na terra e nos abismos, e toda a língua há-de proclamar que Ele é o Senhor (cf. Fil 2, 10-11). Cada homem, ao encontrar Cristo, descobre o mistério da sua própria vida.(1)
Jesus é verdadeiramente a realidade nova que supera tudo quanto a humanidade pudesse esperar, e tal permanecerá para sempre ao longo das épocas sucessivas da história. Deste modo, a encarnação do Filho de Deus e a salvação que realizou com a sua morte e ressurreição são o verdadeiro critério para avaliar a realidade temporal e qualquer projecto que procure tornar a vida do homem cada vez mais humana.

2. O Grande Jubileu do Ano 2000 está à porta. Desde a minha primeira Carta Encíclica, a Redemptor hominis, chamei a atenção para esta meta unicamente com o objectivo de preparar o ânimo de todos para se tornarem dóceis à acção do Espírito.(2) Trata-se de um evento que será celebrado simultaneamente em Roma e em todas as Igrejas Particulares espalhadas pelo mundo e terá, por assim dizer, dois centros: um será a Cidade onde a Providência quis colocar a sede do Sucessor de Pedro e o outro, a Terra Santa onde o Filho de Deus enquanto homem nasceu, tomando a nossa carne de uma Virgem, chamada Maria (cf. Lc 1, 27). Por isso o Jubileu, além de ser celebrado em Roma, sê-lo-á também, com igual dignidade e importância, naquela Terra justamente chamada " santa " por ter visto nascer e morrer Jesus. Aquela Terra, na qual desabrochou a primeira comunidade cristã, é o lugar onde se verificaram as revelações de Deus à humanidade. É a Terra prometida que marcou a história do povo judeu, e é venerada também pelos adeptos do Islamismo. Possa o Jubileu propiciar um passo mais no diálogo recíproco, até um dia podermos, todos juntos - judeus, cristãos e muçulmanos -, trocar entre nós a saudação da paz em Jerusalém.(3)

O tempo jubilar faz-nos ouvir aquela linguagem vigorosa que Deus usa, na sua pedagogia de salvação, para impelir o homem à conversão e à penitência, princípio e caminho da sua reabilitação e também condição para recuperar aquilo que não poderia conseguir só com as suas forças: a amizade de Deus, a sua graça, a vida sobrenatural, a única onde podem achar solução as aspirações mais profundas do coração humano.

A entrada no novo milénio encoraja a comunidade cristã a alargar o seu olhar de fé para horizontes novos no anúncio do Reino de Deus. Numa ocorrência tão especial como esta, é forçoso voltar com fidelidade segura à doutrina do Concílio Vaticano II, o qual, considerando as exigências actuais da evangelização, projectou nova luz sobre o compromisso missionário da Igreja. De facto, no Concílio a Igreja adquiriu uma consciência mais viva do seu próprio mistério e da missão apostólica que lhe foi confiada pelo seu Senhor. Esta consciência obriga a comunidade dos crentes a viver no mundo ciente de que é " o fermento e a alma da sociedade humana, a qual deve ser renovada em Cristo e transformada em família de Deus ".(4) Para corresponder eficazmente a tal compromisso, ela deve permanecer na unidade e crescer na sua vida de comunhão.(5) A iminência do evento jubilar constitui um vigoroso estímulo nesta direcção.

A passagem dos crentes para o terceiro milénio não se ressente de forma alguma do cansaço que o peso de dois mil anos de história poderia acarretar consigo; antes, os cristãos sentem-se revigorados com a certeza de levarem ao mundo a luz verdadeira, Cristo Senhor. Ao anunciar Jesus de Nazaré, verdadeiro Deus e perfeito Homem, a Igreja oferece a todo o ser humano a perspectiva de ser " divinizado " e, dessa forma, tornar-se mais homem.(6) Este é o único caminho pelo qual o mundo pode descobrir a sublime vocação a que é chamado, e realizá-la na salvação operada por Deus.


Segunda Parte


3. Durante estes anos de preparação imediata para o Jubileu, as Igrejas Particulares, de acordo com o que escrevi na minha Carta Tertio millennio adveniente,(7) têm vindo a predispor-se, por meio da oração, da catequese e do empenho nas diversas formas da pastoral, para este evento que introduz a Igreja inteira num novo período de graça e de missão. E a aproximação da efeméride jubilar suscita também um crescente interesse da parte de quantos andam à procura de um sinal propício que os ajude a discernir os traços da presença de Deus no nosso tempo.

Os anos de preparação para o Jubileu foram colocados sob o signo da Santíssima Trindade: por Cristo - no Espírito Santo - a Deus Pai. O mistério da Trindade é origem do caminho de fé e o seu termo último, quando finalmente os nossos olhos contemplarem eternamente o rosto de Deus. Ao celebrarmos a Encarnação, mantemos o olhar fixo no mistério da Trindade. Jesus de Nazaré, revelador do Pai, satisfez plenamente o desejo escondido no coração de cada homem de conhecer Deus. Aquilo que a criação conservava impresso nela como selo da mão criadora de Deus e que os antigos Profetas tinham anunciado como promessa, tem a sua manifestação definitiva com a revelação de Cristo.(8)

Jesus revela o rosto de Deus Pai, " misericordioso e compassivo " (Tg 5, 11), e, com o envio do Espírito Santo, torna patente o mistério de amor da Trindade. É o Espírito de Cristo que actua na Igreja e na história: é preciso permanecer à escuta d'Ele para reconhecer os sinais dos novos tempos e fazer com que a expectativa do regresso do Senhor glorioso se torne cada vez mais ardente no coração dos fiéis. Por isso, o Ano Santo deverá ser um único e incessante cântico de louvor à Trindade, Deus Altíssimo. Podem ajudar-nos estas palavras poéticas de S. Gregório de Nazianzo, o Teólogo:

" Glória a Deus Pai e ao Filho,
Rei do universo.
Glória ao Espírito, digno de louvor e todo santo.
A Trindade é um só Deus
que tudo criou e cumulou:
o céu de seres celestes, e a terra de terrestres.
O mar, os rios e as fontes,
Ele encheu-os de seres aquáticos,
tudo vivificando com o seu Espírito,
para que toda a criatura
entoe hinos ao seu sábio Criador,
causa única do viver e da duração dos seus dias.
Mais do que qualquer outra,
louve-O sempre a criatura racional
como grande Rei e Pai bom ".(9)

4. Possa este hino à Trindade pela encarnação do Filho ser elevado conjuntamente por todos aqueles que, tendo recebido o mesmo Baptismo, partilham a mesma fé no Senhor Jesus. O carácter ecuménico do Jubileu seja um sinal concreto do caminho que, sobretudo nestes últimos decénios, estão a realizar os fiéis das diversas Igrejas e Comunidades eclesiais. É a escuta do Espírito que nos deve tornar, a todos, capazes de chegar a manifestar visivelmente, na plena comunhão, a graça da filiação divina inaugurada pelo Baptismo: todos somos filhos de um único Pai. O Apóstolo não cessa de repetir, também hoje para nós, esta empenhativa exortação: " Há um só corpo e um só Espírito, como existe uma só esperança no chamamento que recebestes. Há um único Senhor, uma única fé, um único baptismo. Há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, actua por meio de todos e Se encontra em todos " (Ef 4, 4-6).

Parafraseando Santo Ireneu, não podemos permitir-nos de dar ao mundo a imagem de terra árida, depois de termos recebido a Palavra de Deus como chuva descida do céu; nem nunca poderemos pretender tornarmo-nos um único pão, se impedirmos à farinha de ser amalgamada pela água que sobre nós foi derramada.(10)

Cada ano jubilar é uma espécie de convite para uma festa nupcial. Acorramos todos, vindos das diversas Igrejas e Comunidades eclesiais espalhadas pelo mundo, para a festa que se prepara; tragamos connosco aquilo que já nos une, e o olhar fixo unicamente em Cristo permita-nos crescer na unidade que é fruto do Espírito. Como Sucessor de Pedro, o Bispo de Roma vem por este meio dar maior força ao convite para a celebração jubilar, a fim de que a ocorrência bimilenária do mistério central da fé cristã seja vivida como caminho de reconciliação e como sinal de genuína esperança para todos os que levantam seu olhar para Cristo e para a sua Igreja, sacramento " da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ".(11)

5. Quantos acontecimentos históricos evoca a ocorrência jubilar! Penso naquele ano 1300, quando o Papa Bonifácio VIII, correspondendo ao desejo de todo o povo de Roma, deu solene início ao primeiro Jubileu da história. Retomando uma antiga tradição que conferia " abundantes remissões e indulgências de pecados " a quantos visitassem, na Cidade Eterna, a Basílica de S. Pedro, ele quis conceder naquela altura " uma indulgência de todos os pecados, não só mais abundante, mas pleníssima ".(12) Desde então, a Igreja sempre celebrou o Jubileu como uma etapa significativa do seu caminhar para a plenitude em Cristo.

A história mostra o grande ímpeto com que o Povo de Deus sempre viveu os Anos Santos, vendo neles um tempo em que se fazia sentir mais intensamente o convite de Jesus à conversão. Não faltaram abusos e incompreensões ao longo deste caminho, mas os testemunhos de fé autêntica e de sincera caridade superam-nos de longe. Atesta-o de modo exemplar a figura de S. Filipe Néri, que, por ocasião do Jubileu de 1550, iniciou a chamada " caridade romana ", sinal tangível do acolhimento reservado aos peregrinos. Poder-se-ia escrever uma longa história de santidade, partindo precisamente da prática do Jubileu e dos frutos de conversão que a graça do perdão produziu em tantos crentes.


Terceira Parte


6. Durante o meu pontificado, tive a alegria de proclamar, em 1983, o Jubileu extraordinário pelos 1950 anos da redenção do género humano. Este mistério, realizado na morte e ressurreição de Cristo, constitui o auge dum evento que tem o seu início na encarnação do Filho de Deus. Por isso, este Jubileu pode justamente ser considerado " grande ", e a Igreja nutre o vivo desejo de acolher nos seus braços todos os fiéis, para lhes oferecer a alegria da reconciliação. De toda a Igreja elevar-se-á o hino de louvor e acção de graças ao Pai, que, no seu amor incomparável, nos concedeu em Cristo a graça de sermos " concidadãos dos santos e membros da família de Deus " (Ef 2, 19). Por ocasião desta grande festa, convidamos cordialmente a partilharem também da nossa alegria os adeptos de outras religiões e ainda todos aqueles que estão longe da fé em Deus. Como irmãos da única família humana, atravessamos juntos o limiar dum novo milénio, que exigirá o empenhamento e a responsabilidade de todos.

Para nós, crentes, o ano jubilar porá claramente em relevo a redenção operada por Cristo através da sua morte e ressurreição. Depois desta morte, ninguém pode ser separado do amor de Deus (cf. Rm 8, 21-39), senão por culpa própria. A graça da misericórdia vem ao encontro de todos, para que quantos foram reconciliados possam também ser " salvos pela sua vida " (Rm 5, 10).

Estabeleço, portanto, que o Grande Jubileu do Ano 2000 tenha início na noite de Natal de 1999, com a abertura da porta santa da Basílica de S. Pedro do Vaticano, que antecederá de poucas horas tanto a celebração inaugural prevista em Jerusalém e em Belém como a abertura da porta santa nas outras Basílicas Patriarcais de Roma. Quanto à Basílica de S. Paulo, a abertura da porta santa fica adiada para o dia 18 de Janeiro seguinte - uma terça-feira -, início da Semana de oração pela unidade dos cristãos, para sublinhar, deste modo também, o carácter ecuménico peculiar que possui este Jubileu.

Além disso, estabeleço que a inauguração do Jubileu nas Igrejas Particulares seja celebrada no dia santíssimo do Natal do Senhor Jesus, com uma solene Liturgia Eucarística presidida pelo Bispo diocesano na catedral e também na catedral. Relativamente à catedral, o Bispo pode confiar a presidência da celebração a um seu delegado. Uma vez que o rito de abertura da porta santa é próprio da Basílica Vaticana e das Basílicas Patriarcais, será conveniente que, na inauguração do período jubilar em cada uma das dioceses, tenha preferência a statio noutra igreja donde partirá a peregrinação para a catedral, a valorização litúrgica do Livro dos Evangelhos, a leitura de alguns parágrafos desta Bula, segundo as indicações do " Ritual da celebração do Grande Jubileu nas Igrejas Particulares ".

Que o Natal de 1999 seja, para todos, uma solenidade radiante de luz, o prelúdio duma experiência particularmente profunda de graça e misericórdia divina, que se prolongará até ao encerramento do Ano jubilar no dia da Epifania de Nosso Senhor Jesus Cristo, a 6 de Janeiro do ano 2001. Cada crente acolha o convite que os Anjos anunciam incessantemente: " Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens do seu agrado " (Lc 2, 14). Deste modo, o tempo do Natal será o coração pulsante do Ano Santo, que há-de trazer à vida da Igreja a abundância dos dons do Espírito para uma nova evangelização.

7. A instituição do Jubileu foi-se enriquecendo, ao longo da sua história, com sinais que atestam a fé e favorecem a devoção do povo cristão. De entre eles, há que recordar, antes de mais, a peregrinação. Esta reproduz a condição do homem, que gosta de descrever a sua própria existência como um caminho. Do nascimento até à morte, cada um vive na condição peculiar do homo viator. Por sua vez, a Sagrada Escritura testemunha repetidas vezes o valor do facto de pôr-se a caminho para ir aos lugares sagrados; era tradição do Israelita ir em peregrinação à cidade onde se conservava a arca da aliança, ou então visitar o santuário de Betel (cf. Jz 20, 18), ou o de Silo, onde Ana, mãe de Samuel, viu a sua oração atendida (cf. 1 Sam 1, 3). Submetendo-Se voluntariamente à Lei, também Jesus, com Maria e José, foi como peregrino à cidade santa de Jerusalém (cf. Lc 2, 41). A história da Igreja é o diário vivo duma peregrinação sem cessar. A caminho da cidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, da Terra Santa, ou de santuários - antigos e novos - dedicados à Virgem Maria e aos Santos: eis a meta de muitos fiéis que assim alimentam a sua devoção.

A peregrinação sempre constituiu um momento significativo na vida dos fiéis, revestindo expressões culturais diferentes nas várias épocas. Ela lembra o caminho pessoal do crente seguindo as pegadas do Redentor: é exercício de ascese activa, de arrependimento pelas faltas humanas, de vigilância constante sobre a própria fragilidade, de preparação interior para a conversão do coração. Através da vigilância, do jejum, da oração, o peregrino avança pela estrada da perfeição cristã, esforçando-se por chegar, com a ajuda da graça de Deus, " ao estado de homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo " (Ef 4, 13).

8. Conexo com a peregrinação, temos o sinal da porta santa, aberta pela primeira vez na Basílica do Santíssimo Salvador de Latrão durante o Jubileu de 1423. Ela evoca a passagem do pecado à graça, que cada cristão é chamado a realizar. Jesus disse: " Eu sou a porta " (Jo 10, 7), para indicar que ninguém pode ter acesso ao Pai senão por Ele. Esta designação que Jesus faz de Si mesmo, atesta que só Ele é o Salvador enviado pelo Pai. Há um único acesso que abre de par em par a entrada na vida de comunhão com Deus: este acesso é Jesus, caminho único e absoluto de salvação. Só a Ele se podem aplicar, na sua verdade plena, estas palavras do Salmista: " Esta é a porta do Senhor; por ela entram apenas os justos " (Sal 118117, 20).

O sinal da porta lembra a responsabilidade de todo o crente quando este atravessa o seu limiar. Passar por aquela porta significa confessar que Jesus Cristo é o Senhor, revigorando a fé n'Ele para viver a vida nova que nos deu. É uma decisão que supõe a liberdade de escolher e ao mesmo tempo a coragem de abandonar alguma coisa, na certeza de adquirir a vida divina (cf. Mt 13, 44-46). Será com este espírito que o Papa, à frente de todos, atravessará a porta santa na noite de 24 para 25 de Dezembro de 1999. Ao cruzar o seu limiar, mostrará à Igreja e ao mundo o Santo Evangelho, fonte de vida e de esperança para o terceiro milénio que está a chegar. Através da porta santa, simbolicamente mais ampla porque aberta ao fim de um milénio,(13) Cristo integrar-nos-á mais profundamente na Igreja, seu Corpo e sua Esposa. Compreendemos assim quão rico de significado é o apelo do apóstolo Pedro, quando escreve que, unidos a Cristo, também nós entramos, " como pedras vivas, na construção dum edifício espiritual, por meio dum sacerdócio santo, cujo fim é oferecer sacrifícios espirituais que serão agradáveis a Deus " (1 Ped 2, 5).


Quarta Parte


9. Outro sinal peculiar, bem conhecido dos fiéis, é a indulgência, um dos elementos constitutivos do evento jubilar. Nela se manifesta a plenitude da misericórdia do Pai, que vem ao encontro de todos com o seu amor, expresso primariamente no perdão das culpas. Ordinariamente Deus Pai concede o seu perdão por meio do sacramento da Penitência e da Reconciliação.(14) De facto, a rendição consciente e livre ao pecado grave separa o crente da vida da graça com Deus, excluindo-o consequentemente da santidade a que é chamado. A Igreja, tendo recebido de Cristo o poder de perdoar em seu nome (cf. Mt 16, 19; Jo 20, 23), é, no mundo, a presença viva do amor de Deus que se inclina sobre toda a fraqueza humana para a acolher no abraço da sua misericórdia. É precisamente através do ministério da sua Igreja que Deus espalha pelo mundo a sua misericórdia por meio daquele dom precioso que, segundo antiquíssima designação, se chama " indulgência ".

O sacramento da Penitência oferece ao pecador " uma nova possibilidade de se converter e reencontrar a graça da justificação ",(15) obtida pelo sacrifício de Cristo. Fica assim inserido novamente na vida de Deus e com plena participação na vida da Igreja. Confessando os seus pecados, o crente recebe verdadeiramente o perdão e pode tomar parte de novo na Eucaristia, como sinal da recuperada comunhão com o Pai e com a sua Igreja. Porém, a Igreja esteve sempre, desde a antiguidade, profundamente convencida de que o perdão, concedido gratuitamente por Deus, implica como consequência uma real mudança de vida, uma eliminação progressiva do mal interior, um renovamento da existência própria. O acto sacramental devia ser acompanhado por um acto existencial, com uma real purificação da culpa, que se chama precisamente penitência. Perdão não significa que este processo existencial se torne supérfluo, mas antes que adquire um sentido, que é aceite e agradável a Deus.

De facto, a realização da reconciliação com Deus não exclui a permanência de algumas consequências do pecado, das quais é necessário purificar-se. É precisamente neste âmbito que ganha relevo a indulgência, através da qual se manifesta o " dom total da misericórdia de Deus ".(16) Pela indulgência é concedida, ao pecador arrependido, a remissão da pena temporal devida pelos seus pecados já perdoados quanto à culpa.

10. Com efeito, o pecado, devido ao seu carácter de ofensa à santidade e à justiça de Deus e também de desprezo da amizade pessoal que Deus tem pelo homem, tem uma dupla consequência. Em primeiro lugar, se for grave, comporta a privação da comunhão com Deus e, consequentemente, a exclusão da participação na vida eterna. Ao pecador arrependido, contudo, Deus, na sua misericórdia, concede o perdão do pecado grave e a remissão da " pena eterna " que lhe era devida.

Em segundo lugar, " todo o pecado, mesmo venial, traz consigo um apego desordenado às criaturas, o qual tem de ser purificado, quer nesta vida quer depois da morte, no estado que se chama Purgatório. Esta purificação liberta da chamada "pena temporal" do pecado "; (17) expiada esta é que fica cancelado tudo aquilo que obsta à plena comunhão com Deus e com os irmãos.
Por outro lado, a Revelação ensina que o cristão não está sozinho no seu caminho de conversão. Em Cristo e por Cristo, a sua vida encontra-se ligada por um vínculo misterioso à vida de todos os outros cristãos na unidade sobrenatural do Corpo místico. Deste modo, instaura-se entre os fiéis um intercâmbio maravilhoso de bens espirituais, em virtude do qual a santidade de um aproveita aos outros numa medida muito superior ao dano que o pecado de um pôde causar aos demais. Há pessoas que deixam atrás de si uma espécie de saldo de amor, sofrimento suportado, pureza e verdade, que atrai e sustenta os outros. É o fenómeno da " vicariedade ", sobre o qual assenta todo o mistério de Cristo. O seu amor superabundante salva-nos a todos. E faz parte também da grandeza do amor de Cristo não nos deixar na condição de destinatários passivos, mas chamar-nos a colaborar na sua obra salvífica e de modo particular na sua paixão. Assim o exprime o conhecido texto da carta aos Colossenses: " Completo o que falta aos sofrimentos de Cristo na minha carne, em favor do seu Corpo que é a Igreja " (1, 24).

Esta profunda realidade aparece admiravelmente expressa também numa passagem do Apocalipse, onde se descreve a Igreja como a esposa adornada com um vestido simples de linho branco, mas de linho fino, puro e resplandecente. E S. João escreve: " O linho fino são as virtudes dos santos " (Ap 19, 8). De facto, na vida dos santos é tecido aquele linho fino e resplandecente que é o vestido da eternidade.
Tudo provém de Cristo, mas, porque nós Lhe pertencemos, o que é nosso torna-se também d'Ele e adquire uma força que cura. A isto se alude ao falar do " tesouro da Igreja ", que são as obras boas dos santos. Rezar para obter a indulgência significa entrar nesta comunhão espiritual e, por conseguinte, abrir-se completamente aos outros. De facto, mesmo no âmbito espiritual, ninguém vive para si mesmo. E a preocupação salutar pela salvação da própria alma fica liberta do temor e do egoísmo apenas quando se torna também preocupação pela salvação do outro. É a realidade da comunhão dos santos, o mistério da " realidade vicária ", da oração como caminho de união com Cristo e com os seus santos. Ele toma-nos consigo para tecermos, juntamente com Ele, a veste branca da nova humanidade, a veste de linho fino resplandecente da Esposa de Cristo.

Assim, esta doutrina sobre as indulgências " ensina em primeiro lugar quão triste e amargo é ter abandonado o Senhor Deus (cf. Jer 2, 19). Com efeito os fiéis, quando lucram as indulgências, compreendem que com as suas próprias forças não seriam capazes de reparar o mal que, pelo pecado, causaram a si mesmos e a toda a comunidade, e consequentemente sentem-se estimulados a realizar actos salutares de humildade ".(18) Depois, a verdade acerca da comunhão dos santos, que une os crentes a Cristo e uns aos outros, ensina-nos também quanto pode cada um servir de ajuda aos outros - vivos ou defuntos - a fim de viverem cada vez mais intimamente unidos ao Pai celeste.
Com base nestas razões doutrinais e interpretando o sentir maternal da Igreja, disponho que todos os fiéis, convenientemente preparados, possam usufruir abundantemente, ao longo de todo o Jubileu, do dom da indulgência, segundo as indicações que acompanham esta Bula (cf. decreto anexo).

11. Estes sinais fazem parte já da tradição da celebração jubilar. Mas, o povo de Deus não deixará de manter a sua mente aberta para reconhecer outros possíveis sinais da misericórdia de Deus, operante no Jubileu. Na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente, indiquei alguns que podem contribuir adequadamente para viver, com maior intensidade, a graça excelsa do Jubileu.(19) Recordo-os aqui brevemente.

Antes de mais, o sinal da purificação da memória: isto requer de todos um acto de coragem e de humildade para reconhecerem as faltas cometidas por quantos detiveram e detêm o nome de cristãos.

O Ano Santo é, por sua natureza, um tempo de chamada à conversão. E esta constitui o primeiro tema da pregação de Jesus, com o qual está significativamente conexo o da disponibilidade a crer: " Arrependei-vos e acreditai na Boa Nova " (Mc 1, 15). Este imperativo de Cristo resulta da tomada de consciência do facto que " se completou o tempo " (Mc 1, 15). O completar-se o tempo de Deus traduz-se em apelo à conversão. Aliás, esta é primariamente fruto da graça. O Espírito é que impele cada um a " cair em si mesmo " e a sentir a necessidade de regressar à casa do Pai (cf. Lc 15, 17-20). Por conseguinte, o exame de consciência constitui um dos momentos mais qualificantes da existência pessoal. Por ele, de facto, cada pessoa é confrontada com a verdade da própria vida; e descobre assim a distância que separa as suas acções do ideal que se tinha proposto.

A história da Igreja é uma história de santidade. O Novo Testamento sublinha esta característica dos baptizados: são " santos " na medida em que, separados do mundo enquanto sujeito ao Maligno, se consagram a prestar o culto ao único e verdadeiro Deus. De facto, esta santidade manifesta-se nas vidas de tantos Santos e Beatos reconhecidos pela Igreja, mas também na vida de uma multidão imensa de mulheres e homens desconhecidos, cujo número é impossível calcular (cf. Ap 7, 9). A sua vida atesta a verdade do Evangelho, oferecendo ao mundo o sinal visível de que a perfeição é possível. No entanto, é forçoso reconhecer que a história regista também numerosos episódios que constituem um contra-testemunho para o cristianismo. Por causa daquele vínculo que nos une uns aos outros dentro do Corpo místico, todos nós, embora não tendo responsabilidade pessoal por isso e sem nos substituirmos ao juízo de Deus - o único que conhece os corações -, carregamos o peso dos erros e culpas de quem nos precedeu. Mas, também nós, filhos da Igreja, pecámos, tendo impedido à Esposa de Cristo de resplandecer em toda a beleza do seu rosto. O nosso pecado estorvou a acção do Espírito no coração de muitas pessoas. A nossa pouca fé fez cair na indiferença e afastou muitos de um autêntico encontro com Cristo.

Como Sucessor de Pedro, peço que neste ano de misericórdia a Igreja, fortalecida pela santidade que recebe do seu Senhor, se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão para os pecados passados e presentes dos seus filhos. Todos pecaram, e ninguém pode declarar-se justo diante de Deus (cf. 1 Rs 8, 46). Repita-se sem temor: " Pecámos " (Jer 3, 25), mas mantendo viva a certeza de que, " onde abundou o pecado, superabundou a graça " (Rm 5, 20).

O abraço que o Pai reserva para quem vier, arrependido, ao seu encontro será a justa recompensa para o reconhecimento humilde das culpas próprias e alheias, fundado na consciência do vínculo profundo que une entre si os membros todos do Corpo místico de Cristo. Os cristãos são convidados a assumir, perante Deus e os homens ofendidos pelos seus comportamentos, as faltas que cometeram. Façam-no sem nada pedir em troca, animados apenas pelo " amor de Deus [que] foi derramado em nossos corações " (Rm 5, 5). Não faltarão pessoas imparciais, capazes de reconhecer que a história do passado e do presente registou e continua a registar frequentes episódios de marginalização, de injustiça e de perseguição contra os filhos da Igreja.

Neste ano jubilar, ninguém queira excluir-se do abraço do Pai. Ninguém se porte como o irmão mais velho da parábola evangélica que se recusa a entrar em casa para festejar (cf. Lc 15, 25-30). A alegria do perdão seja mais forte e maior do que todo e qualquer ressentimento. Deste modo, a Esposa brilhará aos olhos do mundo com aquela beleza e santidade que provém da graça do Senhor. Há dois mil anos que a Igreja é o berço onde Maria depõe Jesus e O confia à adoração e contemplação de todos os povos. Possa, através da humildade da Esposa, resplandecer ainda mais a glória e a força da Eucaristia, que ela celebra e conserva no seu seio. Nos sinais do Pão e do Vinho consagrados, Cristo ressuscitado e glorioso, luz das nações (cf. Lc 2, 32), revela a continuidade da sua Encarnação. Ele permanece verdadeiramente vivo no nosso meio, para alimentar os crentes com o seu Corpo e Sangue.

Por isso, voltemos o olhar para o futuro. O Pai misericordioso não leva em conta os pecados de que verdadeiramente estamos arrependidos (cf. Is 38, 17). Ele realiza aqui algo de novo pois, no amor que perdoa, antecipa os novos céus e a nova terra. Portanto, que a fé se revigore, cresça a esperança, e a caridade se torne cada vez mais operosa, em ordem a um renovado compromisso de testemunho cristão no mundo do próximo milénio.


Quinta Parte


12. Um sinal da misericórdia de Deus, particularmente necessário hoje, é o da caridade, que abre os nossos olhos às carências daqueles que vivem pobres e marginalizados. Tais situações estendem-se hoje sobre vastas áreas sociais e cobrem com a sua sombra mortífera populações inteiras. O género humano tem pela frente novas formas de escravatura, mais subtis do que as conhecidas no passado; para muitas pessoas, a liberdade continua a ser uma palavra destituída de conteúdo. Numerosas nações, especialmente as mais pobres, vivem oprimidas por uma dívida que assumiu tais proporções que o seu pagamento se tornou praticamente impossível. Por outro lado, é claro que não se pode atingir um progresso real sem uma efectiva colaboração entre os povos das diversas línguas, raças, nacionalidades e religiões. Devem ser eliminadas as prepotências que levam ao predomínio de uns sobre os outros: tais prepotências são pecado e injustiça. Quem se preocupa em acumular tesouros apenas na terra (cf. Mt 6, 19), " não enriquece diante de Deus " (Lc 12, 21).

Da mesma forma, deve-se criar uma nova cultura de solidariedade e cooperação internacionais, na qual todos - especialmente os países ricos e o sector privado - assumam a sua quota-parte de responsabilidade para se chegar a um modelo de economia ao serviço de toda a pessoa. Não deve ser prorrogado ulteriormente o tempo em que também o pobre Lázaro possa sentar-se ao lado do rico para partilhar do mesmo banquete, sem ter de continuar constrangido a alimentar-se do que cai da mesa (cf. Lc 16, 19-31). A pobreza extrema é fonte de violências, rancores e escândalos; remediá-la é trabalhar pela justiça e consequentemente pela paz.

O Jubileu é um apelo mais à conversão do coração, através da mudança de vida. A todos recorda que não se deve absolutizar os bens da terra porque não são Deus, nem o seu domínio ou a pretensão de domínio pelo homem porque a terra pertence a Deus e a Ele somente: " A terra pertence-Me, e vós sois apenas estrangeiros e hóspedes na minha casa " (Lv 25, 23). Possa este ano de graça tocar o coração de quantos têm nas suas mãos os destinos dos povos!

13. Um sinal perene, e hoje particularmente eloquente, da verdade do amor cristão é a memória dos mártires. O seu testemunho não fique esquecido. Eles anunciaram o Evangelho, dando a vida por amor. Sobretudo nos nossos dias, o mártir é sinal daquele amor maior que contém em si todos os outros valores. A sua existência reflecte aquela palavra suprema, pronunciada por Cristo na cruz: " Perdoa-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem " (Lc 23, 34). O fiel que tenha considerado seriamente a sua vocação cristã, dentro da qual o martírio aparece como uma possibilidade preanunciada na Revelação, não pode excluir esta perspectiva do horizonte da própria vida. Estes dois mil anos depois do nascimento de Cristo estão marcados pelo persistente testemunho dos mártires.

Também este século, que caminha para o seu ocaso, conheceu numerosíssimos mártires, sobretudo por causa do nazismo, do comunismo e das lutas raciais ou tribais. Sofreram pela sua fé pessoas das diversas condições sociais, pagando com o sangue a sua adesão a Cristo e à Igreja ou enfrentando corajosamente infindáveis anos de prisão e de privações de todo o género, para não cederem a uma ideologia que se transformou num regime de cruel ditadura. Do ponto de vista psicológico, o martírio é a prova mais eloquente da verdade da fé, que consegue dar um rosto humano inclusive à morte mais violenta e manifestar a sua beleza mesmo nas perseguições mais atrozes.
Inundados pela graça no próximo ano jubilar, poderemos mais vigorosamente erguer ao Pai o nosso hino de gratidão, cantando: Te martyrum candidatus laudat exercitus (o exército resplandecente dos mártires canta os vossos louvores). Sim, é o exército daqueles que " lavaram os seus vestidos e os branquearam no sangue do Cordeiro " (Ap 7, 14). Por isso, a Igreja espalhada por toda a terra deverá permanecer ancorada ao seu testemunho e defender zelosamente a sua memória. Possa o povo de Deus, revigorado na fé pelos exemplos destes autênticos campeões de diversa idade, língua e nação, cruzar confiadamente o limiar do terceiro milénio. À admiração pelo seu martírio associe-se, no coração dos fiéis, o desejo de poderem, com a graça de Deus, seguir o seu exemplo, caso o exijam as circunstâncias.

14. A alegria jubilar não seria completa se o olhar não se voltasse para Aquela que, com plena obediência ao Pai, para nós gerou na carne o Filho de Deus. Em Belém, completaram-se para Maria " os dias de Ela dar à luz " (Lc 2, 6), e, cheia do Espírito, deu à luz o Primogénito da nova criação. Chamada a ser a Mãe de Deus, Maria viveu plenamente a sua maternidade, desde o dia da concepção virginal até achar o seu coroamento no Calvário aos pés da cruz. Lá, por dom admirável de Cristo, Ela tornou-Se também Mãe da Igreja, a todos indicando a estrada que conduz ao Filho.

Mulher do silêncio e da escuta, dócil nas mãos do Pai, a Virgem Maria é chamada " bem-aventurada " por todas as gerações, porque soube reconhecer as maravilhas que n'Ela realizou o Espírito Santo. Jamais os povos se cansarão de invocar a Mãe da misericórdia, e sempre encontrarão refúgio sob a sua protecção. Aquela que, com seu filho Jesus e o esposo José, foi em peregrinação ao templo santo de Deus, proteja o caminho de quantos se fizerem peregrinos neste ano jubilar. Queira Ela interceder com particular intensidade, durante os próximos meses pelo povo cristão, para que obtenha a abundância da graça e da misericórdia, enquanto rejubila pelos dois mil anos passados desde o nascimento do seu Salvador.

A Deus Pai no Espírito Santo suba o louvor da Igreja, pelo dom da salvação em Cristo Senhor, agora e pelos séculos que hãode vir.

Dado em Roma, junto de S. Pedro, no primeiro Domingo de Advento, dia 29 de Novembro do ano do Senhor de 1998, vigésimo primeiro de Pontificado.


DISPOSIÇÕES PARA A AQUISIÇÃO DA INDULGÊNCIA JUBILAR


Com o presente decreto, que dá execução à vontade do Santo Padre expressa na Bula de proclamação do Grande Jubileu do Ano 2000, e em virtude das faculdades que lhe foram atribuídas pelo Sumo Pontífice, a Penitenciaria Apostólica determina a disciplina a observar para a aquisição da indulgência jubilar.

Todos os fiéis, convenientemente preparados, podem usufruir abundantemente do dom da indulgência ao longo de todo o período do Jubileu, segundo as determinações a seguir especificadas.

Tendo em conta que as indulgências concedidas, quer de forma geral quer por rescrito especial, permanecem em vigor durante o Grande Jubileu, recorda-se que a indulgência jubilar pode ser aplicada, à maneira de sufrágio, pelas almas dos defuntos: com esta oferta cumpre-se um insigne acto de caridade sobrenatural, em virtude do vínculo que une, no Corpo místico de Cristo, os fiéis ainda peregrinos na terra àqueles que já concluíram o seu caminho terreno. Além disso, ao longo do ano jubilar permanece válida também a norma segundo a qual a indulgência plenária pode ser alcançada apenas uma vez por dia.(20)

Ponto culminante do Jubileu é o encontro com Deus Pai, por meio de Cristo Salvador, presente na sua Igreja, de modo especial nos seus Sacramentos. Por esse motivo, todo o caminho jubilar, preparado pela peregrinação, tem como ponto de partida e de chegada a celebração dos sacramentos da Penitência e da Eucaristia, mistério pascal de Cristo nossa paz e reconciliação: é este o encontro transformante que abre ao dom da indulgência para o próprio e para os outros.

Depois de ter celebrado dignamente a confissão sacramental, que ordinariamente, como manda o cân. 960 do CIC e correlativo cân. 720§ 1 do CCEO, deve ser individual e íntegra, o fiel, cumprindo as obrigações requeridas, pode receber ou aplicar mesmo quotidianamente, durante um período razoável de tempo, o dom da indulgência plenária sem ter de repetir a confissão. Convém, todavia, que os fiéis recebam frequentemente a graça do sacramento da Penitência, para crescerem na conversão e pureza do coração.(21) Quanto à participação na Eucaristia - necessária para cada indulgência -, é conveniente que tenha lugar no mesmo dia em que se cumprem as obras prescritas.(22)

A estes dois momentos culminantes devem associar-se, primeiro, o testemunho de comunhão com a Igreja, manifestado através da oração segundo as intenções do Romano Pontífice, e, depois, também a prática de actos de caridade e de penitência, conforme as indicações dadas mais adiante: tais actos pretendem exprimir aquela conversão verdadeira do coração que resulta da comunhão com Cristo nos Sacramentos. De facto, Cristo é a indulgência e a propiciação pelos nossos pecados (cf. 1 Jo 2, 2). Infundindo nos corações dos fiéis o Espírito Santo que é a " remissão de todos os pecados ",(23) Ele induz cada um ao encontro filial e confiante com o Pai das misericórdias. Deste encontro, brotam os compromissos de conversão e renovação, de comunhão eclesial e de caridade para com os irmãos.

Também fica confirmada, para o próximo Jubileu, a norma segundo a qual os confessores podem comutar, em favor daqueles que estejam legitimamente impedidos, tanto a obra prescrita como as condições requeridas.(24) As religiosas e os religiosos obrigados à clausura, os doentes, e todos aqueles que de qualquer modo não sejam capazes de sair da própria residência, poderão efectuar, em vez da visita a determinada igreja, uma visita à capela da sua casa; se nem isto lhes for possível, poderão ganhar a indulgência unindo-se em espírito a todos aqueles que realizam de modo ordinário a obra prescrita, oferecendo a Deus as suas orações, sofrimentos e contrariedades.
Quanto às obras necessárias, os fiéis poderão ganhar a indulgência jubilar:

1) Em Roma, se fizerem piedosamente uma peregrinação a uma das Basílicas Patriarcais, isto é, à Basílica de S. Pedro do Vaticano, ou à Arquibasílica do Santíssimo Salvador de Latrão, ou à Basílica de Santa Maria Maior, ou à Basílica de S. Paulo na rua Ostiense, e lá participarem devotamente na Santa Missa ou noutra celebração litúrgica, como Laudes ou Vésperas, ou numa prática devocional (por exemplo, a Via-Sacra, o Terço mariano, a recitação do hino Akathistos em honra da Mãe de Deus); além disso, se visitarem, em grupo ou individualmente, uma das quatro Basílicas Patriarcais e lá permanecerem durante algum tempo em adoração eucarística e devotas reflexões, concluindo-as com o " Pai Nosso ", a profissão de fé sob qualquer uma das suas formas legítimas, e a invocação da Bem-aventurada Virgem Maria. Às quatro Basílicas Patriarcais são acrescentadas, nesta ocasião especial do Grande Jubileu e sob as mesmas condições, os lugares seguintes: a Basílica da Santa Cruz de Jerusalém, a Basílica de S. Lourenço do Verano, o Santuário de Nossa Senhora do Divino Amor, as Catacumbas cristãs.(25)

2) Na Terra Santa, se visitarem, observando as mesmas condições, a Basílica do Santo Sepulcro em Jerusalém, ou a Basílica da Natividade em Belém, ou a Basílica da Anunciação em Nazaré.

3) Nas outras circunscrições eclesiásticas, se realizarem uma peregrinação sagrada à Igreja Catedral ou a outras Igrejas ou lugares designados pelo Ordinário, e lá tomarem parte piedosamente numa celebração litúrgica ou numa prática devocional, como atrás se indicou para a cidade de Roma; além disso, se visitarem, em grupo ou individualmente, a Igreja Catedral ou um Santuário designado pelo Ordinário e lá permanecerem durante algum tempo em devotas reflexões, concluindo-as com o " Pai Nosso ", a profissão de fé sob qualquer uma das suas formas legítimas, e a invocação da Bem-aventurada Virgem Maria.

4) Em qualquer lugar, se forem visitar, durante um razoável período de tempo, os irmãos que se encontram em necessidade ou dificuldade (doentes, presos, anciãos sozinhos, deficientes, etc.), como que realizando uma peregrinação a Cristo presente neles (cf. Mt 25, 34-36), e cumprindo as habituais condições espirituais, sacramentais e de oração. Os fiéis quererão certamente repetir tais visitas durante o Ano Santo, podendo adquirir em cada uma delas a indulgência plenária, obviamente apenas uma vez por dia.

A indulgência plenária jubilar poderá ser obtida também por meio de iniciativas que exercitem de modo concreto e generoso o espírito penitencial que é como que a alma do Jubileu. Assim, abster-se pelo menos durante um dia de consumos supérfluos (por exemplo, do tabaco, das bebidas alcoólicas, jejuando ou praticando a abstinência segundo as normas gerais da Igreja e as especificações dos Episcopados), entregando uma quantia proporcionada do dinheiro poupado para os pobres; apoiar com uma significativa contribuição obras de carácter religioso ou social (especialmente a favor da infância abandonada, da juventude em dificuldade, dos anciãos necessitados, dos estrangeiros presentes nos diversos países à procura de melhores condições de vida); dedicar uma parte razoável do próprio tempo livre a actividades que sejam úteis para a comunidade, ou outras formas semelhantes de sacrifício pessoal.

Da Penitenciaria Apostólica em Roma, no primeiro Domingo de Advento, dia 29 de Novembro de 1998.
Card. William Wakefield Baum
Penitenciário-Mor


Referências


(1) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 22.
(2) Cf. n. 1: AAS 71 (1979), 258.
(3) Cf. João Paulo II, Epíst. ap. Redemptionis anno (20 de Abril de 1984): AAS 76 (1984), 627.
(4) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 40.
(5) Cf. João Paulo II, Carta ap. Tertio millennio adveniente (10 de Novembro de 1994), 36: AAS 87 (1995), 28.
(6) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 41.
(7) Cf. nn. 39-54: AAS 87 (1995), 31-37.
(8) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 2.4.
(9) Poemas dogmáticos, XXXI, Hymnus alias: PG 37, 510-511.
(10) Cf. Contra as heresias, III, 17: PG 7, 930.
(11) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 1.
(12) Bula Antiquorum habet (22 de Fevereiro de 1300): Bullarium Romanum III/2, p. 94.
(13) Cf. João Paulo II, Carta ap. Tertio millennio adveniente (10 de Novembro de 1994), 33: AAS 87 (1995), 25.
(14) Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Reconciliatio et pænitentia (2 de Dezembro de 1984), 28-34: AAS 77 (1985), 250-273.
(15) Catecismo da Igreja Católica, n. 1446.
(16) João Paulo II, Bula Aperite portas Redemptori (6 de Janeiro de 1983), 8: AAS 75 (1983), 98.
(17) Catecismo da Igreja Católica, n. 1472.
(18) Paulo VI, Const. ap. Indulgentiarum doctrina (1 de Janeiro de 1967), 9: AAS 59 (1967), 18.
(19) Cf. nn. 33.37.51: AAS 87 (1995), 25-26.29-30.36.
(20) Cf. Enchiridion indulgentiarum (Livraria Editora Vaticana, 1986), norma 21§ 1.
(21) Cf. ibid., norma 23§§ 1-2.
(22) Cf. ibid., norma 23§ 3.
(23) " Quia ipse est remissio omnium peccatorum ": Missale Romanum, Super oblata, Sabbato post Dominicam VII Paschæ.
(24) Cf. Ench. indulg., norma 27.
(25) Cf. Ench. indulg., concess. 14.





Quo Primum Tempore

Bula
QUO PRIMUM TEMPORE
sobre o Missal Romano
(após o Concílio de Trento)
Pio Bispo,
Servo dos Servos de Deus,
Para perpétua memória.


1. Desde que fomos elevados ao ápice da Hierarquia Apostólica, de bom grado aplicamos nosso zelo e nossas forças e dirigimos todos os nossos pensamentos no sentido de conservar na sua pureza tudo o que diz respeito ao culto da Igreja; o que nos esforçamos por preparar e, com a ajuda de Deus, realizar com todo o cuidado possível.

2. Ora, entre outros decretos do Santo Concílio de Trento cabia-nos estabelecer a edição e correcção dos livros santos: Catecismo, Missal e Breviário.

3. Com a graça de Deus, já foi publicado o Catecismo, destinado à instrução do povo, e corrigido o Breviário, para que se tributem a Deus os devidos louvores. Outrossim, para que ao Breviário correspondesse o Missal, como é justo e conveniente (já que é soberanamente oportuno que, na Igreja de Deus, haja uma só maneira de salmodiar e um só rito para celebrar a Missa), parecia-nos necessário providenciar, o mais cedo possível, o restante desta tarefa, ou seja, a edição do Missal.

4. Para tanto, julgamos dever confiar este trabalho a uma comissão de homens eruditos. Estes começaram por cotejar cuidadosamente todos os textos com os antigos de nossa Biblioteca Vaticana e com outros, quer corrigidos, quer sem alteração, que foram requisitados de toda parte. Depois, tendo consultado os escritos dos antigos e de autores aprovados, que nos deixaram documentos relativos à organização destes mesmos ritos, eles restituíram o Missal propriamente dito à norma e ao rito dos Santos Padres.

5. Este Missal assim revisto e corrigido, Nós, após madura reflexão, mandamos que seja impresso e publicado em Roma, a fim de que todos possam tirar os frutos desta disposição e do trabalho empreendido, de tal sorte que os padres saibam de que preces devem servir-se e quais os ritos, quais as cerimonias, que devem observar doravante na celebração das Missas.

6. E a fim de que todos, e em todos os lugares, adoptem e observem as tradições da Santa Igreja Romana, Mãe e Mestra de todas as Igrejas, decretamos e ordenamos que a Missa, no futuro e para sempre, não seja cantada nem rezada de modo diferente do que esta, conforme o Missal publicado por Nós, em todas as Igrejas: nas Igrejas Patriarcais, Catedrais, Colegiais, Paroquiais, quer seculares quer regulares, de qualquer Ordem ou Mosteiro que seja, de homens ou de mulheres, inclusive os das Ordens Militares, igualmente nas Igrejas ou Capelas sem encargo de almas nas quais a Missa conventual deve, segundo o direito ou por costume, ser celebrada em voz alta com coro, ou em voz baixa, segundo o rito da Igreja Romana, ainda quando estas mesmas Igrejas, de qualquer modo isentas, estejam munidas de um indulto da Sé Apostólica, de costume, de um privilégio, até de um juramento, de uma confirmação apostólica ou de quaisquer outras espécies de faculdades. A não ser que, ou por uma instituição aprovada desde a origem pela Sé Apostólica, ou então em virtude de um costume, a celebração destas Missas nessas mesmas Igrejas tenha um uso ininterrupto superior a 200 anos. A estas Igrejas Nós, de maneira nenhuma, suprimimos nem a referida instituição, nem seu costume de celebrar a Missa; mas, se este Missal que acabamos de editar lhes agrada mais, com o consentimento do Bispo ou do Prelado, junto com o de todo Capítulo, concedemos-lhes a permissão, não obstante quaisquer disposições em contrário, de poder celebrar a Missa segundo este Missal.

7. Quanto a todas as outras sobreditas Igrejas, por Nossa presente Constituição, que será válida para sempre, Nós decretamos e ordenamos, sob pena de nossa indignação, que o uso de seus missais próprios seja supresso e sejam eles radical e totalmente rejeitados; e, quanto ao Nosso presente Missal recentemente publicado, nada jamais lhe deverá ser acrescentado, nem supresso, nem modificado. Ordenamos a todos e a cada um dos Patriarcas, Administradores das referidas Igrejas, bem como a todas as outras pessoas revestidas de alguma dignidade eclesiástica, mesmo Cardeais da Santa Igreja Romana, ou dotados de qualquer outro grau ou preeminência, e em nome da santa obediência, rigorosamente prescrevemos que todas as outras práticas, todos os outros ritos, sem excepção, de outros missais, por mais antigos que sejam, observados por costume até o presente, sejam por eles absolutamente abandonados para o futuro e totalmente rejeitados; cantem ou rezem a Missa segundo o rito, o modo e a norma por Nós indicados no presente Missal, e na celebração da Missa, não tenha a audácia de acrescentar outras cerimonias nem de recitar outras orações senão as que estão contidas neste Missal.

8. Além disso, em virtude de Nossa Autoridade Apostólica, pelo teor da presente Bula, concedemos e damos o indulto seguinte: que, doravante, para cantar ou rezar a Missa em qualquer Igreja, se possa, sem restrição seguir este Missal com permissão e poder de usá-lo livre e licitamente, sem nenhum escrúpulo de consciência e sem que se possa incorrer em nenhuma pena, sentença e censura, e isto para sempre.

9. Da mesma forma decretamos e declaramos que os Prelados, Administradores, Cónegos, Capelães e todos os outros Padres seculares, designados com qualquer denominação, ou Regulares, de qualquer Ordem, não sejam obrigados a celebrar a Missa de outro modo que o por Nós ordenado; nem sejam coagidos e forçados, por quem quer que seja, a modificar o presente Missal, e a presente Bula não poderá jamais, em tempo algum, ser revogada nem modificada, mas permanecerá sempre firme e válida, em toda a sua força.

10. Não obstante todas as decisões e costumes contrários anteriores, de qualquer espécie: Constituições e Ordenações Apostólicas, ou Constituições e Ordenações, tanto gerais como especiais, publicadas em Concílios Provinciais e Sinodais; não obstante também o uso das Igrejas acima enumeradas, ainda que autorizado por uma prescrição bastante longa e imemorial, mas que não remonte a mais de 200 anos.

11. Queremos e, pela mesma autoridade, decretamos que, depois da publicação de Nossa presente Constituição e deste Missal, todos os padres sejam obrigados a cantar ou celebrar a Missa de acordo com ele: os que estão na Cúria Romana, após um mês; os que habitam aquém dos Alpes, dentro de três meses; e os que habitam além das montanhas, após seis meses ou assim que encontrem este Missal à venda.

12. E para que em todos os lugares da Terra este Missal seja conservado sem corrupção e isento de incorrecções e erros, por nossa Autoridade Apostólica e em virtude das presentes, proibimos a todos os impressores domiciliados nos lugares submetidos, directa ou indirectamente, à Nossa autoridade e à Santa Igreja Romana, sob pena de confiscação dos livros e de uma multa de 200 ducados de ouro, pagáveis à Câmara Apostólica, bem como aos outros domiciliados em qualquer outro lugar do mundo, sob pena de excomunhão ipso facto e de outras penas a Nosso alvitre, se arroguem, por temerária audácia, o direito de imprimir, oferecer ou aceitar esta Missa, de qualquer maneira, sem nossa permissão, ou sem uma licença especial de um Comissário Apostólico por Nós estabelecido, para estes casos, nos países interessados, e sem que antes, este Comissário ateste plenamente que confrontou com o Missal impresso em Roma, segundo a impressão típica, um exemplar do Missal destinado ao mesmo impressor, que lhe sirva de modelo para imprimir os outros, e que este concorda com aquele e dele não difere absolutamente em nada.

13. E como seria difícil transmitir a presente Bula a todos os lugares do mundo cristão e levá-la imediatamente ao conhecimento de todos, ordenamos que, segundo o costume, ela seja publicada e afixada às portas da Basílica do Príncipe dos Apóstolos e da Chancelaria Apostólica, bem como no Campo de Flora. Ordenamos igualmente que aos exemplares mesmo impressos desta Bula, subscritos pela mão de um tabelião público e munidos, outrossim, do Selo de uma pessoa constituída em dignidade eclesiástica, seja dada, no mundo inteiro, a mesma fé inquebrantável que se daria à presente, caso mostrada ou exibida.

14. Assim, portanto, que a ninguém absolutamente seja permitido infringir ou, por temerária audácia, se opor à presente disposição de nossa permissão, estatuto, ordenação, mandato, preceito, concessão, indulto, declaração, vontade, decreto e proibição.

Se alguém, contudo, tiver a audácia de atentar contra estas disposições, saiba que incorrerá na indignação de Deus Todo-poderoso e de seus bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo.

- Dado em Roma perto de São Pedro, no ano da Encarnação do Senhor mil quinhentos e setenta, no dia 14 de Julho, quinto de Nosso Pontificado.

Pio Papa V.


No ano de 1570, indict. 13, no dia 19 de Julho, 5º ano do Pontificado do nosso Santo Padre em Cristo Pio V, Papa pela Providência divina, as cartas anexas foram publicadas e afixadas nas portas da Basílica do Príncipe dos Apóstolos e da Chancelaria Apostólica e de igual maneira à extremidade do Campo Flora como de costume, por nós Jean Roger e Philibert Cappuis, camareiros, Scipico de Ottaviani, Primeiro Camareiro.


Unam Sanctam

Bula "UNAM SANCTAM"
Bonifácio VIII
18.11.1302


Una, santa, católica e apostólica: esta é a Igreja que devemos crer e professar já que é isso o que a ensina a fé. Nesta Igreja cremos com firmeza e com simplicidade testemunhamos. Fora dela não há salvação, nem remissão dos pecados, como declara o esposo no Cântico: "Uma só é minha pomba sem defeito. Uma só a preferida pela mãe que a gerou" (Ct 6,9). Ela representa o único corpo místico, cuja cabeça é Cristo e Deus é a cabeça de Cristo. Nela existe "um só Senhor, uma só fé e um só baptismo" (Ef 4,5). De fato, apenas uma foi a arca de Noé na época do dilúvio; ela foi a figura antecipada da única Igreja; encerrada com "um côvado" (Gn 6,16), teve um único piloto e um único chefe: Noé. Como lemos, tudo o que existia fora dela, sobre a terra, foi destruído.

A esta única Igreja, nós a veneramos, como diz o Senhor pelo profeta: "Salva minha vida da espada, meu único ser, da pata do cão" (Sl 21,21). Ao mesmo tempo que Ele pediu pela alma - ou seja, pela cabeça - também pediu pelo corpo, porque chamou o seu corpo como único, isto é, a Igreja, por causa da unidade da Igreja no seu esposo, na fé, nos sacramentos e na caridade. Ela é a veste sem costura (Jo 19,23) do Salvador, que não foi dividida, mas tirada à sorte. Por isso, esta Igreja, una e única, tem um só corpo e uma só cabeça, e não duas como um monstro: é Cristo e Pedro, vigário de Cristo, e o sucessor de Pedro, conforme o que disse o Senhor ao próprio Pedro: "Apascenta as minhas ovelhas" (Jo 21,17). Disse "minhas" em geral e não "esta" ou "aquela" em particular, de forma que se subentende que todas lhe foram confiadas. Assim, se os gregos ou outros dizem que não foram confiados a Pedro e aos seus sucessores, é necessário que reconheçam que não fazem parte das ovelhas de Cristo pois o Senhor disse no evangelho de São João: "Há um só rebanho e um só Pastor" (Jo 10,16).

As palavras do Evangelho nos ensinam: esta potência comporta duas espadas, todas as duas estão em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a Igreja enquanto que a primeira deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do padre; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do padre. Uma espada deve estar subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade espiritual.

O poder espiritual deve superar em dignidade e nobreza toda espécie de poder terrestre. Devemos reconhecer isso quando mais nitidamente percebemos que as coisas espirituais sobrepujam as temporais. A verdade o atesta: o poder espiritual pode estabelecer o poder terrestre e julgá-lo se este não for bom. Ora, se o poder terrestre se desvia, será julgado pelo poder espiritual. Se o poder espiritual inferior se desvia, será julgado pelo poder superior. Mas, se o poder superior se desvia, somente Deus poderá julgá-lo e não o homem. Assim testemunha o apóstolo: "O homem espiritual julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado" (1Cor 2,15).

Esta autoridade, ainda que tenha sido dada a um homem e por ele seja exercida, não é humana, mas de Deus. Foi dada a Pedro pela boca de Deus e fundada para ele e seus sucessores Naquele que ele, a rocha, confessou, quando o Senhor disse a Pedro: "Tudo o que ligares..." (Mt 16,19). Assim, quem resiste a este poder determinado por Deus "resiste à ordem de Deus" (Rm 13,2), a menos que não esteja imaginando dois princípios, como fez Manes, opinião que julgamos falsa e herética, já que, conforme Moisés, não é "nos princípios", mas "no princípio Deus criou o céu e a terra" (Gn 1,1).

Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao romano pontífice.

Dada no Vaticano, no oitavo ano de nosso pontificado [18 de Novembro de 1302].

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