quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Cartas Apostólicas




De Vita et Martyrium

Carta Apostólica
DE VITA ET MARTYRIUM
sob a forma de Motu Proprio
para a proclamação de São Tomás Moro
Patrono dos Governantes e dos Políticos
João Paulo pp. II
Para perpétua memória.


1. Da vida e martírio de S. Tomás Moro emana uma mensagem que atravessa os séculos e fala aos homens de todos os tempos da dignidade inalienável da consciência, na qual, como recorda o Concílio Vaticano II, reside "o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser" (Gaudium et spes, 16). Quando o homem e a mulher prestam ouvidos ao apelo da verdade, a consciência guia, com segurança, os seus actos para o bem. Precisamente por causa do testemunho que S. Tomás Moro deu, até ao derramamento do sangue, do primado da verdade sobre o poder, é que ele é venerado como exemplo imperecível de coerência moral. Mesmo fora da Igreja, sobretudo entre os que são chamados a guiar os destinos dos povos, a sua figura é vista como fonte de inspiração para uma política que visa como seu fim supremo o serviço da pessoa humana.

Recentemente, alguns Chefes de Estado e de Governo, numerosos dirigentes políticos, várias Conferências Episcopais e Bispos individualmente dirigiram-me petições a favor da proclamação de S. Tomás Moro como Patrono dos Governantes e dos Políticos. A instância goza da assinatura de personalidades de variada proveniência política, cultural e religiosa, facto esse que testemunha o vivo e generalizado interesse pelo pensamento e comportamento deste insigne Homem de governo.

2. Tomás Moro viveu uma carreira política extraordinária no seu País. Tendo nascido em Londres no ano 1478 de uma respeitável família, foi colocado, desde jovem, ao serviço do Arcebispo de Cantuária, João Morton, Chanceler do Reino. Continuou depois, em Oxford e Londres, os seus estudos de Direito, mas interessando-se também pelos vastos horizontes da cultura, da teologia e da literatura clássica. Dominava perfeitamente o grego e criou relações de intercâmbio e amizade com notáveis protagonistas da cultura do Renascimento, como Erasmo de Roterdão.

A sua sensibilidade religiosa levou-o a procurar a virtude através duma assídua prática ascética: cultivou relações de amizade com os franciscanos conventuais de Greenwich e demorou-se algum tempo na cartuxa de Londres, que são dois dos focos principais de fervor religioso do Reino. Sentindo a vocação para o matrimónio, a vida familiar e o empenho laical, casou-se em 1505 com Joana Colt, da qual teve quatro filhos. Tendo esta falecido em 1511, Tomás desposou em segundas núpcias Alice Middleton, já viúva com uma filha. Ao longo de toda a sua vida, foi um marido e pai afectuoso e fiel, cooperando intimamente na educação religiosa, moral e intelectual dos filhos. A sua casa acolhia genros, noras e netos, e permanecia aberta a muitos jovens amigos que andavam à procura da verdade ou da própria vocação. Além disso, na vida de família dava-se largo espaço à oração comum e à lectio divina, e também a sadias formas de recreação doméstica. Diariamente, Tomás participava na Missa na igreja paroquial, mas as austeras penitências que abraçava eram conhecidas apenas dos seus familiares mais íntimos.

3. Em 1504, no reinado de Henrique VIII, foi eleito pela primeira vez para o Parlamento. O rei renovou-lhe o mandato em 1510 e constituiu-o ainda como representante da Coroa na Capital, abrindo-lhe uma carreira brilhante na Administração Pública. No decénio sucessivo, Henrique VIII várias vezes o enviou em missões diplomáticas e comerciais à Flandres e territórios da França actual. Constituído membro do Conselho da Coroa, juiz presidente dum tribunal importante, vice-tesoureiro e cavaleiro, tornou-se em 1523 porta-voz, ou seja presidente, da Câmara dos Comuns.

Estimado por todos pela sua integridade moral indefectível, argúcia de pensamento, carácter aberto e divertido, erudição extraordinária, foi nomeado pelo rei em 1529, num momento de crise política e económica do País, Chanceler do Reino. Tomás Moro, o primeiro leigo a ocupar este cargo, enfrentou um período extremamente difícil, procurando servir o rei e o País. Fiel aos seus princípios, empenhou-se por promover a justiça e conter a danosa influência de quem buscava os próprios interesses à custa dos mais débeis. Em 1532, não querendo dar o próprio apoio ao plano de Henrique VIII que desejava assumir o controle da Igreja na Inglaterra, pediu a própria demissão. Retirou-se da vida pública, resignando-se a sofrer, com a sua família, a pobreza e o abandono de muitos que, na prova, se revelaram falsos amigos.

Constatando a firmeza irremovível com que ele recusava qualquer compromisso contra a própria consciência, o rei mandou prendê-lo, em 1534, na Torre de Londres, onde foi sujeito a várias formas de pressão psicológica. Mas Tomás Moro não se deixou vencer, recusando prestar o juramento que lhe fora pedido, porque comportaria a aceitação dum sistema político e eclesiástico que preparava o terreno para um despotismo incontrolável. Ao longo do processo que lhe moveram, pronunciou uma ardente apologia das suas convicções sobre a indissolubilidade do matrimónio, o respeito pelo património jurídico inspirado aos valores cristãos, a liberdade da Igreja face ao Estado. Condenado pelo Tribunal, foi decapitado.

Com o passar dos séculos, atenuou-se a discriminação contra a Igreja. Em 1850, foi reconstituída a hierarquia católica na Inglaterra. Deste modo, tornou-se possível abrir as causas de canonização de numerosos mártires. Juntamente com outros 53 mártires, entre os quais o Bispo João Fisher, Tomas Moro foi beatificado pelo Papa Leão XIII em 1886 e canonizado, com o citado Bispo, por Pio XI no ano 1935, quando se completava o quarto centenário do seu martírio.

4. Muitas são as razões em favor da proclamação de S. Tomás Moro como Patrono dos Governantes e dos Políticos. Entre elas, conta-se a necessidade que o mundo político e administrativo sente de modelos credíveis, que lhes mostrem o caminho da verdade num momento histórico em que se multiplicam árduos desafios e graves responsabilidades. Com efeito, existem, hoje, fenómenos económicos intensamente inovadores que estão a modificar as estruturas sociais; além disso, as conquistas científicas no âmbito das biotecnologias tornam mais aguda a exigência de defender a vida humana em todas as suas expressões, enquanto as promessas duma nova sociedade, propostas com sucesso a uma opinião pública distraída, requerem com urgência decisões políticas claras a favor da família, dos jovens, dos anciãos e dos marginalizados.

Em tal contexto, muito pode ajudar o exemplo de S. Tomás Moro que se distinguiu pela sua constante fidelidade à Autoridade e às instituições legítimas, porque pretendia servir nelas, não o poder, mas o ideal supremo da justiça. A sua vida ensina-nos que o governo é, primariamente, um exercício de virtude. Forte e seguro nesta estrutura moral, o Estadista inglês pôs a sua actividade pública ao serviço da pessoa, sobretudo dos débeis ou pobres; regulou as controvérsias sociais com fino sentido de equidade; tutelou a família e defendeu-a com valoroso empenho; promoveu a educação integral da juventude. O seu profundo desdém pelas honras e riquezas, a humildade serena e jovial, o sensato conhecimento da natureza humana e da futilidade do sucesso, a segurança de juízo radicada na fé conferiram-lhe aquela confiança e fortaleza interior que o sustentou nas adversidades e frente à morte. A sua santidade refulgiu no martírio, mas foi preparada por uma vida inteira de trabalho, ao serviço de Deus e do próximo.

Aludindo a tais exemplos de perfeita harmonia entre fé e obras, escrevi, na Exortação apostólica pós-sinodal Christifideles laici, que "a unidade de vida dos fiéis leigos é de enorme importância, pois eles têm que se santificar na vida profissional e social normal. Assim, para que possam corresponder à sua vocação, os fiéis leigos devem olhar para as actividades da vida quotidiana como uma ocasião de união com Deus e de cumprimento da sua vontade, e também como serviço aos outros homens" (n.º 17).

Esta harmonia do natural com o sobrenatural é talvez o elemento que melhor define a personalidade do grande Estadista inglês: viveu a sua intensa vida pública com humildade simples, caracterizada pelo proverbial "bom humor" que sempre manteve, mesmo na iminência da morte.

Esta foi a meta a que o levou a sua paixão pela verdade. O homem não pode separar-se de Deus, nem a política da moral: eis a luz que iluminou a sua consciência. Como disse uma vez, "o homem é criatura de Deus, e por isso os direitos humanos têm a sua origem n'Ele, baseiam-se no desígnio da criação e entram no plano da Redenção. Poder-se-ia dizer, com uma expressão audaz, que os direitos do homem são também direitos de Deus" (Discurso, 07/04/1998).

É precisamente na defesa dos direitos da consciência que brilha com luz mais intensa o exemplo de Tomás Moro. Pode-se dizer que viveu de modo singular o valor de uma consciência moral que é "testemunho do próprio Deus, cuja voz e juízo penetram no íntimo do homem até às raízes da sua alma" (Carta enc. Veritatis splendor, 58), embora, no âmbito da acção contra os hereges, tenha sofrido dos limites da cultura de então.

O Concílio Ecuménico Vaticano II, na Constituição Gaudium et spes, observa que tem crescido, no mundo contemporâneo, "a consciência da eminente dignidade da pessoa humana, por ser superior a todas as coisas e os seus direitos e deveres serem universais e invioláveis" (n.º 26). A vida de S. Tomás Moro ilustra, com clareza, uma verdade fundamental da ética política. De facto, a defesa da liberdade da Igreja face a indevidas ingerências do Estado é simultaneamente uma defesa, em nome do primado da consciência, da liberdade da pessoa frente ao poder político. Está aqui o princípio basilar de qualquer ordem civil respeitadora da natureza do homem.

5. Espero, portanto, que a elevação da exímia figura de S. Tomás Moro a Patrono dos Governantes e dos Políticos possa contribuir para o bem da sociedade. Trata-se, aliás, de uma iniciativa em plena sintonia com o espírito do Grande Jubileu, que nos introduz no terceiro milénio cristão.

Assim, depois de maturada reflexão e acolhendo de bom grado os pedidos que me foram feitos, constituo e declaro S. Tomás Moro Patrono celeste dos Governantes e dos Políticos, concedendo que lhe sejam tributadas todas as honras e privilégios litúrgicos que competem, segundo o direito, aos Patronos de categorias de pessoas.

Bendito e glorificado seja Jesus Cristo, Redentor do homem, ontem, hoje e sempre.

- Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 31 de Outubro de 2000, vigésimo terceiro ano de Pontificado.

Ioannes Paulus PP. II



Deus Maravilhoso e Providente

Carta Apostólica
DEUS MARAVILHOSO E PROVIDENTE
do Santo Padre João Paulo II
por ocasião do 1700º aniversário de
Baptismo do Povo Arménio


1. "Deus, maravilhoso e sempre providente, segundo a Vossa previsão, deste início à salvação dos Arménios".

Caríssimos Irmãos e Irmãs, o antigo hino litúrgico, que canta a iniciativa de Deus na evangelização do vosso nobre Povo brota do meu coração repleto de gratidão nesta feliz data, na qual celebrais o XVII centenário do encontro dos vossos antepassados com o cristianismo. Toda a Igreja católica rejubila na recordação da providencial purificação baptismal, graças à qual a vossa nobre e querida Nação começou definitivamente a fazer parte da multidão de povos que acolheram a vida nova em Cristo.

"Pois todos os que fostes baptizados em Cristo, vos revestistes de Cristo" (Gl 3, 27). As palavras do Apóstolo Paulo revelam a singular novidade que o cristão adquire pelo facto de ter recebido o Baptismo. De facto, com este sacramento o homem é incorporado em Cristo, de forma que já pode afirmar com confiança: "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Gl 2, 20). Este encontro pessoal e irrepetível regenera, santifica e transforma o ser humano, tornando-o perfeito adorador de Deus e templo vivo do Espírito Santo. O Baptismo, ao inserir o discípulo na verdadeira videira que é Cristo, faz dele um ramo capaz de dar fruto. Tornado filho no Filho, ele é herdeiro da felicidade eterna, preparada desde a origem do mundo.

Por conseguinte, cada Baptismo é um acontecimento marcado pelo encontro de amor entre Cristo Senhor e a pessoa humana, no mistério da liberdade e da verdade. É um acontecimento que tem uma dimensão eclesial, como se verifica com qualquer outro sacramento: a incorporação em Cristo significa também a incorporação na Igreja, Esposa do Verbo, Mãe Imaculada e afectuosa. A respeito disto, o Apóstolo Paulo afirma: "Foi num só Espírito que todos nós fomos baptizados, a fim de formarmos um só corpo" (1 Cor 12, 13).


Esta incorporação na Igreja adquire uma visibilidade particular na história de alguns povos, para os quais a conversão foi um facto comunitário, ligado a acontecimentos ou circunstâncias particulares. Quando isto se verifica, fala-se de "Baptismo de um povo".

2. Caríssimos Irmãos e Irmãs do povo arménio, há dezassete séculos esta conversão comum a Cristo realizou-se para vós. Tratou-se de um acontecimento que marcou profundamente a vossa identidade; não só a identidade pessoal, mas também a comunitária, de forma que se pode com razão falar de "Baptismo" da vossa Nação, mesmo se na realidade a penetração do cristianismo já tinha sido iniciado desde há algum tempo na vossa Terra. A tradição atribui o seu início à pregação e à obra dos próprios santos apóstolos Tadeu e Bartolomeu.

Com o "Baptismo" da comunidade arménia, a começar pelas suas autoridades civis e militares, nasce uma identidade nova do povo, que se tornará parte constitutiva e inseparável do próprio ser arménio. Desde então já não foi mais possível pensar que, entre os componentes dessa identidade, não esteja a fé de Cristo, como elemento essencial. Aliás, a própria cultura arménia receberá do anúncio do Evangelho um impulso de extraordinário vigor: a "armeniedade" dará uma conotação profundamente característica a este anúncio e, ao mesmo tempo, este anúncio será uma força propulsora para um progresso sem precedentes da própria cultura nacional. Também a invenção do alfabeto arménio, facto determinante para a estabilidade e o carácter definitivo da identidade cultural do povo, estará estreitamente ligada ao "Baptismo" da Arménia e será querida e concebida como um verdadeiro e próprio instrumento de evangelização, antes de o ser como um instrumento de comunicação e de conceitos e notícias. Obra de São Mesrop-Masthoc', em colaboração com o santo Catholicos Sahak, o novo alfabeto permitirá aos Arménios receber as melhores linhas da espiritualidade, da teologia e da cultura de Sírios e Gregos, e de fundir tudo isto de maneira original com a contribuição da especificidade do próprio génio.

3. A conversão da Arménia, que se realizou no alvorecer do século IV e tradicionalmente situada no ano 301, deu aos vossos antepassados a consciência de ser o primeiro povo oficialmente cristão, muito antes que o cristianismo fosse reconhecido como religião própria do império romano. É sobretudo o histórico Agatângelo que, numa narração rica de simbolismo, se detém a narrar pormenorizadamente os factos que a tradição coloca na origem dessa maciça conversão do vosso povo. A narração inspira-se no encontro providencial e dramático dos dois heróis que estão na base dos acontecimentos: Gregório, filho do Parto Anak, que cresceu em Cesareia de Capadócia, e o rei arménio Tiridate III. Na realidade, no início foi um confronto: Gregório, tendo-lhe sido pedido o seu sacrifício para a deusa Anahit, opôs-se com uma decidida recusa, explicando ao soberano que um só é o criador do céu e da terra, o Pai do Senhor Jesus Cristo. Tendo sido por isso submetido a cruéis tormentos, Gregório, assistido pelo poder de Deus, não se sujeitou. Considerando esta sua irredutível constância na confissão cristã, o rei mandou lançá-lo num poço profundo, um lugar incómodo e escuro infestado de serpentes, onde ninguém anteriormente tinha sobrevivido. Mas Gregório, alimentado pela Providência através da mão piedosa de uma viúva, permaneceu longos anos naquele poço sem sucumbir.

A narração prossegue contando as tentativas realizadas entretanto pelo imperador romano Diocleciano para seduzir a santa virgem Hrip'sime, a qual, a fim de se subtrair ao perigo, fugiu de Roma com um grupo de companheiras, procurando refúgio na Arménia. A beleza da jovem chamou a atenção do rei Tiridate, que se apaixonou por ela e quis fazê-la sua. Perante a obstinada recusa de Hrip'sime, o rei enfureceu-se e mandou matá-la, assim como as suas companheiras com torturas cruéis. Segundo a tradição, como pena pelo horrendo delito, Tiridate foi transformado num javali, e não pôde recuperar a aparência humana enquanto não obedeceu a uma indicação do Céu, libertando Gregório do poço no qual tinha permanecido durante treze longos anos. Tendo obtido o prodígio da recuperação do semblante humano pelas orações do Santo, Tiridate compreendeu que o Deus verdadeiro era o de Gregório e decidiu converter-se, juntamente com a sua família e com o exército e empenhar-se na evangelização de todo o País. Desta forma os Arménios foram baptizados e o cristianismo impôs-se como religião oficial da Nação. Gregório, que entretanto tinha recebido em Cesareia a ordenação episcopal, e Tiridate percorreram o País, destruindo os lugares de culto dos ídolos e construíram templos cristãos.

Depois de uma visão do Unigénito Filho de Deus encarnado, foi construída uma igreja em Vagharshpat, que do prodigioso acontecimento tomou o nome de Etchmiadzin, o que significa o lugar onde "o Unigénito desceu". Os sacerdotes pagãos foram instruídos na nova religião e tornaram-se os ministros do novo culto, enquanto os seus filhos constituíram o nervo do clero e do subsequente monaquismo.

Gregório retirou-se muito cedo para a vida eremita no deserto, e o filho mais jovem Aristakes foi ordenado Bispo e constituído chefe da Igreja arménia. Nesta qualidade participou no Concílio de Niceia. O historiador arménio conhecido com nome de Moisés de Corene define Gregório "o nosso progenitor e pai segundo o Evangelho" (1) e, para mostrar a continuidade entre a evangelização apostólica e a do Iluminador, refere a tradição segundo a qual Gregório teria tido o privilégio de ser concebido ao lado da sagrada memória do apóstolo Tadeu.

Os antigos calendários da Igreja ainda não dividida celebram-no, no Oriente e no Ocidente, no mesmo dia como apóstolo incansável de verdade e de santidade. Pai na fé de todo o povo arménio, São Gregório ainda hoje intercede do Céu, a fim de que todos os filhos da vossa grande Nação possam finalmente encontrar-se de novo à volta da única Mesa posta por Cristo, divino Pastor do único rebanho.

4. Esta narração tradicional encerra em si, paralelamente aos aspectos legendários, elementos de grande significado espiritual e moral. A pregação da Boa Nova e a conversão da Arménia, estão antes de mais fundadas no sangue das testemunhas da fé. Os sofrimentos de Gregório e o martírio de Hrip'sime e das suas companheiras mostram como o primeiro Baptismo da Arménia é precisamente o do sangue.

A componente do martírio constitui um elemento constante na história do vosso povo. A sua fé permanece indissoluvelmente ligada ao testemunho do sangue derramado por Cristo e pelo Evangelho. Toda a cultura e a própria espiritualidade dos Arménios estão invadidos do orgulho pelo sinal supremo do dom da vida no martírio. Sentem-se nelas os ecos dos gemidos devido ao sofrimento suportado em comunhão com o Cordeiro imolado para a salvação do mundo. Disto é símbolo o sacrifício de Vardan Mamikonian e dos seus companheiros que, na batalha de Avarayr (a. 451) contra a dinastia de Iazdegerd II que queria impor ao povo a religião mazdeísta, deram a vida para permanecer fiéis a Cristo e defender a fé da Nação. Na vigília do conflito, como narra o histórico Eliseu, os soldados foram exortados a defender a fé com estas palavras: "Quem pensava que o cristianismo fosse para nós como roupa, agora sabe que não no-lo pode tirar, como não nos pode tirar a cor da pele" (2). Trata-se de um testemunho eloquente da coragem que animava estes crentes: morrer por Cristo significava para eles participar na sua paixão, afirmando os direitos da consciência. Era preciso não permitir que fosse renegada a fé cristã, sentida pelo povo como um bem supremo.

A partir de então repetiram-se muitas vezes vicissitudes análogas, até aos massacres suportados pelos Arménios nos anos entre os séculos XIX e XX, que culminaram nos trágicos acontecimentos de 1915, quando o povo arménio teve de sofrer violências indizíveis, cujas consequências dolorosas ainda são visíveis na diáspora, à qual foram obrigados muitos dos seus filhos. É uma memória que não se pode perder. Várias vezes, no decurso do século que há pouco terminou, os meus Predecessores quiseram prestar homenagem aos cristãos da Arménia, que perderam a vida por mãos violentas (3). Eu próprio quis recordar os sofrimentos suportados pelo vosso povo: são os sofrimentos dos membros do Corpo místico de Cristo (4).

Os acontecimentos sanguinolentos, além de marcarem profundamente a alma do vosso povo, mudaram várias vezes a sua geografia humana, obrigando-o a contínuas migrações em todo o mundo. Merece ser realçado o facto de que, onde quer que os arménios tenham chegado, levaram a riqueza dos próprios valores morais e das próprias estruturas culturais, indissoluvelmente ligadas às eclesiásticas. Guiados pela confiante consciência do apoio divino, os cristãos arménios souberam manter firme nos seus lábios a oração de São Gregório de Narek: "Se fixar os olhos a observar o espectáculo do duplo risco no dia da miséria, que eu veja a tua salvação, ó providente Esperança! Se voltar o olhar para o alto em direcção do caminho aterrador que tudo envolve, que venha ao meu encontro docemente o anjo da paz!" (5). De facto, a fé cristã, também nos momentos mais trágicos da história arménia, foi a mola propulsora que assinalou o início do renascimento do um povo cansado.

Assim a Igreja, seguindo os seus filhos peregrinos no mundo à procura de paz e de serenidade, constituiu a sua verdadeira força moral, tornando-se, em muitos casos, a única instância que eles puderam ter como ponto de referência, o único centro autorizado que apoiou os seus esforços e inspirou o seu pensamento.

5. Um segundo elemento de grande valor na vossa história atormentada, queridos Irmãos e Irmãs arménios, é constituído pela relação entre evangelização e cultura. A palavra "Iluminador", com a qual é designado São Gregório, realça muito bem a sua dupla função na história da conversão do vosso povo. De facto, "iluminação" é a palavra tradicional na linguagem cristã para indicar que, mediante o Baptismo, o discípulo, chamado por Deus das trevas para a sua admirável luz (cf. 1 Pd 2, 9), é inundado pelo esplendor de Cristo "luz do mundo" (Jo 8, 12). N'Ele, o cristão encontra o profundo significado da sua vocação e da sua missão no mundo.

Mas a palavra "iluminação", na acepção arménia, enriquece-se de um ulterior significado, porque também indica a difusão da cultura através do ensinamento, confiado em particular aos monges-mestres, continuadores da pregação evangélica de São Gregório. Como evidencia o historiador Koriun, a evangelização da Arménia levou consigo a vitória sobre a ignorância (6).

Com o espalhar da alfabetização e do conhecimento das normas e dos preceitos da Sagrada Escritura, foi permitido finalmente ao povo construir uma sociedade regida de maneira sábia e prudente. Também Agatângelo não deixa de anotar como a conversão da Arménia tenha implicado a emancipação dos cultos pagãos, que não só escondiam ao povo a verdade da fé, mas mantinham-no de igual modo numa condição de ignorância (7).

Por este motivo a Igreja arménia considerou sempre parte integrante do seu mandato a promoção da cultura e da consciência nacional e empenhou-se sempre para que esta síntese permanecesse viva e fecunda.

6. A narração tradicional dos factos relacionados com a conversão dos Arménios oferece motivos para uma reflexão. Em São Gregório o Iluminador e nas santas Virgens resplandece a força poderosa da fé, que leva a não se deter perante as tentações do poder do mundo, e torna capazes de resistir aos sofrimentos mais atrozes bem como às lisonjas mais aliciantes. No rei Tiridate podem ver-se as consequências provocadas pelo afastamento de Deus: o homem perde a própria dignidade degradando-se, de maneira a permanecer prisioneiro dos próprios desejos. De toda esta narração emerge uma verdade importante: não existe uma sacralidade absoluta do poder, e não significa que ele possa ser sempre justificado em tudo o que realiza. Ao contrário, deve-se reconhecer a responsabilidade pessoal das próprias escolhas: se elas são erradas, permanecem assim, mesmo que seja um rei quem as realiza. A humanidade reconstitui-se totalmente quando a fé desmascara o pecado, o iníquo se converte e encontra Deus e a sua justiça.

Nos edifícios cristãos, construídos no lugar onde se veneravam os ídolos, transparece a verdadeira identidade do cristianismo: isso encerra o que nele existe de verdadeiramente válido em sentido religioso da humanidade e sabe, ao mesmo tempo, propor a novidade de uma fé que não admite outros compromissos. Desta forma, edificando o povo santo de Deus, contribui também para o aparecimento de uma nova civilização na qual são sublimados os valores mais autênticos do homem.

7. Enquanto se desenvolvem as celebrações do XVII centenário da conversão da Arménia, o meu pensamento eleva-se ao Senhor do céu e da terra, ao qual desejo exprimir a gratidão de toda a Igreja por ter suscitado no povo arménio uma fé tão firme e corajosa e por ter apoiado o testemunho.

Uno-me de boa vontade a esta feliz comemoração, para contemplar juntamente convosco, caríssimos Irmãos e Irmãs, a inumerável multidão de Santos que teve a origem nesta terra abençoada e agora resplandece na glória do Pai. Trata-se de figuras que constituem um rico tesouro para a Igreja: são mártires, confessores da fé, monges e monjas, filhos e filhas que nasceram de novo da fecundidade da Palavra de Deus. Entre as figuras ilustres, quero recordar aqui São Gregório de Narek, que sondou as profundezas tenebrosas do desespero humano e entreviu a luz resplendente da graça que também nela brilhou para o crente, e São Nerses Shnorhali, o Catholicos que conjugou um extraordinário amor pelo seu povo e pela sua tradição cum uma clarividente abertura às outras Igrejas, num esforço exemplar de busca da comunhão na plena unidade.

Desejo dizer ao povo arménio, antes de mais, o meu obrigado pela sua longa história de fidelidade a Cristo, fidelidade que conheceu a perseguição e o martírio. Os filhos da Arménia cristã derramaram o seu sangue pelo Senhor, mas toda a Igreja cresceu e se consolidou em virtude do seu sacrifício. Se hoje o Ocidente pode livremente professar a própria fé, isto é devido também a quantos se imolaram, fazendo do seu corpo uma defesa para o mundo cristão, nas suas extremas ramificações. A sua morte foi o preço da nossa segurança: agora eles resplandecem envolvidos em cândidas vestes e cantam ao Cordeiro o hino de louvor na bem-aventurança do Céu (cf. Ap 7, 9-12).

O património de fé e de cultura do povo arménio enriqueceu a humanidade de tesouros de arte e de talento, que agora se encontram espalhados em todo o mundo. Mil e setecentos anos de evangelização fazem desta Terra um dos berços da civilização cristã, para a qual se dirige com um olhar de admiração a veneração de todos os discípulos do Mestre divino.

Embaixadores de paz e de laboriosidade, os Arménios percorreram o mundo e, com o árduo trabalho das suas mãos, ofereceram um precioso contributo para o transformar e tornar mais próximo do projecto de amor do Pai. O povo cristão sente-se feliz pela sua presença generosa e fiel e deseja que eles possam encontrar sempre simpatia e compreensão em todas as partes do mundo.

8. Desejo dirigir, ainda, um pensamento particular a todos os que se empenham para que a Arménia supere os sofrimentos de tantos anos de regime totalitário. O povo espera sinais concretos de esperança e solidariedade, e estou certo de que a recordação grata das próprias origens cristãs é para cada Arménio motivo de conforto e de estímulo. Faço votos para que a memória viva dos prodígios realizados por Deus entre vós, caríssimos fiéis arménios, vos ajude a redescobrir em plenitude a dignidade do homem, de cada homem, de qualquer condição, e vos estimule a apoiar em bases espirituais e morais a reconstrução do País.

Formulo fervorosos votos para que os fiéis continuem com coragem o seu empenho e os seus já notáveis esforços, de forma que a Arménia de amanhã refloresça nos valores humanos e cristãos da justiça, da solidariedade, da igualdade, do respeito, da honestidade e da hospitalidade, que estão na base da convivência humana. Se isto se verificar, o Jubileu do povo arménio dará plenamente o seu fruto.

Estou certo de que a data dezassete vezes centenária do Baptismo da vossa querida Nação será um momento significativo e particular para continuar com vigor o caminho do diálogo ecuménico.

As cordiais relações já existentes entre a Igreja Apostólica Arménia e a Igreja Católica tiveram, nos últimos decénios, um impulso decisivo também através dos encontros das mais altas Autoridades daquela Igreja com o Papa. Como esquecer, neste contexto, as memoráveis visitas ao Bispo e à comunidade cristã de Roma de Sua Santidade Varken I em 1970, do inesquecível Karekin I em 1996, e a recente visita de Karekin II? Depois, a entrega a Sua Santidade Karekin II, na presença do Patriarca armenio-católico, da relíquia do Pai da Arménia cristã, que eu próprio tive a alegria de realizar recentemente, para a nova catedral de Yerevan, constitui uma ulterior confirmação do vínculo profundo que une a Igreja de Roma a todos os filhos de São Gregório o Iluminador.

É um caminho que deve continuar com confiança e coragem, a fim de que todos possam ser cada vez mais fiéis ao mandamento de Cristo: ut unum sint! Nesta perspectiva, a Igreja arménio-católica deve oferecer o seu decisivo contributo mediante a "oração, o exemplo da vida, a escrupulosa fidelidade às antigas tradições orientais, o mútuo e mais profundo conhecimento, a colaboração e a fraterna estima de coisas e pessoas" (8).

Com os Arménios e para os Arménios presidirei daqui a poucos dias a uma solene Eucaristia de louvor para agradecer a Deus o dom da fé dele recebido, rezando para que o Senhor "reúna em unidade todos os povos na sua santa Igreja, que surgiu sobre os fundamentos dos Apóstolos e dos Profetas, e a conserve imaculada até ao dia em que Ele voltar" (9). Naquela celebração estarão presentes na única Mesa do Pão de vida os Irmãos e as Irmãs que já vivem a comunhão plena com a Sé de Pedro e, desta forma, enriquecem a Igreja Católica com o próprio contributo insubstituível. Mas o meu profundo desejo é que aquela sagrada Acção de graças abrace idealmente todos os Arménios, onde quer que se encontrem, para exprimir com uma única voz o reconhecimento de cada um a Deus pelo dom da fé, no sagrado ósculo da paz.

9. O meu pensamento dirige-se para a "Mãe da Luz, Maria, a Virgem santa que gerou segundo a carne a Luz que provém do Pai, e se tornou o alvorecer do Sol de justiça" (10). Venerada com profundo afecto com o título de Astvazazin (Mãe de Deus), ela está presente em todos os momentos da atormentada história daquele povo. São principalmente os textos litúrgicos e homiléticos que escancaram os tesouros da devoção mariana que, ao longo dos séculos, assinalou a afeição filial dos Arménios à Escrava do grande mistério da salvação. Além de a recordar quotidianamente na Divina Liturgia e em todas as horas do Ofício divino, a oração da Igreja prevê festas ao longo do ano que recordam a sua vida e os mistérios de mais relevo. A ela se dirigem os fiéis com confiança, para solicitar que a sua intercessão junto do Filho: "Templo da Luz sem manchas, tálamo inefável do Verbo, tu, que destruíste a triste maldição da mãe Eva, implora ao teu Filho Unigénito, que nos reconciliou com o Pai, para que nos prive de qualquer perturbação e conceda a paz às nossas almas" (11)! Virgem do Socorro, Maria é venerada como a rainha da Arménia.

Luminosa glória, na multidão dos Santos arménios cantores da Mãe de Deus, é sem dúvida São Gregório de Narek, o grande Vardapet (doutor) mariano da Igreja Arménia, que também eu quis recordar na Encíclica Redemptoris Mater (12). Ele saúda a Virgem Santa como "Sede predilecta da vontade da Divindade encarnada" (13). Com as suas palavras, se eleve a súplica da Igreja em festa, para que este Jubileu do Baptismo da Arménia seja motivo de renascimento e de alegria:


"Aceita o cântico de bênção
dos nossos lábios e digna-te conceder
a esta Igreja os dons e as graças
de Sião e de Belém,
para que possamos ser dignos
de participar na salvação
no dia da grande manifestação
da glória indestrutível
do imortal salvador e teu Filho,
o Unigénito" (14).
Sobre todo o povo arménio e sobre as próximas celebrações, invoco a plenitude das bênçãos divinas, fazendo minhas as palavras do histórico Agatângelo: "Eles, dirigindo estas palavras ao Criador, digam: "Senhor, Vós sois o nosso Deus", e Ele lhe diga: "Vós sois o Meu povo" (15), para glória da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.

- Vaticano, 2 de Fevereiro de 2001.



REFERÊNCIAS


1) História da Arménia, Veneza 1841, pág. 265.
2) História de Vartan e da guerra dos Arménios contra os Persas, cap. V, Veneza 1840, pág. 121.
3) Cf. BENTO XV, Discurso no Sagrado Consistório (6 de Dezembro de 1915) AAS VII (1915), 510; Carta aos Governantes dos povos beligerantes (1 de Agosto de 1917): AAS IX (1917), 419; PIO XI, Discurso no Consistório para a beatificação dos veneráveis João Bosco e Cosme de Carboniano (21 de Abril de 1929): Discorsi II, 64; Carta Enc. Quinquagesimo ante (23 de Dezembro de 1929): AAS XXI (1929), 712; PIO XII, Discurso aos fiéis arménios (13 de Março de 1946): Discorsi e messaggi VIII, 5-6.
4) Homilia durante a Divina Liturgia em rito arménio (21 de Novembro de 1987), 3: Insegnamenti X/3 (1987), 1177; Discurso na abertura da exposição Roma-Arménia (25 de Março de 1999), 2: L'Osserv. Rom. 26 de Março de 1999, pág. 4; Discurso por ocasião da visita de Sua Santidade Karekin II (9 de Novembro de 2000); L'Osserv. Rom. 11 de Novembro de 2000, pág. 5.
5) Livro das Lamentações, Palavra II, b, ed. Studium, 1999, pág. 164-165.
6) Cf. História da vida de São Mesrob e do início da literatura arménia, Veneza 1894, págs. 19-24.
7) Cf. Agatângelo, História, 2, Veneza 1843, págs. 196-198.
8) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre as Igrejas orientais Orientalium Ecclesiarum, 24.
9) Antigo "Cântico para todas as festas da Virgem Santa Maria", em Laudes et hymni ad SS. Mariae Virginis honorem ex Armenorum Breviario excerpta, Veneza 1877, XVII, 118.
10) CATHOLICOS ISACCO III, Hino para a festa da santa Cruz, em Laudes et hymni ad SS. Mariae Virginis honorem ex Armeniorum Breviario excerpta, Veneza 1877, XIII, 88-89.
11) S. NERSES SHNORHALI, Hino em honra da Virgem Santa Maria, em tempo de Quaresma, em Laudes et hymni ad SS. Mariae Virginis honorem ex Armeniorum Breviario excerpta, Veneza 1877, IX, 81.
12) Cf. n. 31: AAS 79 (1987), 404.
13) Discurso panegírico à B.A.V. Maria, Veneza 1904, pág. 16; 24.
14) Ibid.
15) História, 2, Veneza 1843, pág. 200.





Divini Amoris Scientia

CARTA APOSTÓLICA
DIVINI AMORIS SCIENTIA
DE SUA SANTIDADE JOÃO PAULO II
PROCLAMANDO SANTA TERESA DO MENINO JESUS E DA SANTA FACE
DOUTORA DA IGREJA



1. A CIÊNCIA DO AMOR DIVINO, que o Pai das misericórdias efunde mediante Jesus Cristo no Espírito Santo, é um dom concedido aos pequeninos e aos humildes, para que conheçam e proclamem os segredos do Reino, escondidos aos entendidos e aos sábios: por isso Jesus exultou no Espírito Santo, dando louvor ao Pai, que assim dispôs (cf. Lc 10, 21-22; Mt 11, 25-26). Alegra-se também a Mãe Igreja ao constatar como, ao longo do decurso da história, o Senhor continua a revelar-Se aos pequeninos e aos humildes, habilitando os Seus eleitos, por meio do Espírito, o Qual "tudo penetra até às profundezas de Deus" (1 Cor 2, 10), a falarem das graças "que Deus nos concedeu... não com palavras doutas, de sabedoria humana, mas com aquelas que o Espírito ensina e que exprimem as coisas espirituais" (1 Cor 2, 12-13). Deste modo o Espírito Santo guia a Igreja para a verdade inteira, provê-a de diversos dons, enriquece-a com os seus frutos, rejuvenesce-a com a força do Evangelho e torna-a capaz de perscrutar os sinais dos tempos, para responder sempre melhor à vontade de Deus (cf. Lumen gentium, 4 e 12; Gaudium et spes, 4). Entre os pequeninos, aos quais foram manifestados duma maneira muito especial os segredos do Reino, resplandece Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, monja professa da Ordem das Carmelitas Descalças, cujo centenário do ingresso na pátria celeste é celebrado neste ano. Durante a sua vida, Teresa descobriu "luzes novas, significados ocultos e misteriosos" (Manuscrito A, 83 v) e recebeu do Mestre divino aquela "ciência do amor", que depois manifestou com particular originalidade nos seus escritos (cf. Manuscrito B, 1 r). Essa ciência é a expressão luminosa do seu conhecimento do mistério do Reino e da sua experiência pessoal da graça. Esta pode ser considerada como um particular carisma de sabedoria evangélica que Teresa, como outros Santos e Mestres da fé, hauriu na oração (cf. Manuscrito C, 36 r).

2. Rápido, universal e constante foi o acolhimento do exemplo da sua vida e da sua doutrina evangélica no nosso século. Quase à imitação da sua precoce maturação espiritual, a sua santidade foi reconhecida pela Igreja no espaço de poucos anos. Com efeito, a 10 de Junho de 1914 Pio X assinava o decreto de introdução da causa de beatificação; a 14 de Agosto de 1921 Bento XV declarava a heroicidade das virtudes da Serva de Deus, pronunciando nessa ocasião um discurso sobre a via da infância espiritual; e Pio XI proclamava-a Beata a 29 de Abril de 1923. Pouco mais tarde, no dia 17 de Maio de 1925, o mesmo Papa diante de uma imensa multidão, canonizava-a na Basílica de São Pedro, pondo em evidência o esplendor das suas virtudes, assim como a originalidade da sua doutrina; e dois anos depois, a 14 de Dezembro de 1927, acolhendo o pedido de muitos Bispos missionários, proclamava-a, juntamente com São Francisco Xavier, Padroeira das missões. A partir desses reconhecimentos, a irradiação espiritual de Teresa do Menino Jesus cresceu na Igreja e dilatou-se no mundo inteiro. Muitos institutos de vida consagrada e movimentos eclesiais, especialmente nas jovens Igrejas, escolheram-na como padroeira e mestra, inspirando-se na sua doutrina espiritual. A sua mensagem, muitas vezes sintetizada na chamada "pequena via", que não é senão a via evangélica da santidade para todos, foi objecto de estudo por parte de teólogos e cultores da espiritualidade. Foram erguidos e dedicados ao Senhor, sob o patrocínio da Santa de Lisieux, catedrais, basílicas, santuários e igrejas em todo o orbe. O seu culto é celebrado pela Igreja Católica nos diversos ritos do Oriente e do Ocidente. Muitos fiéis puderam experimentar a força da sua intercessão. Muitos, chamados ao ministério sacerdotal ou à vida consagrada, especialmente nas missões e no claustro, atribuem a graça divina da vocação à sua intercessão e ao seu exemplo.

3. Os Pastores da Igreja, a começar pelos meus predecessores, os Sumos Pontífices deste século, que propuseram a sua santidade como exemplo para todos, puseram também em relevo que Teresa é mestra de vida espiritual, mediante uma doutrina, ao mesmo tempo simples e profunda, que ela bebeu nas fontes do Evangelho sob a guia do Mestre divino e, depois, comunicou aos irmãos e irmãs na Igreja com vastíssima eficácia (cf. Manuscrito B, 2 v - 3 r). Esta doutrina espiritual foi-nos transmitida sobretudo pela sua autobiografia que, tirada dos três manuscritos por ela redigidos nos últimos anos da sua vida, e publicada um ano depois da sua morte, com o título Histoire d'une ame (Lisieux 1898), suscitou um extraordinário interesse até aos nossos dias. Esta autobiografia, traduzida juntamente com os seus outros escritos em cerca de cinquenta línguas, tornou Teresa conhecida em todas as regiões do mundo, mesmo fora da Igreja católica. A um século de distância da sua morte, Teresa do Menino Jesus continua a ser reconhecida como uma das grandes mestras de vida espiritual do nosso tempo.

4. Não é para admirar, por isso, que tenham sido apresentados muitos pedidos à Sé Apostólica, a fim de que lhe fosse atribuído o título de Doutora da Igreja universal. Há alguns anos, e de modo especial ao aproximar-se a jubilosa celebração do primeiro centenário da sua morte, esses pedidos chegaram cada vez mais numerosos, também da parte de Conferências Episcopais; além disso, foram realizados Congressos de estudo e inúmeras são as publicações que ressaltam como Teresa do Menino Jesus possui uma extraordinária sabedoria e ajuda, com a sua doutrina, tantos homens e mulheres de todas as condições a conhecerem e a amarem Jesus Cristo e o seu Evangelho. À luz destes dados, decidi fazer com que se estudasse atentamente se a Santa de Lisieux possuía os requisitos para lhe poder ser atribuído o título de Doutora da Igreja universal.

5. É-me grato, neste contexto, recordar brevemente alguns momentos da vida de Teresa do Menino Jesus. Ela nasce em Alençon, na França, a 2 de Janeiro de 1873. É baptizada dois dias mais tarde na igreja de Notre-Dame, recebendo os nomes de Maria Francisca Teresa. Os seus pais são Louis Martin e Zélie Guérin, dos quais reconheci recentemente a heroicidade das virtudes. Depois da morte da mãe, ocorrida a 28 de Agosto de 1877, Teresa transfere-se com toda a família para a cidade de Lisieux onde, circundada pelo afecto do pai e das irmãs, recebe uma formação ao mesmo tempo exigente e repleta de ternura. Por volta do final de 1879 aproximasse pela primeira vez do sacramento da penitência. No dia de Pentecostes de 1883 tem a singular graça da cura de uma grave enfermidade, pela intercessão de Nossa Senhora das Vitórias. Educada pelas Beneditinas de Lisieux, recebe a primeira Comunhão a 8 de Maio de 1884, depois de uma intensa preparação, coroada por uma singular experiência da graça da união íntima com Jesus. Poucas semanas mais tarde, no dia 14 de Junho do mesmo ano, recebe o sacramento da Crisma, com viva consciência daquilo que comporta o dom do Espírito Santo na pessoal participação na graça do Pentecostes. No Natal de 1886 vive uma experiência espiritual muito profunda, que qualifica como "completa conversão". Graças a ela, supera a fragilidade emotiva consequente à perda da mãe e inicia "uma corrida de gigante" na via da perfeição (cf. Manuscrito A, 44 v - 45 v). Teresa deseja abraçar a vida contemplativa, como as suas irmãs Paulina e Maria, no Carmelo de Lisieux, mas é impedida devido à sua jovem idade. Por ocasião de uma peregrinação na Itália, depois de ter visitado a Casa Santa de Loreto e os lugares da Cidade eterna, na audiência concedida pelo Papa aos fiéis da diocese de Lisieux, no dia 20 de Novembro de 1887, com filial audácia pede a Leão XIII a permissão de entrar no Carmelo com 15 anos de idade. No dia 9 de Abril de 1888 entra no Carmelo de Lisieux, onde recebe o hábito da Ordem da Virgem a 10 de Janeiro do ano seguinte, e emite a sua profissão religiosa no dia 8 de Setembro de 1890, festa da Natividade da Virgem Maria. Empreende no Carmelo o caminho da perfeição traçado pela Madre Fundadora, Teresa de Jesus, com autêntico fervor e fidelidade, no cumprimento dos diversos ofícios comunitários que lhe são confiados. Iluminada pela Palavra de Deus, provada de modo particular pela doença do seu amadíssimo pai, Louis Martin, que morre a 29 de Julho de 1894, Teresa encaminha-se para a santidade, insistindo na centralidade do amor. Descobre e comunica às noviças, confiadas aos seus cuidados, a pequena via da infância espiritual, em cujo progresso ela penetra sempre mais no mistério da Igreja e, atraída pelo amor de Cristo, sente crescer em si a vocação apostólica e missionária, que a leva a atrair consigo todos ao encontro com o Esposo divino. No dia 9 de Junho de 1895, na festividade da Santíssima Trindade, oferece-se vítima de holocausto ao Amor misericordioso de Deus. A 3 de Abril do ano seguinte, na noite entre a Quinta-Feira e a Sexta-Feira Santa, tem uma primeira manifestação da doença, que a levará à morte. Teresa acolhe-a como a misteriosa visita do Esposo divino. Ao mesmo tempo entra na prova da fé, que durará até à sua morte. Tendo piorado a sua saúde, a 8 de Julho de 1897 é transferida para a enfermaria. As suas irmãs e outras religiosas recolhem as suas palavras, enquanto os sofrimentos e as provas, suportados com paciência, se intensificam até culminarem com a morte, na tarde de 30 de Setembro de 1897. "Eu não morro, entro na vida", tinha escrito a um seu irmão espiritual, Padre Bellière (Cartas 244). As suas últimas palavras "Meu Deus, eu Te amo" são o sigilo da sua existência.

6. Teresa do Menino Jesus deixou-nos escritos que justamente lhe mereceram a qualificação de mestra de vida espiritual. A sua obra principal continua a ser a narração da sua vida nos três manuscritos autobiográficos (Manuscritos autobiográficos A, B e C), publicados antes com o título, que bem depressa se tornou célebre, de História de uma alma. No Manuscrito A, redigido a pedido da irmã Inês de Jesus, então Priora do mosteiro, e a ela entregue a 21 de Janeiro de 1896, Teresa descreve as etapas da sua experiência religiosa: os primeiros anos da infância, especialmente o evento da sua primeira Comunhão e da Crisma, a adolescência, até ao ingresso no Carmelo e à sua primeira profissão de votos. O Manuscrito B, redigido durante o retiro espiritual do mesmo ano a pedido da sua irmã, Maria do Sagrado Coração, contém algumas das páginas mais belas, mais conhecidas e citadas da Santa de Lisieux. Nelas se manifesta a plena maturidade da Santa, que fala da sua vocação na Igreja, Esposa de Cristo e Mãe das almas. O Manuscrito C, escrito no mês de Junho e nos primeiros dias de Julho de 1897, a poucos meses da sua morte, e dedicado à Priora Maria de Gonzaga, que lho tinha pedido, completa as recordações do Manuscrito A sobre a vida no Carmelo. Estas páginas revelam a sabedoria sobrenatural da autora. Deste período final da sua vida, Teresa traça algumas experiências altíssimas. Dedica páginas comoventes à prova da fé: uma graça de purificação que a imerge numa longa e dolorosa noite escura, que se ilumina pela sua confiança no amor misericordioso e paterno de Deus. Mais uma vez, e sem se repetir, Teresa faz brilhar a cintilante luz do Evangelho. Encontramos aqui as páginas mais belas por ela dedicadas ao confiante abandono nas mãos de Deus, à unidade entre amor de Deus e amor do próximo, à sua vocação missionária na Igreja. Nestes três manuscritos diversos, que coincidem numa unidade temática e numa progressiva descrição da sua vida e do seu caminho espiritual, Teresa entregou-nos uma autobiografia original que é a história da sua alma. Dela transparece como foi a sua existência, na qual Deus ofereceu uma precisa mensagem ao mundo, indicando uma via evangélica, a "pequena via", que todos podem percorrer, porque todos são chamados à santidade. Nas 266 Cartas que conservamos, enviadas aos familiares, às religiosas, aos "irmãos" missionários, Teresa comunica a sua sabedoria, desenvolvendo um ensinamento que constitui, de facto, um profundo exercício de direcção espiritual das almas. Fazem parte dos seus escritos também 54 Poesias, algumas das quais de grande dimensão teológica e espiritual, inspiradas na Sagrada Escritura. Entre estas merecem uma menção especial Viver de Amor!... (P 17) e Porque te amo, ó Maria! (P 54), síntese original do caminho da Virgem Maria segundo o Evangelho. Devem ser acrescentadas a esta produção 8 Recreações piedosas: composições poéticas e teatrais, idealizadas e representadas pela Santa para a sua comunidade, por ocasião de algumas festas, segundo a tradição do Carmelo. Entre os outros escritos deve-se recordar uma série de 21 Orações. Nem se pode esquecer a écloga das suas palavras, pronunciadas durante os últimos meses de vida. Essas palavras, de que se conservam várias redacções, são conhecidas como Novissima verba, e também com o título de Últimos Colóquios.

7. Do estudo dos escritos de Santa Teresa do Menino Jesus e da ressonância que tiveram na Igreja, podem-se colher os aspectos salientes da "eminente doutrina", que constitui o elemento fundamental sobre o qual se baseia a atribuição do título de Doutora da Igreja. Deles resulta, antes de tudo, a existência de um particular carisma de sabedoria. Esta jovem Carmelita, de facto, sem uma especial preparação teológica, mas iluminada pela luz do Evangelho, sente-se instruída pelo Mestre divino que, como ela diz, é "o Doutor dos Doutores" (Manuscrito A, 83 v), do Qual haure os "ensinamentos divinos" (Manuscrito B, 1 r). Sente que se realizaram nela as palavras da Escritura: "Se alguém é pequeno venha a Mim...; a misericórdia é concedida aos pequenos" (Manuscrito B, 1 v; cf. Pr 9, 4 e Sb 6, 6) e sabe que foi instruída na ciência do amor, escondida aos sábios e aos entendidos, que o divino Mestre Se dignou revelar-lhe, como aos pequeninos (Manuscrito A, 49 r; cf. Lc 10, 21-22). Pio XI, que considerou Teresa de Lisieux como "Estrela do seu pontificado", não hesitou em afirmar na homilia do dia da sua Canonização, a 17 de Maio do ano de 1925: "... eidem Spiritus veritatis illa aperuit ac patefecit, quae solet a sapientibus et prudentibus abscondere et revelare parvulis; siquidem haec - teste proximo decessore nostro - tanta valuit supernarum rerum scientia, ut certam salutis viam ceteris indicaret" (AAS 17 [1925] pág. 213). O seu ensinamento não é só conforme à Escritura e à fé católica, mas sobressai ("eminet") pela profundidade e síntese sapiencial alcançada. A sua doutrina é ao mesmo tempo uma confissão da fé da Igreja, uma experiência do mistério cristão e uma via à santidade. Teresa oferece uma síntese amadurecida da espiritualidade cristã: une a teologia e a vida espiritual, exprime-se com vigor e autoridade, com grande capacidade de persuasão e de comunicação, como demonstram o acolhimento e a difusão da sua mensagem no Povo de Deus. O ensinamento de Teresa exprime com coerência e une num conjunto harmonioso os dogmas da fé cristã, como doutrina de verdade e experiência de vida. A respeito disso, não se deve esquecer que a inteligência do depósito da fé, transmitido pelos Apóstolos, como ensina o Concílio Vaticano II, progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo: "com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer mercê da contemplação e estudo dos crentes, que as meditam no seu coração (cf. Lc 2, 19 e 51), quer mercê da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, recebem o carisma da verdade" (Dei Verbum, 8). Nos escritos de Teresa de Lisieux não encontramos talvez, como noutros Doutores, uma apresentação cientificamente elaborada das coisas de Deus, mas podemos vislumbrar um esclarecido testemunho da fé que, enquanto acolhe com amor confiante a condescendência misericordiosa de Deus e a salvação em Cristo, revela o mistério e a santidade da Igreja. Com razão, portanto, pode-se reconhecer na Santa de Lisieux o carisma de Doutora da Igreja, quer pelo dom do Espírito Santo que ela recebeu para viver e exprimir a sua experiência de fé, quer pela particular inteligência do mistério de Cristo. Nela convergem os dons da lei nova, isto é, a graça do Espírito Santo que Se manifesta na fé viva operante por meio da caridade (cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theol. I-II, q. 106, art. 1; q. 108, art. 1). Podemos aplicar a Teresa de Lisieux, quanto teve ocasião de dizer o meu Predecessor Paulo VI a respeito de outra jovem Santa, Doutora da Igreja, Catarina de Sena: "O que mais impressiona na Santa é a sabedoria infusa, isto é, a lúcida, profunda e inebriante assimilação das verdades divinas e dos mistérios da fé [...]: uma assimilação favorecida, sim, por dotes naturais singularíssimos, mas evidentemente prodigiosa, devida a um carisma de sabedoria do Espírito Santo" (AAS 62 [1970], pág. 675).

8. Com a sua peculiar doutrina e o seu estilo inconfundível, Teresa aparece como uma autêntica mestra da fé e da vida cristã. Através dos seus escritos, como através das afirmações dos Santos Padres, passa aquela linfa vivificante da tradição católica cujas riquezas, como afirma ainda o Vaticano II, "entram na prática e na vida da Igreja crente e orante" (Dei Verbum, 8). A doutrina de Teresa de Lisieux, se aceite no seu género literário, correspondente à sua educação e à sua cultura, e se medida com as particulares circunstâncias da sua época, aparece numa providencial unidade com a mais genuína tradição da Igreja, quer pela confissão da fé católica quer pela promoção da mais autêntica vida espiritual, proposta a todos os fiéis numa linguagem viva e acessível. Ela fez resplandecer no nosso tempo o fascínio do Evangelho; teve a missão de fazer conhecer e amar a Igreja, Corpo místico de Cristo; ajudou a curar as almas dos rigores e dos temores da doutrina jansenista, inclinada a sublinhar mais a justiça de Deus do que a sua misericórdia divina. Contemplou e adorou na misericórdia de Deus todas as perfeições divinas, porque "até mesmo a justiça de Deus (e talvez mais do que qualquer outra perfeição) me parece revestida de amor" (Manuscrito A, 83 v). Deste modo, tornou-se um ícone vivo daquele Deus que, segundo a oração da Igreja, "mostra o Seu poder sobretudo no perdão e na misericórdia" (cf. Missal Romano, Oração do XXVI Domingo do Tempo Comum). Ainda que Teresa não apresente um verdadeiro e próprio corpo doutrinal, contudo particulares fulgores de doutrina derivam dos seus escritos que, como por um carisma do Espírito Santo, captam o centro mesmo da mensagem da revelação numa visão original e inédita, apresentando um ensinamento qualitativamente eminente. O núcleo da sua mensagem, com efeito, é o próprio mistério de Deus Amor, de Deus Trindade, infinitamente perfeito em Si mesmo. Se a genuína experiência espiritual cristã deve coincidir com as verdades reveladas, nas quais Deus Se comunica a Si mesmo e dá a conhecer o mistério da Sua vontade (cf. Dei Verbum, 2), é necessário afirmar que Teresa fez experiência da revelação divina, chegando a contemplar as realidades fundamentais da nossa fé, unidas no mistério da vida trinitária. No ápice, como fonte e termo, o amor misericordioso das três Pessoas divinas, como ela o exprime, especialmente no seu Acto de oferta ao Amor misericordioso. Na base, da parte do sujeito, está a experiência de ser filho adoptivo do Pai em Jesus: esse é o sentido mais autêntico da infância espiritual, isto é, a experiência da filiação divina sob a moção do Espírito Santo. Na base ainda e diante de nós, está o próximo, os outros, para cuja salvação devemos colaborar com e em Jesus, com o Seu mesmo amor misericordioso. Mediante a infância espiritual experimenta-se que tudo vem de Deus, a Ele retorna e n'Ele permanece, para a salvação de todos, num mistério de amor misericordioso. Essa é a mensagem doutrinal ensinada e vivida por esta Santa. Assim como para os Santos da Igreja de todos os tempos, também para ela, na sua experiência espiritual, centro e plenitude da revelação é Cristo. Teresa conheceu a Jesus, amou-O e fez com que fosse amado com a paixão de uma esposa. Ela penetrou nos mistérios da Sua infância, nas palavras do seu Evangelho, na paixão do Servo sofredor, esculpida no seu Rosto santo, no esplendor da Sua existência gloriosa, na Sua presença eucarística. Cantou todas as expressões da divina caridade de Cristo, como são propostas pelo Evangelho (cf. PN 24, Jésus, mon Bien-Aimé, rappelle-toi!). Teresa foi iluminada de maneira particular sobre a realidade do Corpo místico de Cristo, sobre a variedade dos seus carismas, dons do Espírito Santo, sobre a força eminente da caridade, que é como que o próprio coração da Igreja, na qual ela encontrou a sua vocação de contemplativa e de missionária (cf. Manuscrito B, 2 r - 3 v). Finalmente, entre os capítulos mais originais da sua ciência espiritual devese recordar a sábia exploração, que Teresa desenvolveu, do mistério e do caminho da Virgem Maria, chegando a resultados muito próximos da doutrina do Concílio Vaticano II no cap. VIII da Constituição Lumen gentium e de quanto eu mesmo propus na minha Encíclica Redemptoris Mater, de 25 de Março de 1987.

9. A principal fonte da sua experiência espiritual e do seu ensinamento é a Palavra de Deus, no Antigo e no Novo Testamento. Ela mesma o confessa de modo especial, pondo em relevo o seu apaixonado amor pelo Evangelho (cf.Manuscrito A, 83 v). Nos seus escritos contam-se mais de mil citações bíblicas: mais de quatrocentas do Antigo e mais de seiscentas do Novo Testamento. Apesar da preparação inadequada e da falta de instrumentos para o estudo e a interpretação dos livros sagrados, Teresa imergiu-se na meditação da Palavra de Deus com uma fé e uma vivacidade singulares. Sob o influxo do Espírito conseguiu, para si e para os outros, um profundo conhecimento da revelação. Com a sua concentração amorosa na Escritura - teria querido conhecer até o hebraico e o grego para compreender melhor o espírito e a letra dos livros sagrados - fez ver a importância que as fontes bíblicas têm na vida espiritual, pôs em evidência a originalidade e o vigor do Evangelho, cultivou com sobriedade a exegese espiritual da Palavra de Deus, tanto do Antigo como do Novo Testamento. Descobriu assim tesouros escondidos, apropriando-se de palavras e episódios, às vezes não sem audácia sobrenatural como quando, ao ler os textos de Paulo (cf. 1 Cor 12, 13), intuiu a sua vocação ao amor (cf. Manuscrito B, 3 r - 3 v). Iluminada pela Palavra revelada, Teresa escreveu páginas geniais sobre a unidade entre o amor de Deus e o amor do próximo (cf. Manuscrito C, 11 v - 19 r) e identificou-se com a oração de Jesus na Última Ceia, como expressão da sua intercessão para a salvação de todos (cf. Manuscrito C, 34 r - 35 r). A sua doutrina coincide, como já se disse, com o ensinamento da Igreja. Desde quando era criança, foi educada pelos familiares para a participação na oração e no culto litúrgico. Em preparação para a sua primeira confissão, para a primeira Comunhão e para o sacramento da Confirmação, demonstrou um amor extraordinário pelas verdades da fé, e aprendeu o Catecismo quase palavra por palavra (cf. Manuscrito A, 37 r - 37 v). No fim da sua vida escreveu com o próprio sangue o Símbolo dos Apóstolos, como expressão da sua união de espírito, sem reservas, à profissão de fé. Além de com palavras da Escritura e com a doutrina da Igreja, Teresa nutriuse desde quando jovem com o ensinamento da Imitação de Cristo que, como ela mesma confessa, sabia quase de cor (cf. Manuscrito A, 47 r). Foram determinantes para a realização da sua vocação carmelitana os textos espirituais da Madre Fundadora, Teresa de Jesus, especialmente os que expõem o sentido contemplativo e eclesial do carisma do Carmelo teresiano (cf. Manuscrito C, 33 v). Mas de modo muito especial Teresa nutriu-se com a doutrina mística de São João da Cruz, que foi o seu verdadeiro mestre espiritual (cf. Manuscrito A, 83 r). Portanto, não é para maravilhar se na escola destes dois Santos, posteriormente declarados Doutores da Igreja, também ela, óptima discípula, se tenha tornado Mestra de vida espiritual.

10. A doutrina espiritual de Teresa de Lisieux contribuiu para a difusão do Reino de Deus. Com o seu exemplo de santidade, de perfeita fidelidade à Mãe Igreja, em plena comunhão com a Sé de Pedro, assim como com as particulares graças por ela suplicadas para muitos irmãos e irmãs missionários, prestou um particular serviço à renovada proclamação e experiência do Evangelho de Cristo e à extensão da fé católica em todas as nações da terra. Não é preciso que nos detenhemos muito sobre a universalidade da doutrina teresiana e sobre o amplo acolhimento da sua mensagem durante o século que nos separa da sua morte: isto está bem documentado nos estudos feitos em vista da atribuição do título de Doutora da Igreja a esta Santa. Importância particular, a respeito disso, reveste o facto que o próprio Magistério da Igreja não só reconheceu a santidade de Teresa, mas pôs também em evidência a sua sabedoria e a sua doutrina. Já Pio X disse a respeito dela que era "a maior Santa dos tempos modernos". Acolhendo com alegria a primeira edição italiana da História de uma alma, ele exaltou os frutos que se colhem da espiritualidade teresiana. Bento XV, por ocasião da proclamação da heroicidade das virtudes da Serva de Deus, ilustrou o caminho da infância espiritual e louvou a ciência das realidades divinas, concedida por Deus a Teresa, para ensinar aos outros as vias da salvação (cf. AAS 13 [1921] 449-452). Pio XI, por ocasião tanto da sua beatificação como da canonização, quis expor e recomendar a doutrina da Santa, ressaltando a particular iluminação divina (Discorsi di Pio XI, vol. I, Turim 1959, pág. 91) e qualificando-a como mestra de vida (cf.AAS 17 [1925] pp. 211-214). Pio XII, quando foi consagrada a Basílica de Lisieux em 1954, afirmou entre outras coisas que Teresa tinha penetrado, com a sua doutrina, no coração mesmo do Evangelho (cf. AAS 46 [1954] pp. 404408). O Cardeal Angelo Roncalli, futuro Papa João XXIII, visitou diversas vezes Lisieux, especialmente quando era Núncio em Paris. Durante o seu pontificado manifestou em várias circunstâncias a sua devoção pela Santa e ilustrou as relações entre a doutrina da Santa de Ávila e da sua filha, Teresa de Lisieux (Discorsi, Messaggi, Colloqui, vol. II [19591960] pp. 771-772). Várias vezes, durante a celebração do Concílio Vaticano II, os Padres evocaram o seu exemplo e a sua doutrina. Paulo VI, no centenário do nascimento da Santa, enviava no dia 2 de Janeiro de 1973 uma Carta ao Bispo de Bayeux e Lisieux, na qual exaltava o exemplo de Teresa na busca de Deus, a propunha como mestra da oração e da esperança teologal, modelo de comunhão com a Igreja, indicando o estudo da sua doutrina aos mestres, aos educadores, aos pastores e aos próprios teólogos (cf. AAS 65 [1973] pp. 12-15). Eu mesmo, em várias circunstâncias, tive a alegria de me referir à figura e à doutrina da Santa, de modo especial por ocasião da inesquecível visita a Lisieux, a 2 de Junho de 1980, quando quis recordar a todos: "De Teresa de Lisieux, pode-se dizer com convicção que o Espírito de Deus permitiu ao seu coração revelar directamente, aos homens do nosso tempo, o mistério fundamental, a realidade do Evangelho [...]. O ôpequeno caminho" é o caminho da ôsanta infância". Neste caminho, há alguma coisa de único, um génio de Santa Teresa de Lisieux. Há ao mesmo tempo a confirmação e a renovação da verdade mais fundamental e a mais universal. Que verdade da mensagem evangélica é, com efeito, mais fundamental e mais universal do que esta: Deus é nosso Pai e nós somos Seus filhos?" (L'Osserv. Rom., ed. port. de 15 de Junho de 1980, pág. 16). Estas simples referências a uma ininterrupta série de testemunhos dos Papas deste século sobre a santidade e a doutrina de Santa Teresa do Menino Jesus e sobre a difusão universal da sua mensagem, exprimem claramente quanto a Igreja acolheu, nos seus pastores e nos seus fiéis, a doutrina espiritual desta jovem Santa. Sinal de acolhimento eclesial do ensinamento da Santa é o recurso à sua doutrina em muitos documentos do Magistério ordinário da Igreja, de modo especial quando se fala da vocação contemplativa e missionária, da confiança em Deus justo e misericordioso, da alegria cristã, da vocação à santidade. É testemunho disto a presença da sua doutrina no recente Catecismo da Igreja Católica (nn. 127, 826, 956, 1011, 2011, 2558). Aquela que tanto gostou de aprender no catecismo as verdades da fé, mereceu ser incluída entre as testemunhas autorizadas da doutrina católica. Teresa possui uma universalidade singular. A sua pessoa e a mensagem evangélica da "pequena via" da confiança e da infância espiritual encontraram e continuam a encontrar um acolhimento surpreendente, que transpôs todos os confins. A influência da sua mensagem compreende, antes de tudo, homens e mulheres cuja santidade ou heroicidade das virtudes a própria Igreja reconheceu, pastores da Igreja, cultores da teologia e da espiritualidade, sacerdotes e seminaristas, religiosos e religiosas, movimentos eclesiais e comunidades novas, homens e mulheres de todas as condições e de todos os continentes. A todos Teresa traz a sua confirmação pessoal que o mistério cristão, do qual ela se tornou testemunha e apóstola fazendo-se na oração, como ela se exprime com audácia, "apóstola dos apóstolos" (Manuscrito A, 56 r), deve ser tomado à letra, com o maior realismo possível, porque tem um valor universal no tempo e no espaço. A força da sua mensagem está na ilustração concreta de como todas as promessas de Jesus encontram plena actuação no crente, que sabe acolher com confiança na própria vida a presença salvífica do Redentor.

11. Todas estas razões são testemunho claro da actualidade da doutrina da Santa de Lisieux e da particular incidência da sua mensagem sobre os homens e as mulheres do nosso século. Concorrem, além disso, algumas circunstâncias que tornam ainda mais significativa a sua designação como Mestra para a Igreja no nosso tempo. Antes de tudo, Teresa é uma mulher que, ao aproximar-se do Evangelho, soube colher riquezas escondidas com aquela consistência e profunda ressonância vital e sapiencial, que é própria do génio feminino. Ela emerge, pela sua universalidade, na plêiade das mulheres santas que resplandecem pela sabedoria do Evangelho. Teresa é, depois, uma contemplativa. No escondimento do seu Carmelo viveu a grande aventura da experiência cristã, até conhecer a largura, o comprimento, a altura e a profundidade do amor de Cristo (cf. Ef 3, 18-19). Deus quis que não permanecessem escondidos os Seus segredos, mas habilitou Teresa a proclamar os segredos do Rei (cf. Manuscrito C, 2 v). Com a sua vida, Teresa oferece um testemunho e uma ilustração teológica da beleza da vida contemplativa, como total dedicação a Cristo, Esposo da Igreja, e como afirmação viva da primazia de Deus sobre todas as coisas. A sua é uma vida escondida, que possui uma arcana fecundidade para a dilatação do Evangelho e impregna a Igreja e o mundo com o bom odor de Cristo (cf. Letras 169, 2 v). Teresa de Lisieux, por fim, é uma jovem. Atingiu a maturidade da santidade em plena juventude (cf. Manuscrito C, 4 r). Desse modo, ela propõe-se como Mestra de vida evangélica, particularmente eficaz ao iluminar os caminhos dos jovens, aos quais compete ser protagonistas e testemunhas do Evangelho junto das novas gerações. Teresa do Menino Jesus é não só a mais jovem Doutora da Igreja, mas também a mais próxima de nós no tempo, como que a sublinhar a continuidade com que o Espírito do Senhor envia à Igreja os seus mensageiros, homens e mulheres, como mestres e testemunhas da fé. Com efeito, quaisquer que sejam as variações, que se possam constatar no curso da história e não obstante as repercussões que elas costumam ter na vida e no pensamento das pessoas de cada época, não devemos perder de vista a continuidade que une entre si os Doutores da Igreja: eles continuam, em qualquer contexto histórico, testemunhas do Evangelho que não muda e, com a luz e a força que lhes vêm do Espírito, tornam-se seus mensageiros voltando a anunciá-lo na sua pureza aos contemporâneos. Teresa é Mestra para o nosso tempo, sedento de palavras vivas e essenciais, de testemunhos heróicos e críveis. Por isso ela é amada e acolhida também por irmãos e irmãs das outras Comunidades cristãs e até por quem nem sequer é cristão.

12. Neste ano, em que se celebra o Centenário da gloriosa morte de Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, enquanto nos preparamos para a celebração do Grande Jubileu do Ano 2000, depois de ter recebido numerosos e autorizados pedidos, especialmente da parte de muitas Conferências Episcopais do mundo inteiro, e depois de ter acolhido o pedido oficial, ou Supplex Libellus, que me foi dirigido em data de 8 de Março de 1997 pelo Bispo de Bayeux e Lisieux, assim como da parte do Prepósito-Geral da Ordem dos Carmelitas Descalços da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo e da parte do Postulador-Geral da mesma Ordem, decidi confiar à Congregação para as Causas dos Santos, competente na matéria, "praehabito voto Congregationis de Doctrina Fidei ad eminentem doctrinam quod attinet" (Const. Apost. Pastor bonus, 73), o peculiar estudo da causa para a atribuição do Doutoramento a esta Santa. Recolhida a necessária documentação, as duas mencionadas Congregações enfrentaram a questão nas respectivas Consultas: a da Congregação para a Doutrina da Fé, a 5 de Maio de 1997, no que se refere à "eminente doutrina", e a da Congregação para as Causas dos Santos, a 29 de Maio do mesmo ano, para examinar a especial "Positio". No dia 17 de Junho sucessivo, os Cardeais e os Bispos membros dessas Congregações, seguindo um modo de proceder por mim aprovado para a ocasião, reuniram-se numa Sessão Interdicasterial plenária e discutiram a Causa, exprimindo unanimemente um parecer favorável à concessão do título de Doutora da Igreja universal a Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face. Esse parecer foi-me notificado pessoalmente pelo Senhor Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, e pelo Pró-Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, D. Alberto Bovone, Arcebispo Titular de Cesarea in Numidia. Em consideração disto, no dia 24 de Agosto passado, no momento da oração do "Angelus", na presença de centenas de Bispos e diante de uma imensa multidão de jovens do mundo inteiro, reunida em Paris para a XII Jornada Mundial da Juventude, eu quis pessoalmente anunciar a intenção de proclamar Teresa do Menino Jesus e da Santa Face Doutora da Igreja universal, por ocasião da celebração do Dia Mundial das Missões (em Roma). Hoje, 19 de Outubro de 1997, na Praça de São Pedro, repleta de fiéis provenientes de todas as partes do mundo, estando presentes numerosos Cardeais, Arcebispos e Bispos, durante a solene celebração eucarística proclamei Doutora da Igreja universal Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, com estas palavras: Vindo ao encontro dos desejos de um grande número de Irmãos no Episcopado e de muitíssimos fiéis do mundo inteiro, ouvido o parecer da Congregação para as Causas dos Santos e obtido o voto da Congregação para a Doutrina da Fé naquilo que concerne à eminente doutrina, com conhecimento certo e ponderada deliberação, em virtude da plena autoridade apostólica, declaramos Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, virgem, Doutora da Igreja universal. No nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Tendo realizado isto no modo devido, estabelecemos que esta Carta Apostólica seja religiosamente acolhida e tenha pleno efeito, tanto agora como no futuro: além disso, seja considerado como julgado e definido legitimamente, e seja nulo e sem fundamento quanto de diverso a respeito disto possa ser atentado por alguém, qualquer que seja a autoridade, de modo consciente ou por ignorância.

- Dado em Roma, junto de São Pedro, sob o sigilo do anel do Pescador, no dia 19 do mês de Outubro do ano do Senhor 1997, vigésimo de Pontificado.





Duodecim Saeculum

Carta Apostólica
DUODECIM SAECULUM
do Sumo Pontífice
João Paulo II
ao Episcopado da Igreja Católica
sobre a veneração das imagens
por ocasião do XII Centenário
do II Concílio de Nicéia
Veneráveis Irmãos, saúde e Bênção Apostólica!


1. O décimo segundo centenário do II Concilio de Nicéia (a. 787) foi objecto de numerosas comemorações eclesiais e académicas, as quais também esta Sé Apostólica se associou1. O acontecimento foi celebrado igualmente com a publicação de uma Encíclica de Sua Santidade o Patriarca de Constantinopla e do Santo Sínodo2, iniciativa que evidencia a importância teológica e o alcance ecuménico, ainda actuais, do sétimo e último Concílio plenamente reconhecido pela Igreja católica e pela Igreja ortodoxa. A doutrina definida por este Concílio quanto a legitimidade da veneração dos ícones (imagens) na Igreja merece também ela uma atenção especial, não só pela riqueza das suas implicações espirituais, mas também pelas exigências que ela impõe em todo o âmbito da arte sacra.

O relevo dado pelo II Concílio de Nicéia ao assunto da Tradição, e mais precisamente da tradição não-escrita, constitui para nós católicos, assim como para os nossos irmãos ortodoxos, um convite a percorrermos de novo juntos o caminho da Tradição da Igreja não dividida, para reexaminar à sua luz as divergências, que os longos séculos de separação acentuaram entre nós, e para reencontrar; conforme o que Jesus pediu ao Pai (cf. Jo 17,11.20-21), a comunhão plena na unidade visível.

I

2. O Patriarca de Constantinopla São Tarásio, moderador do II Concílio Niceno, ao apresentar ao Papa Adriano I o relatório do desenrolar do Concílio, escrevia: "Depois de termos todos ocupado o próprio lugar, nós estabelecemos ter Cristo como (nosso) chefe. Com efeito, o Santo Evangelho foi colocado em cima dum trono, como convite a todos os presentes a julgarem segundo a justiça"3.O fato de se ter constituído Cristo como presidente da assembleia conciliar, que se reunia no seu nome e sob a sua autoridade, foi um gesto eloquente para afirmar que a unidade da Igreja não pode realizar-se a não ser na obediência ao seu único Senhor.

3. Os imperadores que tinham convocado o Concílio, Irene e Constantino VI, tinham convidado o meu Predecessor Adriano I, "enquanto verdadeiro primeiro Pontífice, que preside no lugar e na sede do santo e muito venerável Apóstolo Pedro"4. Ele fez-se representar pelo Arcebispo da Igreja romana e pelo Hegúmeno (Abade) do mosteiro grego de São Sabas em Roma. Para assegurar a representatividade universal da Igreja, era requerida também a presença dos Patriarcas orientais5. Uma vez que os seus territórios se encontravam já sob o domínio muçulmano, os Patriarcas de Alexandria e de Antioquia enviaram conjuntamente uma carta comum a São Tarásio; e o Patriarca de Jerusalém enviou uma carta sinodal. Uma e outra foram lidas no Concílio6.

Admitia-se então comumente que as decisões de um Concílio ecuménico eram válidas somente se o Bispo de Roma nelas tivesse colaborado e se os Patriarcas orientais tivessem manifestado o seu acordo7. Neste processo o papel da Igreja de Roma era reconhecido como insubstituível8. Assim o II Concílio Niceno aprovou a explicação do Diácono João, segundo a qual a assembleia dos iconoclastas, realizada em Hiéria em 754, não era legítima, porque "o Papa de Roma e os Bispos que estão à sua volta não tinham colaborado nela, nem através de legados, nem mediante uma carta encíclica, segundo a lei dos Concílios"; e "os Patriarcas do Oriente... e os Bispos que estão com eles não lhe tinham dado o seu consenso"9. Por outro lado os Padres do II Concílio Niceno declararam que "acolhiam, acatavam e seguiam" a Carta enviada pelo Papa Adriano aos imperadores10 assim como a dirigida ao Patriarca. Estas Cartas foram lidas, em latim e na sua tradução grega, e todos foram convidados a dar-lhes individualmente o próprio assenso11.

4. O Concílio saudou unanimemente nas pessoas dos legados pontifícios "a santíssima Igreja de Roma, ou seja, do Apóstolo São Pedro"12 e da "Cátedra apostólica"13, adoptando a fórmula romana14; e o Patriarca Tarásio, escrevendo ao meu predessor em nome do Concílio, reconhecia nele aquele que "herdou a Cátedra do Apóstolo São Pedro", e que, "revestido do Sumo Pontificado, tem a subida honra de presidir, legitimamente e por vontade de Deus, à sagrada Hierarquia"15.

Um dos momentos decisivos no decorrer do Concílio parece ter sido aquele em que ele se pronunciou a favor do restabelecimento do culto das imagens, quando os participantes acolheram, em unanimidade, a proposta dos legados romanos de fazer colocar no meio da assembleia um venerável ícone, para que os Padres pudessem prestar-lhes a sua veneração16.

O último Concílio ecuménico reconhecido quer pela Igreja católica quer pela Igreja ortodoxa é um exemplo notável de "sinergia" entre a sede de Roma e uma assembleia conciliar. Ele inscreve-se na perspectiva da eclesiologia patrística de comunhão, fundamentada na Tradição, como o Concílio Ecuménico Vaticano II, justamente, uma vez mais pôs em evidência.

II

5. O Concílio Niceno II afirmou solenemente a existência da "tradição eclesiástica escrita e não-escrita "17, como referência normativa para a fé e para a disciplina da Igreja. Os Padres manifestaram o seu desejo de "conservar intactas todas as tradições da Igreja, que lhes foram confiadas, sejam elas escritas ou não-escritas. Uma delas consiste precisamente na pintura dos ícones, em conformidade com a carta da pregação apostólica"18. Contra a corrente iconoclasta, que também tinha apelado para a Escritura e para a Tradição dos Padres, especialmente para o pseudo-sínodo de Hiéria de 754, o II Concílio de Nicéía sanciona a legitimidade da veneração das imagens, confirmando "o ensino divinamente inspirado dos santos Padres e da Tradição da Igreja católica"19.

Os Padres do II Concílio Niceno entendiam a "tradição eclesiástica" como tradição dos seis Concílios ecuménicos precedentes e dos Padres ortodoxos, cujo ensino era acolhido comummente na Igreja. O Concílio, deste modo, definiu como sendo de fé aquela verdade essencial, segundo a qual a mensagem cristã é "tradição", paràdosis. A medida que a Igreja se foi desenvolvendo, no tempo e no espaço, a sua inteligência da Tradição, da qual é portadora, conheceu também ela as fases de um desenvolvimento, cuja investigação constitui, para o diálogo ecuménico e para toda a reflexão teológica autêntica, um percurso obrigatório.

6. Já São Paulo nos ensina que, para a primeira geração cristã, a paràdosis consiste na proclamação do Acontecimento de Cristo e do seu significado actual, que realiza a Salvação mediante a acção do Espírito Santo (cf. 1Cor 15,3-8; 11,2). A tradição das palavras e dos actos do Senhor foi recolhida nos quatro Evangelhos, mas sem se exaurir neles (cf. Lc 1,1; Jo 20,30; 21,25). Esta tradição primigénia é tradição "apostólica" (cf. 2Ts 2,14-15; Jd 17; 2Pd 3,2). Ela diz respeito não apenas ao "depósito" da "sã doutrina" (cf. 2Tm 1,6-12; Tt 1,9), mas também às normas de comportamento e às regras da vida comunitária (cf. lTs 4,1-7; 1Cor 4,17; 7,17; 11,16; 14,33). A Igreja lê a Escritura à luz da "regra da fé"20, quer dizer, da sua fé viva mantida coerente com o ensino dos Apóstolos. Aquilo que a Igreja sempre acreditou e praticou, ela considera-o justamente como "Tradição apostólica". Santo Agostinho dizia: "Uma observância mantida pela Igreja inteira e conservada sempre, que não tenha sido instituída pelos Concílios, acaba por não ser outra coisa, com pleno direito, senão uma tradição que emana da autoridade dos Apóstolos"21.

De fato, as tomadas de posição dos Padres no decorrer dos grandes debates teológicos dos séculos IV e V, a importância crescente da instituição sinodal a nível regional e universal, fizeram com que, pouco a pouco, a tradição se tornasse a "tradição dos Padres" ou "tradição eclesiástica", entendida como desenvolvimento homogéneo da Tradição apostólica. Foi por isto que São Basílio Magno fez apelo às "tradições não-escritas", que são as "tradições dos Padres"22, para fundamentar a sua teologia trinitária, e sublinha a proveniência dupla da doutrina da Igreja "do ensino escrito, bem como da tradição apostólica"23.

O próprio Concilio Niceno II, que cita oportunamente São Basílio a propósito da teologia das imagens24, invocou também a autoridade dos grandes doutores ortodoxos, como São Gregório Nazianzeno, São Gregório de Nissa, São Cirilo de Alexandria. São João Damasceno pôs também ele em relevo a importância para a fé das "tradições não escritas", isto é, não contidas na Escritura, ao declarar: "Se alguém se apresentar com um Evangelho diferente daquele que a Igreja católica recebeu dos Santos Apóstolos, dos Padres e dos Concílios e que ela conservou até aos nossos dias, não o escuteis"25.

7. Mais próximo de nós, o Concílio Vaticano II apresentou novamente em plena luz a importância da "tradição que provém dos Apóstolos". De fato, "a Sagrada Escritura é a Palavra de Deus, enquanto consignada por escrito sob a inspiração do Espírito divino; a Sagrada Tradição, por seu lado, é portadora da Palavra de Deus, confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, e transmite-a integralmente aos seus sucessores"26.

"Ora, aquilo que foi transmitido pelos Apóstolos compreende tudo quanto contribui para que o Povo de Deus viva santamente e para o aumento da sua fé"27. Juntamente com a Sagrada Escritura, a Sagrada Tradição constitui "um único depósito sagrado da Palavra de Deus, confiado à Igreja". A interpretação autêntica "da Palavra de Deus escrita ou contida na Tradição foi confiada unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo"28. É mediante uma fidelidade igual ao tesouro comum da Tradição que remonta aos Apóstolos, que as Igrejas se esforçam hoje por aprofundar os motivos das suas divergências e as razões que há para as superar.

III

8. A terrível "controvérsia sobre as imagens", que dilacerou o império bizantino sob os imperadores isáuricos Leão III e Constantino V, entre os anos de 730 e 780, e de novo sob Leão V, de 814 a 843, explica-se principalmente pelo debate teológico que, desde o início, foi o seu fulcro.

Sem ignorar o perigo de um ressurgimento sempre possível das praticas idolátricas do paganismo, a Igreja admitia que o Senhor, a Bem-aventurada Virgem Maria, os Mártires e os Santos fossem representados em formas pictóricas ou plásticas para favorecer a oração e a devoção dos fiéis. Era claro para todos, segundo a fórmula de São Basílio, recordada pelo Concílio Niceno II, que "a honra prestada ao ícone é dirigida ao protótipo"29. No Ocidente, o Papa São Gregório Magno tinha insistido no carácter didáctico das pinturas nas igrejas, úteis para que os analfabetos, "ao contemplá-las, possam ler, pelo menos nas paredes, aquilo que não são capazes de ler nos livros", e acentuava que esta contemplação devia levar à adoração da "única e omnipotente Trindade Santíssima"30. Foi neste contexto que se desenvolveu, de maneira particular em Roma durante o século VIII, o culto das imagens dos Santos, dando lugar a uma produção artística admirável.

O movimento iconoclasta, rompendo com a tradição autêntica da Igreja, considerava a veneração das imagens como um retorno à idolatria. Não sem contradição e ambiguidade, ele proibia a representação de Cristo e as imagens religiosas em geral, enquanto continuava a admitir as imagens profanas, em particular as imagens do imperador, com os sinais de reverência que a elas andavam ligados. A base da argumentação dos iconoclastas era de natureza cristológica. Como pintar Cristo que unia na sua Pessoa, sem as confundir nem as separar, a natureza divina e a natureza humana? Por outro lado, seria impossível representar a sua divindade inapreensível; por outro, representá-l'O na sua humanidade somente seria dívidi-l'O separando n'Ele a divindade da humanidade. Escolher uma ou outra destas duas vias levaria às duas heresias cristológicas opostas do monofisismo e do nestorianismo. Com efeito, quem pretendesse representar Cristo na sua divindade condenar-se-ia a absorver nessa representação a sua humanidade; e quem mostrasse apenas um retrato de homem, acabaria por ocultar que ele é também Deus.

9. O dilema posto pelos iconoclastas envolvia algo que ia muito além da questão da possibilidade de uma arte cristã; punha em causa toda a visão cristã da realidade da Encarnação e, portanto, das relações de Deus com o mundo, e da graça com a natureza, numa palavra, a especificidade da "Nova Aliança", que Deus concluiu com os homens em Jesus Cristo. Os defensores das imagens advertiram muito bem isso: segundo uma expressão do Patriarca de Constantinopla São Germano, ilustre vítima da heresia iconoclasta, era toda "a economia divina segundo a carne"31 que era posta de novo em questão.

Com efeito, ver representado o rosto humano do Filho de Deus, "imagem de Deus invisível" (Cl 1,15), é ver o Verbo feito carne (cf. Jo 1,14), o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (cf. Jo 1,29). Portanto, a arte pode representar a forma, a efígie do rosto humano de Deus e levar aquele que o contempla ao mistério inefável do mesmo Deus feito homem para a nossa salvação. Assim, o Papa Adriano pôde escrever: "Graças a um rosto visível, o nosso espírito será transportado, por um atractivo espiritual, até à majestade invisível da divindade, através da contemplação da imagem em que está representada a carne, que o Filho de Deus se dignou assumir para a nossa salvação. E, sendo assim, nós adoramos e conjuntamente louvamos, glorifificando-o em espírito, este mesmo Redentor, porque, como está escrito, 'Deus é Espírito' e é por isso que nós adoramos espiritualmente a sua divindade"32.

O Concílio Niceno II, portanto, reafirmou solenemente a distinção tradicional entre "a verdadeira adoração (latria)" que, "segundo a nossa fé, é devida somente à natureza divina" e "a prosternação de honra" (timetiké proskynesis), que é prestada aos ícones, porque "aquele que se prostra diante do ícone, prostra-se diante da pessoa (a hipótese) daquele que na figuração é representado"33.

A iconografia de Cristo implica, portanto, toda a fé na realidade da Encarnação e no seu significado inexaurível para a Igreja e para o mundo. Se a Igreja costuma pô-la em prática, fá-lo porque está convencida que o Deus revelado em Jesus Cristo resgatou realmente e santificou a carne e o inteiro mundo sensível, ou seja, o homem com os seus cinco sentidos, a fim de lhe permitir renovar-se constantemente ''a imagem d'Aquele que o criou" (Cl 3,10).

IV

10. O Concílio Niceno II, por conseguinte, sancionou a tradição segundo a qual "devem expor-se as venerandas imagens sacras, manufacturadas com tintas, com mosaico e com outras matérias idóneas, nas igrejas consagradas a Deus, nos vasos e paramentos sagrados, nas paredes e nos retábulos, nas casas e nas ruas; e isto aplica-se tanto à imagem de Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo e à de Nossa Senhora Imaculada, a santa Theotokos, como às imagens dos veneráveis anjos e de todos os homens santos e piedosos"34. A doutrina deste Concilio sustentou a arte da Igreja, tanto no Oriente como no Ocidente, inspirando-lhe obras de uma beleza e de uma profundidade sublimes.

Em particular, a Igreja grega e as Igrejas eslavas, apoiando-se nas obras dos grandes teólogos São Nicéforo de Constantinopla e São Teodoro Studita, apologistas do culto das imagens, consideraram a veneração do ícone como parte integrante da Liturgia, à semelhança da celebração da Palavra. Como a leitura dos livros materiais permite a audição da Palavra viva do Senhor, assim a exposição de um ícone figurativo permite àqueles que o contemplam ter acesso aos mistérios da Salvação mediante a vista. "Aquilo que por um lado é manifestado pela tinta e pelo papel, por outro, no ícone, é manifestado pelas várias cores e pelos outros materiais"35.

No Ocidente, a Igreja de Roma destinguiu-se, numa continuidade sem interrupção, pela sua acção a favor das imagens36, sobretudo no momento crítico em que, entre os anos de 825 e 843, os impérios bizantino e franco se demonstraram ambos hostis ao Concílio Niceno II. No Concílio de Trento, a Igreja católica reafirmou a doutrina tradicional, contra uma nova forma de iconoclastia que então se manifestava. Mais recentemente, o Concílio Vaticano II recordou com sobriedade a posição constante da Igreja a respeito das imagens37 e da arte sacra em geral38.

11. Desde há alguns decénios para cá nota-se um surto de interesse pela teologia e pela espiritualidade dos ícones orientais; isso é sinal de ritual da arte autenticamente cristã. A este propósito, não posso deixar de exortar os meus Irmãos no Episcopado a "manterem o uso de expor imagens nas Igrejas à veneração dos fiéis"39 e a empenharem-se para que surjam cada vez mais obras de qualidade verdadeiramente eclesial. O crente de hoje, como o de ontem, há de ser ajudado na oração e na vida espiritual mediante a visão de obras que procurem exprimir o mistério sem nunca o ocultar. É esta a razão pela qual, hoje como no passsado, a fé é a indispensável inspiradora da arte da Igreja.

A arte pela arte, que não leve a pensar senão no seu autor, sem estabelecer uma relação com o mundo divino, não encontra espaço na concepção cristã do ícone. Seja qual for o estilo que adopte, todo o tipo de arte sacra deve exprimir a fé e a esperança da Igreja. A tradição das imagens mostra que o artista deve ter consciência de cumprir uma missão a serviço da Igreja.

A arte cristã autêntica é aquela que, através da percepção sensível, leva à intuição de que o Senhor está presente na sua Igreja, que os acontecimentos da história da Salvação dão sentido e orientação à nossa vida e que a glória que nos está prometida começa já a transformar a nossa existência. A arte sacra deve tender a proporcionar-nos uma síntese visual de todas as dimensões da nossa fé. A arte da Igreja deve ter a preocupação de falar a linguagem da Encarnação e exprimir, com os elementos da matéria, Aquele que "se dignou habitar na matéria e realizar a nossa salvação através da matéria", segundo a fórmula feliz de São João Damasceno40.

A redescoberta do ícone cristão ajudará também a tomar consciência da urgência de reagir contra os efeitos despersonalizadores, e às vezes degradantes, das múltiplas imagens que condicionam a nossa vida, na publicidade e nos "mass-media"; trata-se de fato de uma imagem que faz chegar até nós o olhar de um Outro invisível e que nos dá acesso à realidade do mundo espiritual e escatológico.

12. Amadíssimos Irmãos:

Ao recordar a actualidade da doutrina do VII Concílio Ecuménico, parece-me que estamos perante um chamamento à nossa tarefa primordial de evangelização. A secularização crescente da sociedade mostra que ela está se tornando, em larga escala, alheia aos valores espirituais, ao mistério da nossa Salvação em Jesus Cristo e à realidade do mundo futuro. A nossa tradição mais autêntica, que compartilhamos plenamente com os nossos irmãos ortodoxos, ensina-nos que a linguagem da beleza, posta a serviço da fé, é capaz de atingir o coração dos homens e de os levar a conhecer, a partir de dentro, Aquele que ousamos representar nas imagens, Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, o mesmo, ontem e hoje e por todos os séculos" (Hb 13,8).

A todos dou, de coração, a Bênção Apostólica.

Dado em Roma, junto de São Pedro, a 4 de Dezembro, memória litúrgica de São João Damasceno, Presbítero e Doutor da Igreja, do ano de 1987, décimo do meu Pontificado.

Referências


1. Especialmente com a Carta de 8 de Outubro de 1987, do Cardeal Secretário de Estado ao Presidente da Sociedade Internacional para a História dos Concílios, por ocasião do Simpósio de Istambul (L'Osservatore Romano, ed. quot. 12/13.10.87).

2. Epi te 1200 è epetèio apo tes syncleoseos tes en Nikai Aghias z'Oikomenikes Synodoy (787-1987), Fanar, 14 de setembro de 1987.

3. J. D. Mansi, Sacrorum Conciliorum nova et amplissima colectio (= Mansi) XIII, 459c.

4. Mansi XII, 985.

5. Cf. Mansi XII, 1007.1086 e Monumenta Germaniae Historica (= MGH), (Epistulae Karolini Aevi, t. 3), p. 29. 30-33.

6. Cf. Mansi XII, 1127-1135 e 1135-1145.

7. Segundo o Presbítero João, representante dos Patriarcas orientais, Mansi XII, 990A e XIII, 4A.

8. Cf. Mansi XII, 1134.

9. Mansi XIII, 208-209.

10. Mansi XI, 1085.

11. Cf. Mansi XII, 1085-1111.

12. Maisi XII, 994.1041.1114; XIII, 157.204.366.

13. Mansi XII, 1086.

14. Cf. carta de Adriano I a Carlos Magno, em: MGH, Epistulae III (Epistulae Merowingici et Karolini Aevi, t. I) p. 587, 5.

15. Mansi XIII, 463BC.

16. Cf. Mansi XIII, 200.

17. Cf. Quartum anatema, em: Mansi XIII, 400.

18. Horos, in: Mansi XIII, 377BC.

19. Ibid., 377C.

20. Cf. Santo Ireneu, Adversus Haereses 1, 10, 1; I, 22. 1; em: Sources Chrétiennes (= SCH) 264, p. 154-158; 308-310; Tertuliano, De praescriptione 13, 16; em Corpus Christianorum, Series Latina (= CChL), I, p. 197-198; Orígenes, Perì Archòn, Pref. 4, 10, em SCh 252, p. 80-89.

21. De Baptismo IV, 24, 31; em: Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (= CSEL) 51, p. 259.

22. Sobre o Espirito Santo, VII 16, 21.32; IX 22, 3; XXIX 71, 6; XXX 79, 15; em SCh 17 bis, p. 298.300.322.500.528.

23. Ibid. XXVII 66; 1-3, p. 478-480.

24. Cf. Horos, in: Mansi XIII, 378E.

25. Discurso sobre as imagens III, 3, em: PG 94, 1320-1321; e B. Katter, Die Schriften des Johannes von Damaskos, vol. III (Contra imaginum calumniatores orationes tres), em: "Patristische Texte und Studien" 17, Berlim-Nova Iorque, 1975, III, 3, p. 72-73.

26. Dei Verbum, 9.

27. Ibid., 8.

28. Ibid., l0.

29. Sobre o Espírito Santo, XVIII 45, 19, em: SCh 17 bis, p. 496; Nicéia II, Horos, em: Mansi XIII, 377E.

30. Cartas de São Gregório Magno ao Bispo Sereno de Marselha, em: MGH, Gregorii I Papae Registrum Epistularum II, 1, lib. IX, 208, p. 195 e II, 2, lib. XI, 10, p 270-271; ou em: CChL 140A, lib. IX, 209, p. 768 e lib. XI, 10, p. 874-875.

31. Cf. Teófano, Chronographia ad annum, 6221, ed. C. de Boor I, Leipzig, 1883, p. 404; ou PG 108, 821C.

32. Carta de Adriano I aos Imperadores, em: Mansi XII, 1062 AB.

33. Horos, em: Mansi XIII, 377E.

34. Ibid., 377D.

35. Teodoro Studita, Antirrheticus, 1, 10, in: PG 99, 339D.

36. Cf. Carta de Adriano a Carlos Magno, em: MGH, Epistulae V (Epistulae Karolini Aevi, t. III), p. 5-57; ou PL 98, 1248-1292.

37. Cf. Sacrosanctum Concilium, 111, 1; 125; 128; Lumen Gentium, 51; 67; Gaudium et Spes, 62, 4-5; e também Código de Direito Canônico, cân. 1255 e 1276.

38. Sacrosanctum Concilium, 122-124.

39. Ibid., 125.

40. Discurso sobre as imagens, I, 16, em: PG. 94, 1246A: e ed. Kotter 1, 16, p. 89.




Em Primeiro Lugar

Carta Apostólica
"EM PRIMEIRO LUGAR"
de Sua Santidade João Paulo II
por ocasião dos 350 anos da União de Uzhorod


Caríssimos Irmãos e Irmãs:

1. "Em primeiro lugar, dou graças ao meu Deus, por Jesus Cristo, a respeito de vós, porque a vossa fé é conhecida em todo o mundo. Porque Deus, a Quem presto culto no meu espírito, ao serviço do Evangelho de Seu Filho, me é testemunha de como, constantemente, me recordo de vós" (Rm. 1, 8-9).

A feliz comemoração dos 350 anos da União de Uzhorod constitui um momento importante no caminho duma Igreja que, com esse acto, quis restabelecer a plena unidade com o Bispo de Roma. Portanto, é compreensível que também eu participe na acção de graças a Deus de quantos se alegram na recordação daquele significativo evento. Os factos são conhecidos: a 24 de Abril de 1646, 63 sacerdotes bizantinos da Eparquia de Mukacevo, sob a orientação do monge basiliano Parténio Petrovyc, na igreja do castelo de Uzhorod, na presença do Bispo de Eger, D. Jorge Jakusics, foram recebidos na plena comunhão com a Sé de Pedro.

A União de Uzhorod não foi um gesto isolado. Ela inseria-se naquele caminho de reunificação entre as Igrejas, o qual tivera o seu momento culminante no Concílio de Florença (1439), quando foram subscritos os decretos da restabelecida comunhão plena das Igrejas do Oriente com a Igreja de Roma. Com efeito, o ilustre Metropolita Isidoro de Kiev, ao retornar do Concílio de Florença, tornou-se nas regiões transcarpáticas o arauto da unidade reencontrada.

Em 1595, os representantes da Sede Metropolitana de Kiev encontraram-se com o Papa Clemente VIII; e, no ano sucessivo, em 1596, essa união foi proclamada em Brest, com a intenção de efectuar o acordo alcançado em Florença. Muito cedo, o impulso proveniente do Concílio ecuménico florentino chegou aos Cárpatos e, superadas algumas dificuldades iniciais, concretizou-se na União de Uzhorod. Tratava-se do grão de mostarda evangélico que, semeado no fértil solo de Mukacevo, se transformara com o tempo numa árvore à sombra da qual se reuniu um numeroso grupo de fiéis de tradição bizantina. Tendo em consideração essa realidade, a 19 de Setembro de 1771, o Papa Clemente XIV, com a Constituição apostólica Eximia regalium principum (1) erigia a Eparquia greco-católica de Mukacevo, cuja sede haveria de ser transferida, poucos anos depois, para a vizinha Uzhorod.

Da frondosa árvore nasceram, sucessivamente, como se fossem rebentos florescentes, novas Circunscrições Eclesiásticas: as Eparquias de Krizevci (1777), de Prešov (1818) e de Hajdúdorog (1912). Entretanto, tornavam-se consistentes no além-mar os fluxos migratórios de fiéis, filhos dessa União. A Santa Sé, sempre atenta a acolher os desígnios providenciais de Deus e a secundá-los, erigiu-lhes nos Estados Unidos da América a Sede Metropolitana bizantina de Pittsburgh (1969), com as Eparquias sufragâneas de Passaic (1963), de Parma (1969) e de Van Nuys (1981).

A comum exultação das várias Eparquias, nascidas da União de Uzhorod, ao celebrarem o evento que está na base da sua identidade eclesial, constitui uma preciosa ocasião para renovar a consciência dos vínculos derivantes da comum origem e para reforçar aquele intercâmbio de fraternidade e aquela colaboração que a dramaticidade das vicissitudes históricas impediu por longo tempo.

2. Se a União de Uzhorod se situa na linha das deliberações do Concílio de Florença, não é decerto arbitrário pô-la também em estreita relação espiritual com o contexto em que se desenvolveu a missão dos Apóstolos dos Eslavos, os Santos Cirilo e Metódio, cuja pregação se difundiu desde a Grande Morávia até às Montanhas dos Cárpatos. Legitimamente, portanto, os fiéis das Igrejas que têm a própria origem na União de Uzhorod sentem-se com orgulho partícipes da herança cirilo-metodiana.

Já evoquei o extraordinário valor da obra de evangelização, levada a cabo por Cirilo e Metódio, em união tanto com a Igreja de Constantinopla como com a Sé Romana (2), salientando além disso que "a solicitude ardorosa demonstrada por ambos os Irmãos [...] por conservar a unidade da fé e do amor entre as Igrejas das quais faziam parte, isto é, a Igreja de Constantinopla e a Igreja Romana, de uma parte, e as Igrejas nascentes em terras eslavas, de outra parte, foi e continuará a ser sempre o seu grande mérito" (3). A pregação do Evangelho na plena comunhão entre os cristãos constitui, por conseguinte, a aspiração jamais desvanecida que caracteriza, ainda que com modalidades diversas, a história das Igrejas que se formaram em terras eslavas, desde os tempos em que viveram os dois Santos Irmãos.

As vicissitudes que se seguiram à União foram repletas de sofrimentos e dores. Contudo, a Eparquia, refortalecida primeiro por obra de D. Jorge G. Bizancij, conheceu um notável desenvolvimento no período inaugurado pelo grande Bispo André Bacynskyj. Em tempos recentes, infelizmente, ela foi novamente chamada, em não poucos dos seus membros, a percorrer com Cristo o doloroso caminho do Calvário na perseguição, na prisão e também no supremo sacrifício da vida. Este testemunho, selado com o sangue, foi oferecido pelo próprio pastor da Eparquia, D. Teodoro Romza, que não hesitou em entregar a vida pelas ovelhas do seu rebanho (cf. Jo. 10, 11).

Não podemos esquecer estes fúlgidos testemunhos de fidelidade a Cristo e ao Seu Evangelho: eles constituem o precioso património da Igreja greco-católica, que se reconhece na União de Uzhorod. Os filhos e filhas de toda a Igreja católica acolhem com veneração este exemplo e enriquecem-se mediante esta maravilhosa lição de fidelidade à verdade de Cristo. Com o coração comovido, damos graças por ela aos cristãos de Mukacevo e a quantos demonstraram que estão prontos a vender todos os seus bens para possuir a preciosa pérola da fé (cf. Mt. 13, 46).

3. A jubilosa comemoração da União de Uzhorod oferece uma ocasião propícia para darmos graças ao Senhor que quis enxugar as lágrimas dos seus filhos, no termo de um dramático período de dura perseguição. Deus sustentou-os durante essa etapa tão difícil da sua história, consentindo-lhes que conservassem a riqueza da sua tradição oriental e permanecessem, ao mesmo tempo, em plena comunhão com o Bispo de Roma. Assim, eles dão testemunho daquela universalidade que faz da Igreja uma realidade multiforme, capaz de compreender, sob o carisma de Pedro, a legítima variedade de tradições e de ritos que, longe de prejudicar a sua unidade, manifesta toda a sua riqueza e esplendor (4). É quanto já reconhecia o Papa Leão XIII quando, salientando a preciosa permuta de dons entre as tradições latina e oriental, afirmava que a variedade da liturgia e da disciplina orientais é como que ornamento para toda a Igreja, ilustra a sua catolicidade e manifesta claramente "a divina unidade da fé católica"(5).

Portanto, espera-se que a eleita porção do povo de Deus, relacionada de várias formas com o evento que se realizou em Uzhorod, possa reflorescer com nova prosperidade, vivendo um presente sereno e empenhando-se por um futuro caracterizado pela plena liberdade religiosa, pela busca da reconciliação entre católicos e ortodoxos, e pelo incansável empenho em favor da edificação da paz.

Com esta finalidade, será útil uma atitude de dócil escuta em relação aos ensinamentos do Concílio Vaticano II. Os Padres reunidos no Encontro ecuménico ofereceram, sob a guia do Espírito Santo, preciosas indicações sobre o modo como promover o diálogo da caridade e da busca da "unidade de espírito, mediante o vínculo da paz" (Ef. 4, 3). A perspectiva que tinham em vista é bem expressa nestas solenes palavras: "A esta unidade católica do Povo de Deus, que prefigura e promove a paz universal, são chamados todos os homens: a ela pertencem ou para ela se orientam, embora de maneira diferente, tanto os católicos como os cristãos e mesmo todos os homens em geral, chamados pela graça de Deus à salvação" (6).

4. O mesmo Concílio recordou que "a Igreja foi fundada por Cristo Senhor nosso como una e única, mas, apesar disso, muitas Comunhões cristãs se apresentam aos homens pretendendo ser a verdadeira herança de Jesus Cristo; todas, com efeito, se afirmam verdadeiras discípulas do Senhor, mas propõem diversas opiniões e caminham por vias diversas, como se o próprio Cristo estivesse dividido (cf. 1 Cor. 1, 13). Esta divisão não só contradiz abertamente a vontade de Cristo, mas escandaliza o mundo e prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a todas as criaturas"(7). Todavia, neste últimos tempos, Deus "rico em misericórdia" (Ef. 2, 4), sensibilizou o coração de inúmeros cristãos divididos entre si, inspirando-lhes um sincero desejo de encontrar o caminho da plena koinonia. "Também hoje Cristo pede que um ímpeto novo reanime o empenho de cada um em ordem à comunhão plena e visível" (8). Os Padres conciliares insistiram sobre o modo como "o cuidado de restabelecer a união diz respeito a toda a Igreja, tanto aos fiéis como aos Pastores, e a cada um segundo as próprias forças"(9). Para responder a este chamamento divino, propuseram a todos os católicos assistências e instrumentos eficazes, para promover o movimento ecuménico, na expectativa de alcançar a plena comunhão na Igreja "una, santa, católica e apostólica".

As Igrejas Orientais católicas podem oferecer um grande contributo para esta causa, que é inspirada pela graça divina. Com efeito, a elas "compete [...] a especial missão de promover a unidade de todos os cristãos, especialmente orientais, segundo o princípio do decreto "sobre o Ecumenismo" [...] em primeiro lugar pela oração, o exemplo de vida, a escrupulosa fidelidade às antigas tradições orientais, o mútuo e mais profundo conhecimento, a colaboração e a fraterna estima de coisas e pessoas"(10).

A este propósito, na Encíclica Ut unum sint, salientei que "o método a seguir para a plena comunhão é o diálogo da verdade, alimentado e amparado pelo diálogo da caridade. O reconhecimento às Igrejas Orientais católicas do direito de se organizarem e realizarem o seu apostolado, bem como o efectivo envolvimento destas Igrejas no diálogo teológico favorecerão não apenas um respeito recíproco, real e fraterno, entre os ortodoxos e os católicos que vivem no mesmo território, mas também o seu empenho comum na busca da unidade"(11).

5. A eficaz continuação de uma tarefa tão nobre supõe, da parte das Igrejas Orientais, um renovado e generoso impulso na formação dos futuros Pastores, na celebração da Sagrada Liturgia como centro vital da comunidade, na atenção constante às necessidades dos irmãos, mediante gestos de caridade concreta, na proposta de uma catequese que, repercorrendo os fundamentos da fé cristã, transmita a "boa nova" como fermento da vida quotidiana, em comunhão com a Igreja universal, empenhada na nova evangelização, na vigília de um novo milénio cristão.

O mundo em que vivemos "sofreu tantas e tais transformações culturais, políticas, sociais e económicas, que o problema da evangelização se apresenta em termos totalmente novos"(12). Por isso, é necessário estudar uma nova "qualidade de evangelização, que saiba reapresentar ao homem de hoje, em termos convincentes, a mensagem perene da Salvação"(13). Sobretudo, é necessário acelerar o passo rumo à plena reconciliação entre as Igrejas e no interior das Comunidades eclesiais(14). Se a Igreja é "em Cristo como que sacramento ou sinal, e também instrumento da união íntima com Deus e da unidade de todo o género humano"(15), e tem uma tarefa a desempenhar em favor da reconciliação de toda a humanidade, esta vocação não poderá ser realizada com plena eficácia enquanto existirem divisões entre os crentes de Cristo.

Oxalá a perspectiva do Jubileu do Ano 2000, já próximo, faça nascer em todos uma atitude de humildade, capaz de actuar a "necessária purificação da memória histórica"(16), através da conversão do coração e da oração, de maneira a favorecer o pedido e a oferta recíproca de perdão pelas incompreensões dos séculos passados.

O olhar dirigido para o futuro, que vê "a aproximação do fim do segundo milénio, incita todos a um exame de consciência e a oportunas iniciativas ecuménicas, de tal modo que possamos apresentar-nos ao Grande Jubileu, se não totalmente unidos, pelo menos muito mais perto de superar as divisões do segundo milénio"(17).

6. Um fervoroso agradecimento brota do profundo do coração dos filhos e filhas de toda a Igreja católica, pelo caminho de fidelidade e de coragem ao longo do qual o Pai conduziu as Igrejas nascidas da União de Uzhorod. É um sinal do Seu amor, se a programada celebração pode realizar-se com as devidas solenidade e liberdade. Ao mesmo tempo, eleve-se uma ardente súplica ao Espírito Santo, para implorar que apresse a hora em que todos os crentes de Cristo louvem a Trindade "com um só coração e uma só voz" (Rm. 15, 6). Condição indispensável para a jubilosa comemoração deste evento é que no coração de cada um amadureça a coragem do perdão: também esta é uma graça que deve ser invocada com incansável perseverança.

Ao aproximar-se o terceiro milénio cristão, o Bispo de Roma celebra com ânimo agradecido este Jubileu e, na comovida recordação de quantos sofreram até ao heroísmo a fim de não renegar os próprios empenhos de fé, oferece agora a Deus os sofrimentos dos mesmos, em comunhão com toda a Igreja, como sacrifício agradável, pela unidade dos cristãos e a salvação do mundo.

A Santíssima Mãe de Deus, que aos pés da Cruz recebeu do Filho a tarefa de seguir com solicitude materna o caminho da Igreja; a Rainha da paz, que consentiu ao Verbo eterno estabelecer a Sua morada no meio de nós, para nos reconciliar com o Pai; a Virgem do Pentecostes, de cuja súplica esperamos uma renovada efusão do Espírito de santidade; Santíssima Virgem Maria faz sentir a Tua presença amorosa no meio destes nossos irmãos e irmãs que, com alegria, se preparam para celebrar um aniversário tão significativo.

Ao confiar-Te, Mãe da unidade e da paz, estas amadas Comunidades eclesiais, a todos concedo de coração a Bênção Apostólica.

- Vaticano, 18 de Abril do ano de 1996, décimo oitavo de Pontificado.

REFERÊNCIAS


1. Cf. Bullarium Romanum IV/3 (1769-1774), 373-376.
2. Cf. Carta Apostólica Egregiae virtutis (31 de Dezembro de 1980), 1: Lumen gentium 73 (1981), 258.
3. Carta Encíclica Slavorum Apostoli (2 de Junho de 1985), 14: Lumen gentium 77 (1985), 796; cf. Carta Apostólica Orientale lumen (2 de Maio de 1995), 3: Lumen gentium 87 (1995), 747.
4. Cf. CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO II, Decreto sobre as Igrejas Orientais Orientalium Ecclesiarum, 2.
5. LEÃO XIII, Carta Apostólica Orientalium dignitas (30 de Novembro de 1894): Leonis XIII Acta, 14 (1894), 360.
6. CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO II, Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen gentium, 13.
7. CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO II, Decreto sobre o Ecumenismo Unitatis redintegratio, 1.
8. JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Ut unum sint (25 de Maio de 1995), 100: Lumen gentium 87 (1995), 981. 9. CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO II, Decreto sobre o Ecumenismo Unitatis redintegratio, 5; cf. JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Ut unum sint (25 de Maio de 1995), 101: Lumen gentium 87 (1995), 981.
10. CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO II, Decreto sobre as Igrejas Orientais Orientalium Ecclesiarum, 24.
11. N. 60: Lumen gentium 87 (1995), 957-958.
12. JOÃO PAULO II, Discurso aos participantes no VI Simpósio do Conselho das Conferências Episcopais da Europa (11 de Outubro de 1985), 1: Lumen gentium 78 (1986), 179.
13. JOÃO PAULO II, Mensagem aos Presidentes das Conferências Episcopais do Continente Europeu (2 de Janeiro de 1986), 6: Lumen gentium 78 (1986), 457.
14. JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Ut unum sint (25 de Maio de 1995), 78: Lumen gentium 87 (1995), 968.
15. CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO II, Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen gentium, 1.
16 . JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Ut unum sint (25 de Maio de 1995), 2: Lumen gentium 87 (1995), 922.
17. JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Tertio millennio adveniente (10 de Novembro de 1994), 34: Lumen gentium 87 (1995), 26-27.




Inter Munera Academiarum

Carta Apostólica
INTER MUNERA ACADEMIARUM
sobre as duas Pontifícias Academias Teológicas
João Paulo II,
Para perpétua memória.


1. Entre as tarefas das academias fundadas pelos Romanos Pontífices no decurso dos séculos, a investigação na filosofia e teologia ocupa o primeiro lugar.

Na minha recente Carta Encíclica Fides et ratio atribuí uma grande importância ao diálogo entre a teologia e a filosofia e expus claramente o meu apreço pelo pensamento de S. Tomás de Aquino, reconhecendo a sua perene novidade (cf. n. 43-44).

Justamente, S. Tomás pode ser chamado "Apóstolo da verdade" (n. 44). Com efeito, a intuição do Doutor Angélico consiste na certeza de que existe uma harmonia fundamental entre fé e razão (cf. n. 43): "É necessário que a razão do crente tenha um conhecimento natural, verdadeiro e coerente das coisas criadas, do mundo e do homem, que são também objecto da revelação divina; mais ainda, ela deve ser capaz de articular este conhecimento de maneira conceptual e argumentativa" (n. 66).

2. No limiar do Terceiro Milénio, muitas condições culturais se transformaram. Percebem-se aprofundamentos de grande importância no campo da antropologia, mas sobretudo mudanças substanciais no próprio modo de entender a condição do homem diante de Deus, dos outros homens e da inteira criação. Antes de tudo, o maior desafio da nossa época vem de uma crescente separação entre fé e razão, entre Evangelho e cultura. Os estudos dedicados a este imenso campo multiplicam-se dia após dia no contexto da nova evangelização. Com efeito, o anúncio da salvação encontra muitos obstáculos que derivam de conceitos erróneos e de uma grave carência duma adequada formação.

3. Um século depois da promulgação da Carta Encíclica Aeterni Patris do meu Predecessor Leão XIII, que assinalou o início de um novo desenvolvimento na renovação dos estudos filosóficos e teológicos e nas relações entre fé e razão, quero dar um novo impulso às Pontifícias Academias que actuam neste campo, tendo em consideração o pensamento e as orientações actuais, e também as necessidades pastorais da Igreja.

E por isso, reconhecendo a obra realizada durante séculos por membros da Pontifícia Academia Teológica Romana de S. Tomás de Aquino e de Religião Católica, decidi renovar os citados Estatutos destas Pontifícias Academias, de maneira que, com maior eficácia, possam desenvolver o seu empenho em campo filosófico-teológico, para favorecer a missão pastoral do Sucessor de Pedro e da Igreja universal.

4. A Pontifícia Academia de S. Tomás de Aquino "Doctor Humanitatis" é o nome que damos a S. Tomás de Aquino, porque estava sempre pronto a acolher os valores de todas as culturas (Discurso aos participantes no VIII Congresso Tomístico Internacional, 13/9/1980; Insegnamenti, III, 2 [1980] 609). Nas condições culturais do nosso tempo, parece deveras oportuno desenvolver sempre mais esta parte da doutrina tomística que trata da humanidade, dado que as suas afirmações sobre a dignidade da pessoa humana e sobre o uso da sua razão, perfeitamente de acordo com a fé, fazem de S. Tomás um mestre para o nosso tempo. Os homens, sobretudo no mundo hodierno, estão preocupados com este interrogativo: o que é o homem? Usando este apelativo, "Doctor Humanitatis", sigo o caminho traçado pelo Concílio Ecuménico Vaticano II, acerca do uso da doutrina do Aquinate quer na formação filosófica e teológica dos sacerdotes (Decreto Optatam totius, 16), quer no aprofundamento da harmonia e da concórdia entre fé e razão nas Universidades (Declaração Gravissimum educationis, 10).

Na minha Carta Fides et ratio publicada recentemente, desejei reevocar o entusiasmo do meu Predecessor Leão XIII, quando promulgou a Carta Encíclica que iniciava com as palavras "Aeterni Patris" (4 de Agosto de 1879; AAS 11 [1878-1879] 97-115): "O grande Pontífice retomou e desenvolveu a doutrina do Concílio Vaticano I sobre a relação entre fé e razão, mostrando como o pensamento filosófico é um contributo fundamental para a fé e para a ciência teológica. Passado mais de um século, muitas indicações, lá contidas, nada perderam do seu interesse tanto do ponto de vista prático como pedagógico; a primeira de todas é a que diz respeito ao valor incomparável da filosofia de S. Tomás. A reposição do pensamento do Doutor Angélico era vista pelo Papa Leão XIII como a melhor estrada para se recuperar um uso da filosofia conforme às exigências da fé" (Fides et ratio, 57). Esta Carta, verdadeiramente memorável, tinha como título Epistula Encyclica de Philosophia Christiana ad mentem Sancti Thomae Aquinatis Doctoris Angelicis in Scholis Catholicis instauranda.

O mesmo Leão XIII, a fim de que as exortações desta Encíclica fossem postas em prática, criou a Academia Romana de S. Tomás de Aquino (Carta Apost. Iampridem ad Em.mum Card. Antoninum De Luca, 15-X-1879). No ano seguinte, feliz pelo início dos trabalhos, escreveu aos Cardeais prepostos à nova Academia (Carta Apost., 21-XI-1880). Após 15 anos aprovou os Estatutos e estabeleceu ulteriores normas (Breve Apost. Quod iam inde, 9-V-1895). São Pio X, com a Carta Apostólica In praecipuis laudibus, 23-I-1904, confirmou os privilégios e o regulamento da Academia. Os Estatutos foram corrigidos e completados com as aprovações dos Romanos Pontífices Bento XV (11-II-1916) e Pio XI que, no dia 10-I-1934, incorporou a esta Academia a Pontifícia Academia de Religião Católica que, em circunstâncias então muito diferentes, tinha sido fundada em 1801 pelo Rev.mo Giovanni Fortunato Zamboni. É- me grato recordar Achille Ratti (1882) e sobretudo Giovanni Battista Montini (1922), os quais, como jovens sacerdotes, conseguiram nessa Academia Romana de S. Tomás o Doutoramento em Filosofia tomística e, depois, foram chamados ao Sumo Pontificado, assumindo os nomes de Pio XI e Paulo VI.

Para pôr em prática os desejos manifestados na minha Carta Encíclica, pareceu-me oportuno renovar os Estatutos da Pontifícia Academia de S. Tomás, de maneira a torná-la um instrumento eficaz para a Igreja e para a humanidade inteira. Nas actuais circunstâncias culturais, descritas precedentemente, parece conveniente, antes necessário, que essa Academia seja como que um fórum central e internacional para estudar melhor e de modo mais acurado a doutrina de S. Tomás, a fim de que o realismo metafísico do actus essendi, que imbui toda a filosofia e a teologia do Doutor Angélico, possa entrar em diálogo com os multíplices impulsos da investigação hodierna e da doutrina.

Portanto eu, com plena consciência e matura deliberação, e na plenitude do meu Poder Apostólico, em virtude desta Carta, aprovo "in perpetuo" os Estatutos da Pontifícia Academia de S. Tomás de Aquino, legitimamente elaborados e de novo revistos, e confiro-lhes a força da aprovação Apostólica.

5. A Pontifícia Academia Teológica Mestra de verdade, a Igreja cultivou, sem jamais cessar nisto, o estudo da teologia e fez com que os clérigos e os fiéis, de modo especial os que são chamados ao serviço da teologia, estivessem verdadeiramente preparados. No início do século XVIII, sob os auspícios de Clemente XI, meu Predecessor, foi fundada na Urbe a Academia Teológica, como sede das disciplinas sagradas e nutriz dos espírito nobres, de maneira que, como de uma fonte, brotassem frutos abundantes para a causa católica. Portanto, o mencionado Sumo Pontífice, com a Carta de 23 de Abril de 1718, instituiu canonicamente uma sede de estudos e cumulou-a de privilégios. Bento XIII, outro meu Predecessor, que, enquanto era Cardeal, "summa cum animi... iucunditate" (cf. Carta Aposst. 6-V-1726) frequentava as reuniões e os exercícios da mesma Academia, reflectia sobre quanto esplendor e decoro haveria de oferecer não só à Alma cidade de Roma mas ao inteiro mundo cristão, se essa Academia fosse potenciada por novas e mais válidas forças, cujo empenho fosse mais validamente sustentado, de modo a realizar progressos contínuos" (cf. ibid.). Portanto, não só aprovou a Academia que Clemente XI instituíra, mas também cumulou-a da sua benevolência e munificência. Ao reconhecer, portanto, os frutos satisfatórios e abundantíssimos produzidos pela Academia Teológica, Clemente XIV continuou a assisti-la com uma não diversa munificência e benevolência. Todo este empenho foi ainda feito próprio e aperfeiçoado pelo meu Predecessor Gregório XVI que aprovou, no dia 26-X-1838, com a autoridade Apostólica, os Estatutos sabiamente elaborados. Pareceu-me agora necessário rever estas leis, de modo que estejam mais adaptadas àquilo que o nosso tempo requer. Hoje, a missão principal da teologia consiste em promover o diálogo entre a Revelação e a doutrina da fé, e em apresentar uma compreensão sempre mais profunda. Ao acolher de modo favorável os votos que me foram dirigidos para que aprovasse estas novas leis, e ao acolhê-los, quero que esta egrégia sede de estudos cresça em qualidade e por isto aprovo, em virtude desta Carta, e para sempre, os Estatutos da Pontifícia Academia Teológica, legitimamente elaborados e de novo revistos, e confiro-lhes a força da aprovação Apostólica.

6. Tudo isto que decretei nesta Carta, dada sob a forma de Motu próprio, ordeno que tenha valor estável e duradouro, não obstante quaisquer disposições em contrário.

- Dado em Roma, junto de São Pedro, a 28 de Janeiro, memória de S. Tomás de Aquino, do ano de 1999, vigésimo primeiro do meu Pontificado.






Munificentissimus Deus

Carta Apostólica
MUNIFICENTISSIMUS DEUS
definindo o Dogma da Assunção de Nossa Senhora,
em corpo e alma
Pio XII,
servo dos servos de Deus,
para perpétua memória.


INTRODUÇÃO

1. Deus munificentíssimo, que tudo pode, e cujos planos de providência são cheios de sabedoria e de amor, nos seus imperscrutáveis desígnios, entremeia na vida os povos e dos indivíduos as dores com as alegrias, para que por diversos caminhos e de várias maneiras tudo coopere para o bem dos que o amam (cf. Rm 8, 28).

2. O nosso pontificado, assim como os tempos actuais, tem sido assediado por inúmeros cuidados, preocupações e angústias, devido às grandes calamidades e por muitos que andam afastados da verdade e da virtude. Mas é para nós de grande conforto ver como, à medida que a fé católica se manifesta publicamente cada vez mais activa, aumenta também cada dia o amor e a devoção para com a Mãe de Deus, e quase por toda parte isso é estímulo e auspício de uma vida melhor e mais santa. E assim sucede que, por um lado, a santíssima Virgem desempenha amorosamente a sua missão de mãe para com os que foram remidos pelo sangue de Cristo, e por outro, as inteligências e os corações dos filhos são estimulados a uma mais profunda e diligente contemplação dos seus privilégios.

3. De fato, Deus, que desde toda a eternidade olhou para a virgem Maria com particular e planíssima complacência, quando chegou a plenitude dos tempos (Gl 4,4) actuou o plano da sua providência de forma que refulgissem com perfeitíssima harmonia os privilégios e prerrogativas que lhe concedera com sua liberalidade. A Igreja sempre reconheceu esta grande liberalidade e a perfeita harmonia de graças, e durante o decurso dos séculos sempre procurou estudá-la melhor. Nestes nossos tempos refulgiu com luz mais clara o privilégio da assunção corpórea da Mãe de Deus.

4. Esse privilégio brilhou com novo fulgor quando o nosso predecessor de imortal memória, Pio IX, definiu solenemente o dogma da Imaculada Conceição. De fato esses dois dogmas estão estreitamente conexos entre si. Cristo com a própria morte venceu a morte e o pecado, e todo aquele que pelo baptismo de novo é gerado, sobrenaturalmente, pela graça, vence também o pecado e a morte. Porém Deus, por lei ordinária, só concederá aos justos o pleno efeito desta vitória sobre a morte, quando chegar o fim dos tempos. Por esse motivo, os corpos dos justos corrompem-se depois da morte, e só no último dia se juntarão com a própria alma gloriosa.

5. Mas Deus quis excectuar dessa lei geral a bem-aventurada virgem Maria. Por um privilégio inteiramente singular ela venceu o pecado com a sua concepção imaculada; e por esse motivo não foi sujeita à lei de permanecer na corrupção do sepulcro, nem teve de esperar a redenção do corpo até ao fim dos tempos.

6. Quando se definiu solenemente que a virgem Maria, Mãe de Deus, foi imune desde a sua concepção de toda a mancha, logo os corações dos fiéis conceberam uma mais viva esperança de que em breve o supremo magistério da Igreja definiria também o dogma da assunção corpórea da virgem Maria ao céu.

DESENVOLVIMENTO

Petições para a definição dogmática

7. De fato, sucedeu que não só os simples fiéis, mas até aqueles que, em certo modo, personificam as nações ou as províncias eclesiásticas, e mesmo não poucos Padres do concílio Vaticano pediram instantemente à Sé Apostólica esta definição.

8. Com o decurso do tempo essas petições e votos não diminuíram, antes foram aumentando de dia para dia em número e insistência. Com esse fim fizeram-se cruzadas de orações; muitos e exímios teólogos intensificaram com ardor os seus estudos sobre este ponto, quer em privado, quer nas universidades eclesiásticas ou nas outras escolas de disciplinas sagradas; celebraram-se em muitas partes congressos marianos nacionais e internacionais. Todos esses estudos e investigações mostraram com maior realce que no depósito da fé cristã, confiado à Igreja, também se encontrava a assunção da virgem Maria ao céu. E de ordinário a consequência foi enviarem súplicas em que se pedia instante mente a definição solene desta verdade.

9. Acompanhavam os fiéis nessa piedosa insistência os seus sagrados pastores, os quais dirigiram a esta cadeira de S. Pedro semelhantes petições em número muito considerável. Quando fomos elevado ao sumo pontificado, já tinham sido apresentadas a esta Sé Apostólica muitos milhares dessas súplicas, vindas de todas as partes do mundo e de todas as classes de pessoas: dos nossos amados filhos cardeais do Sacro Colégio, dos nossos veneráveis irmãos arcebispos e bispos, das dioceses e das paróquias.

10. Por esse motivo, ao mesmo tempo que dirigíamos a Deus intensas súplicas, para que concedesse à nossa mente a luz do Espírito Santo para decidirmos tão importante causa, estabelecemos normas especiais em que determinamos que se procedesse com todo o cuidado a um estudo mais rigoroso da matéria, e se reunissem e examinassem todas as petições relativas à assunção da santíssima virgem, enviadas à Sé Apostólica desde o tempo do nosso predecessor de feliz memória, Pio IX, até ao presente. (1)

Consulta ao episcopado

11. Mas como se tratava de assunto de tanta importância e transcendência, julgamos oportuno rogar directa e oficialmente a todos os nossos veneráveis irmãos no episcopado, que nos quisessem manifestar explicitamente a sua opinião. Para tal fim, no dia 1° de Maio de 1946, dirigimos-lhes a carta encíclica "Deiparae Virginis Mariae" em que fazíamos esta pergunta: "Se vós, veneráveis irmãos, na vossa exímia sabedoria e prudência, julgais que a assunção corpórea da santíssima Virgem pode ser proposta e definida como dogma de fé, e se desejais que o seja, tanto vós como o vosso clero e fiéis".

Doutrina concorde do magistério da Igreja

12. E aqueles que "o Espírito Santo colocou como bispos para reger a Igreja de Deus" (At 20, 28) quase unanimemente deram resposta afirmativa a ambas as perguntas. Essa "singular concordância dos bispos e fiéis" (2) em julgar que a assunção corpórea ao céu da Mãe de Deus podia ser definida como dogma de fé, mostra-nos a doutrina concorde do magistério ordinário da Igreja, e a fé igualmente concorde do povo cristão - que aquele magistério sustenta e dirige - e por isso mesmo manifesta, de modo certo e imune de erro, que tal privilégio é verdade revelada por Deus e contida no depósito divino que Jesus Cristo confiou a sua esposa para o guardar fielmente e infalivelmente o declarar. (3) De fato, esse magistério da Igreja, não por estudo meramente humano, mas pela assistência do Espírito de verdade (cf. Jo 14,26), e portanto absolutamente sem nenhum erro, desempenha a missão que lhe foi confiada de conservar sempre puras e íntegras as verdades reveladas; e pelo mesmo motivo transmite-as sem contaminação e sem lhes ajuntar nem subtrair nada. "Pois - como ensina o concílio Vaticano - o Espírito Santo foi prometido aos sucessores de Pedro não para que, por sua revelação, expressem doutrinas novas, mas para que, com sua assistência, guardassem com cuidado e expusessem fielmente a revelação transmitida pelos apóstolos, ou seja o depósito da fé". (4) Por essa razão, do consenso universal do magistério da Igreja, deduz-se um argumento certo e seguro para demonstrar a assunção corpórea da bem-aventurada virgem Maria. Esse mistério, pelo que respeita à glorificação celestial do corpo da augusta Mãe de Deus, não podia ser conhecido por nenhuma faculdade da inteligência humana só com as forças naturais. E, portanto, verdade revelada por Deus, e por essa razão todos os filhos da Igreja têm obrigação de a crer firme e fielmente. Pois, como afirma o mesmo concílio Vaticano, "temos obrigação de crer com fé divina e católica, todas as coisas que se contêm na palavra de Deus escrita ou transmitida oralmente, e que a Igreja, com solene definição ou com o seu magistério ordinário e universal, nos propõe para crer, como reveladas por Deus". (5)

Testemunhos da crença na assunção

13. Desde tempos remotíssimos, pelo decurso dos séculos, aparecem-nos testemunhos, indícios e vestígios desta fé comum da Igreja; fé que se manifesta cada vez mais claramente.

14. Os fiéis, guiados e instruídos pelos pastores, souberam por meio da sagrada Escritura que a virgem Maria, durante a sua peregrinação terrestre, levou vida cheia de cuidados, angústias e sofrimentos; e que, segundo a profecia do santo velho Simeão, uma espada de dor lhe trespassou o coração, junto da cruz do seu divino Filho e nosso Redentor. E do mesmo modo, não tiveram dificuldade em admitir que, à semelhança do seu unigénito Filho, também a excelsa Mãe de Deus morreu. Mas essa persuasão não os impediu de crer expressa e firmemente que o seu sagrado corpo não sofreu a corrupção do sepulcro, nem foi reduzido à podridão e cinzas aquele tabernáculo do Verbo divino. Pelo contrário, os fiéis iluminados pela graça e abrasados de amor para com aquela que é Mãe de Deus e nossa Mãe dulcíssima, compreenderam cada vez com maior clareza a maravilhosa harmonia existente entre os privilégios concedidos por Deus àquela que o mesmo Deus quis associar ao nosso Redentor. Esses privilégios elevaram-na a uma altura tão grande, que não foi atingida por nenhum ser criado, exceptuada somente a natureza humana de Cristo.

15. Patenteiam inequivocamente esta mesma fé os inumeráveis templos consagrados a Deus em honra da assunção de nossa senhora, e as imagens neles expostas à veneração dos fiéis, que mostram aos olhos de todos este singular triunfo da santíssima Virgem. Muitas cidades, dioceses e regiões foram consagradas ao especial patrocínio e protecção da assunção da Mãe de Deus. Do mesmo modo, com aprovação da Igreja, fundaram-se Institutos religiosos com o nome deste privilégio. Nem se deve passar em silêncio que no rosário de nossa Senhora, cuja reza tanto recomenda esta Sé Apostólica, há um mistério proposto à nossa meditação, que, como todos sabem, é consagrado à assunção da santíssima Virgem ao céu.

Testemunho da liturgia

16. De modo ainda mais universal e esplendoroso se manifesta esta fé dos pastores e dos fiéis, com a festa litúrgica da assunção celebrada desde tempos antiquíssimos no Oriente e no Ocidente. Nunca os santos padres e doutores da Igreja deixaram de haurir luz nesta solenidade, pois, como todos sabem, a sagrada liturgia, "sendo também profissão das verdades católicas, e estando sujeita ao supremo magistério da Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pequeno valor para determinar algum ponto da doutrina cristã". (6)

17. Nos livros litúrgicos em que aparece a festa da Adoração ou da assunção de Santa Maria, encontram-se expressões que de uma ou outra maneira concordam em referir que, quando a virgem Mãe de Deus passou deste exílio para o céu, por uma especial providência divina, sucedeu ao seu corpo algo de consentâneo com a dignidade de Mãe do Verbo encarnado e com os outros privilégios que lhe foram concedidos. E o que se afirma, para apresentarmos um exemplo elucidativo, no Sacramentário enviado pelo nosso predecessor de imortal memória Adriano I, ao imperador Carlos Magno. Nele se diz: "É digna de veneração, Senhor, a festividade deste dia, em que a santa Mãe de Deus sofreu a morte temporal; mas não pode ficar presa com as algemas da morte aquela que gerou no seu seio o Verbo de Deus encarnado, vosso Filho, nosso Senhor". (7)

18. Aquilo que aqui se refere com a sobriedade de palavras costumeiras na Liturgia romana, exprime-se mais difusamente nos outros livros das antigas liturgias orientais e ocidentais. O Sacramentário Galicano, por exemplo, chama a esse privilégio de Maria, "inexplicável mistério, tanto mais digno de ser proclamado, quanto é único entre os homens, pela assunção da virgem". E na liturgia bizantina a assunção corporal da virgem Maria é relacionada diversas vezes não só com a dignidade de Mãe de Deus, mas também com os outros privilégios, especialmente com a sua maternidade virginal, decretada por um singular desígnio da Providência divina: "Deus, Rei do universo, concedeu-vos privilégios que superam a natureza; assim como no parto vos conservou a virgindade, assim no sepulcro vos preservou o corpo da corrupção e o conglorificou pela divina translação". (8)

A festa da assunção

19. A Sé Apostólica, herdeira do múnus confiado ao Príncipe dos apóstolos de confirmar na fé os irmãos (cf. Lc 22,32), com sua autoridade foi tornando cada vez mais solene esta celebração. Esse fato estimulou eficazmente os fiéis a irem-se apercebendo mais e mais da importância deste mistério. E assim, a festa da assunção, que ao princípio tinha o mesmo grau de solenidade que as restantes festas marianas, foi elevada ao rito das festas mais solenes do ciclo litúrgico. O nosso predecessor S. Sérgio I, ao rescrever as ladainhas, ou a chamada procissão estacional, nas festas de nossa Senhora, enumera simultaneamente a Natividade, a Anunciação, a Purificação e a Dormição. (9) A festa já se celebrava com o nome de assunção da bem-aventurada Mãe de Deus, no tempo de S. Leão IV. Esse papa procurou que se revestisse de maior esplendor, mandando ajuntar-lhe a vigília e a oitava. E o próprio pontífice quis participar nessas solenidades acompanhado de imensa multidão. (10) Na vigília já de há muito se guardava o jejum, como se prova com evidência do que afirma o nosso predecessor S. Nicolau I, ao tratar dos principais jejuns "que... desde os tempos antigos observava e ainda observa a santa Igreja romana". (11)

20. A Liturgia da Igreja não cria a fé católica, mas supõe-na; e é dessa fé que brotam os ritos sagrados, como da árvore os frutos. Por isso os santos Padres e doutores nas homilias e sermões que nesse dia fizeram ao povo, não foram buscar essa doutrina à liturgia, como a fonte primária; mas falaram dela aos fiéis como de coisa sabida e admitida por todos. Declararam-na melhor, explicaram o seu significado e o fato com razões mais profundas, destacando e amplificando aquilo a que muitas vezes os livros litúrgicos apenas aludiam em poucas palavras, a saber, que com esta festa não se comemora somente a incorrupção do corpo morto da santíssima Virgem, mas principalmente o triunfo por ela alcançado sobre a morte e a sua celeste glorificação à semelhança do seu Filho unigénito, Jesus Cristo.

Testemunho dos santos Padres

21. S. João Damasceno, que entre todos se distingue como pregoeiro dessa tradição, ao comparar a assunção gloriosa da Mãe de Deus com as suas outras prerrogativas e privilégios, exclama com veemente eloquência: "Convinha que aquela que no parto manteve ilibada virgindade conservasse o corpo incorrupto mesmo depois da morte. Convinha que aquela que trouxe no seio o Criador encarnado, habitasse entre os divinos tabernáculos. Convinha que morasse no tálamo celestial aquela que o Eterno Pai desposara. Convinha que aquela que viu o seu Filho na cruz, com o coração trespassado por uma espada de dor de que tinha sido imune no parto, contemplasse assentada à direita do Pai. Convinha que a Mãe de Deus possuísse o que era do Filho, e que fosse venerada por todas as criaturas como Mãe e Serva do mesmo Deus". (12)

22. Condizem com essas palavras de s. João Damasceno as de muitos outros que afirmam a mesma doutrina. E não são menos expressivas, nem menos exactas, as palavras que se encontram nos sermões proferidos pelos santos Padres mais antigos ou da mesma época, ordinariamente por ocasião dessa festividade. Assim, para citar outro exemplo, s. Germano de Constantinopla julgava que a incorrupção do corpo da virgem Maria Mãe de Deus, e a sua assunção ao céu são corolários não só da sua maternidade divina, mas até da santidade singular daquele corpo virginal: "vós, como está escrito, aparecestes "em beleza"; o vosso corpo virginal é totalmente santo, totalmente casto, totalmente domicílio de Deus de forma que até por este motivo foi isento de desfazer-se em pó; foi, sim, transformado, enquanto era humano, para viver a vida altíssima da incorruptibilidade; mas agora está vivo, gloriosíssimo, incólume e participante da vida perfeita". (13) Outro escritor antiquíssimo assevera por sua vez: "A gloriosíssima Mãe de Cristo, Deus e Salvador nosso, dador da vida e da imortalidade, foi glorificada e revestida do corpo na eterna incorruptibilidade, por aquele mesmo que a ressuscitou do sepulcro e a chamou a si duma forma que só ele sabe". (14)

23. A medida que a festa litúrgica se foi espalhando, e celebrando mais devotamente, maior foi o número de bispos e oradores sagrados que julgaram de seu dever explicar com toda a clareza o mistério que se venerava nesta solenidade e mostrar como ela estava intimamente relacionada com as outras verdades reveladas.

Testemunho dos teólogos

24. Entre os teólogos escolásticos, não faltaram alguns, que, pretendendo penetrar mais profundamente nas verdades reveladas, e mostrar o acordo entre a chamada razão teológica e a fé católica, notaram a estreita conexão existente entre este privilégio da assunção da santíssima Virgem e as demais verdades contidas na Sagrada Escritura.

25. Partindo desse pressuposto, apresentam diversas razões para corroborar esse privilégio mariano. A razão primária e fundamental diziam ser o amor filial de Cristo para o levar a querer a assunção de sua Mãe ao céu. E advertiam mais, que a força dos argumentos se baseava na incomparável dignidade da sua maternidade divina e em todas as graças que dela derivam: a santidade altíssima que excede a santidade de todos os homens e anjos, a íntima união de Maria com o seu Filho, e sobretudo o amor que o Filho consagrava a sua Mãe digníssima.

26. Muitas vezes os teólogos e oradores sagrados seguindo os passos dos santos Padres, (15) para explicarem a sua fé na assunção, serviram-se com certa liberdade de fatos e textos da Sagrada Escritura. E assim para mencionar só alguns mais empregados, houve quem citasse a este propósito as palavras do Salmista: "Erguei-vos, Senhor, para o vosso repouso, vós e a Arca de vossa santificação" (Sl 131, 8); e na Arca da Aliança, feita de madeira incorruptível e colocada no templo de Deus viam como que uma imagem do corpo puríssimo da virgem Maria, preservado da corrupção do sepulcro, e elevado a tamanha glória no céu. Do mesmo modo, ao tratar desta matéria, descrevem a entrada triunfal da Rainha na corte celeste, e como se vai sentar a direita do divino Redentor (Sl 44,10.14-16); e recordam a propósito a esposa dos Cantares "que sobe pelo deserto, como uma coluna de mirra e de incenso" para ser coroada (Ct 3,6; cf. 4, 8; 6, 9). Ambas são propostas como imagens daquela Rainha e Esposa celestial, que sobe ao céu com o seu divino Esposo.

27. Os doutores escolásticos vislumbram igualmente a assunção da Mãe de Deus não só em várias figuras do Antigo Testamento, mas também naquela mulher revestida de sol, que o apóstolo s. João contemplou na ilha de Patmos (Ap 12,1s.). Porém, entre os textos do Novo Testamento, consideraram e examinaram com particular cuidado aquelas palavras: "Ave, cheia de graça o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres" (Lc 1, 28), pois viram no mistério da assunção o complemento daquela plenitude de graça, concedida à santíssima Virgem, e uma singular bênção contraposta à maldição de Eva.

Na teologia escolástica

28. Por esse motivo, nos primórdios da teologia escolástica, o piedosíssimo varão Amadeu, bispo de Lausana, afirmava que a carne da virgem Maria permaneceu incorrupta nem se pode crer que o seu corpo padecesse a corrupção, porque se uniu de novo à alma, e juntamente com ela penetrou na corte celestial. "Pois ela era cheia de graça e bendita entre as mulheres (Lc 1,28). só ela mereceu conceber o Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, e sendo virgem deu-o à luz, amamentou-o, trouxe-o no regaço, e prestou-lhe todos os cuidados maternos". (16)

29. Entre os escritores sagrados que naquele tempo com vários textos, comparações e analogias tiradas das divinas Letras, ilustraram e confirmaram a doutrina da assunção em que piamente acreditavam, ocupa lugar primordial o doutor evangélico s. Antônio de Pádua. Na festa da assunção, ao comentar aquelas palavras de Isaías: "glorificarei o lugar dos meus pés" (Is 60,13), afirmou com segurança que o divino Redentor glorificou de modo mais perfeito a sua Mãe amantíssima, da qual tomara carne humana. "Daqui, vê-se claramente", diz, "que o corpo da santíssima Virgem foi assunto ao céu, pois era o lugar dos pés do senhor". Pelo que, escreve o salmista: "Erguei-vos, senhor, para o vosso repouso, vós e a Arca da vossa santificação". E assim como, acrescenta ainda, Jesus Cristo ressuscitou triunfante da morte e subiu para a direita do Pai, assim também "ressuscitou a Arca da sua santificação, quando neste dia a virgem Mãe foi assunta ao tálamo celestial". (17)

No período áureo

30. Quando, na Idade Média, a teologia escolástica atingiu o maior esplendor, s. Alberto Magno, para demonstrar essa verdade, apresenta vários argumentos fundados na Sagrada Escritura, na tradição, na liturgia e em razões teológicas, e conclui: "Por estas e outras muitas razões e autoridades, é evidente que a bem-aventurada Mãe de Deus foi assunta ao céu em corpo e alma sobre os coros dos anjos. E cremos que isto é absolutamente verdadeiro". (18) E num sermão pregado em dia da Anunciação de nossa Senhora, ao explicar aquelas palavras do anjo: "Ave, cheia de graça...", o doutor universal compara a santíssima Virgem com Eva, e afirma clara e terminantemente que Maria foi livre das quatro maldições que caíram sobre Eva. (19)

31. O Doutor Angélico, seguindo as pisadas do mestre, ainda que nunca trate expressamente do assunto, no entanto sempre que se oferece a ocasião fala dele, e com a Igreja católica afirma que o corpo de Maria juntamente com a alma foi levado ao céu. (20)

32. E da mesma opinião, entre outros muitos, o Doutor Seráfico, o qual tem como certo que, assim como Deus preservou Maria santíssima da violação do pudor e da integridade virginal ao conceber e dar à luz o seu Filho, assim não permitiu que o seu corpo se desfizesse em podridão e cinzas. (21) Aplica a santíssima Virgem, em sentido acomodatício, aquelas palavras da Sagrada Escritura: "Quem é esta que sobe do deserto, cheia de gozo, e apoiada no seu amado?" (Ct 8,5), e raciocina desta forma: "Daqui pode concluir-se que ela está ali corporalmente (na glória celeste)... Porque... a sua felicidade não seria plena se ali não estivesse em pessoa; ora a pessoa não e só a alma, mas o composto; logo é claro que está ali segundo o composto, isto é, em corpo e alma; de outro modo não gozaria de felicidade plena". (22)

Na escolástica posterior

33. Na escolástica posterior, ou seja no século XV, são Bernardino de Sena, resumindo e ponderando cuidadosamente tudo quanto os teólogos medievais tinham escrito a esse propósito, não julgou suficiente referir as principais considerações que os antigos doutores tinham proposto, mas acrescentou outras novas. Por exemplo, a semelhança entre a divina Mãe e o divino Filho, no que respeita à perfeição e dignidade de alma e corpo - semelhança que nem sequer nos permite pensar que a Rainha celestial possa estar separada do Rei dos céus - exige absolutamente que Maria "só deva estar onde está Cristo". (23) Portanto, é muito conveniente e conforme à razão que tanto o corpo como a alma do homem e da mulher tenham alcançado já a glória no céu; e, finalmente, o fato de nunca a Igreja ter procurado as relíquias da santíssima Virgem nem as ter exposto à veneração dos fiéis, constitui um argumento que é "como que uma experiência sensível" da assunção. (24)

Nos tempos modernos

34. Em tempos mais recentes, as razões dos santos Padres e doutores, acima aduzidas, foram usadas comummente. Seguindo o comum sentir dos cristãos, recebido dos tempos antigos s. Roberto Belarmino exclamava: "Quem há, pergunto, que possa pensar que a arca da santidade, o domicílio do Verbo, o templo do Espírito Santo tenha caído em ruínas? Horroriza-se o espírito só com pensar que aquela carne que gerou, deu a luz, alimentou e transportou a Deus, se tivesse convertido em cinza ou fosse alimento dos vermes". (25)

35. De igual forma s. Francisco de Sales afirma que não se pode duvidar que Jesus Cristo cumpriu do modo mais perfeito o divino mandamento que obriga os filhos a honrar os pais. E a seguir faz esta pergunta: "Que filho haveria, que, se pudesse, não ressuscitava a sua mãe e não a levava para o céu?" (26) E s. Afonso escreve por sua vez: "Jesus não quis que o corpo de Maria se corrompesse depois da morte, pois redundaria em seu desdouro que se transformasse em podridão aquela carne virginal de que ele mesmo tomara a própria carne". (27)

36. Quando já tinha aparecido em toda a sua luz o mistério que se celebra nesta festa, não faltaram doutores que, em vez de tratar das razões teológicas pelas quais se demonstrasse a absoluta conveniência de crença na assunção corpórea da Virgem santíssima, voltaram o pensamento para a fé da Igreja, mística esposa de Cristo, sem mancha nem ruga (cf. Ef 5,27), que o Apóstolo chama "coluna e sustentáculo da verdade" (1Tm 3,15). E apoiados nesta fé comum pensaram que seria temerária, para não dizer herética, a opinião contrária. S. Pedro Canísio, como outros muitos, depois de declarar que o termo assunção se referia à glorificação não só da alma mas também do corpo, e que a Igreja há muitos séculos venerava e celebrava solenemente este mistério mariano, observa: "Esta opinião é admitida há vários séculos e tão impressa na alma dos fiéis, é tão recomendada pela Igreja, que quem negasse a assunção ao céu do corpo de Maria santíssima nem sequer seria ouvido com paciência, mas seria vaiado como pertinaz, ou mesmo temerário, e imbuído mais de espírito herético do que católico". (28)

37. Pela mesma época, o Doutor Exímio estabelecia esta regra para a mariologia: "Os mistérios da graça que Deus operou na virgem Maria não se devem medir pelas leis ordinárias, senão pela omnipotência divina, suposta a conveniência do fato e a não contradição ou repugnância com as Escrituras". (29) E apoiado na fé de toda a Igreja, podia concluir que o mistério da assunção devia crer-se com a mesma firmeza que o da imaculada Conceição, e já então julgava que ambas as verdades podiam ser definidas.

Fundamento escriturístico

38. Todos esses argumentos e razões dos santos Padres e teólogos apóiam-se, em último fundamento, na Sagrada Escritura. Esta nos apresenta a Mãe de Deus extremamente unida ao seu Filho, e sempre participante da sua sorte. Pelo que parece quase que impossível contemplar aquela que concebeu, deu à luz, alimentou com o seu leite, a Cristo, e o teve nos braços e apertou contra o peito, estivesse agora, depois da vida terrestre, separada dele, se não quanto à alma, ao menos quanto ao corpo. O nosso Redentor é também filho de Maria; e como observador perfeitíssimo da lei divina não podia deixar de honrar a sua Mãe amantíssima logo depois do Eterno Pai. E podendo ele adorná-la com tamanha honra, preservando-a da corrupção do sepulcro, deve crer-se que realmente o fez.

39. E convém sobretudo ter em vista que, já a partir do século II, os santos Padres apresentam a virgem Maria como nova Eva, sujeita sim, mas intimamente unida ao novo Adão na luta contra o inimigo infernal. E essa luta, como já se indicava no Pronto evangelho, acabaria com a vitória completa sobre o pecado e sobre a morte, que sempre se encontram unidas nos escritos do apóstolo das gentes (cf. Rm 5; 6; 1Cor 15, 21-26; 54-57). Assim como a ressurreição gloriosa de Cristo constituiu parte essencial e último troféu desta vitória, assim também a vitória de Maria santíssima, comum com a do seu Filho, devia terminar pela glorificação do seu corpo virginal. Pois, como diz ainda o apóstolo, "quando... este corpo mortal se revestir da imortalidade, então se cumprirá o que está escrito: a morte foi absorvida na vitória" (1 Cor 15,14).

40. Deste modo, a augustíssima Mãe de Deus, associada a Jesus Cristo de modo insondável desde toda a eternidade "com um único decreto" (30) de predestinação, imaculada na sua concepção, sempre virgem, na sua maternidade divina, generosa companheira do divino Redentor que obteve triunfo completo sobre o pecado e suas consequências, alcançou por fim, como suprema coroa dos seus privilégios, que fosse preservada da corrupção do sepulcro, e que, à semelhança do seu divino Filho, vencida a morte, fosse levada em corpo e alma ao céu, onde refulge como Rainha à direita do seu Filho, Rei imortal dos séculos (cf. 1Tm 1,17).

Oportunidade da definição

41. Considerando que a Igreja universal - que é assistida pelo Espírito de verdade, que a dirige infalivelmente para o conhecimento das verdades reveladas - no decurso dos séculos manifestou de tantas formas a sua fé; considerando que os bispos de todo o mundo quase unanimemente pedem que seja definida como dogma de fé divina e católica a verdade da assunção corpórea da santíssima Virgem ao céu; considerando que esta verdade se funda na Sagrada Escritura, está profundamente gravada na alma dos fiéis, e desde tempos antiquíssimos é comprovada pelo culto litúrgico, e concorda, inteiramente, com as outras verdades reveladas, e tem sido esplendidamente explicada e declarada pelos estudos, sabedoria e prudência dos teólogos - julgamos chegado o momento estabelecido pela providencia de Deus, para proclamarmos solenemente este privilégio insigne da virgem Maria.

42. Nós, que colocamos o nosso pontificado sob o especial patrocínio da santíssima Virgem, à qual recorremos em tantas circunstâncias tristes, nós, que consagramos publicamente todo o género humano ao seu imaculado Coração, e que experimentamos muitas vezes o seu poderoso patrocínio, confiamos firmemente que esta solene proclamação e definição será de grande proveito para a humanidade inteira, porque reverte em glória da Santíssima Trindade, a qual a virgem Mãe de Deus está ligada com laços muito especiais. É de esperar também que todos os fiéis cresçam em amor para com a Mãe celeste, e que os corações de todos os que se gloriam do nome de cristãos se movam a desejar a união com o corpo místico de Jesus Cristo, e que aumentem no amor para com aquela que tem amor de Mãe para com os membros do mesmo augusto corpo. E também é lícito esperar que, ao meditarem nos exemplos gloriosos de Maria, mais e mais se persuadam todos do valor da vida humana, se for consagrada ao cumprimento integral da vontade do Pai celeste e a procurar o bem do próximo. Enquanto o materialismo e a corrupção de costumes que dele se origina ameaçam subverter a luz da virtude, e destruir vidas humanas, suscitando guerras, é de esperar ainda que este luminoso e incomparável exemplo, posto diante dos olhos de todos, mostre com plena luz qual o fim a que se destinam a nossa alma e o nosso corpo. E, finalmente, esperamos que a fé na assunção corpórea de Maria ao céu torne mais firme e operativa a fé na nossa própria ressurreição.

43. E é para nós motivo de imenso regozijo que este fato, por providência de Deus, se realize neste Ano santo que está a decorrer, e que assim possamos, enquanto se celebra este jubileu maior, adornar com esta pedra preciosa a fronte da Virgem santíssima, e deixar um monumento, mais perene que o bronze, da nossa ardente devoção para com a Mãe de Deus.

DEFINIÇÃO SOLENE DO DOGMA

44. "Pelo que, depois de termos dirigido a Deus repetidas súplicas, e de termos invocado a paz do Espírito de verdade, para glória de Deus omnipotente que à virgem Maria concedeu a sua especial benevolência, para honra do seu Filho, Rei imortal dos séculos e triunfador do pecado e da morte, para aumento da glória da sua augusta mãe, e para gozo e júbilo de toda a Igreja, com a autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados apóstolos s. Pedro e s. Paulo e com a nossa, pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado que: a imaculada Mãe de Deus, a sempre virem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial"

45. Pelo que, se alguém, o que Deus não permita, ousar, voluntariamente, negar ou pôr em dúvida esta nossa definição, saiba que naufraga na fé divina e católica.

46. Para que chegue ao conhecimento de toda a Igreja esta nossa definição da assunção corpórea da virgem Maria ao céu, queremos que se conservem esta carta para perpétua memória; mandamos também que, aos seus transuntos ou cópias, mesmo impressas, desde que sejam subscritas pela mão de algum notário público, e munidas com o selo de alguma pessoa constituída em dignidade eclesiástica, se lhes dê o mesmo crédito que à presente, se fosse apresentada e mostrada.

41. A ninguém, pois, seja lícito infringir esta nossa declaração, proclamação e definição, ou temerariamente opor-se-lhe e contrariá-la. Se alguém presumir intentá-lo, saiba que incorre na indignação de Deus omnipotente e dos bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo.

- Dado em Roma, junto de São Pedro, no ano do jubileu maior, de 1950, no dia 1° de Novembro, festa de todos os santos, no ano XII do nosso pontificado.

Eu Pio, Bispo da Igreja Católica, assim definindo, subscrevi.
REFERÊNCIAS


(1) Petitiones de Assumptione corporea B. Virginis Mariae in caelum definienda ad S. Sedem delatae, 2 vol. Typis Polyglottis Vaticanis, 1942.
(2) Bula Ineffabilis Deus, Acta Pii IX, parte I, vol. 1, p. 615.
(3) Cf. Conc. Vat. I, Const. dogm. Dei Filius de fide catholica, cap. 4.
(4) Conc. Vat. I, Const. dogm. Pastor aeternus de Ecclesia Christi, cap. 4.
(5) Conc. Vat. I, Const. dogm. Dei Filius de fide catholica, cap. 3.
(6) Carta Encíclica Mediator Dei, AAS 39 (1947), p. 541.
(7) Sacramentário gregoriano.
(8) Menaei totius anni.
(9) Liber Pontificalis.
(10) Ibid.
(11) Responsa Nicolai Papae I ad Consulta Bulgarorum, 13 nov. 866.
(12) S. João Damasc., Encomium in Dormitionem Dei Genetricis semperque virginis Mariae, hom. II, 14; cf. também ibid. n. 3).
(13) S. Germ. Const., In Sanctae Dei Genitricis Dormitionem, sermo 1.
(14) Encomium in Dormitionem Sanctissimae Dominae nostrae Deiparae semperque Virginis Mariae [atribuído a S. Modesto de Jerusalém] n. 14.
(15) Cf. S. João Damasc., Encomium in Dormitionem Dei Genetricis semperque Virginis Mariae, hom. II, 2, 11; Encomium in Dormitionem... [atribuído a S. Modesto de Jerusalém].
(16) Amadeu de Lausana, De Beatae Virginis obitu, Assumptione in Caelum, exaltatione ad Filii dexteram.
(17) S. Antônio de Pádua, Sermones dominicales et in solemnitatibus. In Assumptione S. Mariae Virginis Sermo.
(18) S. Alberto Magno, Mariale sive quaestiones super Evang. "Missus est", q. 132.
(19) Idem, Sermones de Sanctis, sermo XV: In Annuntiatione B. Mariae; cf. também Mariale, q. 132.
(20) Cf. Summa Theol. III, q. 27, a. 1. c.; ibid. q. 83, a. 5 ad 8; Expositio salutationis angelicae; In symb. Apostolorum expositio, art. 5; in IV Sent. D. 12, q. l, art. 3, sol. 3; D. 43, q. l, art. 3, sol. I e 2.
(21) Cf. S. Boaventura, De Nativitate B. Mariae Virginis, sermo 5.
(22) S. Boaventura, De Assumptione B. Mariae Virginis, sermo l.
(23) S. Bernardino de Sena, In Assumptione B. M. Virginis, sermo 2.
(24) Idem, l. c.
(25) S. Roberto Belarmino, Conciones habitae Lovanii, concio 40: De Assumptione B. Mariae Virginis.
(26) Oeuvres de S. François de Sales, Sermon autographe pour la fête de l'Assomption.
(27) S. Afonso Maria de Ligório, As glórias de Maria, parte II, disc. 1.
(28) S. Pedro Canísio, De Maria Virgine.
(29) F. Suárez, In tertiam partem D. Thomae, q. 27, art. 2, disp. 3, sect. 5, n. 31.
(30) Bula Ineffabilis Deus, l.c, p. 599.



Novo Millennio Ineunte

Carta apostólica

Novo Millennio Ineunte

Do Sumo Pontífice João Paulo II, ao episcopado, ao clero e aos fiéis, no termo do grande jubileu do ano 2000

Aos Irmãos no Episcopado,
aos sacerdotes e diáconos,
aos religiosos e religiosas,
a todos os fiéis leigos.



1. No início do novo milénio quando se encerra o Grande Jubileu, em que celebrámos os dois mil anos do nascimento de Jesus, e um novo percurso de estrada se abre para a Igreja, ressoam no nosso coração as palavras com que um dia Jesus, depois de ter falado às multidões a partir da barca de Simão, convidou o Apóstolo a " fazer-se ao largo " para a pesca: " Duc in altum " (Lc 5,4). Pedro e os primeiros companheiros confiaram na palavra de Cristo e lançaram as redes. " Assim fizeram e apanharam uma grande quantidade de peixe " (Lc 5,6).
Duc in altum! Estas palavras ressoam hoje aos nossos ouvidos, convidando-nos a lembrar com gratidão o passado, a viver com paixão o presente, abrir-se com confiança ao futuro: " Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e sempre " (Heb 13, 8).
Ao longo do ano jubilar, grande foi a alegria da Igreja, que se dedicou a contemplar o rosto do seu Esposo e Senhor. Ela tornou-se mais intensamente povo peregrino, guiado por Aquele que é " o grande Pastor das ovelhas " (Heb 13,20). O povo de Deus, com um dinamismo extraordinário que envolveu muitos dos seus membros, seja aqui em Roma, seja em Jerusalém e em cada uma das Igrejas locais, passou pela " Porta Santa " que é Cristo. A Ele, meta da história e único Salvador do mundo, a Igreja e o Espírito gritaram: " Maranatha - Vem, Senhor Jesus! " (cf. Ap 22,17.20; 1 Cor 16,22).
É impossível medir o sucesso de graça que, ao longo do ano, tocou as consciências. Mas certamente um " rio de água viva ", o mesmo que jorra incessantemente " do trono de Deus e do Cordeiro " (Ap 22,1), inundou a Igreja. É a água do Espírito que sacia e renova (cf. Jo 4,14). É o amor misericordioso do Pai que uma vez mais nos foi manifestado e oferecido em Cristo. No termo deste ano, podemos repetir, com renovado júbilo, aquele antigo refrão de acção de graças: " Louvai o Senhor porque Ele é bom, porque é eterna a sua misericórdia " (Sal 118117,1).

2. Sinto, por isso, a necessidade de me dirigir a vós, irmãos muito amados, para partilhar convosco o cântico de louvor. A este ano santo 2000, tinha eu pensado como uma data importante, desde o princípio do meu pontificado. Tinha entrevisto esta celebração como um momento providencial em que, trinta e cinco anos depois do Concílio Ecuménico Vaticano II, a Igreja seria convidada a interrogar-se sobre a sua renovação para assumir com novo impulso a sua missão evangelizadora.
O Jubileu terá conseguido realizar este desígnio? O nosso empenho, com seus generosos esforços e inevitáveis fragilidades, Deus o conhece. Mas não podemos subtrair-nos ao dever de agradecer " as maravilhas " que Deus fez por nós. " Misericordias Domini in aeternum cantabo " (Sal 8988,2).
Ao mesmo tempo, tudo o que aconteceu sob os nossos olhos merece ser ponderado e de certo modo decifrado, para ouvir aquilo que, ao longo deste ano tão intenso, o Espírito disse à Igreja (cf. Ap 2,7.11.17 etc.).

3. Mas sobretudo é nossa obrigação, amados irmãos e irmãs, lançar-nos para o futuro que nos espera. Nestes meses, olhámos frequentemente para o novo milénio que começa, vivendo o Jubileu não só como lembrança do passado, mas também como profecia do futuro. Agora é preciso guardar o tesouro da graça recebida, traduzindo-a em ardentes propósitos e directrizes concretas de acção. A esta tarefa, desejo convidar todas as Igrejas locais. Em cada uma delas, reunida à volta do seu Bispo na escuta da Palavra, na união fraterna e na " fracção do pão " (cf. Act 2,42), " está e opera a Igreja de Cristo una, santa, católica e apostólica ".1 É principalmente na realidade concreta de cada Igreja que o mistério do único povo de Deus assume aquela configuração particular que o torna aderente aos diversos contextos e culturas.
Este enraizamento da Igreja no tempo e no espaço reflecte, em última análise, o movimento mesmo da encarnação. É hora, pois, de cada Igreja reflectir sobre o que o Espírito disse ao povo de Deus neste especial ano de graça e também no arco mais amplo de tempo desde o Concílio Vaticano II até ao Grande Jubileu, medindo o seu fervor e ganhando novo impulso para os seus compromissos espirituais e pastorais. Com tal finalidade, desejo oferecer nesta Carta, no encerramento do ano jubilar, o contributo do meu ministério petrino, para que a Igreja resplandeça cada vez mais na variedade dos seus dons e na unidade do seu caminho.


I - O ENCONTRO COM CRISTO, LEGADO DO GRANDE JUBILEU
II - UM ROSTO A CONTEMPLAR
III - PARTIR DE CRISTO
IV - TESTEMUNHAS DO AMOR
CONCLUSÃO - DUC IN ALTUM!




Ordinatio Sacerdotalis

CARTA APOSTÓLICA
ORDINATIO SACERDOTALIS
DO PAPA
JOÃO PAULO II
SOBRE A ORDENAÇÃO SACERDOTAL
RESERVADA SOMENTE AOS HOMENS


Veneráveis Irmãos no Episcopado!

1. A ordenação sacerdotal, pela qual se transmite a missão, que Cristo confiou aos seus Apóstolos, de ensinar, santificar e governar os fiéis, foi na Igreja Católica, desde o início e sempre, exclusivamente reservada aos homens. Esta tradição foi fielmente mantida também pelas Igrejas Orientais.
Quando surgiu a questão da ordenação das mulheres na Comunhão Anglicana, o Sumo Pontífice Paulo VI, em nome da sua fidelidade o encargo de salvaguardar a Tradição apostólica, e também com o objectivo de remover um novo obstáculo criado no caminho para a unidade dos cristãos, teve o cuidado de recordar aos irmãos anglicanos qual era a posição da Igreja Católica: "Ela defende que não é admissível ordenar mulheres para o sacerdócio, por razões verdadeiramente fundamentais. Estas razões compreendem: o exemplo - registado na Sagrada Escritura - de Cristo, que escolheu os seus Apóstolos só de entre os homens; a prática constante da Igreja, que imitou Cristo ao escolher só homens; e o seu magistério vivo, o qual coerentemente estabeleceu que a exclusão das mulheres do sacerdócio está em harmonia com o plano de Deus para a sua Igreja" (1).
Mas, dado que também entre teólogos e em certos ambientes católicos o problema fora posto em discussão, Paulo VI deu à Congregação para a Doutrina da Fé mandato de expor e ilustrar a este propósito a doutrina da Igreja. Isso mesmo foi realizado pela Declaração Inter Insigniores, que o mesmo Sumo Pontífice aprovou e ordenou publicar (2).

2. A Declaração retoma e explica as razões fundamentais de tal doutrina, expostas por Paulo VI, concluindo que a Igreja "não se considera autorizada a admitir as mulheres à ordenação sacerdotal"(3). A tais razões fundamentais, o mesmo documento junta outras razões teológicas que ilustram a conveniência daquela disposição divina, e mostra claramente como o modo de agir de Cristo não fora ditado por motivos sociológicos ou culturais próprios do seu tempo. Como sucessivamente precisou o Papa Paulo VI, "a verdadeira razão é que Cristo, ao dar à Igreja a Sua fundamental constituição, a sua antropologia teológica, depois sempre seguida pela Tradição da mesma Igreja, assim o estabeleceu"(4).
Na Carta Apostólica Mulieris dignitatem, eu mesmo escrevi a este respeito: "Chamando só homens como seus apóstolos, Cristo agiu de maneira totalmente livre e soberana. Fez isto com a mesma liberdade com que, em todo o seu comportamento, pôs em destaque a dignidade e a vocação da mulher, sem se conformar ao costume dominante e à tradição sancionada também pela legislação do tempo" (5).
De facto, os Evangelhos e os Actos dos Apóstolos atestam que este chamamento foi feito segundo o eterno desígnio de Deus: Cristo escolheu os que Ele quis (cfr Mc 3,13-14; Jo 15,16) e fê-lo em união com o Pai, "pelo Espírito Santo" (Act 1,2), depois de passar a noite em oração (cfr Lc 6,12). Portanto, na admissão ao sacerdócio ministerial (6), a Igreja sempre reconheceu como norma perene o modo de agir do seu Senhor na escolha dos doze homens que Ele colocou como fundamento da sua Igreja (cfr Ap 21,14). Eles, na verdade, não receberam apenas uma função, que poderia depois ser exercida por qualquer membro da Igreja, mas foram especial e intimamente associados à missão do próprio Verbo encarnado (cfr Mt 10,1.7-8; 28,16-20; Mc 3,13-16; 16,14-15). O mesmo fizeram os Apóstolos, quando escolheram os seus colaboradores (7) que lhes sucederiam no ministério (8). Nessa escolha, estavam incluídos também aqueles que, ao longo da história da Igreja, haveriam de prosseguir a missão dos Apóstolos de representar Cristo Senhor e Redentor (9).

3. De resto, o facto de Maria Santíssima, Mãe de Deus e Mãe da Igreja, não ter recebido a missão própria dos Apóstolos nem o sacerdócio ministerial, mostra claramente que a não admissão das mulheres à ordenação sacerdotal não pode significar uma sua menor dignidade nem uma discriminação a seu respeito, mas a observância fiel de uma disposição que se deve atribuir à sabedoria do Senhor do universo.
A presença e o papel da mulher na vida e na missão da Igreja, mesmo não estando ligados ao sacerdócio ministerial, permanecem, no entanto, absolutamente necessários e insubstituíveis. Como foi sublinhado pela mesma Declaração Inter Insigniores, "a Santa Madre Igreja auspicia que as mulheres cristãs tomem plena consciência da grandeza da sua missão: o seu papel será de capital importância nos dias de hoje, tanto para o renovamento e humanização da sociedade, quanto para a redescoberta, entre os fiéis, da verdadeira face da Igreja" (10) Os Livros do Novo Testamento e toda a história da Igreja mostram amplamente a presença na Igreja de mulheres, verdadeiras discípulas e testemunhas de Cristo na família e na profissão civil, para além da total consagração ao serviço de Deus e do Evangelho. "A Igreja defendendo a dignidade da mulher e a sua vocação, expressou honra e gratidão por aquelas que - fiéis ao Evangelho - em todo o tempo participaram na missão apostólica de todo o Povo de Deus. Trata-se de santas mártires, de virgens, de mães de família, que corajosamente deram testemunho da sua fé e, educando os próprios filhos no espírito do Evangelho, transmitiram a mesma fé e a tradição da Igreja" (11)
Por outro lado, é à santidade dos fiéis que está totalmente ordenada a estrutura hierárquica da Igreja. Por isso, lembra a Declaração Inter Insigniores, "o único carisma superior, a que se pode e deve aspirar, é a caridade (cfr 1 Cor 12-13). Os maiores no Reino dos céus não são os ministros, mas os santos" (12)

4. Embora a doutrina sobre a ordenação sacerdotal que deve reservar-se somente aos homens, se mantenha na Tradição constante e universal da Igreja e seja firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, todavia actualmente em diversos lugares continua-se a retê-la como discutível, ou atribui-se um valor meramente disciplinar à decisão da Igreja de não admitir as mulheres à ordenação sacerdotal.
Portanto, para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (cfr Lc 22,32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja.
Invocando sobre vós, veneráveis Irmãos, e sobre todo o povo cristão, a constante ajuda divina, concedo a todos a Bênção Apostólica.

Vaticano, 22 de Maio, Solenidade de Pentecostes, do ano de 1994, décimo-sexto de Pontificado.



(1) Cfr PAULO VI, Rescrito à carta de Sua Graça o Rev.mo Dr. F.D. Coggan, Arcebispo de Cantuária, sobre o ministério sacerdotal das mulheres, 30 de Novembro de 1975: AAS 68 (1976), 599-600: "Your Grace is of course well aware of the Catholic Church's position on this question. She holds that it is not admissible to ordain women to the priesthood, for very fundamental reasons. These reasons include: the example recorded in the Sacred Scriptures of Christ choosing his Apostles only from among men; the constant practice of the Church, which has imitated Christ in choosing only men; and her living teaching authority which has consistently held that the esclusion of women from the priesthood is in accordance with the God's plan for his Church" (p. 599).
(2) Cfr CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração Inter Insigniores sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial, 15 de Outubro de 1976: AAS 69 (1977), 98-116.
(3) Ibid. 100.
(4) PAULO VI, Alocução sobre O papel da mulher no desígnio da salvação, 30 de Janeiro de 1977: Insegnamenti, vol. XV (1977), 111. Cfr também JOÃO PAULO II, Exort. ap. Christifideles laici, 30 de Dezembro de 1988, 51: AAS 81 (1989), 393-521; Catecismo da Igreja Católica, n. 1577.
(5) JOÃO PAULO II, Carta ap. Mulieris dignitatem, 15 de Agosto de 1988, 26: AAS 80 (1988), 1715.
(6) Cfr Const. dogm. Lumen gentium, 28; Decreto Presbyterorum Ordinis, 2b.
(7) Cfr 1 Tm 3,1-13; 2 Tm 1,6; Tt 1, 5-9.
(8) Cfr Catecismo da Igreja Católica, n. 1577.
(9) Cfr Const. dogm. Lumen gentium, 20 e 21.
(10) CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Decl. Inter Insigniores VI: AAS(1977), 115-116.
(11) JOÃO PAULO II, Carta Ap. Mulieris dignitatem 27: AAS 80(1988), 1719.
(12) CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Decl. Inter Insigniores VI: AAS(1977), 115.







Orientale Lumen

CARTA APOSTÓLICA
ORIENTALE LUMEN
DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II
AO EPISCOPADO, AO CLERO E AOS FIÉIS
NO CENTENÁRIO DA "ORIENTALIUM DIGNITAS"
DO PAPA LEÃO XIII



Veneráveis Irmãos,

Caríssimos Filhos e Filhas da Igreja:

1. A LUZ DO ORIENTE iluminou a Igreja Universal, a partir do momento em que sobre nós apareceu "a luz do alto" (Lc 1, 78), Jesus Cristo nosso Senhor, que todos os cristãos invocam como Redentor do homem e esperança do mundo.

Aquela luz inspirara ao meu Predecessor o Papa Leão XIII a Carta Apstólica Orientalium dignitas, com a qual ele quis defender o significado das tradições orientais para a Igreja inteira (1).

Ocorrendo o centenário daquele acontecimento e das iniciativas concomitantes, com as quais esse Pontífice pretendia favorecer a recomposição da unidade com todos os cristãos do Oriente, quis eu que um apelo semelhante, enriquecido por tantas experiências de conhecimento e de encontro que se realizaram neste último século, fosse dirigido à Igreja Católica.

Visto que, de facto, acreditamos que a veneranda e antiga tradição das Igrejas Orientais é parte integrante do património da Igreja de Cristo, a primeira necessidade para os católicos é conhecê-la para se poderem nutrir dela e, na maneira possível a cada um, favorecer o processo da unidade.

Os nossos irmãos orientais católicos têm viva consciência de que são os portadores, juntamente com os irmãos ortodoxos, desta tradição. É necessário que também os filhos da Igreja Católica de tradição latina possam conhecer em plenitude este tesouro e sentir assim, juntamente com o Papa, a paixão por que seja restituída à Igreja e ao mundo a manifestação plena da catolicidade da Igreja, que não se exprime apenas por uma única tradição, nem tampouco por uma comunidade contra a outra; e para que também a todos nós seja concedido saborear plenamente aquele património divinamente revelado e indiviso da Igreja universal (2), que se conserva e cresce na vida tanto das Igrejas do Oriente como das do Ocidente.

2. O meu olhar dirige-se para a Orientale lumen que resplandece de Jerusalém (cf. Is 60, 1; Ap 21, 10), a cidade na qual o Verbo de Deus, feito homem para a nossa salvação, hebreu "nascido da descendência de David" (Rm 1, 3; 2 Tm 2, 8), morreu e ressuscitou. Naquela cidade santa, quando chegou o dia de Pentecostes e "se encontravam todos reunidos no mesmo lugar" (Act 2, 13), o Espírito Paráclito foi enviado sobre Maria e os discípulos. De lá, a Boa Nova foi irradiada pelo mundo, porque, cheios do Espírito Santo, "anunciavam a Palavra de Deus com desassombro" (Act 4, 31). De lá, da mãe de todas as Igrejas (3), o Evangelho foi pregado a todas as nações, muitas das quais se gloriam de ter tido num dos apóstolos a primeira testemunha do Senhor (4). Naquela cidade, as mais variadas culturas e tradições encontraram hospitalidade no nome do único Deus (cf. Act 2, 9-11). Dirigindo-nos a ela com saudade e gratidão, encontramos a força e o entusiasmo para intensificar a procura da harmonia naquela autenticidade e pluriformidade que permanece o ideal da Igreja (5).

3. Um Papa, filho de um povo eslavo, sente particularmente no coração o apelo daqueles povos aos quais se dirigiram os dois santos irmãos Cirilo e Metódio, exemplo glorioso de apóstolos da unidade, que souberam anunciar Cristo na procura da comunhão entre Oriente e Ocidente, embora no meio das dificuldades que já, por vezes, contrapunham os dois mundos. Várias vezes me detive sobre o exemplo das suas acções (6), dirigindo-me também a todos aqueles que são seus filhos na fé e na cultura.

Estas considerações desejam agora alargar-se para abraçar todas as Igrejas Orientais, na variedade das suas diferentes tradições. Aos irmãos das Igrejas do Oriente vai o meu pensamento, com o desejo de procurarmos juntos a força de uma resposta às interrogações que o homem, hoje, lança em todas as latitudes do mundo. Ao seu património de fé e de vida quero dirigir-me, consciente de que o caminho da unidade não pode conhecer hesitações, mas é irreversível como o apelo do Senhor à unidade. "Caríssimos, temos esta tarefa comum: devemos dizer juntos, o Oriente com o Ocidente: Ne evacuetur Crux! (cf. 1 Cor 1, 17). Não se desvirtue a Cruz de Cristo, porque, se se desvirtua a Cruz de Cristo, o homem perde as raízes, já não tem perspectivas: destrói-se! Este é o grito no final do século XX. É o grito de Roma, o grito de Constantinopla, o grito de Moscovo. É o brado de toda a cristandade: das Américas, da África, da Ásia, de todos. É o grito da nova evangelização" (7).

Às Igrejas do Oriente dirige-se o meu pensamento, como numerosos outros Papas o fizeram no passado, sentindo dirigido, antes de mais, a si mesmos o mandato de manter a unidade da Igreja e de procurar incansavelmente a união dos cristãos onde tivesse sido dilacerada. Um laço particularmente estreito já nos une. Temos em comum quase tudo (8); e sobretudo temos em comum o anelo sincero da unidade.

4. A todas as Igrejas, do Oriente e do Ocidente, chega o grito dos homens de hoje que pedem um sentido para a vida. Nele divisamos a invocação de quem procura o Pai esquecido e perdido (cf. Lc 15, 18-20; Jo 14, 8). As mulheres e os homens de hoje pedem-nos que lhes indiquemos Cristo, que conhece o Pai e no-Lo revelou (cf. Jo 8, 55; 14, 8-11). Deixando-nos interpelar pelas perguntas do mundo, ouvindo-as com humildade e ternura, em plena solidariedade com quem as formula, nós somos chamados a mostrar com palavras e gestos de hoje as imensas riquezas que as nossas igrejas conservam nos cofres das suas tradições. Aprendamos do próprio Senhor que, ao longo do caminho, parava no meio da gente, escutava-a, comovia-Se quando a via "como ovelhas sem pastor" (Mt 9, 36; cf. Mc 6, 34). D'Ele devemos aprender aquele olhar de amor com o qual reconciliava os homens com o Pai e consigo próprios, comunicando-lhes aquela força que é a única que pode sarar o homem todo.

Prante este apelo, as Igrejas do Oriente e do Ocidente são chamadas a concentrar-se sobre o essencial: "Não podemos apresentar-nos diante de Cristo, Senhor da História, tão divididos como infelizmente nos temos encontrado ao longo do segundo milénio. Estas divisões devem ceder o lugar à reaproximação e à concórdia; devem ser cicatrizadas as feridas no caminho da unidade dos cristãos" (9).

Para além das nossas fragilidades, devemos dirigir-nos a Ele, único Mestre, participando na sua morte, de maneira e purificar-nos daquele apego cioso aos sentimentos e às recordações, não das grandes coisas que Deus fez por nós, mas das vicissitudes humanas de um passado que ainda pesa muitíssimo sobre os nossos corações. Que o Espírito Santo torne límpido o nosso olhar, para que juntos possamos ir ao encontro do homem contemporâneo, que espera a boa nova. Se, perante os anseios e os sofrimentos do mundo, dermos uma resposta concorde, iluminante, vivificadora, contribuiremos verdadeiramente para um anúncio mais eficaz do Evangelho no meio dos homens do nosso tempo.


I - CONHECER O ORIENTE CRISTÃO


5. "No estudo da verdade revelada, o Oriente e o Ocidente usaram métodos e modos diferentes para conhecer e exprimir os mistérios divinos. Não admira, por isso, que alguns aspectos do mistério revelado sejam por vezes apreendidos mais convenientemente e postos em melhor luz por um que por outro. Nestes casos, deve dizer-se que aquelas várias fórmulas teológicas, em vez de se oporem, não poucas vezes se completam mutuamente" (10).

Tendo no coração as perguntas, as aspirações e as experiências a que fiz referência, a minha mente dirige-se ao património cristão do Oriente. Não é minha intenção descrevê-lo nem interpretá-lo: coloco-me em atitude de escuta das Igrejas do Oriente, sabendo que são intérpretes vivas do tesouro tradicional que guardam. Contemplando-o, vejo aparecer elementos de grande significado para uma compreensão mais plena e integral da experiência cristã, e, portanto, para dar uma resposta cristã mais completa aos anseios dos homens e das mulheres de hoje. Em relação a qualquer outra cultura, o Oriente cristão tem, de facto, um papel único e privilegiado enquanto contexto original da Igreja nascente.

A tradição oriental cristã implica certa maneira de acolher, compreender e viver a fé no Senhor Jesus. Nesse sentido, ela está muitíssimo perto da tradição cristã do Ocidente, que nasce e se alimenta da mesma fé. E, contudo, diferencia-se legítima e admiravelmente, enquanto o cristão oriental tem uma forma própria de sentir e compreender, e, portanto, também uma forma original de viver a sua relação com o Salvador. Quero, aqui, abeirar-me com temor e tremor do acto de adoração que exprimem estas Igrejas, mais do que assinalar este ou aquele ponto teológico específico, que emergiu ao longo dos séculos em contraposição polémica no debate entre Ocidentais e Orientais.

O Oriente cristão, desde as suas origens, mostra-se multiforme no próprio interior, capaz de assumir os traços característicos de cada cultura individual, e com um respeito máximo por cada comunidade particular. Não podemos deixar de agradecer a Deus, com profunda comoção, a admirável variedade com que permitiu a composição, com tesselas diferentes, de um mosaico tão rico e variegado.

6. Existem alguns traços da tradição espiritual e teológica, comuns às várias Igrejas do Oriente, que distinguem a sua sensibilidade, em relação às formas assumidas pela transmissão do Evangelho, nas terras do Ocidente. O Concílio Vaticano II sintetiza-as da seguinte maneira: "É conhecido de todos com quanto amor os cristãos orientais realizam as cerimónias litúrgicas, principalmente a celebração eucarística, fonte da vida da Igreja e penhor da glória futura, pela qual os fiéis unidos ao bispo, tendo acesso a Deus Pai mediante o Filho, o Verbo encarnado, morto e glorificado, na efusão do Espírito Santo, conseguem a comunhão com a Santíssima Trindade, feitos "participantes da natureza divina" (2 Ped 1, 4)" (11).

Nestes traços, delineia-se a visão oriental do cristão, cujo fim é a participação na natureza divina, mediante a comunhão no mistério da Santíssima Trindade. Ali se delineiam a "monarquia" do Pai e a concepção da salvação segundo a economia que apresenta a teologia oriental na linha de Santo Ireneu de Lião e como se espelha nos Padres Capadócios (12).

A participação na vida trinitária realiza-se através da liturgia e, de maneira particular, através da Eucaristia, mistério de comunhão com o corpo glorificado de Cristo, semente de imortalidade (13). Na divinização e sobretudo nos sacramentos, a teologia oriental atribui um papel muito particular ao Espírito Santo: pela força do Espírito que habita no homem, a deificação inicia-se já na Terra, a criatura é transfigurada, e o Reino de Deus inaugurado.

O ensinamento dos Padres Capadócios sobre a divinização entrou na tradição de todas as Igrejas Orientais e constitui parte do seu património comum. Isto pode-se resumir no pensamento já expresso por Santo Ireneu, em finais do século II: Deus fez-Se filho do homem, para que o homem pudesse ser filho de Deus (14). Esta teologia da divinização permanece uma das aquisições particularmente queridas do pensamento cristão oriental (15).

Neste caminho de divinização, precedem-nos aqueles que a graça e o empenho no caminho do bem tornaram "muito semelhantes" a Cristo: os mártires e os santos (16). E, entre estes, ocupa um lugar muito particular a Santíssima Virgem Maria, da qual germinou o Rebento de Jessé (cf. Is 11, 1). A sua figura aparece não só como a Mãe que nos espera, mas também como a Puríssima que - realização de tantas prefigurações do Antigo Testamento - é ícone da Igreja, símbolo e antecipação da humanidade transfigurada pela graça, modelo e esperança segura para todos aqueles que dirigem os seus passos para a Jerusalém do Céu (17).

Embora acentuando fortemente o realismo trinitário e a sua implicação na vida sacramental, o Oriente associa a fé na unidade da natureza divina à incognoscibilidade da essência divina. Os Padres Orientais afirmam sempre que é impossível saber o que é que Deus é; pode saber-se apenas que Ele é, pois que Se revelou na história da salvação como Pai, Filho e Espírito Santo (18).

Este sentido da inefável realidade divina reflecte-se na celebração litúrgica, onde o sentido do mistério é apreendido tão fortemente por todos os fiéis do Oriente cristão.

"No Oriente, encontram-se as riquezas daquelas tradições espirituais que o monaquismo, sobretudo, expressou. Pois, desde os gloriosos tempos dos Santos Padres, floresceu no Oriente aquela elevada espiritualidade monástica, que de lá se difundiu para o Ocidente e da qual a vida religiosa dos Latinos se originou como de sua fonte, e em seguida, sem cessar, recebeu novo vigor. Recomenda-se, por isso, vivamente que os católicos se abeirem com mais frequência destas riquezas espirituais dos Padres do Oriente, que elevam o homem todo à contemplação das coisas divinas" (19).

Evangelho, Igrejas e culturas

7. Já outras vezes pus em evidência que um primeiro grande valor vivido particularmente no Oriente cristão consiste na atenção aos povos e às suas culturas, para que a Palavra de Deus e o seu louvor possam ressoar em todas as línguas. Sobre este tema, já me detive na carta encíclica Slavorum Apostoli, pondo em relevo que Cirilo e Metódio "quiseram tornar-se semelhantes, sob todos os aspectos, àqueles a quem levavam o Evangelho; procuraram integrar-se naqueles povos e compartilhar em tudo a sua sorte" (20); "tratava-se de um novo método de catequese" (21). Agindo assim, eles manifestaram uma atitude muito difundida no Oriente cristão: "Ao encarnarem o Evangelho na cultura peculiar dos povos que evangelizavam, os Santos Cirilo e Metódio tiveram méritos particulares na formação e no desenvolvimento dessa mesma cultura, ou, melhor dito, de numerosas culturas" (22). O respeito e consideração pelas culturas particulares unem-se neles à paixão pela universalidade da Igreja, que incansavelmente se esforçam por realizar. A atitude dos dois irmãos de Salonica é representativa, na antiguidade cristã, de um estilo típico de muitas Igrejas: a revelação anuncia-se adequadamente e torna-se plenamente compreensível quando Cristo fala a língua dos vários povos, e estes podem ler a Escritura e cantar a Liturgia na respectiva língua e com as suas expressões características, como que a renovar os prodígios do Pentecostes.

Numa época em que se reconhece ser cada vez mais fundamental o direito de cada povo se exprimir segundo o próprio património de cultura e de pensamento, a experiência das várias Igrejas do Oriente apresenta-se-nos como um exemplo autorizado de inculturação bem sucedida.

A partir deste modelo, aprendemos que, se queremos evitar o renascimento de particularismos e também de nacionalismos exacerbados, devemos compreender que o anúncio do Evangelho deve ser, ao mesmo tempo, profundamente enraizado na especificidade das culturas e aberto para confluir numa universalidade, que é permuta para o enriquecimento comum.

Entre memória e expectativa

8. Hoje, muitas vezes, sentimo-nos prisioneiros do presente: é como se o homem tivesse perdido a percepção de fazer parte de uma história que o precede e o segue. A esta dificuldade de situar-se entre passado e futuro, com espírito grato pelos benefícios recebidos e pelos esperados, as Igrejas do Oriente, em particular, oferecem um acentuado sentido da continuidade, que assume os nomes de Tradição e de expectativa escatológica.

A Tradição é património da Igreja de Cristo, memória viva do Ressuscitado, encontrado e testemunhado pelos Apóstolos, que transmitiram a sua recordação viva aos sucessores, numa linha ininterrupta que é garantida pela sucessão apostólica, através da imposição das mãos, até aos Bispos de hoje. A Tradição articula-se no parimónio histórico e cultural de cada Igreja, nela plasmado pelo testemunho dos Mártires, dos Padres e dos Santos, bem como pela fé viva de todos os cristãos, ao longo dos séculos, até aos nossos dias. Não se trata de uma repetição rígida de fórmulas, mas de um património que guarda o núcleo querigmático vivo e original. É a Tradição que livra a Igreja do perigo de recolher apenas opiniões mutáveis, e garante a sua certeza e continuidade.

Quando os usos e costumes próprios de cada Igreja são entendidos como pura imobilidade, certamente corre-se o risco de tirar à Tradição aquele carácter de realidade viva, que cresce e se desenvolve, e que o Espírito lhe garante precisamente para que ela fale aos homens de todos os tempos. E como a Escritura cresce com quem a lê (23), assim qualquer outro elemento do património vivo da Igreja cresce na compreensão dos crentes e enriquece-se de contributos novos, na fidelidade e na continuidade (24). Somente uma zeloza assimilação, na obediência da fé, daquilo que a Igreja chama "Tradição", permitirá a esta encarnar-se nas diferentes situações e condições histórico-culturais (25). A Tradição não é jamais pura nostalgia de coisas ou formas passadas, ou lamento de privilégios perdidos, mas memória viva da Esposa mantida eternamente jovem pelo amor que nela habita.

Se a Tradição nos coloca em continuidade com o passado, a expectativa escatológica abre-nos ao futuro de Deus. Cada Igreja deve lutar contra a tentação de absolutizar aquilo que faz e, portanto, de autocelebrar-se ou de abandonar-se à tristeza. O tempo é de Deus, e tudo aquilo que se realiza nunca se identifica com a plenitude do Reino, que é sempre dom gratuito. O Senhor Jesus veio morrer por nós e ressuscitou dos mortos, enquanto a criação, salva na esperança, sofre ainda as dores de parto (cf. Rm 8, 22); o mesmo Senhor voltará para entregar o cosmos ao Pai (cf. 1 Cor 15, 28). A Igreja invoca este retorno, e dele são testemunhas privilegiadas o monge e o religioso.

O Oriente exprime de maneira viva as realidades da tradição e da expectativa. Toda a sua liturgia, em particular, é memorial da salvação e invocação do retorno do Senhor. E, se a Tradição ensina às Igrejas a fidelidade àquilo que as gerou, a expectativa escatológica leva-as a serem aquilo que ainda não são em plenitude e em que o Senhor deseja que se tornem, e a procurarem, portanto, sempre novos caminhos de fidelidade, vencendo o pessimismo porque projectadas para a esperança de Deus que não desilude.

Devemos mostrar aos homens a beleza do memorial, a força que nos vem do Espírito e que nos torna testemunhas porque somos filhos de testemunhas; fazer-lhes saborear as coisas maravilhosas que o Espírito disseminou na História; mostrar que é precisamente a Tradição que as conserva, dando, assim, esperança àqueles que, não tendo visto coroados de êxito os seus esforços de bem, sabem que outros os levarão a cabo; então o homem sentir-se-á menos só, menos fechado no canto estreito das suas acções individuais.

O monaquismo como paradigma de vida baptismal

9. Desejaria agora olhar para o vasto panorama do cristianismo do Oriente, a partir de uma altitude particular, que permite distinguir muitos dos seus traços: o monaquismo.

No Oriente, o monaquismo conservou uma grande unidade, não conhecendo, como no Ocidente, a formação dos diferentes tipos de vida apostólica. As várias expressões da vida monástica, desde o rígido cenobismo, como o concebiam os santos Pacómio e Basílio, até ao eremitismo mais rigoroso de Santo Antão ou de S. Macário o Egípcio, correspondem mais a fases diferentes do caminho espiritual do que à escolha entre diferentes estados de vida. De facto, todos fazem apelo ao monaquismo em si, qualquer que seja a forma com a qual se exprima.

Além disso, o monaquismo não foi visto no Oriente apenas como uma condição à parte, própria de uma categoria de cristãos, mas particularmente como ponto de referência para todos os baptizados, na medida dos dons oferecidos a cada um pelo Senhor, propondo-se como uma síntese emblemática do cristianismo.

Quando Deus chama de uma forma total como na vida monástica, então a pessoa pode atingir o ponto mais elevado de tudo aquilo que a sensibilidade, cultura e espiritualidade são capazes de exprimir. Isto é válido com maior razão para as Igrejas Orientais, nas quais o monaquismo constituiu uma experiência essencial e que ainda hoje floresce nelas, logo que termina a perseguição e os corações podem elevar-se livremente para os Céus. O mosteiro é o lugar profético no qual a criação se torna louvor de Deus, e o preceito da caridade, vivida concretamente, se torna ideal de convivência humana, e onde o ser humano procura Deus sem barreiras nem impedimentos, tornando-se referência para todos, levando-os no coração e ajudando-os a procurar Deus.

Desejaria recordar também o fulgurante testemunho das monjas no Oriente cristão. Ele representa um modelo de valorização da especificidade feminina na Igreja, forçando mesmo a mentalidade do tempo. Durante recentes perseguições, sobretudo nos países do Leste europeu, quando muitos mosteiros masculinos foram encerrados à força, o monaquismo feminino conservou acesa a chama da vida monástica. O carisma da monja, com as características que lhe são específicas, é um sinal visível daquela maternidade de Deus à qual muitas vezes alude a Sagrada Escritura.

Por isso considerarei o monaquismo, para nele especificar aqueles valores que hoje tenho por muito importantes para exprimir o contributo do Oriente cristão para o caminhar da Igreja de Cristo em direcção ao Reino. Estes aspectos, embora às vezes não sejam exclusivos, quer da experiência monástica, quer do património do Oriente, todavia frequentemente adquiriram nele uma conotação particular. De resto, o que procuramos valorizar, não é a exclusividade, mas o enriquecimento recíproco naquilo que o único Espírito suscitou na única Igreja de Cristo.

O monaquismo foi desde sempre a própria alma das Igrejas Orientais: os primeiros monges cristãos nasceram no Oriente e a vida monástica foi parte integrante da lumen oriental transmitida ao Ocidente pelos grandes Padres da Igreja indivisa (26).

Os fortes traços comuns que unem a experiência monástica do Oriente e do Ocidente tornam-na uma ponte admirável de fraternidade, onde a unidade vivida resplandece até mais do que se pode manifestar no diálogo entre as Igrejas.

Entre Palavra e Eucaristia

10. O monaquismo revela de maneira particular que a vida está suspensa entre dois vértices: a Palavra e a Eucaristia. Isto significa que ele é sempre, inclusive nas suas formas eremíticas, resposta pessoal a uma chamada individual e simultaneamente acontecimento eclesial e comunitário.

A palavra de Deus é o ponto de partida do monge: uma Palavra que chama, que convida, que pessoalmente interpela, como aconteceu com os Apóstolos. Quando uma pessoa é atingida pela Palavra, nasce a obediência, isto é, a escuta que muda a vida. Diariamente o monge alimenta-se com o pão da Palavra. Privado dele, é como se estivesse morto, e não tem mais nada para comunicar aos irmãos, porque a Palavra é Cristo com quem é chamado a conformar-se.

Mesmo quando canta com os seus irmãos a oração que santifica o tempo, ele continua a sua assimilação da Palavra. A riquíssima hinografia litúrgica, da qual justamente se sentem orgulhosas todas as Igrejas do Oriente cristão, não é senão a continuação da Palavra lida, compreendida, assimilada e finalmente cantada: aqueles hinos são em grande parte paráfrases sublimes do texto bíblico, filtradas e personalizadas através da experiência do indivíduo e da comunidade.

Perante o abismo da misericórdia divina, ao monge não resta senão proclamar a consciência da própria pobreza radical, que imediatamente se torna invocação e grito de júbilo por uma salvação ainda mais generosa porque inesperada no abismo da própria miséria (27). Eis porque a invocação de perdão e a glorificação de Deus constituem a substância de grande parte da oração litúrgica. O cristão vive imerso no assombro deste paradoxo, o último de uma série infinita, toda ela enobrecida de reconhecimento na linguagem da liturgia: o Imenso torna-se limite; uma Virgem dá à luz; através da morte, Aquele que é a vida vence a morte para sempre; no alto dos Céus, um corpo humano está sentado à direita do Pai.

No apogeu desta experiência orante, está a Eucaristia, o outro vértice ligado indissoluvelmente à Palavra, enquanto lugar no qual a Palavra se faz Carne e Sangue, experiência celeste onde ela volta a ser acontecimento.

Na Eucaristia, manifesta-se a natureza profunda da Igreja, comunidade dos convocados à sinapse para celebrar o dom d'Aquele que é oferente e oferta: eles, participando nos Santos Mistérios, tornam-se "consanguíneos" (28) de Cristo, antecipando a experiência da divinização no laço, já inseparável, que, em Cristo, liga divindade e humanidade.

Mas a Eucaristia é também aquilo que antecipa a pertença de homens e coisas à Jerusalém celeste. Revela assim cabalmente a sua natureza escatológica: como sinal vivo de tal expectativa, o monge continua e leva à plenitude na liturgia a invocação da Igreja, a Esposa que suplica o retorno do Esposo num "maranatha" repetido continuamente, não só com palavras, mas com a existência inteira.

Uma liturgia para o homem inteiro e para o cosmos inteiro

11. Na experiência litúrgica, Cristo Senhor é a luz que ilumina o caminho e desvenda a transparência do cosmos, precisamente como na Escritura. Os acontecientos do passado encontram em Cristo significado e plenitude, e a criação revela-se por aquilo que é: um conjunto de traços que somente na liturgia encontram a sua perfeição, a sua plena finalidade. Eis o motivo pelo qual a liturgia é o Céu sobre a Terra, e nela o Verbo que assumiu a carne envolve a matéria de uma potencialidade salvífica que se manifesta plenamente nos sacramentos: aqui a criação comunica a cada um o poder que lhe foi conferido por Cristo. Assim o Senhor, imerso no Jordão, transmite às águas um poder que as habilita a serem banho de regeneração baptismal (29).

Neste quadro, a oração litúrgica no Oriente mostra uma grande capacidade de envolver a pessoa humana na sua totalidade: o Mistério é cantado na sublimidade dos seus conteúdos, mas também no calor dos sentimentos que suscita no coração da humanidade que foi salva. Na acção sagrada, também a corporeidade é convidada ao louvor, e a beleza, que no Oriente é um dos nomes mais queridos para exprimir a harmonia divina e o modelo da humanidade transfigurada (30), mostra-se em toda a parte: nas formas do templo, nos sons, nas cores, nas luzes, nos perfumes. O tempo prolongado das celebrações, a repetida invocação, tudo exprime um progressivo compenetrar-se da pessoa inteira no mistério celebrado. E a oração da Igreja torna-se, assim, já participação da liturgia celeste, antecipação da bem-aventurança final.

Esta valorização integral da pessoa nos seus componentes racionais e emotivos, no "êxtase" e na imanência, é de grande actualidade, constituindo uma escola admirável para a compreensão do significado das realidades criadas: estas nem são um absoluto, nem um ninho de pecado e de iniquidade. Na liturgia, as coisas manifestam a sua própria natureza de dom, oferecido pelo Criador à humanidade: "Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa" (Gn 1, 31). Se tudo isto está marcado pelo drama do pecado, que torna pesada a matéria e dificulta a sua transparência, ela é redimida na Encarnação e feita plenamente teofórica, isto é, capaz de colocar-nos em relação com o Pai: esta propriedade é sumamente manifestada nos Santos Mistérios, os Sacramentos da Igreja.

O Cristianismo não rejeita a matéria; pelo contrário, a corporeidade é valorizada plenamente no acto litúrgico, onde o corpo humano mostra a sua íntima natureza de templo do Espírito Santo e chega a unir-se ao Senhor Jesus, feito também Ele corpo para a salvação do mundo. Isto não significa uma exaltação absoluta de tudo aquilo que é físico, porque sabemos bem a desordem que o pecado introduziu na harmonia do ser humano. A liturgia revela que o corpo, atravessando o mistério da Cruz, está a caminho da transfiguração, da pneumatização: no monte Tabor, Cristo mostra-o resplandecente, como é desejo do Pai que volte a ser.

E também a realidade cósmica é chamada a dar acção de graças, porque o cosmos inteiro é chamado à recapitulação em Cristo Senhor. Manifesta-se nesta concepção um ensinamento equilibrado e admirável sobre a dignidade, o respeito e a finalidade da criação e do corpo humano em particular. Este, tendo rejeitado igualmente todo o tipo de dualismo e todo o tipo de culto do prazer como fim em si próprio, torna-se lugar luminoso da graça e, portanto, plenamente humano.

A quem procura uma relação de autêntico significado consigo próprio e com o cosmos, tantas vezes ainda desfigurado pelo egoísmo e pela cobiça, a liturgia revela o caminho para o equilíbrio do homem novo e convida ao respeito pela potencialidade eucarística do mundo criado: ele está destinado a ser assumido na Eucaristia do Senhor, na sua Páscoa presente no sacrifício do altar.

Um olhar límpido à descoberta de si próprio

12. Para Cristo, o Homem-Deus, volta-se o olhar do monge: no seu rosto desfigurado, homem da dor, ele já divisa o anúncio profético do rosto transfigurado do Ressuscitado. Ao olhar contemplativo, Cristo revela-Se como às mulheres de Jerusalém, que subiram a contemplar o espectáculo misterioso do Calvário. E assim, formado naquela escola, o olhar do monge habitua-se a contemplar Cristo também nas pregas escondidas da criação e na história dos homens, também ela inserida na sua conformação progressiva ao Cristo total.

O olhar, progressivamente cristificado, aprende desta maneira a separar-se da exterioridade, do turbilhão dos sentidos, isto é, de tudo aquilo que impede ao homem aquela suave disponibilidade a deixar-se agarrar pelo Espírito. Percorrendo este caminho, ele deixa-se reconciliar com Cristo num processo incessante de conversão: na consciência do próprio pecado e do afastamento do Senhor, que se torna contrição do coração, símbolo do próprio baptismo na água salutar das lágrimas; no silêncio e na quietude interior procurada e doada, onde se aprende a fazer bater o coração de harmonia com o ritmo do Espírito, eliminando toda a duplicidade ou ambiguidade. Este tornar-se cada vez mais sóbrio e essencial, mais transparente a si próprio, pode fazê-lo cair no orgulho e na intransigência, se chegar a considerar que isso é fruto do seu esforço ascético. O discernimento espiritual, na purificação contínua, torna-o então humilde e manso, capaz de perceber apenas alguns traços daquela verdade que o sacia, porque é dom do Esposo, somente Ele plenitude de felicidade.

Ao homem que procura o significado da vida, o Oriente oferece esta escola para se conhecer e ser livre, amado por aquele Jesus que disse: "Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e aliviar- vos-ei" (Mt 11, 28). A quem procura o restabelecimento interior, ele convida a continuar a procurar: se a intenção é recta e o rumo honesto, no fim o rosto do Pai far-se-á reconhecer, pois está impresso nas profundidades do coração humano.

Um pai no Espírito

13. O percurso do monge, em geral, não é traçado unicamente pelo esforço pessoal, mas apoia-se num pai espiritual, a quem se abandona com confiança filial, na certeza de que nele se manifesta a terna e exigente paternidade de Deus. Esta figura dá ao monaquismo oriental uma extraordinária maleabilidade: graças à obra do pai espiritual, o caminho de cada monge é, de facto, fortemente personalizado nos tempos, nos ritmos, na maneira de procurar a Deus. Precisamente porque o pai espiritual é o ponto de ligação e de harmonização, isto permite ao monaquismo a maior variedade de expressões, cenobíticas e eremíticas. Desta maneira, o monaquismo no Oriente pôde ser a realização das expectativas de cada Igreja nos diferentes períodos da sua história (31).

Nesta procura, o Oriente ensina de maneira particular que existem irmãos e irmãs a quem o Espírito dispensou o dom de guia espiritual: eles são pontos de referência preciosos, porque vêem com o olhar de amor que Deus mantém sobre nós. Não se trata de renunciar à própria liberdade, para se deixar governar por outros: trata-se de tirar proveito do conhecimento do coração, que é um verdadeiro carisma, para ser ajudado, com doçura e firmeza, a encontrar o caminho da verdade. O nosso mundo tem uma necessidade extrema de pais espirituais. Muitas vezes recusou-os, porque lhe pareciam pouco credíveis, ou o seu modelo aparecia como já superado e pouco atraente para a sensibilidade comum. Contudo tem dificuldade em encontrar outros novos, e então sofre no medo e na incerteza, sem modelos nem pontos de referência. Aquele que é pai no Espírito, se o é verdadeiramente - e o povo de Deus mostrou sempre que sabe reconhecê-lo -, não fará os outros iguais a si próprio, mas ajudá-los-á a encontrar o caminho para o Reino.

Certamente, também ao Ocidente é concedido o dom admirável de uma vida monástica, masculina e feminina, que guarda o dom do guia no Espírito e espera ser valorizado. Nesse âmbito, e onde quer que a graça suscite tais instrumentos preciosos de amadurecimento interior, possam os responsáveis cultivar e valorizar tal dom e todos possam servir-se dele: experimentarão assim a consolação e apoio que é a paternidade no Espírito para o seu caminho de fé (32).

Comunhão e serviço

14. Precisamente na separação progressiva daquilo que no mundo lhe dificulta a comunhão com o seu Senhor, o monge reencontra o mundo como lugar onde se reflecte a beleza do Criador e o amor do Redentor. Na sua oração, o monge pronuncia uma epiclese do Espírito sobre o mundo e tem a certeza de que será ouvido, porque ela participa da mesma oração de Cristo. Deste modo, ele sente nascer em si um amor profundo pela humanidade, aquele amor que a oração, no Oriente, tantas vezes celebra como atributo de Deus, o Amigo dos homens, que não hesitou em oferecer o seu Filho para a salvação do mundo. Nesta atitude, é então concedido ao monge contemplar aquele mundo já transfigurado pela acção deificante de Cristo, morto e ressuscitado.

Seja qual for a modalidade que o Espírito lhe reserva, o monge é sempre e essencialmente o homem da comunhão. Com este nome se indicou também desde a antiguidade o estilo monástico da vida cenobítica. O monaquismo mostra-nos como não existe vocação autêntica que não tenha nascido da Igreja e para a Igreja. Disso é testemunha a experiência de tantos monges que, fechados nas suas celas, mostram nas suas orações uma paixão exraordinária, não só pela pessoa humana, mas por todas as criaturas, na invocação incessante para que tudo se converta à corrente salvadora do amor de Cristo. Este caminho de libertação interior na abertura ao Outro torna o monge o homem da caridade. Na escola do apóstolo Paulo, que indica a plenitude da lei na caridade (cf. Rm 13, 10), a comunhão monástica oriental esteve sempre atenta a garantir a superioridade da caridade em relação a qualquer lei.

Ela manifesta-se, antes de mais, no serviço aos irmãos na vida monástica, mas também à comunidade eclesial, segundo formas que variam nos tempos e nos lugares e que vão das obras sociais à pregação itinerante. As Igrejas do Oriente viveram com grande generosidade este empenho, a começar pela evangelização, que é o serviço mais elevado que o cristão pode oferecer ao irmão, para prosseguir em muitas outras formas de serviço espiritual e material. Mais, pode-se dizer que o monaquismo foi na antiguidade - e, com interrupções, também em tempos posteriores - o instrumento privilegiado para a evangelização dos povos.

Uma pessoa em relação

15. A vida do monge justifica a unidade que existe entre espiritualidade e teologia no Oriente.

O cristão, e o monge em particular, mais do que procurar verdades abstractas, sabe que somente o seu Senhor é Verdade e Vida, mas sabe também que ele é o Caminho (cf. Jo 14, 6) para atingir a ambas: conhecimento e participação são, portanto, uma única realidade: da pessoa ao Deus em três Pessoas, através da Encarnação do Verbo de Deus.

O Oriente ajuda-nos a delinear com grande riqueza de elementos o significado cristão da pessoa humana. Ele está centrado na Encarnação, da qual recebe luz a própria criação. Em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, manifesta-se a plenitude da vocação humana: para que o homem se tornasse Deus, o Verbo assumiu a humanidade. O homem que conhece continuamente o gosto amargo do seu limite e do seu pecado, não se perde na recriminação ou na angústia, porque sabe que dentro de si actua o poder da divindade. A humanidade foi assumida por Cristo sem separação da natureza divina nem confusão (33), e o homem não é deixado sozinho a tentar, de mil maneiras e muitas vezes frustradas, uma subida impossível ao Céu; existe um tabernáculo de glória, que é a Pessoa santíssima de Jesus, o Senhor, onde o divino e o humano se encontram num abraço que nunca poderá ser desfeito: o Verbo fez-Se carne, em tudo semelhante a nós, excepto no pecado. Ele derrama a divindade no coração doente da humanidade e, infundindo-lhe o Espírito do Pai, torna-a capaz de tornar-se Deus pela graça.

Mas, se isto nos foi revelado pelo Filho, então a nós é concedido abeirar-nos do mistério do Pai, princípio de comunhão no amor. A Trindade Santíssima aparece-nos então como comunidade de amor: conhecer um tal Deus significa sentir a urgência de que Ele fale ao mundo, que comunique; e a história da salvação não é senão a história do amor de Deus pela criatura, que Ele amou e escolheu, querendo-a "como o ícone do Ícone" - assim se exprime a intuição dos Padres orientais (34) -, isto é, plasmada à imagem da Imagem, que é o Filho, conduzida à comunhão perfeita pelo santificador, o Espírito de amor. E mesmo quando o homem peca, este Deus procura-o e ama-o, para que a relação não seja rompida e o amor continue a fluir. E ama-o no mistério do Filho, que Se deixa matar na cruz por um mundo que não O reconheceu, mas é ressuscitado pelo Pai, como garantia perene de que ninguém pode matar o amor, porque todo aquele que dele participa é atingido pela glória de Deus: é este homem transformado pelo amor, que os discípulos contemplaram no Tabor, o homem que todos nós somos chamados a ser.

Um silêncio que adora

16. Contudo, este mistério esconde-se continuamente, cobre-se de silêncio 35, para evitar que, em vez de Deus, seja construído um ídolo. Somente numa purificação progressiva do conhecimento de comunhão, o homem e Deus se encontrarão e reconhecerão, no abraço eterno, a sua nunca extinta conaturalidade de amor.

Nasce assim aquele que é chamado o apofatismo do Oriente cristão: quanto mais o homem cresce no conhecimento de Deus, mais O percebe como mistério inacessível, insondável na sua essência. Isto não se deve confundir com um misticismo obscuro, onde o homem se perde em enigmáticas realidades impessoais. Antes, os cristãos do Oriente dirigem-se a Deus como Pai, Filho, Espírito Santo, Pessoas vivas, carinhosamente presentes, às quais exprimem uma doxologia litúrgica solene e humilde, majestosa e simples. Eles, porém, percebem que nos aproximamos desta presença sobretudo deixando-nos educar para um silêncio de adoração, porque, no ápice do conhecimento e da experiência de Deus, está a sua transcendência absoluta. Mais do que através de uma meditação sistemática, chega-se a um tal silêncio mediante a assimilação orante da Escritura e da Liturgia.

Nesta humilde aceitação do limite da criatura perante a transcendência infinita de um Deus que não cessa de revelar-Se como o Deus-Amor, Pai do Senhor nosso Jesus Cristo, no júbilo do Espírito Santo, vejo expressa a atitude da oração e o método teológico que o Oriente prefere e continua a oferecer a todos os crentes em Cristo.

Devemos confessar que todos precisamos deste silêncio repleto de presença adoradora: a teologia, para poder valorizar plenamente a própria alma sapiencial e espiritual; a oração, para que nunca esqueça que ver Deus significa descer do monte com um rosto tão radiante que seremos obrigados a cobri-lo com um véu (cf. Êx 34, 33) e para que as nossas assembleias saibam dar espaço à presença de Deus, evitando a celebração de si próprias; a pregação, para que não se iluda julgando suficiente multiplicar palavras para atrair a experiência de Deus; o compromisso, para renunciar a fechar-se numa luta sem amor e perdão. Dele precisa o homem de hoje, que muitas vezes não sabe calar-se com medo de ter de enfrentar-se consigo mesmo, de revelar-se, de sentir o vazio que se torna ânsia de significado; o homem que se atordoa no barulho. Todos, crentes e não-crentes, precisam de aprender um silêncio que permita ao Outro falar, quando e como quiser, e a nós compreender esta palavra.


II - DO CONHECIMENTO AO ENCONTRO


17. Passaram-se trinta anos desde que os Bispos da Igreja Católica, reunidos em Concílio com a presença de não poucos irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, escutaram a voz do Espírito, que iluminava verdades profundas sobre a natureza da Igreja, manifestando assim que todos os crentes em Cristo se encontravam muito mais próximos do que se poderia pensar, todos em caminho para o único Senhor, todos apoiados e sustentados pela sua graça. Emergia daqui um convite cada vez mais premente à unidade.

A partir de então, muito caminho foi percorrido no conhecimento recíproco. Ele intensificou a estima e frequentemente permitiu-nos rezar juntos ao único Senhor e também uns pelos outros, num caminho de caridade que é já peregrinação de unidade.

Depois dos passos importantes que foram dados pelo Papa Paulo VI, eu quis que se prosseguisse pelo caminho do conhecimento recíproco na caridade. Posso testemunhar a alegria profunda que suscitou em mim o encontro fraterno com tantos Chefes e Representantes de Igrejas e Comunidades eclesiais durante estes anos. Juntos partilhámos preocupações e anseios, juntos invocámos a união entre as nossas Igrejas e a paz no mundo. Sentimo-nos conjuntamente mais responsáveis pelo bem comum, não só individualmente, mas também em nome dos cristãos dos quais o Senhor nos fez pastores. A esta Sé de Roma têm chegado, por vezes, os prementes apelos de outras Igrejas, ameaçadas ou atingidas pela violência e pela prepotência. A todas, ela procurou abrir o coração. Por elas, logo que foi possível, levantou-se a voz do Bispo de Roma, para que os homens de boa vontade ouvissem o grito daqueles nossos irmãos sofredores.

"Entre os pecados que requerem maior empenho de penitência e conversão, devem certamente ser incluídos os que prejudicaram a unidade querida por Deus para o seu povo. Ao longo dos mil anos que estão para se concluir, mais ainda do que no primeiro milénio, a comunhão eclesial, "algumas vezes não sem culpa dos homens de um e de outro lado" (36), conheceu dolorosas rupturas que contradizem abertamente a vontade de Cristo e são escândalo para o mundo. Tais pecados do passado fazem sentir ainda, infelizmente, o seu peso e permanecem como tentações igualmente no presente. É necessário emendar-se, invocando intensamente o perdão de Cristo" (37).

O pecado da nossa divisão é gravíssimo: sinto a necessidade de que aumente a nossa disponibilidade comum ao Espírito, que nos chama à conversão, a aceitar e a reconhecer o outro com respeito fraterno, a cumprir novos gestos corajosos, capazes de dissolver qualquer tentação de retraimento. Sentimos a necessidade de ultrapassar o grau de comunhão que já atingimos.

18. Cada dia se torna em mim mais vivo o desejo de rememorar a história das Igrejas, para escrever finalmente uma história da nossa unidade, e voltar assim ao tempo, logo após a morte e ressurreição do Senhor Jesus, em que o Evangelho se difundiu pelas culturas mais diferentes, e teve início uma permuta fecundíssima, ainda hoje testemunhada pelas liturgias das Igrejas. Embora não faltem dificuldades e contrastes, as cartas dos Apóstolos (cf. 2 Cor 9, 11-14) e dos Padres (38) mostram laços fraternos estreitíssimos entre as Igrejas, numa plena comunhão de fé no respeito pelas especificidades e identidades. A experiência comum do martírio e a meditação das Actas dos mártires de cada Igreja, a participação na doutrina de tantos santos Mestres da fé, numa profunda intercomunicação e partilha, reforçam este sentimento admirável de unidade (39). O desenvolvimento de diferentes experiências de vida eclesial não impedia que, mediante relações recíprocas, os cristãos pudessem continuar a saborear a certeza de estarem na sua própria casa em qualquer Igreja, porque de todas se elevava, numa admirável variedade de línguas e de entoações, o louvor do único Pai, por Cristo, no Espírito Santo; todas se reuniam para celebrar a Eucaristia, coração e modelo da comunidade, não só no que diz respeito à espiritualidade ou à vida moral, mas também pela própria estrutura da Igreja, na variedade dos ministérios e dos serviços sob a presidência do Bispo, sucessor dos Apóstolos (40). Os primeiros concílios são um testemunho eloquente desta constante unidade na diversidade (41).

E mesmo quando se adensaram certas incompreensões dogmáticas - ampliadas muitas vezes pelo influxo de factores políticos e culturais - que conduziam já a dolorosas consequências nas relações entre as Igrejas, permaneceu vivo o esforço de invocar e promover a unidade da Igreja. No primeiro enlace do diálogo ecuménico, o Espírito Santo permitiu-nos a consolidação na fé comum, perfeita continuação do querigma apostólico, e disto damos graças a Deus de todo o coração (42). E se, lentamente, já nos primeiros séculos da era cristã, foram surgindo contraposições no interior do corpo da Igreja, não podemos esquecer que durante todo o primeiro milénio, não obstante as dificuldades, perdurou a unidade entre Roma e Constantinopla. Compreendemos cada vez melhor que não foi tanto um episódio histórico ou uma simples questão de preeminência a dilacerar o tecido da unidade, mas um progressivo alheamento, de modo que a diversidade dos outros deixou de ser percebida como riqueza comum, para ser vista como incompabilidade. E quando o segundo milénio conhece um endurecimento na polémica e na divisão, aumentando cada vez mais a ignorância recíproca e o preconceito, não cessam, contudo, encontros construtivos entre Chefes de Igrejas, desejosos de intensificar as relações e favorecer os intercâmbios, assim como não esmorece a obra santa de homens e mulheres que, reconhecendo no antagonismo um grave pecado e estando apaixonados pela unidade e pela caridade, de muitas maneiras tentaram promover, com a oração, com o estudo e a reflexão, com o encontro aberto e cordial, a procura da comunhão (43). É toda esta obra meritória que vai confluir na reflexão do Concílio Vaticano II e encontrar como que um emblema na abrogação das excomunhões recíprocas de 1054, desejada pelo Papa Paulo VI e pelo Patriarca ecuménico Atenágoras I (44).

19. O caminho da caridade conhece novos momentos de dificuldade, após os acontecimentos recentes que envolveram a Europa central e oriental. Irmãos cristãos, que juntos tinham sofrido a perseguição, olham-se com desconfiança e temor no momento em que se abrem perspectivas e esperanças de maior liberdade: não é este um novo e grave risco de pecado que todos, com todas as forças, devemos tentar vencer, se queremos que povos à procura do Deus do amor, mais facilmente O possam encontrar, em vez de serem escandalizados de novo pelas nossas divisões e contraposições? Quando, por ocasião da Sexta-Feira Santa de 1994, Sua Santidade o Patriarca de Constantinopla Bartolomeu I ofereceu como prenda à Igreja de Roma a sua meditação sobre "O Caminho da Cruz", quis recordar esta comunhão na recente experiência do martírio: "Nós estamos unidos nestes mártires entre Roma, a "Montanha das Cruzes" e as Ilhas Solovieskj e tantos outros campos de extermínio. Estamos unidos, tendo estes mártires como pano de fundo: não podemos deixar de estar unidos" (45).

Portanto, é urgente que se tome consciência desta gravíssima responsabilidade: hoje podemos cooperar para o anúncio do Reino ou tornarmo-nos fautores de novas divisões. O Senhor abra os nossos corações, converta as nossas mentes e nos inspire passos concretos, corajosos, capazes, se for necessário, de romper com lugares-comuns, fáceis resignações ou posições de impasse. Se quem deseja ser primeiro é chamado a tornar-se servo de todos, então do ímpeto desta caridade ver-se-á crescer o primado do amor. Peço ao Senhor que inspire, antes de mais, a mim próprio e aos Bispos da Igreja Católica, gestos concretos como testemunho desta certeza interior. Exige-o a natureza mais profunda da Igreja. Todas as vezes que celebramos a Eucaristia, sacramento da comunhão, nós encontramos no Corpo e no Sangue partilhado o sacramento e o apelo da nossa unidade (46). Como poderemos ser plenamente credíveis, se nos apresentamos divididos perante a Eucaristia, se não somos capazes de viver a participação no mesmo Senhor que somos chamados a anunciar ao mundo? Perante a exclusão recíproca da Eucaristia, sentimos a nossa pobreza e a exigência de envidar todos os esforços para que chegue o dia no qual participaremos juntos do mesmo Pão e do mesmo Cálice (47). Então a Eucaristia voltará a ser plenamente sentida como profecia do Reino e ecoarão com plena verdade estas palavras tiradas de uma antiquíssima oração eucarística: "Como este pão partido estava espalhado pelas colinas e, colhido, se tornou uma só coisa, assim a tua Igreja se reúna, dos confins da Terra, no teu Reino" (48).

Experiências de unidade

20. Efemérides de particular significado encorajam-nos a dirigir o nosso pensamento, com afecto e reverência, às Igrejas Orientais. Antes de mais, como se disse, o centenário da Carta apostólica, "Orientalium Dignitas". A partir de então, teve início um caminho que, entre outras coisas, levou, em 1917, à criação da Congregação para as Igrejas Orientais (49) e à instituição do Pontifício Instituto Oriental (50), pelo Papa Bento XV. Depois, a 5 de Junho de 1960, foi instituído por João XXIII o Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos (51). Em tempos recentes, a 18 de Outubro de 1990, promulguei o Código dos Cânones das Igrejas Orientais (52), para que fosse salvaguardada e promovida a especificidade do património oriental.

São estes os sinais de uma atitude que a Igreja de Roma sentiu sempre parte integrante do mandato confiado por Jesus Cristo ao apóstolo Pedro: confirmar os irmãos na fé e na unidade (cf. Lc 22, 32). As tentativas do passado tinham os seus limites derivados da mentalidade dos tempos e da própria compreensão das verdades sobre a Igreja. Mas desejaria aqui reafirmar que este empenho tem na sua raiz a convicção de que Pedro (cf. Mt 16, 17-19) quer colocar-se ao serviço de uma Igreja unida na caridade. "A tarefa de Pedro é a de procurar constantemente os caminhos que servem a conservação da unidade. Assim, ele não deve criar obstáculos, mas sim procurar caminhos. O que não está, de facto, em contradição com a tarefa que lhe foi entregue por Cristo de "confirmar os irmãos na fé" (cf. Lc 22, 32). Além disso, é significativo que Cristo tenha pronunciado estas palavras precisamente quando o Apóstolo estava para O renegar. Era como se o próprio Mestre lhe quisesse dizer: "Recorda-te de que és fraco, que também tu tens necessidade de uma incessante conversão. Podes confirmar os outros enquanto tens consciência da tua fraqueza. Dou-te como tarefa a verdade, a grande verdade de Deus, destinada à salvação do homem, mas esta verdade não pode ser pregada e realizada senão amando". É necessário, sempre, "veritatem facere in caritate" - "praticar a verdade na caridade" (cf. Ef 4, 15)" (53). Hoje, sabemos que a unidade pode ser realizada pelo amor de Deus, somente se as Igrejas o quiserem juntas, no pleno respeito das várias tradições e da necessária autonomia. Sabemos que isto pode realizar-se somente a partir do amor de Igrejas que se sentem chamadas a manifestar sempre cada vez mais a única Igreja de Cristo, nascida de um único Baptismo e de uma única Eucaristia, e que querem ser irmãs (54). Como já tive oportunidade de afirmar, "é una a Igreja de Cristo; se existem divisões devem ser superadas, mas a Igreja é una, a Igreja de Cristo entre o Oriente e o Ocidente não pode ser senão uma, una e unida" (55).

Certamente, na perspectiva actual, sabemos que uma união verdadeira só será possível no pleno respeito da dignidade dos outros, sem considerar o conjunto de usos e costumes da Igreja Latina como sendo mais completo ou mais idóneo para mostrar a plenitude da recta doutrina; e sabemos ainda que tal união deverá ser precedida por uma consciência de comunhão que penetre inteiramente a Igreja e não se limite a um acordo entre cúpulas. Hoje estamos conscientes - e já foi reafirmado várias vezes - de que a unidade se realizará como e quando o Senhor quiser, e que ela exigirá o contributo da sensibilidade e criatividade do amor, talvez mesmo indo para além das formas já experimentadas historicamente (56).

21. As Igrejas Orientais que entraram na plena comunhão com esta Igreja de Roma quiseram ser manifestação de tal solicitude, expressa segundo o grau de amadurecimento da consciência eclesial naquele tempo (57). Entrando na comunhão católica, elas não tinham de modo nenhum a intenção de renegar a fidelidade à sua tradição, que testemunharam secularmente com heroísmo e muitas vezes pagando com o sangue. E se, às vezes, nas relações com as Igrejas Ortodoxas, se verificaram equívocos e abertas contraposições, todos sabemos que devemos invocar incessantemente a misericórdia divina e um coração novo capaz de reconciliação, para além de qualquer afronta sofrida ou infligida.

Várias vezes foi reafirmado que a já realizada união plena das Igrejas Orientais Católicas com a Igreja de Roma não deve comportar para elas uma diminuição na consciência da própria autenticidade e originalidade (58). No caso de isto se ter verificado, o Concílio Vaticano II exortou-as a redescobrir plenamente a sua identidade, tendo elas "o direito e o dever de se regerem segundo as próprias disciplinas peculiares, enquanto se recomendam por veneranda antiguidade, são mais conformes aos costumes dos seus fiéis e resultam mais aptas a buscar o bem das almas" (59). Estas Igrejas trazem na sua carne uma dilaceração dramática, porque é ainda impedida uma comunhão total com as Igrejas Orientais Ortodoxas, com as quais, contudo, partilham o património dos seus pais. Uma conversão constante e comum é indispensável, para que elas procedam decididamente e com desassombro para a compreensão recíproca. E conversão é pedida também à Igreja Latina, para que respeite e valorize plenamente a dignidade dos Orientais, e acolha com gratidão os tesouros espirituais de que as Igrejas Orientais são portadoras para proveito da inteira comunhão católica (60); mostre concretamente, muito mais do que no passado, quanto estima e admira o Oriente cristão e quanto considera essencial o seu contributo para que seja vivida plenamente a universalidade da Igreja.

Encontrar-se, conhecer-se, trabalhar juntos

22. Grande é o meu desejo de que as palavras que São Paulo dirigia do Oriente aos fiéis da Igreja de Roma, ressoem hoje nos lábios dos cristãos do Ocidente a respeito dos seus irmãos das Igrejas Orientais: "Em primeiro lugar, dou graças ao meu Deus, por Jesus Cristo, a respeito de vós, porque a vossa fé é conhecida em todo o mundo" (Rm 1, 8). E logo depois o Apóstolo das Gentes declarava com entusiasmo o seu propósito: "Na verdade, desejo-vos ver, para vos comunicar alguma graça espiritual, a fim de vos fortalecer, ou antes, para convosco me reconfortar no meio de vós, pela fé que nos é comum a vós e a mim" (Rm 1, 11-12). Eis, portanto, delineada admiravelmente a dinâmica do encontro: o conhecimento dos tesouros de fé dos outros - que procurei descrever - produz espontaneamente o estímulo para um novo e mais íntimo encontro entre irmãos, que seja de autêntico e sincero intercâmbio recíproco. É um estímulo que o Espírito suscita constantemente na Igreja e que se torna mais insistente precisamente nos momentos de maior dificuldade.

23. De resto, tenho bem consciência de que neste momento algumas tensões entre a Igreja de Roma e algumas Igrejas do Oriente tornam mais difícil o caminho da estima recíproca em vista da comunhão. Várias vezes estaSé de Roma se esforçou por emanar directrizes que favorecessem o caminho comum de todas as Igrejas, num momento tão importante para a vida do mundo, sobretudo na Europa Oriental, onde acontecimentos históricos dramáticos impediram muitas vezes às Igrejas Orientais, em tempos recentes, a plena realização do mandato da evangelização que, contudo, sentiam premente (61). Hoje, situações de maior liberdade oferecem-lhes renovadas oportunidades, embora os meios à sua disposição sejam limitados, por causa das dificuldades dos países onde estão presentes. Desejo afirmar fortemente que as comunidades do Ocidente estão prontas para favorecer em tudo - e não são poucas aquelas que já trabalham neste sentido - a intensificação deste ministério de diaconia, pondo à disposição de tais Igrejas a experiência adquirida em anos de exercício mais livre da caridade. Ai de nós, se a vantagem de um fosse causa da humilhação do outro ou de estéreis e escandalosas competições! Da sua parte, as comunidades do Ocidente considerarão, antes de mais, um dever partilhar, onde for possível, projectos de serviço com os irmãos das Igrejas do Oriente, ou contribuir para a realização de tudo aquilo que elas empreenderão ao serviço dos seus povos e, em todo o caso, nunca ostentarão, nos territórios em que convivem juntas, uma atitude que possa parecer desrespeitadora dos fatigantes esforços que as Igrejas do Oriente procuram cumprir, com tanto maior mérito quanto mais precárias são as suas disponibilidades.

Exprimir gestos comuns de caridade uma para com a outra e juntas em relação aos homens que se encontram em necessidade, aparecerá como um acto de imediata persuasão. Deixar de cumpri-lo, ou até mesmo testemunhar o contrário, levará quantos nos observam a pensar que qualquer empenho de aproximação entre as Igrejas na caridade é apenas afirmação abstracta, sem convicção nem consistência.

Vejo como fundamental o apelo do Senhor a trabalhar de todas as maneiras para que todos os crentes em Cristo testemunhem juntos a própria fé, sobretudo nos territórios onde é mais consistente a convivência entre os filhos da Igreja Católica - latinos e orientais - e os filhos das Igrejas Ortodoxas. Após o martírio comum padecido por Cristo sob a opressão dos regimes ateus, chegou o momento de sofrer, se for necessário, para nunca faltar ao testemunho da caridade entre cristãos, porque, se entregarmos o nosso corpo a fim de ser queimado, mas não tivermos caridade, de nada nos servirá (cf. 1 Cor 13, 3). Teremos de rezar intensamente para que o Senhor toque as nossas mentes e os nossos corações e nos dê a paciência e a mansidão.

24. Penso que uma forma importante de crescermos na compreensão recíproca e na unidade, consiste precisamente em melhorar o nosso conhecimento uns dos outros. Os filhos da Igreja Católica já conhecem os caminhos que a Santa Sé indicou para que eles possam atingir tal objectivo: conhecer a liturgia das Igrejas do Oriente (62); aprofundar o conhecimento das tradições espirituais dos Padres e Doutores do Oriente cristão (63); seguir o exemplo das Igrejas do Oriente na inculturação da mensagem do Evangelho; combater as tensões entre Latinos e Orientais e estimular o diálogo entre Católicos e Ortodoxos; formar, em instituições especializadas sobre o Oriente cristão, teólogos, liturgistas, historiadores e canonistas, que, por sua vez, possam difundir o conhecimento das Igrejas do Oriente; oferecer, nos seminários e faculdades teológicas, um ensino adequado sobre tais matérias, sobretudo aos futuros sacerdotes (64). São indicações sempre muito válidas, sobre as quais desejo insistir com ênfase particular.

25. Para além do conhecimento, julgo muito importante o contacto recíproco. A este propósito, faço votos por que uma acção particular seja exercida pelos mosteiros, precisamente pelo papel muito especial que reveste a vida monástica no interior das Igrejas, e pelos muitos pontos que unem a experiência monástica, e portanto a sensibilidade espiritual, no Oriente e no Ocidente. Uma outra forma de encontro é constituída pelo acolhimento de docentes e estudantes ortodoxos nas Universidades Pontifícias e outras instituições académicas católicas. Continuaremos a fazer todo o possível para que tal acolhimento possa assumir maiores proporções. Que Deus abençoe, também, o nascimento e o desenvolvimento de lugares destinados precisamente à hospitalidade dos nossos irmãos do Oriente, também nesta cidade de Roma, que guarda a memória viva e comum dos chefes dos apóstolos e de tantos mártires.

É importante que as iniciativas de encontro e intercâmbio envolvam da maneira e forma mais ampla as comunidades eclesiais: sabemos, por exemplo, quão positivas podem resultar iniciativas de contacto entre paróquias, como que "geminadas" por um recíproco enriquecimento cultural e espiritual, mesmo no exercício da caridade.

Considero de modo muito positivo as iniciativas de peregrinações comuns aos lugares onde a santidade se manifestou de maneira particular, recordando homens e mulheres que, em todos os tempos, enriqueceram a Igreja com o sacrifício da própria vida. Neste sentido, seria, portanto, um acto de grande significado chegar ao reconhecimento comum da santidade daqueles cristãos que, nos últimos decénios, em particular nos países do Leste europeu, derramaram o sangue pela única fé em Cristo.

26. Um pensamento particular vai também para os territórios da diáspora onde vivem, no âmbito de maioria latina, muitos fiéis das Igrejas Orientais que deixaram as suas terras de origem. Estes lugares, onde é mais fácil o contacto sereno no interior de uma sociedade pluralista, poderiam ser o ambiente ideal para melhorar e intensificar a colaboração entre as Igrejas na formação dos futuros sacerdotes, nos projectos pastorais e caritativos, inclusive em proveito das terras de origem dos Orientais.

Aos Ordinários latinos daqueles Países, recomendo de maneira particular o estudo atento, a plena compreensão e a fiel aplicação dos princípios enunciados por esta Sé Apostólica sobre a colaboração ecuménica (65) e sobre os cuidados pastorais dos fiéis das Igrejas Orientais Católicas, sobretudo quando estes se encontram desprovidos de uma Hierarquia própria.

Convido os Hierarcas e o clero oriental católico a uma colaboração estreita com os Ordinários latinos para uma pastoral eficaz, que não seja fragmentária, sobretudo quando a sua jurisdição se estende por territórios muito vastos onde a falta de colaboração significa, efectivamente, isolamento. Que os Hierarcas orientais católicos não descurem nenhum meio para favorecer um clima de fraternidade, de estima recíproca e sincera, e de colaboração com os seus irmãos das Igrejas às quais não nos une ainda uma comunhão plena, em particular em relação àqueles que pertencem à mesma tradição eclesial.

No Ocidente, onde não houver sacerdotes orientais para assistir os fiéis das Igrejas Orientais Católicas, os Ordinários latinos e os seus colaboradores envidem esforços para que aumentem naqueles fiéis a consciência e o conhecimento da própria tradição, e sejam chamados a cooperar activamente, com o seu contributo específico, para o crescimento da comunidade cristã.

27. Relativamente ao monaquismo, tendo em consideração a sua importância no cristianismo do Oriente, desejamos que ele floresça nas Igrejas Orientais Católicas e sejam encorajados todos aqueles que se sentem chamados a trabalhar para esta consolidação (66). De facto, existe uma ligação intrínseca entre a oração litúrgica, a tradição espiritual e a vida monástica, no Oriente. Precisamente por isso, também para eles, uma retomada bem constituída e motivada da vida monástica poderia significar um autêntico florescimento eclesial. Não se deverá pensar que isto irá diminuir a eficácia do ministério pastoral, que, pelo contrário, sairá fortalecida por uma tão robusta espiritualidade e, desta maneira, reencontrará a sua posição ideal. Este voto refere-se também aos territórios da diáspora oriental, onde a presença de mosteiros orientais daria maior solidez às Igrejas orientais naqueles países, oferecendo, além disso, um contributo precioso à vida religiosa dos cristãos do Ocidente.

Caminhar juntos para a "Orientale Lumen"

28. Ao concluir esta Carta, o meu pensamento vai para os queridos Irmãos: os Patriarcas, os Bispos, os Sacerdotes e os Diáconos, os Monges e as Monjas, os homens e as mulheres das Igrejas do Oriente.

No limiar do terceiro milénio, todos nós sentimos chegar às nossas Sés o grito dos homens, esmagados pelo peso de ameaças graves e no entanto, talvez mesmo sem o saberem, desejosos de conhecer a história de amor querida por Deus. Esses homens sentem que um raio de sol, se for acolhido, pode ainda dispersar as trevas do horizonte da ternura do Pai.

Maria, "Mãe do astro que não conhece ocaso" (67), "aurora do místico dia" (68) "oriente do Sol de glória" (69), indica-nos a Orientale Lumen.

Do Oriente, todos os dias surge de novo o sol da esperança, a luz que restitui ao género humano a sua existência. Do Oriente, segundo uma linda imagem, voltará o nosso Salvador (cf. Mt 24, 27).

Os homens e as mulheres do Oriente são para nós sinal do Senhor que volta. Nós não podemos esquecê-los, não só porque os amamos como irmãos e irmãs, redimidos pelo mesmo Senhor, mas também porque a saudade santa dos séculos vividos na plena comunhão da fé e da caridade nos impele, censura os nossos pecados, as nossas incompreensões recíprocas: nós privámos o mundo de um testemunho comum que teria, talvez, podido evitar tantos dramas, se não mesmo mudar o sentido da História.

Nós sentimos a dor de ainda não podermos participar na mesma Eucaristia. Agora que o milénio se encerra e o nosso olhar se dirige completamente para o Sol que nasce, reencontramo-los com gratidão no trajecto do nosso olhar e do nosso coração.

O eco do Evangelho, palavra que não desilude, continua a ressoar com força, enfraquecida apenas pela nossa divisão: Cristo grita, mas o homem tem dificuldade em ouvir a sua voz, porque não conseguimos transmitir palavras unânimes. Escutamos juntos a invocação dos homens que querem ouvir a Palavra de Deus inteira. As palavras do Ocidente precisam das palavras do Oriente, para que a Palavra de Deus manifeste cada vez melhor as suas riquezas insondáveis. As nossas palavras encontrar-se-ão para sempre na Jerusalém do Céu; mas invocamos e queremos que esse encontro seja antecipado na Santa Igreja que ainda caminha para a plenitude do Reino.

Queira Deus abreviar o tempo e o espaço! Cedo, bem cedo, Cristo, a Orientale Lumen, nos conceda a graça de descobrir que, na realidade, não obstante tantos séculos de afastamento, estávamos muito próximos, porque juntos, talvez sem o sabermos, caminhávamos para o único Senhor, e portanto uns para os outros.

Que o homem do terceiro milénio possa gozar desta descoberta, finalmente atingido por uma palavra concorde e, por isso, plenamente credível, proclamada por irmãos que se amam e agradecem as riquezas que se doam reciprocamente. E, desta maneira, apresentar-nos-emos a Deus com as mãos puras da reconciliação, e os homens do mundo terão uma nova motivação sólida para acreditar e para esperar.

Com estes votos, sobre todos estendo a minha Bênção.

- Vaticano, 2 de Maio, memória de Santo Atanásio, Bispo e Doutor da Igreja, do ano de 1995, décimo sétimo de Pontificado




Spes Aedificandi

Carta Apostólica
em forma de Motu Proprio
SPES AEDIFICANDI
do papa João Paulo II
para a proclamação de
Santa Brígida da Suécia, Santa Catarina de Sena e Santa Benedita da Cruz
co-padroeiras da Europa
João Paulo PP. II
para perpétua memória.


1. A esperança de construir um mundo mais justo e digno do homem, alentada pela expectativa do terceiro milénio já iminente, não pode prescindir da consciência de que de nada serviriam os esforços humanos se não fossem acompanhados pela graça divina: "Se não for o Senhor a edificar a casa, em vão trabalham os construtores" (Sl 127 [126], 1). Esta é a consideração que devem ter em conta aqueles que, nestes anos, se propõem dar à Europa uma nova ordem que ajude o velho Continente a valorizar as riquezas da sua história, removendo as tristes heranças do passado, para responder com uma originalidade enraizada nas melhores tradições às instâncias de um mundo em mutação.

Não há dúvida que, na complexa história europeia, o cristianismo representa um elemento central e qualificador, consolidado sobre a firme base da herança clássica e das numerosas contribuições provindas dos diversos fluxos étnico-culturais produzidos ao longo dos séculos. A fé cristã plasmou a cultura do Continente e entrelaçou-se inextricavelmente com a sua história, de tal forma que esta não seria compreensível se não se referisse aos acontecimentos que caracterizaram primeiro o grande período da evangelização e, depois, os longos séculos em que o cristianismo, apesar da dolorosa divisão entre Oriente e Ocidente, se confirmou como religião dos mesmos europeus. Mesmo no período moderno e contemporâneo, quando a unidade religiosa se foi fragmentando tanto pelas novas divisões havidas entre os cristãos, como pelos processos de separação da cultura do horizonte da fé, o papel desta última continuou a ser de grande relevo.

O caminho em direcção ao futuro não pode prescindir deste dado, e os cristãos são chamados a tomar uma renovada consciência disto, para evidenciar a sua constante potencialidade. Eles têm o dever de oferecer, para a construção da Europa, uma específica contribuição, que será tanto mais válida e eficaz, na medida em que souberem renovar-se à luz do Evangelho. Desta forma, far-se-ão continuadores da longa história de santidade que percorreu as várias regiões da Europa durante estes dois milénios, em que os santos reconhecidos oficialmente nada são senão os vértices propostos como modelos para todos. De facto, numerosos são os cristãos que, com a sua vida recta e honesta, animada pelo amor a Deus e ao próximo, alcançaram nas mais variadas vocações consagradas e laicais uma santidade verdadeira e amplamente difundida, ainda que oculta.

2. A Igreja não duvida que precisamente este tesouro de santidade é o segredo do seu passado e a esperança do seu futuro. É aqui que se exprime melhor o dom da Redenção, graças ao qual o homem é resgatado do pecado e recebe a possibilidade da vida nova em Cristo. É n'Ele que o Povo de Deus, caminhando na história, encontra um inigualável apoio, sentido-se profundamente unido à Igreja triunfante, que no Céu canta os louvores do Cordeiro (cf. Ap 7, 9-10), enquanto intercede pela comunidade ainda peregrina sobre a terra. Por isso, desde os tempos mais antigos, os santos foram vistos pelo Povo de Deus como protectores e, por uma singular praxe, certamente não alheia ao influxo do Espírito Santo quer pela instância dos fiéis acolhida pelos Pastores, quer pela iniciativa dos mesmos Pastores a cada Igreja, região e mesmo continente, foi confiada a protecção especial de alguns santos.

Nesta perspectiva, ao celebrar-se a II Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Europa, na iminência do Grande Jubileu do Ano 2000, pareceu-me que os cristãos europeus que estão a assistir, juntamente com os seus concidadãos, a uma histórica passagem rica de esperança e, ao mesmo tempo, cheia de preocupações, podem alcançar um especial proveito pela contemplação e a invocação de alguns santos que, de algum modo, são particularmente representativos da sua história. Por isso, após uma oportuna consultação, completando o que dispus em 31 de Dezembro de 1980, ao declarar co-Padroeiros da Europa, juntamente com São Bento, dois santos do primeiro milénio, os irmãos Cirilo e Metódio, pioneiros da evangelização do Oriente, pensei em integrar a lista dos Padroeiros celestes com três figuras igualmente emblemáticas em circunstâncias cruciais do segundo milénio, que está a terminar: Santa Brígida da Suécia, Santa Catarina de Sena e Santa Teresa Benedita da Cruz. Três grandes santas, três mulheres que, em épocas distintas duas no meio da Idade Média e uma no nosso século se destacaram no amor efectivo pela Igreja de Cristo e pelo testemunho prestado à sua Cruz.

3. Naturalmente o panorama da santidade é tão rico e variado, que a escolha de novos Padroeiros celestes também poderia ter sido orientada a outras figuras de igual dignidade, que cada época e região podem apresentar. Considero, porém, particularmente significativa a opção por esta santidade de rosto feminino, no quadro da providencial tendência que, na Igreja e na sociedade do nosso tempo, veio afirmando-se com um reconhecimento sempre mais evidente da dignidade e dos dons próprios da mulher.

Na verdade a Igreja, desde o início da sua história, não deixou de reconhecer o papel e a missão da mulher, apesar de às vezes se ter deixado condicionar por uma cultura que nem sempre lhe prestava a devida atenção. Mas também sobre este aspecto a comunidade cristã foi progressivamente evoluindo, sendo decisivo para este fim o papel desempenhado pela santidade. Um estímulo constante foi oferecido por Maria, a "mulher ideal", a Mãe de Cristo e da Igreja. Mas também a coragem das mártires, que enfrentaram com surpreendente força de espírito os tormentos mais cruéis, o testemunho das mulheres empenhadas com radical exemplaridade na vida ascética, a dedicação quotidiana de tantas esposas e mães naquela "igreja doméstica" que é a família, os carismas de tantas místicas que contribuíram para o mesmo aprofundamento teológico, ofereceram à Igreja uma preciosa indicação para acolher plenamente o desígnio de Deus sobre a mulher. De resto, isto já tem a sua inequívoca expressão em algumas páginas da Sagrada Escritura, e de modo particular na atitude de Cristo testemunhada no Evangelho. É também neste sentido que se propõe a opção de declarar Santa Brígida da Suécia, Santa Catarina de Sena e Santa Teresa Benedita da Cruz co-Padroeiras da Europa.

Mas a razão que me orientou especificamente para elas deve-se à sua própria vida. De facto, a sua santidade expressou-se em circunstâncias históricas e no contexto de âmbitos "geográficos" que as tornam particularmente significativas para o Continente europeu. Santa Brígida reconduz ao extremo Norte europeu, onde o Continente está como que a unir-se às outras partes do mundo, e donde ela partiu para chegar a Roma. Catarina de Sena é igualmente conhecida pelo papel que desempenhou numa época em que o Sucessor de Pedro residia em Avinhão, levando a cabo uma obra espiritual já iniciada por Brígida ao fazer-se promotora do retorno à sua Sede, junto do túmulo do Príncipe dos Apóstolos. Teresa Benedita da Cruz, enfim, recentemente canonizada, não só transcorreu a própria existência em diversos países da Europa, mas com toda a sua vida de pensadora, mística e mártir, lançou uma espécie de ponte entre as suas raízes hebraicas e a adesão a Cristo movendo-se, com precisa intuição, no diálogo com o pensamento filosófico contemporâneo e, enfim, gritando com o martírio as razões de Deus e do homem na desumana vergonha do "shoah". Assim, ela veio a ser a expressão de uma peregrinação humana, cultural e religiosa, que encarna o núcleo profundo da tragédia e das esperanças do Continente europeu.

4. Brígida, a primeira destas três grandes figuras, nasceu de uma família aristocrática em 1303 em Finsta, na região sueca de Uppland. Ela é conhecida sobretudo como mística e fundadora da Ordem do Santíssimo Salvador. Porém, não devemos esquecer que transcorreu a primeira parte da sua vida como leiga felizmente casada, e teve oito filhos. Indicando-a como co-Padroeira da Europa, desejo torná-la familiar não só aos que receberam a vocação de uma vida de especial consagração, mas também aos que são chamados às ordinárias ocupações da vida laical no mundo e, sobretudo, à exímia e exigente vocação de formar uma família cristã. Sem se deixar influir pelas condições de bem-estar da sua classe social, ela viveu com o marido Ulf uma experiência conjugal, onde o amor esponsal se uniu à oração intensa, ao estudo da Sagrada Escritura, à mortificação e à caridade. Juntos fundaram um pequeno hospital, onde com frequência assistiam os enfermos. Brígida tinha também o hábito de servir pessoalmente os pobres. Ao mesmo tempo, foi elogiada pelos seus dotes pedagógicos, que teve ocasião de pôr em prática no período em que se lhe pediu que servisse na Corte de Estocolmo. Desta experiência amadurecerão os conselhos que, em diversas ocasiões, dará aos príncipes e soberanos para desempenharem corretamente as suas funções. É evidente, porém, que os primeiros a lucrar com isto foram os seus filhos, não constituindo um puro caso o facto de uma das suas filhas, Catarina, ser venerada como santa.

Porém, este período da sua vida familiar foi só a primeira etapa. A peregrinação que realizou com o marido Ulf a Santiago de Compostela em 1341 concluiu simbolicamente esta fase, preparando Brígida para a nova vida que iniciou alguns anos depois quando, com a morte do esposo, pressentiu a voz de Cristo que lhe confiava uma nova missão, guiando-a passo a passo com uma série de extraordinárias graças místicas.

5. Tendo deixado a Suécia em 1349, Brígida estabeleceu-se em Roma, Sede do Sucessor de Pedro. A transferência para a Itália constituiu uma etapa decisiva para a dilatação do seu coração e da sua mente, não só do ponto de vista geográfico e cultural, mas sobretudo espiritual. Foram muitos os lugares que a viram ainda peregrina, desejosa de venerar as relíquias dos santos. Nestas vestes ela esteve em Milão, Pavia, Assis, Ortona, Bari, Benevento, Pozzuoli, Nápoles, Salerno, Amalfi e no Santuário do Arcanjo São Miguel no Monte Gargano. A última peregrinação, realizada entre 1371 e 1372, levou-a a atravessar o Mediterrâneo em direcção à Terra Santa, permitindo-lhe abraçar espiritualmente, além de tantos lugares sagrados da Europa católica, as mesmas nascentes do cristianismo, nos lugares santificados pela vida e morte do Redentor.

Na verdade, mais que por estas devotas peregrinações, foi com o profundo sentido do mistério de Cristo e da Igreja que Brígida participou na construção da comunidade eclesial, num momento extremamente crítico da sua história. A união íntima com Cristo foi, com efeito, acompanhada per especiais carismas de revelação, que a tornaram um ponto de referência para muitas pessoas da Igreja do seu tempo. Em Brígida sente-se a força da profecia. Por vezes, esta parecia ser um eco dos grandes profetas antigos. Ela falava com segurança a príncipes e pontífices, revelando os desígnos de Deus acerca dos acontecimentos históricos. Não poupou advertências severas, inclusive no tema da reforma moral do povo cristão e do mesmo clero (cf. Revelationes, IV, 49; cf. também IV, 5). Alguns aspectos da extraordinária produção mística suscitaram, com o passar do tempo, compreensíveis interrogações, a propósito das quais a prudência eclesial realizou um discernimento eclesial, remetendo-se à única revelação pública, que tem em Cristo a sua plenitude e na Sagrada Escritura a sua expresão normativa. De facto, também as importantes experiências dos grandes santos não estão isentas dos limites que sempre acompanham a recepção humana da voz de Deus.

No entanto, não há dúvida que a Igreja, ao reconhecer a santidade de Brígida, mesmo sem se pronunciar sobre cada uma das revelações, acolheu a autenticidade do conjunto da sua experiência interior. Ela vem a ser uma testemunha significativa do espaço que pode ter na Igreja o carisma vivido com total docilidade ao Espírito Santo, e na completa conformidade às exigências da comunhão eclesial. Além disso nas terras da Escandinávia, pátria de Brígida, tendo-se separado da plena comunhão com a Sé de Roma após os tristes acontecimentos do século XVI, a figura da Santa sueca permanece concretamente como uma preciosa ligação ecuménica, também reforçada pelo esforço realizado neste sentido pela sua Ordem.

6. Pouco depois, nasceu outra grande figura feminina, Santa Catarina de Sena, cujo papel na evolução da história da Igreja e no mesmo aprofundamento doutrinal da mensagem revelada teve significativos reconhecimentos, a ponto de se lhe atribuir o título de doutora da Igreja.

Nascida em Sena em 1347, Santa Catarina foi favorecida desde a sua infância por extraordinárias graças que lhe permitiram realizar, na esteira da estrada espiritual traçada por São Domingos, um rápido caminho de perfeição entre oração, austeridade e obras de caridade. Tinha vinte anos quando Cristo lhe manifestou a sua predilecção, através do símbolo místico do anel esponsal. Era a coroação de uma intimidade amadurecida no ocultamento e na contemplação, graças à constante permanência, embora fora das paredes do mosteiro, naquela morada espiritual, a que ela gostava de chamar "cela interior". O silêncio desta cela, tornando-a extremamente dócil às inspirações divinas, bem cedo pôde associar-se a uma intensa vida apostólica, que em si mesma tem algo de extraordinário. Muitos, inclusive clérigos, se reuniram à sua volta como discípulos, reconhecendo-lhe o dom de uma maternidade espiritual. As suas cartas difundiram-se pela Itália e pela própria Europa. De facto, a jovem senesa participou vivamente, com bastante acuidade e palavras inflamadas, nas problemáticas eclesiais e sociais da sua época.

Foi infatigável o esforço manifestado por Catarina para a solução dos inúmeros conflitos que dilaceravam a sociedade do seu tempo. A sua obra de pacificação alcançou soberanos como Carlos V da França, Carlos de Durazzo, Isabel da Hungria, Ludovico o Grande da Hungria e da Polónia, Joana de Nápoles. Foi significativa a sua acção para reconciliar Florença com o Papa. Apontando "Cristo crucificado e Maria dulcíssima" às partes em conflito, ela mostrava que,para uma sociedade inspirada nos valores cristãos, jamais deveria haver motivos de embate tão graves a ponto de se preferir o recurso à razão das armas, às armas da razão.

7. Mas Catarina bem sabia que não se podia chegar eficazmente a esta conclusão, se os espíritos não fossem plasmados de antemão pelo mesmo vigor do Evangelho. Daqui a urgência da reforma dos costumes, que ela propunha a todos, sem excepção. Aos reis lembrava que não podiam governar como se o reino fosse de sua "propriedade": certos de ter que prestar contas a Deus da gestão do poder, eles haviam de assumir a tarefa de conservar "a santa e verdadeira justiça", fazendo-se "pais dos pobres" (cf. Carta n. 235, ao Rei da França). De facto, o exercício da soberania não podia ser separado do exercício da caridade que é, ao mesmo tempo, a alma da vida pessoal e da responsabilidade política (cf. Carta n. 357, ao Rei da Hungria).

Catarina dirigia-se com o mesmo vigor aos eclesiásticos de qualquer nível, para pedir a mais severa coerência na própria vida e no seu ministério pastoral. De certo modo impressiona o tom livre, vigoroso e perspicaz com o qual ela repreende padres, bispos e cardeais. Tratava-se de erradicar dizia ela do jardim da Igreja as plantas murchas, substituindo-as com "plantas novas", frescas e perfumadas. Graças à sua intimidade com Cristo, a santa senesa não temia indicar com franqueza ao mesmo Pontífice, a que amava com ternura como o "doce Cristo na terra", a vontade de Deus que lhe impunha abandonar as hesitações ditadas pela prudência terrena e pelos interessses mundanos, para voltar de Avinhão a Roma, junto do túmulo de Pedro.

Com idêntico fervor, Catarina prodigou-se também por afastar o espectro das divisões que sobrevieram na eleição papal, sucessiva à morte de Gregório XI: também naquela ocasião ela renovou o apelo, com ardor apaixonado, às razões irrenunciáveis da comunhão. Era aquele supremo ideal que inspirara toda a sua vida consumida sem reservas pela Igreja. Ela mesmo, no leito de morte, o testemunhará aos seus filhos espirituais: "Tende a certeza, caríssimos, que dei a vida pela santa Igreja" (Beato Raimundo de Cápua, Vida de Santa Catarina de Sena, Liv. III, c. IV).

8. Com Edith Stein Santa Teresa Benedita da Cruz encontramo-nos num diferente ambiente histórico-cultural. De facto, ela conduz-nos ao centro deste século atormentado, apontando as esperanças por ele acesas, mas também as contradições e as falências que o caracterizaram. Edith não provém, como Brígida e Catarina, de uma família cristã. Nela tudo indica o tormento da procura e a fadiga da "peregrinação" existencial. Mesmo depois de ter alcançado a verdade na paz da vida contemplativa, ela teve de viver o mistério da Cruz até ao fundo.

Nasceu em 1891 de uma família hebraica de Breslau, que nessa época era território alemão. O gosto que ela desenvolveu pela filosofia, abandonando a prática religiosa inspirada pela sua mãe, ter-lhe-ia sugerido, mais que um caminho de santidade, uma vida conduzida pela nota do puro "racionalismo". A graça, porém, aguardava-a nos meandros do pensamento filosófico: tendo percorrido o caminho da corrente fenomenológica, ela soube recolher a instância de uma realidade objectiva que, ao invés de reconduzir ao sujeito, precedia e determinava o conhecimento, devendo ser examinada com um rigoroso esforço de objectividade. É necessário escutá-la, fixando-a sobretudo no ser humano, devido àquela capacidade de "empatia" expressão que lhe era muito querida que permite, de certo modo, incorporar o que é vivido pelos demais (cf. E. Stein, O problema da empatia).

Foi nesta tensão de escuta que ela se encontrou, por um lado com os testemunhos da experiência espiritual cristã oferecida por Santa Teresa de Ávila e de outros grandes místicos, dos quais se tornou discípula e propagadora, e por outro lado com a antiga tradição do pensamento cristão, consolidada no tomismo. Por este caminho ela chegou primeiro ao baptismo e, depois, à escolha da vida contemplativa na Ordem carmelitana. Tudo se desenrolou no contexto de um itinerário existencial bastante movimentado, marcado não só pela busca da vida interior, mas pelo empenhamento no estudo e no ensino, que ela realizou com dedicação admirável. Foi de grande apreço, sobretudo no seu tempo, a sua obra a favor da promoção social da mulher, e são realmente penetrantes as páginas com as quais ela explorou a riqueza da feminilidade e a missão da mulher do ponto de vista humano e religioso (cf. E. Stein, A mulher. A sua tarefa, segundo a natureza e a graça).

9. O encontro com o cristianismo não foi motivo para ela repudiar as suas raízes hebraicas; pelo contrário, ajudou-a a redescobri-las em plenitude. Isto, porém, não lhe poupou a incompreensão por parte dos seus familiares. Sobretudo a desaprovação da própria mãe lhe causou uma dor intensa. Na verdade, todo o seu caminho de perfeição cristã se distinguiu não só pela solidariedade humana para com o seu povo de origem, mas também por uma verdadeira partilha espiritual com a vocação dos filhos de Abraão, designados pelo mistério da chamada e dos "dons irrevogáveis" de Deus (cf. Rm 11, 29).

De modo particular, ela fez próprio o sofrimento do povo judeu, na medida que este aumentava naquela feroz perseguição nazista que permanece, juntamente com outras graves expressões do totalitarismo, uma das mais obscuras e vergonhosas manchas da Europa do nosso século. Sentiu então que, no extermínio sistemático dos judeus, a cruz de Cristo era carregada pelo seu povo, e assumiu-a na sua pessoa com a sua deportação e a execução no tristemente célebre campo de Auschwitz-Birkenau. O seu grito funde-se com o de todas as vítimas daquela horrível tragédia, unido porém ao brado de Jesus, que assegura ao sofrimento humano uma misteriosa e perene fecundidade. A sua imagem de santidade permanece para sempre ligada ao drama da sua morte violenta, ao lado de tantos que a padeceram juntamente com ela. E permanece como um anúncio do evangelho da Cruz, com o qual ela se quis identificar no seu mesmo nome de religiosa.

Hoje, vemos Teresa Benedita da Cruz reconhecer no seu testemunho de vítima inocente, por um lado a imitação do Cordeiro imaculado e a protesta levantada contra todas as violações dos direitos fundamentais da pessoa e, por outro, o penhor daquele renovado encontro de judeus e cristãos, que na linha auspiciada pelo Concílio Vaticano II, está a conhecer uma prometedora fase de abertura recíproca. Declarar hoje Edith Stein co-Padroeira da Europa significa colocar no horizonte do velho Continente um estandarte de respeito, de tolerância e de hospitalidade que convida os homens e as mulheres a entenderem-se e a aceitarem-se, para além das diferenças étnicas, culturais e religiosas, formando assim uma sociedade verdadeiramente fraterna.

10. Cresça, portanto, a Europa! Cresça como Europa do espírito, na esteira da sua melhor história, que vê na santidade a sua expressão mais elevada. A unidade do Continente, que está a amadurecer de modo progressivo na consciência e se está a definir sempre mais claramente na vertente política, sem dúvida encarna uma perspectiva de grande esperança. Os europeus são chamados a relegar ao passado de forma definitiva as rivalidades históricas que, com frequência, fizeram do seu Continente um teatro de guerras devastadoras. Ao mesmo tempo, eles devem empenhar-se em criar as condições de uma maior coesão e colaboração entre os povos. Diante deles está o grande desafio de construir uma cultura e uma ética da unidade, na falta das quais qualquer política da unidade está destinada, mais cedo ou mais tarde, a fracassar.

Para edificar a nova Europa sobre bases sólidas, não é decerto suficiente apelar apenas aos interesses económicos, que se em certas ocasiões unem, noutras em contrapartida, dividem; antes, é necessário incidir sobre os valores autênticos, que têm o seu fundamento na lei moral universal, inscrita no coração de cada homem. Uma Europa que confundisse o valor da tolerância e do respeito universal com o indiferentismo ético e o cepticismo acerca dos valores irrenunciáveis, abrir-se-ia às mais arriscadas aventuras e, mais cedo ou mais tarde, veria reaparecer sob novas formas os espectros mais tremendos da sua história.

Para evitar esta ameaça, torna-se mais uma vez vital o papel do cristianismo, que está a indicar de forma infatigável o horizonte ideal. À luz dos inúmeros pontos de encontro com as outras religiões, que o Concílio Vaticano II prospectou (cf. Decreto Nostra aetate), é necessário ressaltar com vigor que a abertura ao Transcendente é uma dimensão vital para a existência. É essencial, portanto, um renovado compromisso de testemunho por parte de todos os cristãos, presentes nas várias Nações do Continente. A eles cabe alimentar a esperança da plena salvação com o anúncio do Evangelho que lhes compete isto é, da "Boa Nova" com a qual Deus se encontrou connosco, e em seu Filho Jesus Cristo nos ofereceu a redenção e a plenitude da vida divina. Graças ao Espírito que nos foi dado, podemos elevar a Deus o nosso olhar e invocá-lo com o doce nome de "Abba", Pai (cf. Rm 8, 15; Gl 4, 6).

11. Ao favorecer uma renovada devoção eu quis, com este anúncio de esperança, valorizar em perspectiva "européia" estas três grandes figuras de mulher, que em várias épocas deram tão significativa contribuição para o crescimento não só da Igreja, mas da mesma sociedade.

Pela comunhão dos santos, que misteriosamente une a Igreja terrestre à celestial, elas velam por nós com a sua perene intercessão junto do trono de Deus. Ao mesmo tempo, a invocação mais intensa e o recurso mais assíduo e atento às suas palavras e exemplos, certamente despertarão em nós uma consciência mais perspicaz da nossa vocação comum à santidade, estimulando-nos a assumir propósitos de um compromisso mais generoso.

Portanto, depois de uma sazonada reflexão, em virtude da minha potestade apostólica, constituo e declaro co-Padroeiras de toda a Europa junto de Deus, Santa Brígida da Suécia, Santa Catarina de Sena e Santa Teresa Benedita da Cruz, concedendo todas as honras e privilégios litúrgicos que competem, conforme o direito, aos principais Padroeiros dos lugares.

Assim seja para a glória da Santíssima Trindade, que resplandece singularmente nas suas vidas e na vida de todos os santos. A paz aos homens de boa vontade esteja na Europa e no mundo inteiro.

Dado em Roma, junto de São Pedro, a 1 de Outubro de 1999, vigésimo primeiro ano de Pontificado.






Tertio Millennio Adveniente

CARTA APOSTÓLICA
TERTIO MILLENNIO ADVENIENTE
DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II
AO EPISCOPADO, AO CLERO E AOS FIÉIS
SOBRE A PREPARAÇÃO PARA O JUBILEU DO ANO 2000



Aos Bispos, aos sacerdotes e aos diáconos, aos religiosos e religiosas, a todos os fiéis leigos:

1. Quando já se avizinha o terceiro milénio da era cristã, espontaneamente vêm ao pensamento as palavras do apóstolo Paulo: " Ao chegar a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher " (Gal 4, 4). A plenitude do tempo identifica-se com o mistério da Encarnação do Verbo, Filho consubstancial ao Pai, e com o mistério da Redenção do mundo. S. Paulo sublinha, nesta passagem, que o Filho de Deus nasceu de mulher, nasceu sujeito à Lei, e veio ao mundo resgatar quantos estavam sujeitos à Lei, para poderem receber a adopção de filhos. E acrescenta: " Porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho que clama: "Abba, Pai!" ". A sua conclusão é verdadeiramente consoladora: " Portanto, já não és servo, mas filho; e, se és filho, também és herdeiro, pela graça de Deus " (Gal 4, 6-7).

Esta apresentação paulina do mistério da Encarnação contém a revelação do mistério trinitário e da continuação da missão do Filho na missão do Espírito Santo. A Encarnação do Filho de Deus, a sua concepção, o seu nascimento constituem o pressuposto para o envio do Espírito Santo. O texto de S. Paulo deixa assim transparecer a plenitude do mistério da Encarnação redentora.


I - «JESUS CRISTO É O MESMO ONTEM, HOJE...» (Heb 13,8)


2. No seu Evangelho, Lucas transmitiu-nos uma descrição concisa das circunstâncias em que se deu o nascimento de Jesus: " Por aqueles dias, saiu um édito da parte de César Augusto, para ser recenseada toda a terra (...) E iam todos recensear- -se, cada qual à sua própria cidade. Também José, deixando a cidade de Nazaré, na Galileia, subiu até à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por ser da casa e linhagem de David, a fim de recensear-se com Maria, sua mulher, que se encontrava grávida. E, quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoira, por não haver para eles lugar na hospedaria " (2,1.3-7).

Assim se cumpria aquilo que o anjo Gabriel tinha predito na Anunciação. À Virgem de Nazaré, tinha-se ele dirigido com estas palavras: " Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo " (1, 28). Tais palavras deixaram Maria perturbada, pelo que o Mensageiro divino apressara-se a acrescentar: " Não tenhas receio, Maria, pois achaste graça diante de Deus. Hás-de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo. (...) O Espírito Santo descerá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso mesmo é que o Santo que vai nascer Se há-de chamar Filho de Deus " (1,30-32.35). A resposta de Maria à mensagem angélica foi inequívoca: " Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra " (1,38). Nunca como então na história do homem, tanto esteve dependente do consentimento da criatura humana.1

3. No prólogo do seu Evangelho, João resume toda a profundidade do mistério da Encarnação numa única frase: " E o Verbo fez-se homem e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai, como Filho unigénito cheio de graça e de verdade " (1, 14). Para João, na concepção e no nascimento de Jesus realiza-se a Encarnação do Verbo eterno, consubstancial ao Pai. O evangelista refere-se ao Verbo, que no princípio estava junto de Deus e por Quem foi feito tudo quanto existe; o Verbo no Qual estava a vida, vida que era a luz dos homens (cf. 1, 1-5). Do Filho unigénito, Deus de Deus, o apóstolo Paulo escreve que foi " o Primogénito de toda a criação " (Col 1, 15). Deus cria o mundo por meio do Verbo. O Verbo é a eterna Sabedoria, o Pensamento e a Imagem substancial de Deus, " resplendor da sua glória e imagem da sua substância " (Heb 1, 3). Gerado eternamente e eternamente amado pelo Pai, como Deus de Deus e Luz da Luz, Ele é o princípio e o arquétipo de todas as coisas, criadas por Deus no tempo.

O facto de o Verbo ter assumido, na plenitude dos tempos, a condição de criatura confere ao acontecimento de Belém, de há dois mil anos, um valor cósmico singular. Graças ao Verbo, o mundo das criaturas apresenta-se como " cosmos ", isto é, como universo ordenado. E é ainda o Verbo que, encarnando-Se, renova a ordem cósmica da criação. A Carta aos Efésios fala do desígnio que Deus tinha preestabelecido em Cristo, " para ser realizado ao completarem-se os tempos: recapitular em Cristo todas as coisas que há no Céu e na Terra " (1, 10).

4. Cristo, Redentor do mundo, é o único Mediador entre Deus e os homens e não há outro nome debaixo do céu pelo qual possamos ser salvos (cf. Act 4, 12). Lê-se na Carta aos Efésios: n'Ele " temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça, que abundantemente derramou sobre nós com plena sabedoria e discernimento (...) segundo o beneplácito que n'Ele de antemão estabelecera, para ser realizado ao completarem-se os tempos " (1, 7-10). Assim Cristo, Filho consubstancial ao Pai, é Aquele que revela o desígnio de Deus relativo a toda a criação, e de modo particular sobre o homem. Como sugestivamente afirma o Concílio Vaticano II, Ele " revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime ".2 Mostra-lhe esta vocação, revelando o mistério do Pai e do seu amor. " Imagem do Deus invisível ", Cristo é o homem perfeito que restituiu aos filhos de Adão a semelhança com Deus, deformada pelo pecado. Na sua natureza humana, imune de todo o pecado e assumida pela Pessoa divina do Verbo, a natureza comum a todo o ser humano é elevada a uma dignidade sublime. " Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado ".3

5. O facto do Filho de Deus " Se fazer um de nós " verificou-se na maior humildade, pelo que não admira que a historiografia profana, absorvida por factos mais clamorosos e personagens que davam mais nas vistas, lhe tenha dedicado, ao início, somente acenos fugidios, ainda que significativos. Encontram-se referências a Cristo, por exemplo, em Antiguidades Judaicas, obra redigida em Roma pelo historiador Flávio Josefo, nos anos 9394,4 e sobretudo nos Anais de Tácito, compostos entre os anos 115 e 120; ao referir-se lá ao incêndio de Roma no ano 64, falsamente imputado por Nero aos cristãos, o historiador acena explicitamente a Cristo, " supliciado por obra do Procurador Pôncio Pilatos sob o império de Tibério ".5 Também Suetónio, ao escrever a biografia do imperador Cláudio por 121, nos informa sobre a expulsão dos judeus de Roma, porque " por instigação de um certo Cresto suscitavam frequentes tumultos ".6 É convicção comum dos intérpretes que tal passagem se refere a Jesus Cristo, que Se tornara motivo de controvérsia no seio do judaísmo romano. De salientar ainda, como confirmação da rápida difusão do cristianismo, o testemunho de Plínio o Jovem, governador da Bitínia, que, entre 111 e 113, comunica ao imperador Trajano que um grande número de pessoas costumava reunir-se " num dia fixo, antes da aurora, para, em coros alternados, cantar um hino a Cristo como a um Deus ".7

Mas aquele grande acontecimento, que os historiadores não cristãos se limitam a mencionar, adquire a sua luz plena nos escritos do Novo Testamento, os quais, apesar de documentos de fé, nem por isso deixam de ser, no conjunto das suas referências, menos atendíveis como testemunhos históricos. Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Senhor do cosmos, é também Senhor da história, de que é " o Alfa e o Ómega " (Ap 1, 8; 21, 6), " o Princípio e o Fim " (Ap 21, 6). N'Ele, o Pai pronunciou a palavra definitiva sobre o homem e sobre a sua história. É o que, numa real síntese, exprime a Carta aos Hebreus: " Tendo Deus falado outrora aos nossos pais, muitas vezes e de muitas maneiras, pelos profetas, agora falou-nos nestes últimos tempos pelo Filho " (1, 1-2).

6. Jesus nasceu do Povo eleito, dando cumprimento à promessa feita a Abraão e depois constantemente recordada pelos profetas. Estes, falavam em nome e em lugar de Deus. A economia do Antigo Testamento, de facto, está essencialmente ordenada à preparação e ao anúncio da vinda de Cristo, Redentor do universo, e do seu Reino messiânico. Assim, os livros da Antiga Aliança são testemunhas permanentes de uma solícita pedagogia divina.8 Em Cristo, esta pedagogia atinge a sua meta: efectivamente, Ele não Se limita a falar " em nome de Deus " como os profetas, mas é o próprio Deus que fala no seu Verbo eterno feito carne. Tocamos, aqui, o ponto essencial onde o cristianismo se diferencia das outras religiões, nas quais se foi exprimindo, desde o início, a busca de Deus por parte do homem. No cristianismo, o ponto de partida está na Encarnação do Verbo. Aqui, não é apenas o homem a procurar Deus, mas é Deus que vem em pessoa falar de Si ao homem e mostrar-lhe o caminho, por onde é possível atingi-l'O. Isto mesmo proclama o prólogo do Evangelho de João: " Ninguém jamais viu a Deus: o Filho único que está no seio do Pai é que O deu a conhecer " (1, 18). O Verbo Encarnado é, por conseguinte, o cumprimento do anélito presente em todas as religiões da humanidade: este cumprimento é obra de Deus e ultrapassa toda a expectativa humana. É mistério de graça.

Em Cristo, a religião deixa de ser um " procurar Deus como que às apalpadelas " (cf. Act 17, 27), para se tornar resposta de fé a Deus que Se revela: resposta na qual o homem fala a Deus como seu Criador e Pai; resposta feita possível por aquele Homem único, que ao mesmo tempo é o Verbo consubstancial ao Pai, no qual Deus fala a cada homem, e cada homem se torna capaz de responder a Deus. Mais ainda, nesse Homem responde a Deus a criação inteira. Jesus Cristo é o novo início de tudo: tudo n'Ele se reencontra, é acolhido e reconduzido ao Criador de Quem teve origem. Deste modo, Cristo é o cumprimento do anélito de todas as religiões do mundo, constituindo por isso mesmo o seu único e definitivo ponto de chegada. Se por um lado Deus em Cristo fala de Si à humanidade, por outro, no mesmo Cristo, a humanidade inteira e toda a criação falam de si a Deus - melhor, dão-se a Deus. Assim, tudo volta ao seu princípio. Simultaneamente Jesus Cristo é a recapitulação (cf. Ef 1, 10) e o cumprimento de todas as coisas em Deus: cumprimento que é glória de Deus. A religião, que se funda em Jesus Cristo, é religião da glória, é um existir em novidade de vida para louvor da glória de Deus (cf. Ef 1, 12). Na realidade, toda a criação é manifestação da sua glória; de modo particular, o homem (vivens homo) é epifania da glória de Deus, chamado a viver da plenitude da vida em Deus.

7. Em Jesus Cristo, Deus não só fala ao homem, mas procura-o. A Encarnação do Filho de Deus testemunha que Deus procura o homem. Jesus fala desta busca como sendo a recuperação de uma ovelha tresmalhada (cf. Lc 15, 1-7). É uma busca que nasce no íntimo de Deus e tem o seu ponto culminante na Encarnação do Verbo. Se Deus vai à procura do homem, criado à sua imagem e semelhança, fá-lo porque o ama eternamente no Verbo, e em Cristo quer elevá-lo à dignidade de filho adoptivo. Portanto, Deus procura o homem, que é sua particular propriedade, de um maneira diversa de como o é qualquer outra criatura. Aquele é propriedade de Deus na base de uma opção de amor: Deus procura o homem, impelido pelo seu coração de Pai.

Por que é que o busca? Porque o homem se afastou d'Ele, escondendo-se como Adão entre as árvores do paraíso terreal (cf. Gn 3, 8-10). O homem deixou-se transviar pelo inimigo de Deus (cf. Gn 3, 13). Satanás enganou-o, persuadindo-o de que ele próprio era deus, e de que, como Deus, podia conhecer o bem e o mal, governando o mundo a seu livre arbítrio, sem obrigação de ter em conta a vontade divina (cf. Gn 3, 5). Ao procurar o homem por intermédio do Filho, Deus quer induzi-lo a abandonar os caminhos do mal, onde tende a sumir-se cada vez mais. " Fazê-lo abandonar " tais caminhos, significa fazer-lhe compreender que está seguindo por sendas erradas; significa derrotar o mal disseminado na história humana. Derrotar o mal: eis a Redenção. Esta realiza-se no sacrifício de Cristo, pelo qual o homem resgata a dívida do pecado e fica reconciliado com Deus. O Filho de Deus fez-Se homem, assumindo um corpo e uma alma no seio da Virgem Maria para isto mesmo: para fazer de Si o sacrifício redentor perfeito. A religião da Encarnação é a religião da Redenção do mundo através do sacrifício de Cristo, no qual está contida a vitória sobre o mal, sobre o pecado e sobre a própria morte. Cristo, aceitando a morte na cruz, contemporaneamente manifesta e dá a vida, porque ressuscita e a morte fica sem qualquer poder sobre Ele.

8. A religião, que tem origem no mistério da Encarnação redentora, é a religião caracterizada pelo " permanecer no íntimo de Deus ", pelo participar na sua própria vida. Afirma-o S. Paulo na passagem citada ao início: " Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho que clama: "Abba, Pai"! " (Gal 4, 6). O homem levanta a sua voz à semelhança de Cristo, que " com grande clamor e lágrimas " (Heb 5, 7) se dirigia a Deus, especialmente no Getsémani e na cruz: o homem clama por Deus como clamou Cristo, testemunhando assim que participa da sua filiação por obra do Espírito Santo. O Espírito Santo, que o Pai enviou no nome do Filho, faz com que o homem participe na vida íntima de Deus. Faz com que o homem seja também filho à semelhança de Cristo, e herdeiro daqueles bens que constituem a parte do Filho (cf. Gal 4, 7). Tal é a religião do " permanecer na vida íntima de Deus ", que tem início na Encarnação do Filho de Deus. O Espírito Santo, que perscruta as profundezas de Deus (cf. 1 Cor 2, 10), introduz-nos a nós, homens, nessas profundezas em virtude do sacrifício de Cristo.


II - O JUBILEU DO ANO 2000


9. Falando do nascimento do Filho de Deus, S. Paulo situa-o na " plenitude do tempo " (cf. Gal 4, 4). Na verdade, o tempo cumpriu-se pelo próprio facto de Deus Se ter entranhado na história do homem, com a Encarnação. A eternidade entrou no tempo: poderia haver " cumprimento " maior que este? Que outro " cumprimento " seria possível? Alguém pensou em determinadosciclos cósmicos arcanos, nos quais a história do universo, e particularmente a do homem, se repetiria constantemente. O homem levanta-se da terra e à terra retorna (cf. Gn 3, 19): eis o dado de evidência imediata. Mas no homem há uma irreprimível aspiração de viver para sempre. Como pensar numa sua sobrevivência para além da morte? Alguns imaginaram várias formas de reencarnação: consoante o modo como tivesse vivido durante a existência anterior, assim se acharia a experimentar uma nova existência mais nobre ou mais humilde, até atingir a plena purificação. Muito radicada nalgumas religiões orientais, esta crença indica, entre outras coisas, que o homem não entende resignar-se à irrevocabilidade da morte. Está convencido da própria natureza essencialmente espiritual e imortal.

A revelação cristã exclui a reencarnação e fala de um cumprimento que o homem é chamado a realizar no curso de uma única existência sobre a terra. Este cumprimento do seu próprio destino, o homem alcança-o no dom sincero de si, um dom que só se torna possível no encontro com Deus. É em Deus, pois, que o homem encontra a plena realização de si: esta é a verdade revelada por Cristo. O homem cumpre-se a si mesmo em Deus, que veio ao seu encontro mediante o eterno Filho. Graças à vinda de Deus à terra, o tempo humano, iniciado na criação, atingiu a sua plenitude. " A plenitude do tempo ", de facto, é simplesmente a eternidade - melhor, Aquele que é eterno, isto é, Deus. Entrar na " plenitude do tempo " significa, pois, atingir o termo do tempo e sair dos seus confins para encontrar o seu cumprimento na eternidade de Deus.

10. No cristianismo, o tempo tem uma importância fundamental. Dentro da sua dimensão, foi criado o mundo, no seu âmbito se desenrola a história da salvação, que tem o seu ponto culminante na " plenitude do tempo " da Encarnação e a sua meta no regresso glorioso do Filho de Deus no fim dos tempos. Em Jesus Cristo, Verbo encarnado, o tempo torna-se uma dimensão de Deus, que em Si mesmo é eterno. Com a vinda de Cristo, principiam os " últimos tempos " (cf. Heb 1, 2), a " última hora " (cf. 1 Jo 2, 18), inicia o tempo da Igreja que durará até à Parusia.

Desta relação de Deus com o tempo, nasce o dever de o santificar. Tal se verifica, por exemplo, quando se dedicam a Deus tempos específicos, dias ou semanas, como já sucedia na religião da Antiga Aliança, e acontece ainda, embora de modo novo, no cristianismo. Na liturgia da Vigília Pascal, o celebrante, quando abençoa o círio que simboliza Cristo ressuscitado, proclama: " Cristo, ontem e hoje, Princípio e Fim, Alfa e Ómega. A Ele pertence o tempo e a eternidade. A Ele a glória e o poder para sempre ". Pronuncia estas palavras, enquanto grava no círio os algarismos do ano em curso. O significado do rito é claro: põe em evidência que Cristo é o Senhor do tempo; é o seu princípio e o seu cumprimento; cada ano, cada dia e cada momento ficam abraçados pela sua Encarnação e Ressurreição, reencontrando-se assim na " plenitude do tempo ". Por isso, também a Igreja vive e celebra a liturgia no espaço do ano. O ano solar fica assim permeado pelo ano litúrgico, que, em certo sentido, reproduz todo o mistério da Encarnação e da Redenção, começando do primeiro domingo do Advento para terminar na solenidade de Cristo Rei, Senhor do universo e da história. Cada domingo recorda o dia da ressurreição do Senhor.

11. Neste contexto, torna-se compreensível o costume dos jubileus, que tem início no Antigo Testamento e reencontra a sua continuação na história da Igreja. Um dia Jesus de Nazaré, tendo ido à sinagoga da sua Cidade, levantou-Se para ler (cf. Lc 4, 16-30). Foi-Lhe entregue o livro do profeta Isaías, onde leu o seguinte trecho: " O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-Me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, o recobrar da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano de graça do Senhor " (61, 1-2).

O Profeta falava do Messias. " Cumpriu-se hoje - acrescentou Jesus - esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir " (Lc 4, 21), fazendo compreender que Ele próprio era o Messias anunciado pelo Profeta, e que n'Ele tinha início o " tempo " tão esperado: tinha chegado o dia da salvação, a " plenitude do tempo ". Todos os jubileus se referem a este " tempo " e dizem respeito à missão messiânica de Cristo, que veio como " consagrado com a unção do Espírito Santo ", como " enviado pelo Pai ". É Ele que anuncia a Boa Nova aos pobres. É Ele que leva a liberdade àqueles que dela estão privados, que liberta os oprimidos, que restitui a vista aos cegos (cf. Mt 11, 4-5; Lc 7, 22). Deste modo, Ele realiza " um ano de graça do Senhor ", que anuncia não só com a palavra, mas sobretudo com as suas obras. Jubileu, ou seja, " um ano de graça do Senhor " é a característica da actividade de Jesus, e não apenas a definição cronológica de uma certa ocorrência.

12. As palavras e as obras de Jesus constituem assim o cumprimento de toda a tradição dos jubileus do Antigo Testamento. É sabido que o jubileu era um tempo dedicado de modo particular a Deus. Tinha lugar de sete em sete anos, segundo a Lei de Moisés: o sétimo era o " ano sabático ", durante o qual se deixava repousar a terra e eram libertados os escravos. A obrigação da libertação dos escravos era regulada por detalhadas prescrições, contidas nos livros do Êxodo (23, 10-11), do Levítico (25, 1-28), e do Deuteronómio (15, 1-6), isto é, praticamente em toda a legislação bíblica, que adquire assim essa peculiar dimensão. No ano sabático, além da libertação dos escravos, a Lei previa o perdão de todas as dívidas, segundo precisas prescrições. E tudo isto devia ser feito em honra de Deus. Tudo quanto dizia respeito ao ano sabático, valia também para o " jubilar ", que ocorria no quinquagésimo ano. No ano jubilar, porém, os usos do ano sabático eram ampliados e celebrados ainda mais solenemente. Lê-se no Levítico: " Santificareis o quinquagésimo ano, proclamando no país a liberdade de todos os que o habitam. Este ano será para vós jubileu, cada um de vós recobrará a sua propriedade e voltará para a sua família " (25, 10). Uma das consequências mais significativas do ano jubilar era a geral " emancipação " de todos os habitantes carecidos de libertação. Nessa ocasião, todo o israelita voltava à posse da terra de seus pais, se eventualmente a tivesse vendido ou perdido, caindo na escravidão. Não se podia ser privado da terra de modo definitivo, porque esta pertencia a Deus, nem os israelitas podiam ficar para sempre numa situação de escravatura, já que Deus os tinha " resgatado " para Si como propriedade exclusiva, libertando-os da escravidão do Egipto.

13. Mesmo se os preceitos do ano jubilar permaneceram, em grande parte, uma meta ideal - mais uma esperança que uma realização concreta, tornando-se ainda uma prophetia futuri enquanto prenúncio da verdadeira libertação a ser operada pelo Messias que havia de vir - todavia, com base na normativa jurídica neles contida, foi- -se delineando uma certa doutrina social, que se desenvolveu mais claramente depois a partir do Novo Testamento. O ano jubilar devia restabelecer a igualdade entre todos os filhos de Israel, abrindo novas possibilidades às famílias que tinham perdido as suas propriedades, ou até mesmo a liberdade pessoal. Aos ricos, pelo contrário, o ano jubilar recordava que chegaria o tempo em que os escravos israelitas, tornando-se novamente iguais a eles, haveriam de poder reivindicar os seus direitos. Devia-se proclamar, no tempo previsto pela Lei, um ano jubilar, vindo em socorro de cada necessitado. Isto exigia um governo justo. A justiça, segundo a Lei de Israel, consistia sobretudo na protecção dos fracos, e nisto se devia distinguir um rei, como afirma o Salmista: " Ele liberta o pobre que o invoca, e o indigente sem ajuda. Tem compaixão do humilde e do pobre, e salva a vida dos necessitados " (Sal 7172, 12-13). As premissas de semelhante tradição eram estritamente teológicas, ligadas, antes de mais, à teologia da criação e da divina Providência. Na verdade, era convicção comum que só a Deus como Criador competia o " dominium altum ", isto é, a soberania sobre todo o criado, e de modo particular sobre a terra (cf. Lv 25, 23). Se Deus, em sua providência, tinha entregue a terra aos homens, isso queria significar que a tinha dado a todos. Por isso, as riquezas da criação haviam de ser consideradas como um bem comum da humanidade inteira. Quem possuia estes bens como sua propriedade, era na verdade apenas seu administrador, isto é, um ministro obrigado a operar em nome de Deus, o único proprietário em sentido pleno, sendo vontade de Deus que os bens criados servissem equitativamente a todos. O ano jubilar devia servir precisamente também para o restabelecimento desta justiça social. Deste modo, na tradição do ano jubilar, encontra uma das suas raízes a doutrina social da Igreja, que sempre teve seu lugar no ensinamento eclesial e se desenvolveu particularmente no último século, sobretudo a partir da Encíclica Rerum novarum.

14. Convém, todavia, sublinhar aquilo que Isaías exprime com as palavras: " pregar um ano de graça do Senhor ". Para a Igreja, o jubileu é exactamente este " ano de graça ", ano de remissão dos pecados e das penas pelos pecados, ano de reconciliação entre os desavindos, ano de múltiplas conversões e de penitência sacramental e extra-sacramental. A tradição dos anos jubilares está ligada à concessão de indulgências, de modo mais amplo que nos outros períodos. A par dos jubileus que recordam o mistério da Encarnação, ao completarem-se cem, cinquenta e vinte cinco anos do mesmo, há depois aqueles que comemoram o evento da Redenção: a cruz de Cristo, a sua morte no Gólgota e a sua ressurreição. A Igreja, nestas circunstâncias, proclama " um ano de graça do Senhor ", esforçando-se por que todos os fiéis possam usufruir mais amplamente de tal graça. Eis por que os jubileus são celebrados não apenas " in Urbe ", mas também " extra Urbem ": tradicionalmente isto verificava-se no ano sucessivo ao da celebração " in Urbe ".

15. Na vida de cada pessoa, os jubileus habitualmente estão ligados à data de nascimento, mas celebram-se também os aniversários do Baptismo, da Confirmação, da Primeira Comunhão, da Ordenação Sacerdotal ou Episcopal, do sacramento do Matrimónio. Alguns destes aniversários encontram eco também no âmbito civil, mas os cristãos sempre lhes atribuem um carácter religioso. De facto, na perspectiva cristã, cada jubileu - seja o 25o aniversário de sacerdócio ou de matrimónio designado " de prata ", seja o 50o dito " de ouro ", seja ainda o 60o chamado " de diamante " - constitui um particular ano de graça para o indivíduo que recebeu um dos sacramentos elencados. Aquilo que dissemos dos jubileus pessoais pode ser também aplicado às comunidades ou instituições. É assim que se celebra o centenário ou o milénio da fundação de uma cidade ou de um município. No âmbito eclesial, festejam-se os jubileus das paróquias e das dioceses. Todos estes jubileus pessoais ou comunitários revestem na vida dos indivíduos e das comunidades um papel importante e significativo.

Neste contexto, os dois mil anos do nascimento de Cristo (prescindindo da exactidão do cômputo cronológico) representam um Jubileu extraordinariamente grande não somente para os cristãos, mas indirectamente para a humanidade inteira, dado o papel de primeiro plano que o cristianismo exerceu nestes dois milénios. Significativamente a contagem da sucessão dos anos é feita, quase em todo o lado, a partir da vinda de Cristo ao mundo, a qual se torna assim o centro do calendário hoje mais utilizado. Não será este, porventura, também um sinal do incomparável contributo prestado à história universal pelo nascimento de Jesus de Nazaré?

16. O termo " jubileu " indica júbilo, alegria; não apenas júbilo interior, mas alegria que se manifesta exteriormente, já que a vinda de Deus é um acontecimento também exterior, visível, audível, palpável, como recorda S. João (cf. 1 Jo 1, 1). É justo, por conseguinte, que toda a demonstração de alegria por essa vinda tenha a sua manifestação exterior. Esta serve para indicar que a Igreja rejubila pela salvação. Convida todos à alegria, esforçando-se por criar as condições necessárias a fim de que a força salvadora possa ser comunicada a cada um. O ano 2000 marcará, por isso, a data do Grande Jubileu.

Quanto ao conteúdo, este Grande Jubileu será, em determinado sentido, igual a qualquer outro. Mas será, ao mesmo tempo, diverso e maior do que outro qualquer. Realmente a Igreja respeita as medidas do tempo: horas, dias, anos, séculos. Sob este aspecto, ela caminha a par e passo com cada homem, tornando-o consciente de quanto cada uma dessas medidas esteja permeada da presença de Deus e da sua acção salvífica. Neste espírito, a Igreja rejubila, dá graças, pede perdão, elevando súplicas ao Senhor da história e das consciências humanas.

Entre as súplicas mais ardentes desta hora excepcional que é o aproximar-se do novo Milénio, a Igreja implora do Senhor que cresça a unidade entre todos os cristãos das diversas Confissões até à obtenção da plena comunhão. Faço votos de que o Jubileu seja a ocasião propícia para uma frutuosa colaboração visando colocar em comum as muitas coisas que nos unem, e que são seguramente mais do que aquelas que nos dividem. Muito ajudaria nesta perspectiva se, no respeito dos programas das diversas Igrejas e Comunidades, se alcançassem acordos ecuménicos na preparação e celebração do Jubileu: este ganharia assim mais força ainda, testemunhando ao mundo a decidida vontade de todos os discípulos de Cristo de conseguirem o mais rapidamente possível a plena unidade, na certeza de que " a Deus nada é impossível ".


III - A PREPARAÇÃO DO GRANDE JUBILEU


17. Cada jubileu é preparado na história da Igreja pela divina Providência. Isto vale também para o Grande Jubileu do ano 2000. Convictos disso, olhamos hoje, com sentido de gratidão e de não menor responsabilidade, para tudo quanto sucedeu na história da humanidade desde o nascimento de Cristo, e sobretudo para os acontecimentos verificados do ano 1000 ao 2000. Mas, de modo muito particular, debruçamo-nos com um olhar de fé sobre este nosso século, procurando nele o que possa servir de testemunho não só da história do homem, mas também da intervenção divina nas vicissitudes humanas.

18. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que o Concílio Vaticano II constitui um acontecimento providencial, através do qual a Igreja iniciou a preparação próxima para o Jubileu do segundo milénio. Trata-se, realmente, de um Concílio semelhante aos anteriores, e todavia tão diverso; um Concílio concentrado sobre o mistério de Cristo e da sua Igreja e simultaneamente aberto ao mundo. Esta abertura constituiu a resposta evangélica à recente evolução do mundo com as tumultuosas experiências do século XX, atribulado pela primeira e segunda guerra mundial, pela experiência dos campos de concentração e por massacres horrendos. O sucedido mostra que o mundo tem, mais que nunca, necessidade de purificação; precisa de conversão.

Pensa-se frequentemente que o Concílio Vaticano II marque uma época nova na vida da Igreja. Isto é verdade, mas ao mesmo tempo é difícil não notar como a Assembleia conciliar muito auferiu das experiências e das reflexões do período precedente, especialmente do património do pensamento de Pio XII. Na história da Igreja, " o velho " e " o novo " aparecem sempre entrelaçados entre si. O " novo " cresce do " velho ", o " velho " encontra no " novo " uma explicitação mais plena. Assim aconteceu com o Concílio Vaticano II e com a actividade dos Pontífices ligados à Assembleia conciliar, a começar de João XXIII, prosseguindo com Paulo VI e João Paulo I, até ao Papa actual.

Aquilo que, durante e depois do Concílio, foi realizado por eles - tanto o magistério como a acção de cada um - prestou, por certo, um contributo significativo à preparação daquela nova primavera de vida cristã que deverá ser revelada pelo Grande Jubileu, se os cristãos forem dóceis à acção do Espírito Santo.

19. Apesar do Concílio não ter assumido os tons severos de João Baptista, quando nas margens do Jordão exortava à penitência e à conversão (cf. Lc 3, 1-17), contudo algo do antigo Profeta nele se manifestou, ao apontar, com novo vigor, aos homens de hoje, Cristo, " o Cordeiro de Deus, Aquele que tira o pecado do mundo " (cf. Jo 1, 29), o Redentor do homem, o Senhor da história. Na Assembleia conciliar, a Igreja, para ser plenamente fiel ao seu Mestre, interrogou-se sobre a própria identidade, redescobrindo a profundidade do seu mistério de Corpo e Esposa de Cristo. Pondo-se docilmente à escuta da Palavra de Deus, reafirmou a vocação universal à santidade; proveu à reforma da liturgia, " fonte e cume " da sua vida; deu impulso ao renovamento de tantos aspectos da sua existência quer a nível universal quer nas Igrejas locais; comprometeu-se na promoção das várias vocações cristãs, desde a dos leigos à dos religiosos, desde o ministério dos diáconos ao dos sacerdotes e dos Bispos; redescobriu, em particular, a colegialidade episcopal, expressão privilegiada do serviço pastoral desempenhado pelos Bispos em comunhão com o Sucessor de Pedro. Na base desta profunda renovação, o Concílio abriu-se aos cristãos de outras Confissões, aos crentes de outras religiões, a todos os homens do nosso tempo. Em nenhum outro Concílio, se falou tão claramente da unidade dos cristãos, do diálogo com as religiões não cristãs, do significado específico da Antiga Aliança e de Israel, da dignidade da consciência pessoal, do princípio da liberdade religiosa, das diversas tradições culturais no seio das quais a Igreja realiza o próprio mandato missionário, dos meios de comunicação social.

20. Uma enorme riqueza de conteúdos e um novo tom - antes desconhecido - na apresentação conciliar dos mesmos, constituem como que um anúncio de tempos novos. Os Padres conciliares falaram com a linguagem do Evangelho, com a linguagem do Discurso da Montanha e das Bem-aventuranças. Na mensagem conciliar, Deus é apresentado na sua soberania absoluta sobre todas as coisas, mas também como garante da autêntica autonomia das realidades temporais.

Por conseguinte, a melhor preparação para a passagem bimilenária não poderá exprimir-se senão pelo renovado empenho na aplicação, fiel quanto possível, do ensinamento do Vaticano II à vida de cada um e da Igreja inteira. Com o Concílio, como que se inaugurou a preparação imediata para o Grande Jubileu do 2000, no sentido mais amplo da palavra. Se procurássemos qualquer coisa de análogo na liturgia, poder-se-ia dizer que a anualliturgia do Advento é o tempo mais próximo do espírito do Concílio. O Advento prepara-nos, de facto, para o encontro com Aquele que era, que é, e que continuamente vem (cf. Ap 4, 8).

21. No caminho de preparação para a ocorrência do 2000, entra a série de Sínodos, iniciada depois do Concílio Vaticano II: Sínodos gerais e Sínodos continentais, regionais, nacionais e diocesanos. O tema de fundo é o da evangelização, ou melhor, da nova evangelização, cujas bases foram colocadas pela Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi de Paulo VI, publicada em 1975, depois da terceira Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos. Os Sínodos constituem, já de per si, parte da nova evangelização: nascem da visão do Concílio Vaticano II sobre a Igreja; abrem um amplo espaço à participação dos leigos, de quem definem a específica responsabilidade na Igreja; são expressão da força que Cristo deu a todo o Povo de Deus, fazendo-o participante da sua própria missão messiânica - missão profética, sacerdotal e real. Muito eloquentes são a este respeito, as afirmações do segundo capítulo da Constituição dogmática Lumen gentium. A preparação para o Jubileu do ano 2000 concretiza-se assim, a nível universal e local, em toda a Igreja, animada por uma consciência nova da missão salvadora recebida de Cristo. Esta consciência manifesta-se com significativa evidência nas Exortações pós-sinodais dedicadas à missão dos leigos, à formação dos sacerdotes, à catequese, à família, ao valor da penitência e da reconciliação na vida da Igreja e da humanidade e, proximamente, à vida consagrada.

22. Específicas tarefas e responsabilidades com vista ao Grande Jubileu do ano 2000, competem ao ministério do Bispo de Roma. E nessa perspectiva, de algum modo actuaram todos os Pontífices do século que está para terminar. Com o seu lema " recapitular tudo em Cristo ", S. Pio X procurou prevenir as trágicas consequências que a situação internacional do início do século ia maturando. A Igreja estava ciente de dever actuar com decisão para favorecer e defender bens tão fundamentais como os da paz e da justiça, perante a contraposição de tendências no mundo contemporâneo. Em tal sentido e com grande empenho, se moveram os Pontífices do período pre-conciliar, cada qual do seu prisma particular: Bento XV encontrou-se perante a tragédia da primeira guerra mundial, Pio XI teve de medir-se com as ameaças dos sistemas totalitários ou desrespeitadores da liberdade humana na Alemanha, na Rússia, em Itália, em Espanha e, antes ainda, no México. Pio XII interveio no âmbito da gravíssima injustiça representada pelo desprezo total da dignidade humana, que se verificou durante a segunda guerra mundial. Deu luminosas orientações também para o nascimento de uma nova ordem mundial após a queda dos sistemas políticos anteriores.

Além disso, no decorrer do século e seguindo as pegadas de Leão XIII, os Papas retomaram sistematicamente os temas da doutrina social católica, tratando das características de um sistema justo no campo das relações entre trabalho e capital. Basta pensar na Encíclica Quadragesimo anno de Pio XI, nas numerosas intervenções de Pio XII, na Mater et Magistra e na Pacem in terris de João XXIII, na Populorum progressio e na Carta apostólica Octogesima adveniens de Paulo VI. Sobre o argumento, voltei repetidas vezes eu próprio, dedicando a Encíclica Laborem exercens de modo específico à importância do trabalho humano, enquanto na Centesimus annus quis reafirmar, passados cem anos, a validade da doutrina da Rerum novarum. Já antes, com a Encíclica Sollicitudo rei socialis, tinha apresentado de modo sistemático e global a doutrina social da Igreja, tendo como pano de fundo o confronto entre os dois blocos - Leste-Oeste - e o perigo de uma guerra nuclear. Os dois elementos da doutrina social da Igreja - a tutela da dignidade e dos direitos da pessoa no âmbito de uma justa relação entre trabalho e capital, e a promoção da paz - encontraram-se neste Documento, fundindo-se um no outro. À causa da paz, querem ainda servir as Mensagens pontifícias anuais do 1o de Janeiro, publicadas a partir de 1968, sob o pontificado de Paulo VI.

23. Desde o seu primeiro documento que o actual pontificado fala explicitamente do Grande Jubileu, convidando a viver o período de espera como " um novo advento ".9 Ao mesmo tema se voltou outras vezes depois, detendo-se nele amplamente a Encíclica Dominum et vivificantem.10 De facto, a preparação do ano 2000 torna-se quase sua chave hermenêutica. Sem dúvida, não se pretende induzir a um novo milenarismo, como fez alguém no final do primeiro milénio; pelo contrário, quer-se suscitar uma particular sensibilidade por tudo quanto o Espírito diz à Igreja e às Igrejas (cf. Ap 2, 7ss), como também aos indivíduos através dos carismas ao serviço da comunidade inteira. Deseja-se, assim, sublinhar aquilo que o Espírito sugere às várias comunidades, desde as mais pequenas como a família, até às maiores como as nações e as organizações internacionais, sem transcurar as culturas, as civilizações e as sãs tradições. A humanidade, não obstante as aparências, continua a esperar a revelação dos filhos de Deus e vive de tal esperança como na aflição dum parto, segundo a expressiva imagem utilizada por S. Paulo na Carta aos Romanos (cf. 8, 19-22).

24. As peregrinações do Papa tornaram-se um elemento importante no empenhamento pela realização do Concílio Vaticano II. Iniciadas por João XXIII, quando estava já iminente a inauguração do Concílio, com uma significativa peregrinação a Loreto e a Assis (1962), tiveram grande incremento com Paulo VI, o qual, depois de se ter deslocado em primeiro lugar à Terra Santa (1964), cumpriu mais nove grandes viagens apostólicas que o levaram ao contacto directo com as populações dos vários continentes.

O pontificado actual aumentou ainda mais tal programa, começando do México por ocasião da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Puebla no ano 1979. Em seguida e naquele mesmo ano, deu-se a peregrinação à Polónia durante o jubileu do IX centenário da morte de Santo Estanislau, bispo e mártir.

As sucessivas etapas deste peregrinar são conhecidas. As peregrinações tornaram-se sistemáticas, atingindo as Igrejas particulares em todos os continentes, com uma atenta solicitude pelo progresso das relações ecuménicas com os cristãos das diversas confissões. Sob este último perfil, revestem-se de um relevo particular as visitas à Turquia (1979), Alemanha (1980), Inglaterra com as regiões de Gales e Escócia (1982), Suíça (1984), Países Escandinavos (1989), e, ultimamente, aos Países Bálticos (1993).

Entre as metas de peregrinação vivamente desejadas no momento presente, conta-se, além de Sarajevo na Bósnia-Herzegovina, o Médio Oriente: o Líbano, Jerusalém e a Terra Santa. Seria muito expressivo se, por ocasião do Ano 2000, fosse possível visitar todos aqueles lugares que se encontram no caminho seguido pelo Povo de Deus da Antiga Aliança, a partir dos lugares de Abraão e de Moisés, passando pelo Egipto e o Monte Sinai, até Damasco, cidade que foi testemunha da conversão de S. Paulo.

25. Na preparação do ano 2000, têm um papel próprio a desempenhar as diversas Igrejas locais, que, com os seus jubileus, celebram etapas significativas na história da salvação dos vários povos. Entre esses jubileus locais ou regionais, constituíram eventos de suma grandeza o milénio do Baptismo da Rússia em 1988,11 com também os quinhentos anos do início da evangelização no continente americano (1492). Ao lado de acontecimentos de tão vasta incidência, sem chegarem todavia a ter alcance universal, há que recordar outros não menos significativos: por exemplo, o milénio do Baptismo da Polónia em 1966 e do Baptismo da Hungria em 1968, e ainda os 600 anos do Baptismo da Lituânia em 1987. Além disso, ocorrerão proximamente os 1500 anos do Baptismo de Clóvis, rei dos Francos (496), e os 1400 anos da chegada de Santo Agostinho a Cantuária (597), início da evangelização do mundo anglo-saxónico.

No que respeita à Ásia, o Jubileu trazerá ao pensamento o apóstolo Tomé, que já ao início da era cristã, segundo a tradição, levou o anúncio evangélico à Índia, onde depois, por volta do ano 1500, chegariam de Portugal os missionários. Ocorre este ano o VII centenário da evangelização da China (1294), e preparamo-nos para comemorar a difusão da obra missionária nas Filipinas com a constituição da sede metropolita de Manila (1595), bem como o IV centenário dos primeiros mártires no Japão (1597).

Em África, onde também o primeiro anúncio remonta à época apostólica, juntamente com os 1650 anos da consagração episcopal do primeiro Bispo dos Etíopes, S. Frumêncio (c. 340), e os quinhentos anos do início da evangelização de Angola no antigo Reino do Congo (1491), nações como os Camarões, a Costa do Marfim, a República Centro Africana, o Burundi, o Burkina-Fasso estão a celebrar os respectivos centenários da chegada dos primeiros missionários aos seus territórios. Outras nações africanas celebraram-no há pouco.

Como não mencionar ainda as Igrejas do Oriente, cujos antigos Patriarcas se apelam, tão de perto, à herança apostólica e cujas venerandas tradições teológicas, litúrgicas e espirituais constituem uma enorme riqueza, que é património comum de toda a cristandade? As múltiplas ocorrências jubilares destas Igrejas e das Comunidades, que nelas reconhecem a origem da sua apostolicidade, evocam o caminho de Cristo ao longo dos séculos e desembocam elas também no grande Jubileu do fim do segundo milénio.

Vista sob esta luz, toda a história cristã nos aparece como um único rio, onde muitos afluentes lançam as suas águas. O Ano 2000 convida a encontrarmo-nos, com renovada fidelidade e mais profunda comunhão, sobre as margens deste grande rio: o rio da Revelação, do Cristianismo e da Igreja, que corre através da história da humanidade a partir do sucedido em Nazaré e depois em Belém, há dois mil anos. É verdadeiramente aquele " rio " que com os seus " braços ", segundo a expressão do Salmo, " alegra a cidade de Deus " (4546, 5).

26. Na perspectiva da preparação do ano 2000, situam-se também os Anos Santos do último quartel deste século. Ainda vivo na memória está o Ano Santo que o Papa Paulo VI proclamou em 1975; na mesma linha, foi celebrado sucessivamente o ano 1983 como Ano da Redenção. Eco talvez ainda maior teve o Ano Mariano de 198788, muito ansiado e profundamente vivido nas diversas Igrejas locais, especialmente nos santuários marianos do mundo inteiro. A Encíclica Redemptoris mater, então publicada, pôs em evidência o ensinamento conciliar sobre a presença da Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja: há dois mil anos, o Filho de Deus fez-se homem por obra do Espírito Santo e nasceu da Imaculada Virgem Maria. O Ano Mariano foi quase um antecipação do Jubileu, contendo em si muito de quanto se deverá exprimir plenamente no ano 2000.

27. Torna-se difícil não assinalar que o Ano Mariano antecedeu de perto os acontecimentos de 1989. São fenómenos que não podem deixar de surpreender pela sua vastidão e, especialmente, pela sua rápida evolução. Os anos oitenta foram- -se sobrecarregando de um perigo crescente no contexto da " guerra fria "; ora, o ano 1989 trouxe consigo uma solução pacífica, que teve quase a forma de um desenvolvimento " orgânico ". À sua luz, é-se levado a reconhecer um significado mesmo profético à Encíclica Rerum novarum: aquilo que o Papa Leão XIII ali escreve sobre o tema do comunismo, encontra naqueles acontecimentos uma precisa confirmação, como sublinhei na Encíclica Centesimus annus.12 De resto, era possível vislumbrar como, na trama de tudo o sucedido, estava em acção a mão invisível da Providência, com cuidado maternal: " Esquece-se porventura uma mulher do seu menino...? " (Is 49, 15).

Porém, depois de 1989 levantaram-se novos perigos e novas ameaças. Nos países do ex-bloco de Leste, após a queda do comunismo, apareceu o grave risco dos nacionalismos, como infelizmente mostram as vicissitudes da região Balcánica e de outras áreas vizinhas. Isto obriga as nações europeias a um sérioexame de consciência, com o reconhecimento de culpas e erros historicamente cometidos, no campo económico e político, no confronto de nações cujos direitos foram sistematicamente violados pelos imperialismos tanto do século passado como do actual.

28. Actualmente estamos a viver, no rasto do Ano Mariano e com idêntica perspectiva, o Ano da Família, cujo conteúdo está estritamente ligado ao mistério da Encarnação e à própria história do homem. Pode-se, pois, acalentar a esperança de que o Ano da Família, inaugurado em Nazaré, se torne, como o Ano Mariano, uma posterior etapa significativa na preparação para o Grande Jubileu.

Nesta perspectiva, dirigi uma Carta às Famílias, onde quis repropor a substância do ensinamento eclesial sobre a família, levando-o, por assim dizer, até ao seio de cada lar doméstico. No Concílio Vaticano II, a Igreja reconheceu como uma das suas tarefas a valorização da dignidade do matrimónio e da família.13 O Ano da Família pretende contribuir para a actuação do Concílio nesta dimensão. Por isso, é necessário que a preparação para o Grande Jubileu passe, em certo sentido, através de cada família. Não foi porventura através de uma família, a de Nazaré, que o Filho de Deus quis entrar na história do homem?


IV - A PREPARAÇÃO IMEDIATA


29. Tendo como pano de fundo este vasto panorama, surge a pergunta: pode-se hipotizar um programa específico de iniciativas para a preparação imediata do Grande Jubileu? A verdade é que quanto atrás ficou dito já apresenta alguns elementos de tal programa.

Uma previsão mais detalhada de iniciativas " ad hoc " para não ser artificial nem de difícil aplicação em cada uma das Igrejas, que vivem em condições tão diversificadas, deve resultar de uma consulta alargada. Consciente disto, quis interpelar a tal propósito os Presidentes das Conferências Episcopais e, de modo particular, os Cardeais.

O meu reconhecimento vai para os Venerados Membros do Colégio Cardinalício que, reunidos em Consistório Extraordinário a 13 e 14 de Junho de 1994, elaboraram numerosas propostas para o efeito e indicaram úteis orientações. Agradeço igualmente aos Irmãos no Episcopado, que não deixaram de fazer-me chegar, de vários modos, preciosas sugestões, que tive bem presente ao elaborar esta minha Carta Apostólica.

30. Uma primeira indicação, bem saliente na consultação, diz respeito aos tempos da preparação. Para o ano 2000, já poucos anos faltam: pareceu oportuno articular este período em duas fases, reservando a fase propriamente preparatória aos últimos três anos. Pensou-se, de facto, que um período mais longo teria acabado por acumular excessivos conteúdos, atenuando a tensão espiritual.

Julgou-se, por isso, conveniente aproximar-se da histórica data com uma primeira fase de sensibilização dos fiéis sobre temáticas mais gerais, para depois concentrar a preparação directa e imediata numa segunda fase, precisamente a do triénio, inteiramente orientada para a celebração do mistério de Cristo Salvador.

Primeira fase

31. A primeira fase terá, pois, carácter ante-preparatório: deverá servir para reavivar no povo cristão a consciência do valor e significado que o Jubileu do ano 2000 reveste na história humana. Trazendo consigo a recordação do nascimento de Cristo, está intrinsecamente marcado por uma conotação cristológica.

Dada a articulação da fé cristã em palavra e sacramento, pareceu importante unir conjuntamente, também nesta singular ocorrência, a estrutura do memorial com a da celebração, não se limitando a recordar o acontecimento apenas conceptualmente, mas tornando presente o seu valor salvífico mediante a actualização sacramental. A efeméride jubilar deverá confirmar, nos cristãos de hoje, a fé no Deus que se revelou em Cristo, sustentar a suaesperança projectada na expectativa da vida eterna, reavivar a sua caridade, operosamente empenhada no serviço dos irmãos.

No decorrer da primeira fase (de 1994 a 1996), a Santa Sé, graças inclusivamente à criação de uma específica Comissão, não deixará de sugerir algumas linhas de reflexão e acção a nível universal, enquanto um análogo empenho de sensibilização será realizado, de maneira mais capilar, por idênticas Comissões nas Igrejas locais. De algum modo, trata-se de continuar aquilo que foi realizado na preparação remota e, ao mesmo tempo, aprofundar os aspectos mais característicos do evento jubilar.

32. O jubileu é sempre um tempo particular de graça, " um dia abençoado pelo Senhor ": como tal - foi já assinalado - tem um carácter jubiloso. O Jubileu do ano 2000 pretende ser uma grande oração de louvor e agradecimento sobretudo pelo dom da Encarnação do Filho de Deus e da Redenção por Ele operada. No ano jubilar, os cristãos colocar-se-ão, com renovado enlevo de fé, diante do amor do Pai, que deu o seu Filho, " para que todo o que n'Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna " (Jo 3, 16). Além disso, elevarão com íntima participação o seu agradecimento pelo dom da Igreja, fundada por Cristo como " o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ".14 Por último, a sua gratidão alargar-se-á aos frutos de santidade, amadurecidos na vida de tantos homens e mulheres, que, em cada geração e época da história, souberam acolher sem reservas o dom da Redenção.

Todavia, a alegria de cada jubileu é de modo particular umaalegria pela remissão das culpas, a alegria da conversão. Por isso, parece oportuno colocar de novo em primeiro plano aquilo que constituiu o tema do Sínodo dos Bispos de 1984, ou seja, a penitência e a reconciliação.15 Na verdade, ele constituiu um acontecimento extremamente significativo na história da Igreja pós-conciliar. Retomou a questão sempre actual da conversão - "metanoia " - que é a condição preliminar para a reconciliação com Deus tanto dos indivíduos como das comunidades.

33. Assim, quando o segundo milénio já se encaminha para o seu termo, é justo que a Igreja assuma com maior consciência o peso do pecado dos seus filhos, recordando todas aquelas circunstâncias em que, no arco da história, eles se afastaram do espírito de Cristo e do seu Evangelho, oferecendo ao mundo, em vez do testemunho de uma vida inspirada nos valores da fé, o espectáculo de modos de pensar e agir que eram verdadeiras formas de antitestemunho e de escândalo.

Embora sendo santa pela sua incorporação em Cristo, a Igreja não se cansa de fazer penitência: ela reconhece sempre como próprios, diante de Deus e dos homens, os filhos pecadores. Sobre isto, afirma a Constituição conciliar Lumen gentium: " a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação ".16

A Porta Santa do Jubileu do 2000 deverá ser, simbolicamente, mais ampla do que nos jubileus precedentes, porque a humanidade, chegada àquela meta, deixará atrás de si não apenas um século, mas um milénio. Será bom que a Igreja entre por essa passagem com a consciência clara daquilo que viveu ao longo dos últimos dez séculos. Ela não pode transpor o limiar do novo milénio sem impelir os seus filhos a purificarem-se, pelo arrependimento, de erros, infidelidades, incoerências, retardamentos. Reconhecer as cedências de ontem é acto de lealdade e coragem que ajuda a reforçar a nossa fé, tornando-nos atentos e prontos para enfrentar as tentações e as dificuldades de hoje.

34. Entre os pecados que requerem maior empenho de penitência e conversão, devem certamente ser incluídos os que prejudicaram a unidade querida por Deus para o seu Povo. Ao longo dos mil anos que estão para se concluir, mais ainda do que no primeiro milénio, a comunhão eclesial, " algumas vezes não sem culpa dos homens dum e doutro lado ",17 conheceu dolorosas lacerações que contradizem abertamente a vontade de Cristo e são escândalo para o mundo.18 Tais pecados do passado fazem sentir ainda, infelizmente, o seu peso e permanecem como tentações igualmente no presente. É necessário emendar-se, invocando intensamente o perdão de Cristo.

Neste crepúsculo do milénio, a Igreja deve dirigir-se com prece mais instante ao Espírito Santo, implorando-Lhe a graça daunidade dos cristãos. Este é um problema crucial para o testemunho evangélico no mundo. Sobretudo depois do Concílio Vaticano II, muitas foram as iniciativas ecuménicas empreendidas com generosidade e solicitude: pode-se dizer que toda a actividade das Igreja locais e da Sé Apostólica assumiu nestes anos uma dimensão ecuménica. O Pontifício Conselho para a promoção da unidade dos Cristãos tornou-se um dos principais centros propulsores do processo para a plena unidade.

Mas todos estamos conscientes de que a obtenção desta meta não pode ser fruto apenas de esforços humanos, embora indispensáveis. A unidade é, em última análise, dom do Espírito Santo. A nós, é-nos pedido para secundar este dom, sem cairmos em abdicações nem reticências no testemunho da verdade, mas pondo generosamente em acção as directrizes traçadas pelo Concílio e sucessivos documentos da Santa Sé, que mereceram o apreço inclusive de muitos dos cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica.

Eis, portanto, uma das tarefas dos cristãos a caminho do ano 2000. A aproximação do fim do segundo milénio incita todos a umexame de consciência e a oportunas iniciativas ecuménicas, de tal modo que possamos apresentar-nos ao Grande Jubileu, se não totalmente unidos, pelo menos muito mais perto de superar as divisões do segundo milénio. Para tal, é necessário - está à vista de todos - um esforço enorme. Impõe-se prosseguir com o diálogo ecuménico, mas sobretudo empenhar-se mais na oração ecuménica.

Esta muito se intensificou depois do Concílio, mas deve crescer ainda metendo os cristãos cada vez mais em sintonia com a grande invocação de Cristo, antes da Paixão: " Pai... que também eles sejam em Nós um só " (Jo 17, 21).

35. Outro capítulo doloroso, sobre o qual os filhos da Igreja não podem deixar de tornar com espírito aberto ao arrependimento, é a condescendência manifestada, especialmente nalguns séculos, perante métodos de intolerância ou até mesmo de violência no serviço à verdade.

Certo é que um correcto juízo histórico não pode prescindir da atenta consideração dos condicionalismos culturais da época, pelos quais muita gente podia ter considerado, em boa fé, que um autêntico testemunho da verdade comportasse o sufocamento da opinião de outrem ou, pelo menos, a sua marginalização. Múltiplos motivos convergiam frequentemente para criar premissas de intolerância, alimentando uma atmosfera passional, da qual apenas grandes espíritos, verdadeiramente livres e cheios de Deus, conseguiam de algum modo subtrair-se. Mas a consideração das circunstâncias atenuantes não exonera a Igreja do dever de lastimar profundamente as fraquezas de tantos filhos seus, que lhe deturparam o rosto, impedindo-a de reflectir plenamente a imagem do seu Senhor crucificado, testemunha insuperável de amor paciente e de humilde mansidão. Desses momentos dolorosos do passado deriva uma lição para o futuro, que deve induzir todo o cristão a manter-se bem firme sobre aquela regra áurea ditada pelo Concílio: " a verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte ".19

36. Numerosos Cardeais e Bispos desejaram se fizesse um sério exame de consciência, principalmente sobre a Igreja de hoje. No limiar do novo milénio, os cristãos devem pôr-se humildemente diante do Senhor, interrogando-se sobre as responsabilidades que lhes cabem também nos males do nosso tempo. Na verdade, a época actual, a par de muitas luzes, apresenta também tantas sombras.

Como calar, por exemplo, a indiferença religiosa, que leva tantos homens de hoje a viverem como se Deus não existisse ou a contentarem-se com uma religiosidade vaga, incapaz de se confrontar com o problema da verdade e com o dever da coerência? A isto, há que ligar também a difusa perda do sentido transcendente da existência humana e o extravio no campo ético, até mesmo em valores fundamentais como os da vida e da família. Impõe-se, pois, uma verificação aos filhos da Igreja: em que medida estão eles também tocados pela atmosfera de secularismo e relativismo ético? E que parte de responsabilidade devem eles reconhecer, quanto ao progressivo alastramento da irreligiosidade, por não terem manifestado o genuíno rosto de Deus, " pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social "? 20

Realmente não se pode negar que, em muitos cristãos, a vida espiritual atravessa um momento de incerteza que se repercute não só na vida moral, mas também na oração e na própria rectidão teologal da fé. Esta, já posta à prova pelo confronto com o nosso tempo, vê-se às vezes ainda desorientada por posições teológicas erróneas, que se difundem também por causa da crise de obediência ao Magistério da Igreja.

E quanto ao testemunho da Igreja no nosso tempo, como não sentir pesar pela falta de discernimento, quando não se torna mesmo condescendência, de não poucos cristãos perante a violação de direitos humanos fundamentais por regimes totalitários? E não será porventura de lamentar, entre as sombras do presente, a corresponsabilidade de tantos cristãos em formas graves de injustiça e marginalização social? Seria de perguntar quantos deles conhecem a fundo e praticam coerentemente as directrizes da doutrina social da Igreja.

O exame de consciência não pode deixar de incluir também a recepção do Concílio, este grande dom do Espírito feito à Igreja quase ao findar do segundo milénio. Em que medida a Palavra de Deus se tornou mais plenamente alma da teologia e inspiradora de toda a existência cristã, como pedia a Dei Verbum? É vivida a liturgia como " fonte e cume " da vida eclesial, segundo o ensinamento da Sacrosanctum Concilium? Vai-se consolidando na Igreja universal e nas Igrejas particulares, a eclesiologia de comunhão da Lumen gentium, dando espaço aos carismas, aos ministérios, às várias formas de participação do Povo de Deus, embora sem descair para um democraticismo e sociologismo que não reflecte a visão católica da Igreja e o autêntico espírito do Vaticano II? Uma pergunta vital deve contemplar também o estilo das relações da Igreja com o mundo. As directrizes conciliares - oferecidas na Gaudium et spes e noutros documentos - de um diálogo aberto, respeitoso e cordial, acompanhado todavia por um atento discernimento e corajoso testemunho da verdade, permanecem válidas e chamam-nos a um empenhamento maior.

37. A Igreja do primeiro milénio nasceu do sangue dos mártires: " sanguis martyrum - semen christianorum ", (sangue de mártires, semente de cristãos).21 Os acontecimentos históricos relacionados com a figura de Constantino Magno nunca teriam podido garantir um desenvolvimento da Igreja como o que se verificou no primeiro milénio, se não tivesse havido aquela sementeira de mártires e aquele património de santidade que caracterizaram as primeiras gerações cristãs. No final do segundo milénio, a Igreja tornou-se novamente Igreja de mártires. As perseguições contra os crentes - sacerdotes, religiosos e leigos - realizaram uma grande sementeira de mártires em várias partes do mundo. O seu testemunho, dado por Cristo até ao derramamento do sangue, tornou-se património comum de católicos, ortodoxos, anglicanos e protestantes, como ressaltava já Paulo VI na homilia da canonização dos Mártires Ugandeses.22

É um testemunho que não se pode esquecer. A Igreja dos primeiros séculos, apesar de encontrar notáveis dificuldades organizativas, esforçou-se por fixar em peculiares martirológios o testemunho dos mártires. Tais martirológios foram-se actualizando constantemente ao longo dos séculos, e, no álbum dos santos e beatos da Igreja, entraram não apenas aqueles que derramaram o sangue por Cristo, mas também mestres da fé, missionários, confessores, bispos, presbíteros, virgens, esposos, viúvas, filhos.

No nosso século, voltaram os mártires, muitas vezes desconhecidos, como que " militi ignoti " da grande causa de Deus. Tanto quanto seja possível, não se devem deixar perder na Igreja os seus testemunhos. Como foi sugerido no Consistório,impõe-se que as Igrejas locais tudo façam para não deixar perecer a memória daqueles que sofreram o martírio, recolhendo a necessária documentação. Isso não poderá deixar de ter uma dimensão e uma eloquência ecuménica. O ecumenismo dos santos, dos mártires, é talvez o mais persuasivo. A communio sanctorum fala com voz mais alta que os factores de divisão. O martyrologium dos primeiros séculos constituiu a base do culto dos Santos. Proclamando e venerando a santidade dos seus filhos e filhas, a Igreja prestava suprema honra ao próprio Deus; nos mártires, venerava Cristo, que estava na origem do seu martírio e santidade. Desenvolveu-se sucessivamente a prática da canonização, que perdura ainda na Igreja Católica e nas Igrejas Ortodoxas. Nestes anos, foram-se multiplicando as canonizações e as beatificações. Elas manifestam a vivacidade das Igrejas locais, muito mais numerosas hoje que nos primeiros séculos e no primeiro milénio. A maior homenagem que todas as Igrejas prestarão a Cristo no limiar do terceiro milénio, será a demonstração da presença omnipotente do Redentor, mediante os frutos de fé, esperança e caridade em homens e mulheres de tantas línguas e raças, que seguiram Cristo nas várias formas da vocação cristã.

Será tarefa da Sé Apostólica, na perspectiva do ano 2000, actualizar os martirológios para a Igreja universal, prestando grande atenção à santidade de quantos, também no nosso tempo, viveram plenamente na verdade de Cristo. De modo especial, haverá que diligenciar o reconhecimento da heroicidade das virtudes de homens e mulheres que realizaram a sua vocação cristã noMatrimónio: convictos como estamos de que, também em tal estado, não faltam frutos de santidade, sentimos a necessidade de encontrar os caminhos mais oportunos para os verificar e propor a toda a Igreja como modelo e estímulo dos outros esposos cristãos.

38. Uma ulterior exigência sublinhada pelos Cardeais e pelos Bispos é a realização de Sínodos de carácter continental, na esteira daqueles já celebrados para a Europa e para a África. A última Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano acolheu, em sintonia com o Episcopado da América do Norte, a proposta de um Sínodo para as Américas sobre as problemáticas da nova evangelização em duas partes do mesmo continente tão diversas entre si pela origem e pela história, e sobre as temáticas da justiça e das relações económicas internacionais, tendo em conta a enorme disparidade entre o Norte e o Sul.

Um Sínodo com carácter continental parece oportuno para a Ásia, onde mais acentuada é a questão do encontro do cristianismo com as antiquíssimas culturas e religiões locais. Grande desafio, este, para a evangelização, dado que sistemas religiosos como o budismo ou o induísmo se propõem com um claro carácter soteriológico. Existe, então, a necessidade urgente, por ocasião do Grande Jubileu, de um Sínodo que ilustre e aprofunde a verdade sobre Cristo, como único Mediador entre Deus e os homens e único Redentor do mundo, distinguindo-o bem dos fundadores de outras grandes religiões, nas quais, aliás, se encontram elementos de verdade, que a Igreja considera com sincero respeito, vendo neles um reflexo da Verdade que ilumina todos os homens.23 No ano 2000, deverá ressoar, com renovada intensidade, a proclamação da verdade: " Ecce natus est nobis Salvator mundi " (Eis que nos nasceu o Salvador do mundo).

Também para a Oceânia poderia ser útil um Sínodo regional. Nesse Continente, entre outras coisas, existe o dado de populações aborígenes, que de modo singular evocam alguns aspectos da pre-história do género humano. Em tal Sínodo, pois, um tema a não descurar, a par de outros problemas do Continente, deveria ser o encontro do cristianismo com aquelas antiquíssimas formas de religiosidade, que significativamente são caracterizadas por uma orientação monoteísta.

Segunda fase

39. Com base nesta vasta acção de sensibilização, será possível depois enfrentar a segunda fase, a fase especificamente preparatória. Esta desenvolver-se-á no arco de três anos, de 1997 a 1999. A estrutura ideal para este triénio, centrado em Cristo, Filho de Deus feito homem, não pode ser senão teológica, isto é, trinitária.

I ano: Jesus Cristo

40. O primeiro ano, 1997, será portanto dedicado à reflexão sobre Cristo, Verbo do Pai, feito homem por obra do Espírito Santo. Na verdade, há que evidenciar o carácter vincadamente cristológico do Jubileu, que celebrará a Encarnação e a vinda ao mundo do Filho de Deus, mistério de salvação para todo o género humano. O tema geral, proposto por muitos Cardeais e Bispos para este ano, é: " Jesus Cristo, único Salvador do mundo, ontem, hoje e sempre " (cf. Heb 13, 8).

Entre os conteúdos perspectivados no Consistório, sobressaem os seguintes: a redescoberta de Cristo Salvador e Evangelizador, com particular referência ao capítulo IV do Evangelho de Lucas, onde o tema de Cristo enviado a evangelizar e o do jubileu se cruzam; o aprofundamento do mistério da sua Encarnação e do seu nascimento do seio virginal de Maria; a necessidade da fé n'Ele para a salvação. Para conhecer a verdadeira identidade de Cristo, é necessário que os cristãos, sobretudo ao longo deste ano, regressem com renovado interesse à Bíblia, " quer através da sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando tão louvavelmente por toda a parte ".24 Com efeito, no texto revelado é o próprio Pai Celeste que vem amorosamente ao nosso encontro e Se entretém connosco a manifestar-nos a natureza do Filho unigénito e o seu desígnio de salvação para a humanidade.25

41. O empenho de actualização sacramental, atrás mencionado, poderá, ao longo do ano, valer-se da redescoberta do Baptismo como fundamento da existência cristã, segundo as palavras do Apóstolo: " Vós que fostes baptizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo " (Gal 3, 27). O Catecismo da Igreja Católica, por seu lado, recorda que o Baptismo constitui " o fundamento da comunhão entre todos os cristãos, mesmo com aqueles que ainda não estão em plena comunhão com a Igreja Católica ".26 Precisamente sob a vertente ecuménica, este será um ano muito importante para juntos voltarem o olhar para Cristo, único Senhor, com o compromisso de se tornarem um só, nos termos da sua súplica ao Pai. O destaque da centralidade de Cristo, da Palavra de Deus e da fé não deveria deixar de suscitar interesse e acolhimento favorável nos cristãos de outras Confissões.

42. Tudo deverá apontar para o objectivo prioritário do Jubileu que é o revigoramento da fé e do testemunho dos cristãos. É necessário, por conseguinte, suscitar em cada fiel um verdadeiro anseio de santidade, um forte desejo de conversão e renovamento pessoal num clima de oração cada vez mais intensa e de solidário acolhimento do próximo, especialmente do mais necessitado.

O primeiro ano será, assim, o momento favorável para a redescoberta da catequese no seu significado e valor originário de " ensino dos Apóstolos " (Act 2, 42) sobre a pessoa de Jesus Cristo e o seu mistério de salvação. De grande utilidade para este objectivo, se revelará o aprofundamento do Catecismo da Igreja Católica, que apresenta " com fidelidade e de modo orgânico, o ensino da Sagrada Escritura, da Tradição viva da Igreja e do Magistério autêntico, bem como a herança espiritual dos Padres, dos santos e santas da Igreja, para permitir conhecer melhor o mistério cristão e reavivar a fé do povo de Deus ".27 Para ser realistas, não deverá transcurar-se também a iluminação da consciência dos fiéis sobre os erros referentes à pessoa de Cristo, evidenciando justamente as oposições contra Ele e contra a Igreja.

43. A Virgem Santa, que estará presente de modo, por assim dizer, " transversal " ao longo de toda a fase preparatória, será contemplada neste primeiro ano sobretudo no mistério da sua divina Maternidade. Foi no seu seio que o Verbo se fez carne! A afirmação da centralidade de Cristo não pode, portanto, ser separada do reconhecimento do papel desempenhado pela sua Santíssima Mãe. O seu culto, se bem esclarecido, de modo nenhum pode trazer dano " à dignidade e eficácia do único Mediador, que é Cristo ".28 Na verdade, Maria aponta perenemente para o seu Filho divino e apresenta-se a todos os crentes como modelo de fé vivida no dia-a-dia. " A Igreja, meditando piedosamente na Virgem, e contemplando-a à luz do Verbo feito homem, penetra mais profundamente, cheia de respeito, no insondável mistério da Encarnação, e mais e mais se conforma com o seu esposo ".29

II ano: Espírito Santo

44. O ano 1998, o segundo da fase preparatória, será dedicado de modo particular ao Espírito Santo e à sua presença santificadora no seio da Comunidade dos discípulos de Cristo. " O grande Jubileu, com que se concluirá o segundo Milénio - escrevia na Encíclica Dominum et vivificantem - (...) tem um perfil pneumatológico, dado que o mistério da Encarnação se realizou "por obra do Espírito Santo". "Operou-o" aquele Espírito que - consubstancial ao Pai e ao Filho - é, no mistério absoluto de Deus uno e trino, a Pessoa-Amor, o Dom incriado, que é fonte eterna de toda a dádiva que provém de Deus na ordem da criação, o princípio directo e, em certo sentido, o sujeito da autocomunicação de Deus na ordem da graça. O mistério da Encarnação constitui o ápice da dádiva suprema, dessa autocomunicação de Deus ".30

A Igreja não pode preparar-se para a passagem bimilenária " de outro modo que não seja no Espírito Santo. Aquilo que "na plenitude dos tempos" se realizou por obra do Espírito Santo, só por sua obra pode emergir agora da memória da Igreja ".31

Realmente o Espírito actualiza na Igreja de todos os tempos e lugares a única Revelação trazida por Cristo aos homens, tornando-a viva e eficaz no coração de cada um: " O Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, Esse ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito " (Jo 14, 26).

45. Entra, pois, nos compromissos primários da preparação para o Jubileu a redescoberta da presença e acção do Espírito, que age na Igreja quer sacramentalmente, sobretudo mediante a Confirmação, quer através de múltiplos carismas, cargos e ministérios por Ele suscitados para o bem dela: " É um mesmo Espírito que distribui os seus vários dons segundo a sua riqueza e as necessidades dos ministérios para utilidade da Igreja (cf. 1 Cor 12, 1-11). Entre estes dons, sobressai a graça dos Apóstolos, a cuja autoridade o mesmo Espírito submeteu também os carismáticos (cf. 1 Cor 14). O mesmo Espírito, unificando o corpo por si e pela sua força e pela coesão interna dos membros, produz e promove a caridade entre os fiéis ".32

O Espírito é também, na nossa época, o agente principal da nova evangelização. Será, por isso, importante redescobrir o Espírito como Aquele que constrói o Reino de Deus no curso da história e prepara a sua plena manifestação em Jesus Cristo, animando os homens no mais íntimo deles mesmos e fazendo germinar dentro da existência humana os gérmens da salvação definitiva que acontecerá no fim dos tempos.

46. Nesta perspectiva escatológica, os crentes serão chamados a redescobrir a virtude teologal da esperança, de que tiveram " conhecimento pela palavra da verdade, o Evangelho " (Col 1, 5). A atitude fundamental da esperança, por um lado impele o cristão a não perder de vista a meta final que dá sentido e valor à sua existência inteira, e por outro oferece-lhe motivações sólidas e profundas para o empenhamento quotidiano na transformação da realidade a fim de a tornar conforme ao projecto de Deus.

Como recorda o apóstolo Paulo: " Sabemos, com efeito, que toda a criação tem gemido e sofrido as dores de parto, até ao presente. E não só ela, mas também nós próprios, que possuímos as primícias do Espírito, gememos igualmente em nós mesmos, aguardando a filiação adoptiva, a libertação do nosso corpo. Porque na esperança é que fomos salvos " (Rom 8, 22-24). Os cristãos são chamados a preparar-se para o Grande Jubileu do início do terceiro milénio, renovando a sua esperança no advento definitivo do Reino de Deus, preparando-o dia após dia no seu íntimo, na Comunidade cristã a que pertencem, no contexto social onde estão inseridos e deste modo também na história do mundo.

Além disso, é necessário que sejam valorizados e aprofundados os sinais de esperança presentes neste epílogo do século, não obstante as sombras que frequentemente os escondem a nossos olhos: no campo civil, os progressos realizados pela medicina ao serviço da vida humana, o sentido mais vivo de responsabilidade pelo ambiente, os esforços para restabelecer a paz e a justiça em todo o lado onde foram violadas, a vontade de reconciliação e solidariedade entre os vários povos, particularmente nas complexas relações entre o Norte e o Sul do mundo...; no campo eclesial, a escuta mais atenta da voz do Espírito através do acolhimento dos carismas e da promoção do laicado, a intensa dedicação à causa da unidade de todos os cristãos, o espaço dado ao diálogo com as religiões e com a cultura contemporânea...

47. Neste segundo ano de preparação, a reflexão dos fiéis deverá concentrar-se, com particular solicitude, sobre o valor da unidade no seio da Igreja, para a qual tendem os vários dons e carismas suscitados nela pelo Espírito. Com este objectivo, poder-se-á oportunamente aprofundar o ensinamento eclesiológico do Concílio Vaticano II, presente sobretudo na Constituição dogmática Lumen gentium. Este importante documento sublinhou expressamente que a unidade do Corpo de Cristo está fundada sobre a acção do Espírito, é garantida pelo ministério apostólico e é sustentada pelo mútuo amor (cf. 1 Cor 13, 1-8). Tal aprofundamento catequético da fé não poderá deixar de levar os membros do Povo de Deus a uma consciência mais amadurecida das próprias responsabilidades, bem como a um sentido mais vivo do valor da obediência eclesial.33

48. Maria, que concebeu o Verbo encarnado por obra do Espírito Santo e que depois, em toda a existência, se deixou guiar pela sua acção interior, será contemplada e imitada no decorrer deste ano sobretudo como a mulher dócil à voz do Espírito, mulher do silêncio e da escuta, mulher de esperança, que soube acolher como Abraão a vontade de Deus " esperando contra toda a esperança " (Rom 4, 18). Ela leva à sua expressão plena o anélito dos pobres de Jahvé, resplandecendo como modelo para quantos se confiam, com todo o coração, às promessas de Deus.

III ano: Deus Pai

49. O ano 1999, terceiro e último ano preparatório, terá por função alargar os horizontes do crente até à própria perspectiva de Cristo: a perspectiva do " Pai que está nos céus " (cf. Mt 5, 45), que O enviou e a Quem Ele retornou (cf. Jo 16, 28).

" A vida eterna consiste nisto: Que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste " (Jo 17, 3). Toda a vida cristã é como uma grande peregrinação para a casa do Pai, de Quem se descobre todos os dias o amor incondicional por cada criatura humana e, em particular, pelo " filho perdido " (cf. Lc 15, 11-32). Tal peregrinação parte do íntimo da pessoa, alargando-se depois à comunidade crente até alcançar a humanidade inteira.

O Jubileu, centrado sobre a pessoa de Cristo, torna-se assim um grande acto de louvor ao Pai: " Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, do alto dos céus, nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. Foi assim que n'Ele nos escolheu antes da constituição do mundo, para sermos santos e imaculados diante dos seus olhos " (Ef 1, 3-4).

50. Neste terceiro ano, o sentido do " caminho para o Pai " deverá impelir todos a empreenderem, na adesão a Cristo Redentor do homem, um caminho de autêntica conversão, que compreende seja um aspecto " negativo " com a libertação do pecado, seja um aspecto " positivo " com a escolha do bem, expresso pelos valores éticos contidos na lei natural, confirmada e aprofundada pelo Evangelho. É este o contexto adequado para a descoberta e a intensa celebração do sacramento da Penitência, no seu significado mais profundo. O anúncio da conversão, qual exigência imprescindível do amor cristão, é particularmente importante na sociedade actual, onde tantas vezes parecem perdidos os próprios fundamentos de uma visão ética da existência humana.

Convirá, portanto, especialmente neste ano, pôr em relevo a virtude teologal da caridade, recordando a sintética e densa afirmação da primeira Carta de João: " Deus é amor " (4, 8. 16). A caridade, na sua dupla face de amor a Deus e aos irmãos, é a síntese da vida moral do crente. Ela tem em Deus a sua nascente e a sua meta de chegada.

51. Nesta perspectiva e recordando que Jesus veio " evangelizar os pobres " (Mt 11, 5; Lc 7, 22), como não sublinhar com maior decisão a opção preferencial da Igreja pelos pobres e os marginalizados? Antes, deve-se afirmar que o empenho pela justiça e pela paz num mundo como o nosso, marcado por tantos conflitos e por intoleráveis desigualdades sociais e económicas, é um aspecto qualificante da preparação e da celebração do Jubileu. Assim, no espírito do livro do Levítico (25, 8-12), os cristãos deverão fazer-se voz de todos os pobres do mundo, propondo o Jubileu como um tempo oportuno para pensar, além do mais, numa consistente redução, se não mesmo no perdão total da dívida internacional, que pesa sobre o destino de muitas nações. O Jubileu poderá ainda oferecer a oportunidade para meditar sobre outros desafios do momento, tais como, por exemplo, as dificuldades de diálogo entre culturas diversas e as problemáticas ligadas com o respeito dos direitos da mulher e com a promoção da família e do matrimónio.

52. Recordando, além disso, que " Cristo (...) na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime ",34 dois empenhos serão inevitáveis especialmente no curso deste terceiro ano preparatório: o confronto com o secularismo e o diálogo com as grandes religiões.

Quanto ao primeiro, será conveniente afrontar a vasta temática da crise de civilização, como acabou por se manifestar sobretudo no Ocidente, tecnologicamente mais desenvolvido mas interiormente empobrecido pelo esquecimento ou pela marginalização de Deus. À crise de civilização, há que responder com a civilização do amor, fundada sobre os valores universais de paz, solidariedade, justiça e liberdade, que encontram em Cristo a sua plena actuação.

53. No que se refere, pelo contrário, ao horizonte da consciência religiosa, a vigília do ano 2000 será uma grande ocasião - como se vê pelos acontecimentos destes últimos decénios - para o diálogo interreligioso, segundo as indicações claras emanadas pelo Concílio Vaticano II na Declaração Nostra aetate sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs.

Neste diálogo, deverão ter lugar proeminente os hebreus e os muçulmanos. Queira Deus que, como sigilo de tais intenções, se possam realizar também encontros comuns em lugares significativos para as grandes religiões monoteístas.

A propósito disto, está-se a estudar como predispor quer encontros históricos em Belém, em Jerusalém e no Sinai, lugares de grande valência simbólica, para intensificar o diálogo com os hebreus e os fiéis do Islão, quer encontros com representantes das grandes religiões do mundo noutras cidades. Contudo haverá que prestar sempre atenção a não dar ensejo a perigosos equívocos, vigiando de perto sobre o risco de sincretismo e de um irenismo fácil e enganador.

54. Em todo este amplo horizonte de compromissos, Maria Santíssima, filha predestinada do Pai, apresentar-se-á ao olhar dos crentes como exemplo perfeito de amor a Deus e ao próximo. Como Ela própria afirma no cântico do Magnificat, grandes coisas fez n'Ela o Omnipotente, cujo nome é Santo (cf. Lc 1, 49). O Pai escolheu Maria para uma missão única na história da salvação: ser Mãe do Salvador esperado. A Virgem respondeu à chamada de Deus com plena disponibilidade: " Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra " (Lc 1, 38). A sua maternidade, iniciada em Nazaré e sumamente vivida em Jerusalém ao pé da Cruz, será sentida neste ano como afectuoso e premente convite dirigido a todos os filhos de Deus, para que regressem à casa do Pai, escutando a sua voz materna: " Fazei aquilo que Cristo vos disser " (cf. Jo 2, 5).

Com vista à celebração

55. Um capítulo a parte é constituído pela celebração mesma do Grande Jubileu, que se verificará contemporaneamente na Terra Santa, em Roma e nas Igrejas locais do mundo inteiro. Sobretudo nesta fase, a fase celebrativa, o objectivo será a glorificação da Santíssima Trindade, da Qual tudo procede e à Qual tudo se orienta no mundo e na história. Para esse mistério apontam os três anos de preparação imediata: em Cristo e por Cristo, no Espírito Santo, ao Pai. Neste sentido, a celebração jubilar actualiza e simultaneamente antecipa a meta e o cumprimento da vida do cristão e da Igreja em Deus uno e trino.

Sendo, porém, Cristo o único caminho de acesso ao Pai, para sublinhar a sua presença viva e salvífica na Igreja e no mundo, realizar-se-á em Roma, por ocasião do Grande Jubileu, o Congresso Eucarístico Internacional. O ano 2000 será intensamente eucarístico: no sacramento da Eucaristia o Salvador, que encarnou no seio de Maria vinte séculos atrás, continua a oferecer-Se à humanidade como fonte de vida divina.

A dimensão ecuménica e universal do Jubileu Sagrado poderá oportunamente ser evidenciada com um significativo encontro pan-cristão. Trata-se de um gesto de grande valor e por isso, para evitar equívocos, terá de ser proposto correctamente e preparado com solicitude, em atitude de fraterna colaboração com os cristãos de outras confissões e tradições, e ainda de grata abertura àquelas religiões cujos representantes quisessem exprimir a sua consideração pela alegria comum de todos os discípulos de Cristo. Uma coisa é certa: cada um é convidado a fazer tudo quanto esteja ao seu alcance para que não fique transcurado o grande desafio do ano 2000, ao qual está seguramente ligada uma particular graça do Senhor para a Igreja e para a humanidade inteira.


V - «JESUS CRISTO É O MESMO ... SEMPRE » (Heb 13,8)


56. A Igreja perdura há 2000 anos. Como o pequeno grão de mostarda do evangelho, ela cresce até se tornar uma grande árvore, capaz de cobrir com a sua ramagem a humanidade inteira (cf. Mt 13, 31-32). O Concílio Vaticano II, na Constituição dogmática Lumen gentium, ao considerar a questão da pertença à Igreja e da ordenação ao Povo de Deus, assim se exprime: " Todos os homens são chamados a esta unidade católica do Povo de Deus, à qual (...) pertencem, de vários modos, ou a ela se ordenam, quer os católicos quer os outros que acreditam em Cristo quer, finalmente, todos os homens em geral, pela graça de Deus chamados à salvação ".35 Por seu lado, Paulo VI, na Encíclica Ecclesiam suam, ilustra a inclusão universal dos homens no desígnio de Deus, ao sublinhar os vários círculos do diálogo da salvação.36

À luz desta impostação, pode-se compreender melhor também a parábola evangélica do fermento (cf. Mt 13, 33): Cristo, como fermento divino, penetra cada vez mais profundamente no momento presente da vida da humanidade, comunicando a obra da salvação cumprida no Mistério pascal. Além disso, Ele abraça no seu domínio salvífico também todo o passado do género humano, a começar do primeiro Adão.37 A Ele pertence o futuro: " Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre " (Heb 13, 8). Por seu lado, a Igreja visa " unicamente este objectivo: continuar, sob a direcção do Espírito Consolador, a obra de Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar e não para julgar, para servir e não para ser servido ".38

57. E por isso, desde os tempos apostólicos, continua sem interrupção a missão da Igreja no seio da família humana universal. A primeira evangelização estendeu-se sobretudo à região do Mediterrâneo. No decorrer do primeiro milénio, as missões, partindo de Roma e de Constantinopla, levaram o cristianismo a todo o continente europeu. Contemporaneamente, aquelas dirigiram-se para o coração da Ásia, até à Índia e à China. O fim do século XV, com a descoberta da América, marcou o início da evangelização naquele grande continente, ao Sul e ao Norte. Pelo mesmo tempo, as costas sud-saharianas da África acolheram a Luz de Cristo, e S. Francisco Xavier, padroeiro das missões, chegou ao Japão. Na passagem do século XVIII para o XIX, um leigo, André Kim, levou o cristianismo para a Coreia; naquela época, o anúncio evangélico atingiu a Península da Indochina, como também a Austrália e as ilhas do Pacífico.

O século XIX registou grande actividade missionária entre os povos da África. Todas estas obras deram frutos que perduram até hoje. O Concílio Vaticano II disso nos dá conta no Decreto Ad Gentes sobre a actividade missionária. Após o Concílio, a questão missionária foi tratada na Encíclica Redemptoris missio, relativa aos problemas das missões nesta última parte do nosso século. A Igreja continuará também no futuro a ser missionária: é que ser missionária faz parte da sua natureza. Com a queda dos grandes sistemas anticristãos no continente europeu - o nazismo primeiro e depois o comunismo -, impõe-se a tarefa urgente de oferecer de novo aos homens e mulheres da Europa a mensagem libertadora do Evangelho.39 Além disso, como afirma a Encíclica Redemptoris missio, reproduz-se no mundo a situação do Areópago de Atenas, onde falou S. Paulo.40 Muitos são hoje os " areópagos ", e bastante diversos: os vastos campos da civilização contemporânea e da cultura, da política e da economia. Quanto mais o Ocidente se separa das suas raízes cristãs, tanto mais se torna terreno de missão, nas formas mais diversificadas de " areópagos ".

58. O futuro do mundo e da Igreja pertence às gerações jovens, que, nascidas neste século, serão maduras no próximo, o primeiro do novo milénio. Cristo acolhe os jovens, como acolhera o jovem que lhe pôs a pergunta: " Que hei-de fazer de bom para alcançar a vida eterna? " (Mt 19, 16). À admirável resposta que Jesus lhe deu, fiz referência na recente Encíclica Veritatis splendor, como já o fizera antes na Carta Apostólica aos jovens de todo o mundo em 1985. Os jovens, em qualquer situação e região da terra, não cessam de fazer perguntas a Cristo: encontram-n'O e procuram-n'O para O interrogarem de novo. Se souberem seguir o caminho que Ele indica, terão a alegria de dar o próprio contributo para a presença d'Ele no próximo século e nos sucessivos, até à conclusão dos tempos. " Jesus é o mesmo ontem, hoje e sempre ".

59. Na conclusão, revelam-se novamente oportunas as palavras da Constituição conciliar Gaudium et spes: " A Igreja acredita que Jesus Cristo, morto e ressuscitado por todos, oferece aos homens pelo seu Espírito a luz e a força para poderem corresponder à sua altíssima vocação; nem foi dado aos homens sob o céu outro nome, no qual devam ser salvos. Acredita também que a chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontram no seu Senhor e Mestre. E afirma, além disso, que, subjacentes a todas as transformações, há muitas coisas que não mudam, cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje, e para sempre. Quer, portanto, o Concílio, à luz de Cristo, imagem de Deus invisível e primogénito de toda a criação, dirigir-se a todos, para iluminar o mistério do homem e cooperar na solução das principais questões do nosso tempo ".41

Ao mesmo tempo que convido os fiéis a elevarem ao Senhor instantes preces para obter as luzes e auxílios necessários para a preparação e a celebração do Jubileu, já próximo, exorto os Venerados Irmãos no Episcopado e as comunidades eclesiais a eles confiadas a abrirem o coração às sugestões do Espírito. Este não deixará de mover os ânimos para se disporem a celebrar com renovada fé e generosa participação o grande evento jubilar.

Confio este empenho de toda a Igreja à celeste intercessão de Maria, Mãe do Redentor. Ela, a Mãe do belo amor, será para os cristãos a caminho do grande Jubileu do terceiro milénio, a Estrela que lhes guia os passos com segurança ao encontro do Senhor. A humilde Jovem de Nazaré que, dois mil anos atrás, ofereceu ao mundo inteiro o Verbo encarnado, oriente a humanidade do novo milénio para Aquele que é " a luz verdadeira, que a todo o homem ilumina " (Jo 1, 9).

Com estes sentimentos, sobre todos estendo a minha Bênção.

- Dado no Vaticano, em 10 de Novembro do ano de 1994, décimo sétimo de pontificado.




Unione Romania-Roma

Carta Apostólica
UNIONE ROMANIA-ROMA
do Santo Padre João Paulo II
por ocasião do Terceiro Centenário
da união da Igreja Greco-Católica da Romênia
com a Igreja de Roma
Caríssimos Irmãos e Irmãs
da Igreja greco-católica da Roménia!


1. No tempo pascal deste Jubileu do Ano 2000 ocorre o terceiro centenário da União da vossa Igreja com a Igreja de Roma. O Ano Jubilar é um ano de graça, no qual a Igreja inteira recorda que nosso Senhor Jesus Cristo, há dois mil anos, se fez Homem no seio da Virgem Santíssima. Na jubilosa evocação do admirável evento, a comunidade cristã retoma coragem para, com renovado entusiasmo, anunciar ao mundo a alegre notícia da salvação.

Verbum caro factum est: este é o motivo do nosso reconhecimento perene, esta é a alegria recordada e celebrada de modo especial no período do Jubileu. Ao colocarmo-nos nesta perspectiva, podemos ver com os olhos da esperança toda a história da humanidade.

A RECORDAÇÃO E A PRESENÇA

2. Neste contexto inscrevem-se com particular relevo também os trezentos anos de existência da Igreja greco-católica da Roménia. Exactamente há um ano rezámos juntos na vossa querida Pátria. Durante a Divina Liturgia celebrada convosco na Catedral de São José, em Bucareste, afirmei que "considero providencial e cheio de significado que as celebrações do terceiro centenário coincidam com o Grande Jubileu do Ano 2000" (Homilia de 8 de Maio de 1999, n. 3).

O facto de ter podido estar no meio de vós, em Maio do ano passado, foi para mim um dom especial do Senhor, que me consentiu reviver de algum modo, juntamente convosco, a experiência daqueles discípulos que "iam para uma aldeia": "Jesus aproximou-se e começou a caminhar com eles" explicando "todas as passagens da Escritura que falavam a respeito d'Ele" (Lc 24, 13-15.27).

Iluminados pelas palavras de Cristo, pudemos contemplar também a sua presença reflectida no rosto da vossa Igreja. Depois, Ele nutriu-nos com o seu Corpo e com o seu Sangue, e os nossos corações ardiam (cf. ibid., v. 32).

3. A partir de então, ficaram gravadas na minha alma a beleza da vossa terra e a fé do povo que ali habita. A recordação desse encontro tornou-se ainda mais viva no tempo pascal deste ano, no qual se celebra também o terceiro centenário da União da vossa Igreja com a Igreja de Roma. O meu coração deseja unir-se a vós neste cântico de júbilo Hristos a înviat! (Cristo ressuscitou!) que na ocasião da minha visita me encheu de comoção, deixando em mim uma profunda ressonância. Esse anúncio ultrapassa as palavras: ele está repleto da força vitoriosa do Ressuscitado, que caminha com a sua Igreja na história. É na luz desta Presença que me dirijo a vós que estais a celebrar na alegria o terceiro centenário da União.

A HISTÓRIA E A UNIDADE

4. É no mistério da Encarnação que tem origem o mistério da unidade. Com efeito, as Escrituras afirmam que é vontade do Pai "recapitular em Cristo todas as coisas" (Ef 1, 10). Ao dar actuação a este mistério é que se explicita a missão da Igreja, cuja tarefa é realizar progressivamente a unidade com Deus e entre os homens: "A Igreja, em Cristo, é como que sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano" (Lumen gentium, 1). Na Igreja germinam a unidade e a paz: é deste modo que a história dos homens se pode tornar história de unidade.

O mistério da unidade marca de modo particular o povo romeno. Sabemos, e aqui recordo-o com profunda veneração, que Cristo ressuscitado, através da pregação apostólica, se uniu ao caminho histórico do vosso povo já na época paleocristã e a ele confiou um peculiar empenho no precioso serviço da unidade. Neste sentido, os nomes do apóstolo André, irmão de Pedro, de Niceta de Remesiana, de João Cassiano e de Dionísio, o Moço, são emblemáticos. A Providência divina dispôs que, no tempo em que a Santa Igreja ainda não tinha experimentado no seu interior a grande divisão, acolhêsseis, com a herança de Roma, também a de Bizâncio.

5. De facto, os romenos, permanecendo um povo latino, abriram-se para acolher os tesouros da fé e da cultura bizantina. Apesar da ferida da divisão, esta herança é compartilhada pela Igreja greco-católica e pela Igreja ortodoxa da Roménia. Aqui está a chave interpretativa da vicissitude histórica da vossa Igreja. Ela esteve enredada entre as tensões dramáticas que se desenvolveram entre o Oriente e o Ocidente cristão. Desde sempre, nos corações dos filhos e filhas dessa antiga Igreja pulsa com força a paixão pela unidade querida por Cristo. No ano passado, eu mesmo pude ser testemunha comovida disto.

Este anseio à unidade foi vivido de maneira singular pela Igreja romena na Transilvânia, sobretudo depois da tragédia da divisão entre a cristandade do Oriente e do Ocidente. Naquela terra muitos povos romenos, húngaros, arménios e saxões viveram juntos uma história comum, às vezes difícil, que deixou os seus vestígios na configuração humana e religiosa dos habitantes. Infelizmente, a unidade que caracterizou a Igreja dos primeiros séculos nunca mais foi alcançada e também a vossa história foi marcada com crescente intensidade pela divisão e pelas lágrimas.

Neste panorama resplandecem como luzes de esperança os esforços daqueles que, não se resignando à ferida da divisão, procuraram saneá-la. Na Transilvânia o desejo de restabelecer a perfeita comunhão com a Sé Apostólica do Sucessor de Pedro surgiu nos corações dos cristãos romenos e dos seus Pastores, sobretudo nos séculos XVI e XVII. Estes discípulos de Cristo, atraídos pela ardente aspiração à reforma da Igreja e à sua unidade, sentindo no mais íntimo dos seus corações um antigo vínculo com a Igreja e a Cidade do martírio e da sepultura dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, suscitaram um movimento que, passo a passo, chegou a actuar a plena união com Roma. Entre as etapas decisivas merecem ser recordados os Sínodos que se realizaram em Alba Júlia, nos anos 1697-1698, e se pronunciaram a favor da União: decidida de forma oficial a 7 de Outubro de 1698, foi solenemente ratificada no Sínodo de 7 de Maio de 1700.

6. Graças à obra de Bispos ilustres, como Atanásio Anghel (+1713), João Inocêncio Micu-Klein (+1768), Pedro Paulo Aron (+1764) e de outros beneméritos Prelados, sacerdotes e leigos, a Igreja greco-católica da Roménia fortaleceu a própria identidade e conheceu, em breve tempo, um desenvolvimento significativo. Em consideração disto, com a Bula Ecclesiam Christi de 16 de Novembro de 1853, o meu venerado predecessor Pio IX quis erigir a Sede Metropolitana de Fagaras e Alba Júlia para os Romenos unidos.

Como não reconhecer os preciosos serviços prestados pela Igreja greco-católica ao inteiro povo romeno da Transilvânia? Ao seu crescimento ela ofereceu um contributo decisivo, representado de maneira simbólica pelos "corifeus" da Escola transilvana de Blaj, mas também por numerosas personagens eclesiásticas e leigas que deixaram uma marca indelével também na vida eclesial, cultural e social dos Romenos. Mérito insigne da vossa Igreja foi, em particular, o facto de ser intermediária entre o Oriente e o Ocidente, assumindo por um lado os valores promovidos na Transilvânia pela Santa Sé; e por outro comunicando à catolicidade inteira os valores do Oriente cristão, que por causa da divisao existente eram pouco acessíveis. A Igreja greco-católica tornou-se por isso um testemunho eloquente da unidade da Igreja inteira, mostrando como ela inclui em si os valores da instituição, ritos litúrgicos, tradições eclesiásticas que, por vias diversas, remontam à própria tradição apostólica (cf. Orientalium Ecclesiarum, 1).

7. O caminho da Igreja greco-católica da Roménia jamais foi fácil, como demonstram as suas vicissitudes. Ao longo dos séculos, foi-lhe pedido um doloroso e difícil testemunho de fidelidade à exigencia evangélica da unidade. Assim, ela tornou-se de modo especial a Igreja das testemunhas da unidade, da verdade e do amor. Não obstante as numerosas dificuldades encontradas, a Igreja greco-católica da Roménia, diante da inteira comunidade ecuménica crista, mostrou-se sempre mais como testemunha singular do valor irrenunciável da unidade eclesial. Mas é sobretudo na segunda metade do século XX, na época do totalitarismo comunista, que a vossa Igreja teve de sofrer uma prova duríssima, merecendo justamente o título de "Igreja dos confessores e dos mártires". Foi então que se manifestou com maior evidencia a luta entre o mysterium iniquitatis (cf. 2 Ts 2, 7) e o mysterium pietatis (cf. 1 Tm 3, 16), que actuavam no mundo. E é também a partir de então que a glória do martírio resplandece com maior clareza no rosto da vossa Igreja, como luz que se reflecte na consciência dos cristãos do mundo inteiro, suscitando-lhes admiração e gratidão.

8. Impelido por esta consciência, aproveitei todas as ocasiões para obter notícias de vós, caríssimos Irmãos e Irmãs, e agora desejo fazer-vos chegar uma ulterior expressão da minha solidariedade e do meu apoio. Quando, no ano passado, durante a peregrinação na vossa Terra, me foi dado orar juntamente convosco no cemitério católico de Bucareste, fi-lo levando no meu coração toda a Igreja de Cristo e, juntamente com a Igreja inteira, ajoelhei-me em silêncio junto dos túmulos dos vossos mártires. De muitos deles nem conhecíamos o lugar da sepultura, porque o perseguidor os tinha privado também deste último sinal de distinção e de respeito. Mas os seus nomes encontram-se inscritos no Livro dos vivos e cada um deles recebeu "uma pedrinha branca, na qual está escrito um nome novo que ninguém conhece; só quem a recebe" (Ap 2, 17). O sangue destes mártires é um fermento de vida evangélica que age não só na vossa terra, mas também em muitas outras partes do mundo.

Nesta "multidão imensa" (Ap 7, 9), vestida de branco (cf. ibid., v. 13), de mártires e de confessores da vossa Igreja, "que vieram da grande tribulação e lavaram e branquearam as suas roupas no sangue do Cordeiro" (ibid., v. 14) e que "ficam diante do trono de Deus" (ibid., v. 15), resplandecem os nomes ilustres de Bispos como Vasile Artenie, Ioan Bälan, Valériu Traian Frentin, Joan Suciu, Tit Liviu Chinezu, Alexandru Rusu e do Cardeal Iuliu Hossu. Estes, como os orantes que "servem a Deus dia e noite no Seu templo" (ibidem), juntamente com os outros mártires e confessores intercedem pelo seu povo, recebendo da parte deste uma veneração verdadeira e profunda. O testemunho do martírio e a profissão de fé em Cristo e na unidade da sua Igreja elevam-se como o incenso do sacrifício vespertino (cf. Sl 141, 2) ao trono de Deus, no nome de toda a Igreja, da qual gozam a estima e a devoção!

REVISITAR O PASSADO: A PURIFICAÇÃO DA MEMÓRIA

9. O esplendor do testemunho de fé e o serviço generoso à unidade devem ser sempre acompanhados, na Igreja, pelo incansável empenho na verdade, no qual o dinamismo da esperança se purifica e se consolida. Este é o clima do Jubileu do Ano 2000, por ocasião do qual a Igreja inteira sente o dever de reexaminar o seu passado, para reconhecer as incoerências em que incorreram os seus filhos a respeito do ensinamento evangélico e poder assim caminhar com o rosto purificado rumo ao futuro querido por Deus.

As dificuldades actuais que a vossa Igreja encontra para se recuperar após a supressão, assim como os recursos humanos e materiais limitados que lhe detém o impulso, poderiam debilitar os ânimos. Mas o cristão sabe que quanto maiores são os obstáculos com que se deve medir, tanto mais confiadamente pode contar com a ajuda de Deus, que lhe está próximo e caminha com ele. Isto é recordado também no vosso magnífico cântico "Deus está connosco", tão rico de significado e tão profundamente impresso na alma do vosso povo.

Neste Jubileu a vossa Igreja, juntamente com a Igreja universal, tem o dever de retornar ao próprio passado e, sobretudo, ao período das perseguições para actualizar o próprio "martirológio". Não é uma tarefa fácil por causa da escassez das fontes e do tempo transcorrido, um tempo muito breve para a maturação de um juízo bastante imparcial, mas também bastante longo para expor a desagradáveis esquecimentos. Felizmente ainda vivem muitas testemunhas do passado recente. Portanto, é imperioso pôr em prática os esforços necessários para enriquecer a documentação acerca dos eventos transcorridos, de maneira a consentir às gerações futuras o conhecimento da sua história, examinada de maneira crítica e por isso digna de fé. Nesta perspectiva, será oportuno que o testemunho e o martírio oferecidos pela vossa Igreja sejam examinados no contexto mais amplo dos sofrimentos e das perseguições sofridas pelos cristãos no século XX.

Na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente fiz uma referência específica aos mártires do nosso século, "muitas vezes desconhecidos, como que "milites ignoti" da grande causa de Deus" (n. 37) e afirmei que "no final do segundo milénio, a Igreja se tornou novamente Igreja de mártires... O seu testemunho, dado por Cristo até ao derramamento do sangue, tornou-se património comum de católicos, ortodoxos, anglicanos e protestantes... É um testemunho que não se pode esquecer" (ibid.). Na fé e no martírio destes cristãos a unidade da Igreja aparece numa luz nova. O seu sangue, derramado por Cristo e com Cristo, é uma base segura sobre a qual fundar a busca da unidade de toda a comunidade ecuménica cristã.

Em Bucareste, pus em evidência o facto que também na Roménia sofrestes juntos: "O regime comunista suprimiu a Igreja de rito bizantino-romeno unida a Roma e perseguiu Bispos e sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos, não poucos dos quais pagaram com o sangue a sua fé em Cristo... Quereria tributar o devido reconhecimento também àqueles que, pertencentes à Igreja ortodoxa romena e a outras Igrejas e Comunidades religiosas, sofreram perseguições análogas e graves limitações. A morte uniu estes nossos irmãos de fé no heróico testemunho do martírio: eles deixam-nos uma inesquecível lição de amor a Cristo e à sua Igreja" (Discurso durante a cerimónia de boas-vindas, Aeroporto de Bucareste, 7 de Maio de 1999, n. 4). A respeito disso, encorajo-vos também agora, na celebração do Jubileu e do terceiro centenário da vossa União, a descobrir e valorizar as figuras dos mártires da Igreja greco-católica da Roménia, reconhecendo o seu mérito de ter dado um notável impulso à causa da unidade de todos os cristãos.

10. Além disso, será muito útil considerar a situação hodierna à luz da vossa história. De facto, parece necessário um exame aprofundado do contexto, do espírito e das decisões dos vossos Sínodos que se realizaram nos anos 1872, 1882 e 1900. A mesma análise histórica deveria referir-se também a outros importantes eventos que marcaram a história da Igreja greco-católica romena. O exemplo dos ilustres estudiosos da Escola transilvana de Blaj, que realizaram um exame minucioso dos acontecimentos, inspirado numa séria análise histórica e linguística, pode ser útil para esta pesquisa como uma importante base de referência, a fim de obter resultados credíveis.

No âmbito deste tipo de reexame, não deixarão de ser evidenciados os aspectos fundamentais para a tradição teológica, litúrgica e espiritual da Igreja greco-católica da Roménia. Desse modo, a identidade da vossa Igreja e o seu perfil espiritual aparecerão com um vigor novo, contribuindo para a cultura tanto da Roménia quanto da inteira comunidade ecuménica cristã. Encorajo e abençôo do íntimo do coração todo o esforço que for feito quanto a isto.

Dever-se-á também resolver com especial empenho o problema da recepção do Concílio Vaticano II por parte da Igreja greco-católica da Roménia. Por causa das perseguições feitas naquela época, a vossa Igreja não teve a possibilidade de participar de modo pleno naquele evento histórico, nem sentiu a acção do Espírito de modo clarividente. Foi precisamente aquele Concílio que enfrentou com maior atenção as delicadas questões das Igrejas orientais católicas, do ecumenismo e da Igreja em geral. O ensinamento conciliar encontrou depois a sua continuidade no sucessivo Magistério. É de bom grado que reconheço que hoje em dia a Igreja greco-católica da Roménia está empenhada num longo e laborioso esforço para acolher plenamente as indicações da Santa Sé.

SINAL DA UNIDADE

11. Graças à presença do Espírito Santo, a multiformidade na Igreja pode resplandecer de beleza inefável, sem causar prejuízo à unidade. A respeito disso, o Concílio Vaticano II falou dos tesouros das Igrejas orientais em comunhão com Roma: "Com efeito, ilustres em razão da sua veneranda antiguidade, nelas brilha aquela tradição que vem dos Apóstolos através dos Padres e que constitui parte do património divinamente revelado e indiviso da Igreja universal" (Orientalium Ecclesiarum, 1). A inteira comunidade ecuménica cristã tem, por conseguinte, necessidade da sua voz e da sua presença: "A santa Igreja católica, Corpo místico de Cristo, consta de fiéis que se unem organicamente no Espírito Santo pela mesma fé, pelos mesmos sacramentos e pelo mesmo regime. Juntando-se em vários grupos unidos pela Hierarquia, constituem as Igrejas particulares ou os ritos. Entre elas vigora uma comunhão admirável, de tal forma que a variedade na Igreja longe de prejudicar-lhe a unidade, antes a manifesta" (ibid., n. 2).

Sustentada pelos ensinamentos do Concílio Vaticano II, a Igreja católica está empenhada com toda a determinação, sobretudo no decurso das últimas décadas, no caminho da busca da unidade entre os discípulos de Cristo. Os meus imediatos predecessores, a começar por João XXIII de venerada memória, multiplicaram os esforços a favor da reconciliação ecuménica, em particular com as Igrejas ortodoxas, reconhecendo nisto uma precisa exigência que deriva do Evangelho e uma resposta aos impulsos insistentes do Espírito Santo. Sob o olhar misericordioso do seu Senhor, a Igreja faz memória do seu passado, reconhece os erros dos seus filhos e confessa a sua falta de amor para com os irmãos em Cristo e, por conseguinte, pede perdão e perdoa, procurando restabelecer a plena unidade entre os cristãos.

12. A tentativa de buscar a comunhão plena está sem dúvida condicionada pelo contexto histórico, pela situação política e pela mentalidade dominante de todas as épocas. Neste sentido, a União transilvana conformou-se ao modelo de unidade que prevalecia depois dos Concílios de Florença e de Trento. Naquele tempo, foi o desejo ardente da unidade que levou os Romenos da Transilvânia à união com a Igreja de Roma e, por este dom, todos nós estamos profundamente gratos a Deus. Contudo, visto que a comunhão entre as Igrejas nunca pode ser considerada uma meta atingida de maneira definitiva, ao dom da unidade, oferecido pelo Senhor Jesus uma vez por todas, deve corresponder uma constante atitude de acolhimento, fruto da conversão interior de cada um. As mudadas circunstâncias do presente requerem, de facto, que se persiga a unidade num horizonte ecuménico mais amplo, no qual é preciso tornar-se disponível à escuta do Espírito e reflectir com coragem sobre as relações com as outras Igrejas e com todos os irmos em Cristo, na atitude de quem sabe "esperar contra toda a esperança" (cf. Rm 4, 18).

Precisamente a propósito do dom da unidade, na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente eu observava: "É-nos pedido para secundar este dom, sem cairmos em abdicações nem reticências no testemunho da verdade" (n. 34). Portanto, será necessário reconsiderar a história tricentenária da Igreja greco-católica da Roménia com ânimo novo, mediante uma abordagem calma e serena das vicissitudes que lhe marcaram o caminho.

Assim como encorajei o processo de revisão das modalidades de exercício do serviço petrino no interior da comunidade ecuménica crista, salvaguardadas as exigências derivantes da vontade de Cristo (cf. Enc. Ut unum sint, 95), de igual modo exorto a iniciar uma actualização e um aprofundamento da vocação específica das Igrejas orientais em comunhão com Roma no novo contexto, fazendo apelo ao contributo de estudo e de reflexão de todas as Igrejas. As Comissões teológicas, estabelecidas pelos Pastores da Igreja católica e das Igrejas ortodoxas no seu conjunto, se esforcem por trabalhar nesta complexa perspectiva. Actualmente, diante dos cristãos apresenta-se o problema de "como receber os resultados conseguidos até agora. Estes não podem permanecer como simples afirmações das Comissões bilaterais, mas devem tornar-se um património comum. Para que isto se verifique, reforçando assim os laços de comunhão, é preciso um sério exame que, segundo modos, formas e competências diversas, há-de envolver todo o povo de Deus" (Enc. Ut unum sint, 80). Para que "este processo... tenha êxito favorável, é necessário que os seus resultados sejam oportunamente divulgados" (Ibid., n. 81). A busca da unidade entre os cristãos, no amor e na verdade, é elemento fundamental para uma evangelização mais incisiva. De facto, por vontade de Cristo, a Igreja é una e indivisível. Um retorno autentico às tradições litúrgicas e patrísticas, tesouro que compartilhais com a Igreja ortodoxa, contribuirá para a reconciliação com as outras Igrejas presentes na Roménia. Neste espírito de reconciliação deve-se encorajar de maneira calorosa o prosseguimento do diálogo entre a vossa Igreja e a Igreja ortodoxa, a níveis quer nacional quer local, na esperança de que logo todos os pontos controversos sejam esclarecidos em espírito de justiça e de caridade cristã.

O espírito do diálogo requer, ao mesmo tempo, que a vossa Igreja descubra cada vez mais, com acção de graças, o rosto de Jesus Cristo, que o Espírito Santo delineia na Igreja irmã ortodoxa, e é para esperar que esta última faça o mesmo em relação a vós. Assim, dareis o testemunho ao qual o apóstolo Paulo convida os cristãos de Roma (cf. Rm 12, 9-13).

IMPORTÂNCIA DA ORAÇÃO

13. Mediante o Jubileu a Igreja procura renovar-se na luz jubilosa de Cristo ressuscitado, convidando os seus filhos a corresponderem à graça divina, com um sério exame de consciência e o esforço da purificação e da penitência. É um longo processo que teve início no tempo do Concílio Vaticano II e ainda não se concluiu. Redescubramos aquela que sempre foi a raiz santa que nutre a Igreja: a Palavra de Deus, interpretada factis et verbis pela Liturgia, pelos Concílios, pelos Padres e pelos Santos. Mas repitamos também com força que a fonte principal da unidade na Igreja é a Santíssima Trindade (cf. Lumen gentium, 1-8).

Também a Igreja greco-católica da Roménia aprofunda as suas raízes na Palavra de Deus, no ensinamento dos Padres e na tradição bizantina, mas além disso encontra uma sua peculiar expressão na união com a Sé Apostólica e no estigma das perseguições do século XX, bem como na latinidade do seu povo. É de todos estes elementos que resulta a identidade da vossa Igreja, cuja raiz última é a Santíssima Trindade. Esta é a origem primeira, a fonte "de água viva" (Jo 7, 38), à qual é necessário recorrer continuamente.

A minha firme convicção é de que o retorno às nascentes das tradições eclesiais deve ser acompanhado por um constante e fervoroso recurso à Fonte trinitária. Isto poderá acontecer sobretudo graças à recuperação daquela intimidade profunda de cada um de nós, que se exprime na oração. A oração dá força e ilumina o caminho do homem. No profundo silêncio da experiência orante pode-se chegar a reconhecer o verdadeiro perfil da Igreja, na sua autêntica e eterna identidade, e pode-se descobrir também aquele nome conhecido somente por Deus, que constitui a identidade mais verdadeira de cada cristão. Por este motivo o Jubileu do Ano 2000, assim como o terceiro centenário da União da vossa Igreja com Roma, é o tempo da oração ao qual o próprio Deus nos convida.

A toda santa Mãe de Deus nos ilumine e acompanhe. Ela, que permanece sempre o ícone perfeito da Igreja e nossa advogada junto do trono de Deus.

Com estes votos, concedo de coração a propiciadora Benção Apostólica ao Venerado Irmão Cardeal Alexandru Todea, Arcebispo-Metropolita Emérito de Fagaras e Alba Júlia, ao actual Arcebispo-Metropolita, Lucian Muresan, aos outros Irmãos no Episcopado, aos Sacerdotes, às Religiosas e a todos vós, amados Fiéis da Igreja greco-católica da Roménia.

- Vaticano, 7 de Maio de 2000, vigésimo segundo ano de Pontificado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário