Centesimus Annus
CARTA ENCÍCLICA CENTESIMUS ANNUS DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS NO EPISCOPADO,
AO CLERO, ÀS FAMÍLIAS RELIGIOSAS,
AOS FIÉIS DA IGREJA CATÓLICA
E A TODOS OS HOMENS DE BOA VONTADE
NO CENTENÁRIO DA ENCÍCLICA "RERUM NOVARUM"
Veneráveis Irmãos,
caríssimos Filhos e Filhas:
Saúde e Bênção Apostólica!
Introdução
1. O centenário da promulgação da Encíclica do meu predecessor Leão XIII de veneranda memória, que inicia com as palavras Rerum novarum (1), assinala uma data de importância relevante na história presente da Igreja e também no meu pontificado. De facto, aquela teve o singular privilégio de ser comemorada por Documentos solenes dos Sumos Pontífices, desde o seu quadragésimo aniversário até ao nonagésimo. Podemos assim dizer que o seu trajecto histórico foi ritmado por outros escritos, que simultâneamente a reevocavam e actualizavam (2).
Ao propor-me fazer o mesmo no seu centenário, solicitado por numerosos Bispos, instituições eclesiais, centros de estudos, empresários e trabalhadores, tanto a título individual como na qualidade de membros de diversas associações, desejo antes de mais satisfazer o débito de gratidão que a Igreja inteira tem para com o grande Papa Leão XIII e o seu "imortal Documento" (3). Quero também mostrar que a seiva abundante, que sobe daquela raiz, não secou com o passar dos anos, pelo contrário tornou-se mais fecunda. Disso mesmo são testemunho as iniciativas de vário género que precederam, acompanham e seguirão esta celebração, iniciativas promovidas pelas Conferências episcopais, por Organismos internacionais, por Universidades e Institutos académicos, por Associações profissionais e por outras instituições e pessoas, em muitas partes do mundo.
2. A presente Encíclica participa nestas celebrações, para agradecer a Deus, do Qual "provém toda a boa dádiva e todo o dom perfeito" (Tg 1, 17), que quis servir-Se de um documento emanado há cem anos da Cátedra de Pedro, para operar na Igreja e no mundo imenso bem e difundir tanta luz. A comemoração, aqui feita, refere-se à Encíclica leonina, mas engloba depois também as Encíclicas e outros escritos dos meus predecessores, que contribuíram para a tornar presente e operante ao longo do tempo, constituindo aquela que seria chamada "doutrina social", "ensino social", ou ainda "Magistério social" da Igreja.
À validade de tal ensinamento se referem já duas Encíclicas que publiquei nos anos do meu pontificado: a Laborem exercens acerca do trabalho humano, e a Sollicitudo rei socialis sobre os actuais problemas do desenvolvimento dos homens e dos povos (4).
3. Desejo agora propor uma "releitura" da Encíclica leonina, convidando a "olhar para trás", ao próprio texto, para descobrir de novo a riqueza dos princípios fundamentais, nela formulados, sobre a solução da questão operária. Mas convido também a "olhar ao redor", às "coisas novas", que nos circundam e em que nos encontramos como que imersos, frequentemente muito diversas das "coisas novas" que caracterizaram o último decénio do século passado. Enfim, convido a "olhar ao futuro", quando já se entrevê o terceiro Milénio da era cristã, carregado de incógnitas, mas também de promessas. Incógnitas e promessas que apelam à nossa imaginação e criatividade, estimulando também a nossa responsabilidade, como discípulos do "único Mestre", Cristo (cf. Mt 23, 8), de indicar o "caminho", proclamar a "verdade" e comunicar "a vida" que é Ele próprio (cf. Jo 14, 6).
Procedendo deste modo, será confirmado não só o valor permanente do seu ensinamento, mas manifestar-se-á também overdadeiro sentido da Tradição da Igreja, que, sempre viva e vivificante, constrói sobre o fundamento posto pelos nossos pais na fé e, designadamente, sobre o que "os Apóstolos transmitiram à Igreja" (5) em nome de Jesus Cristo, o fundamento "que ninguém pode substituir" (1 Cor 3, 11).
Foi movido pela consciência da sua missão de sucessor de Pedro que Leão XIII se propôs falar, e a mesma consciência anima hoje o seu sucessor. Como ele, e os Pontífices anteriores e posteriores, me inspiro na imagem evangélica do "escriba instruído nas coisas do Reino dos Céus", do qual o Senhor diz que "é semelhante a um pai de família, que do seu tesouro tira coisas novas e antigas" (Mt 13, 52). O tesouro é a grande corrente da Tradição da Igreja, que contém as "coisas antigas", desde sempre recebidas e transmitidas, e que permite ler as "coisas novas", no meio das quais transcorre a vida da Igreja e do mundo.
Entre essas coisas que, incorporando-se na Tradição, se tornam antigas e oferecem ocasião e material para o seu enriquecimento e para uma maior valorização da vida de fé, conta-se também a actividade fecunda de milhões e milhões de homens que, estimulados pelo ensinamento do Magistério social, procuraram inspirar-se nele para o próprio compromisso no mundo. Actuando individualmente ou inseridos em grupos, associações e organizações, constituíram como que um grande movimento empenhado na defesa da pessoa humana e na tutela da sua dignidade, o que tem contribuído para construir, nas diversas vicissitudes da história, uma sociedade mais justa, ou pelo menos a colocar barreiras e limites à injustiça.
A presente Encíclica visa pôr em evidência a fecundidade dos princípios expressos por Leão XIII, que pertencem ao património doutrinal da Igreja, e, como tais, empenham a autoridade do seu Magistério. Mas a solicitude pastoral levou-me também a propor a análise de alguns acontecimentos da história recente. É supérfluo dizer que a atenta consideração do evoluir dos acontecimentos, para discernir as novas exigências da evangelização, faz parte da tarefa dos pastores. Tal exame, no entanto, não pretende dar juízos definitivos, não fazendo parte, por si, do âmbito específico do Magistério.
I - Traços característicos da "Rerum Novarum"
4. No final do século passado, a Igreja encontrou- -se diante de um processo histórico, em movimento já há algum tempo, mas que então atingia um ponto nevrálgico. Factor determinante desse processo foi um conjunto de mudanças radicais verificadas no campo político, económico e social, no âmbito científico e técnico, além da influência multiforme das ideologias predominantes. Resultado destas alterações foi, no campo político, uma nova concepção da sociedade e do Estado e, consequentemente, da autoridade. Uma sociedade tradicional se dissolvia, e começava-se a formar uma outra, cheia da esperança de novas liberdades, mas também dos perigos de novas formas de injustiça e escravidão.
No campo económico, para onde confluíam as descobertas e as aplicações das ciências, chegara-se progressivamente a novas estruturas na produção dos bens de consumo. Surgira uma nova forma de propriedade, o capital, e uma nova forma de trabalho, o assalariado, caracterizado por pesados ritmos de produção, sem horário nem qualquer atenção ao sexo, idade ou situação familiar, mas determinado apenas pela eficiência, na perspectiva do incremento do lucro.
O trabalho tornava-se assim uma mercadoria, que podia ser livremente comprada e vendida no mercado, e cujo preço era determinado pela lei da procura e da oferta, sem olhar ao mínimo necessário para o sustento vital da pessoa e sua família. E a maior parte das vezes o trabalhador nem sequer estava seguro de conseguir vender desse modo a "própria mercadoria", vendo-se continuamente ameaçado pelo desemprego, o que significava, na ausência de qualquer forma de previdência social, o espectro da morte pela fome.
Consequência desta transformação era "a divisão da sociedade em duas classes, separadas por um abismo profundo" (6): esta situação estava entrelaçada com uma acentuada alteração de ordem política. De facto, a teoria política então predominante procurava promover, com leis apropriadas ou, pelo contrário, com voluntária abstenção de qualquer intervenção, a total liberdade económica. Ao mesmo tempo, começava a surgir, de forma organizada e tantas vezes violenta, uma outra concepção da propriedade e da vida económica, que implicava uma nova organização política e social.
No momento culminante desta contraposição, quando aparecia já em plena luz a gravíssima injustiça da realidade social, presente em muitas situações, e o perigo de uma revolução alimentada pelas concepções então denominadas "socialistas", Leão XIII intervém com um Documento, que afrontava de maneira orgânica a "questão operária". A Encíclica fora precedida por algumas, mais dedicadas a ensinamentos de carácter político, e outras a seguirão mais tarde (7). Neste contexto, deve-se lembrar particularmente a Encíclica Libertas praestantissimum, onde Leão XIII fazia ressaltar o vínculo constitutivo da liberdade humana com a verdade, de tal modo que uma liberdade que por si própria recusasse vincular-se à verdade, degeneraria em arbítrio e acabaria por submeter-se às paixões mais vis, e por se autodestruir. Com efeito, de que derivam todos os males contra os quais a Rerum novarum quis reagir, senão de uma liberdade que, no campo da actividade económica e social, se separa inteiramente da verdade do homem?
O Pontífice inspirava-se, além disso, no ensino dos predecessores, bem como nos muitos Documentos episcopais, nos estudos científicos de leigos, na acção de movimentos e associações católicas e em tantas iniciativas realizadas no campo social, que marcaram a vida da Igreja, na segunda metade do século XIX.
5. As "coisas novas" a que o Papa se referia, estavam longe de ser positivas. O primeiro parágrafo da Encíclica descreve as "coisas novas", que lhe deram o nome, com traços fortes: "Dado que uma ânsia ardente de coisas novas já há tempos agitava os Estados, seguir-se-lhe-ia como consequência que os desejos de mudança acabariam por se transferir do campo político para o sector conexo da economia. De facto, os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos abertos ao emprego, as diversas relações entre patrões e operários; o acumular da riqueza nas mãos de poucos, ao lado da miséria de muitos; a maior consciência que os trabalhadores adquiriram de si mesmos e, por conseguinte, uma maior união entre eles, e além disso a decadência dos costumes, todas estas coisas fizeram deflagrar um conflito" (8).
O Papa, e com ele a Igreja, bem como a comunidade civil, encontram-se frente a uma sociedade dividida por um conflito, tanto mais duro e desumano por não conhecer regra nem directriz. Foi precisamente sobre o conflito entre o capital e o trabalho, ou - como o chamava a Encíclica - a questão operária, nos termos gravíssimos que então se revelava, que o Papa não hesitou em dizer a sua palavra.
Aparece aqui a primeira reflexão, que a Encíclica sugere para o tempo presente. Em face de um conflito que opunha, quase como "lobos", o homem ao próprio homem, exactamente no plano da sobrevivência vital de uns e da opulência dos outros, o Papa não duvidou ser seu dever intervir, em virtude do seu "ministério apostólico" (9), ou seja, da missão recebida do próprio Jesus Cristo de "apascentar os cordeiros e as ovelhas" (cf. Jo 21, 15-17) e de "ligar e desligar na terra" para o Reino dos Céus (cf. Mt 16, 19). A sua intenção era com certeza restabelecer a paz, e o leitor contemporâneo não pode deixar de notar a severa condenação da luta de classes, que ele proferia sem meios termos (10). Porém, estava bem consciente do facto de que a paz se edifica sobre o fundamento da justiça: o conteúdo essencial da Encíclica foi precisamente a proclamação das condições fundamentais da justiça na conjuntura económica e social de então (11).
Deste modo Leão XIII, no rasto dos predecessores, estabelecia um paradigma permanente para a Igreja. Esta, com efeito, tem a sua palavra a dizer perante determinadas situações humanas, individuais e comunitárias, nacionais e internacionais, para as quais formula uma verdadeira doutrina, um corpus, que lhe permite analisar as realidades sociais, pronunciar-se sobre elas e indicar directrizes para a justa solução dos problemas que daí derivam.
No tempo de Leão XIII, semelhante concepção do direito-dever da Igreja estava muito longe de ser comummente aceite. Prevalecia, de facto, uma dupla tendência: uma orientada para este mundo e esta vida, à qual a fé devia permanecer estranha; e outra dedicada a uma salvação puramente ultraterrena, que todavia não iluminava nem orientava a presença sobre a terra. A própria atitude do Papa de publicar a Rerum novarum conferiu à Igreja quase um "estatuto de cidadania" no meio das variáveis realidades da vida pública, e isto confirmar-se-ia ainda mais em seguida. Efectivamente, para a Igreja, ensinar e difundir a doutrina social pertence à sua missão evangelizadora e faz parte essencial da mensagem cristã, porque essa doutrina propõe as suas consequências directas na vida da sociedade e enquadra o trabalho diário e as lutas pela justiça no testemunho de Cristo Salvador. Ela constitui, além disso, uma fonte de unidade e de paz, em face dos conflitos que inevitavelmente se levantam no sector económico-social. Torna-se possível desse modo viver as novas situações sem envilecer a dignidade transcendente da pessoa humana, nem em si próprio nem nos adversários, e encaminhá-las para uma recta solução.
Ora, a validade de tal orientação oferece-me, à distância de cem anos, a oportunidade de dar um contributo para a elaboração da "doutrina social cristã". A "nova evangelização", da qual o mundo moderno tem urgente necessidade, e sobre a qual várias vezes insisti, deve incluir entre as suas componentes essenciais o anúncio da doutrina social da Igreja, tão idónea hoje como no tempo de Leão XIII para indicar o recto caminho de resposta aos grandes desafios da idade contemporânea, enquanto cresce o descrédito das ideologias. Como então, é preciso repetir que não existe verdadeira solução para a "questão social" fora do Evangelho e que, por outro lado, as "coisas novas" podem encontrar neste o seu espaço de verdade e a devida avaliação moral.
6. Propondo-se projectar luz sobre o conflito que se estava a adensar entre capital e trabalho, Leão XIII afirmava os direitos fundamentais dos trabalhadores. Por isso, a chave de leitura do texto leonino é a dignidade do trabalhador em quanto tal e, por isso mesmo, a dignidade do trabalho, que aparece definido como "a actividade humana destinada a prover às necessidades da vida, e especialmente à sua conservação" (12). O Pontífice qualifica o trabalho como "pessoal", já que "a força activa é inerente à pessoa, totalmente pertencente a quem a exercita, e foi-lhe dada para seu proveito" (13). O trabalho pertence assim à vocação de cada pessoa; mais, o homem exprime-se e realiza-se na sua actividade laborativa. Simultaneamente o trabalho tem uma dimensão social, pela sua íntima relação quer com a família, quer com o bem comum, "porque pode-se afirmar de verdade que o trabalho dos operários é o que produz as riquezas dos Estados" (14). Isto mesmo retomei e desenvolvi na Encíclica Laborem exercens (15).
Um outro princípio relevante, é, sem dúvida, o do direito à "propriedade privada" (16). O próprio espaço, que lhe dedica a Encíclica, revela a importância que lhe atribui. O Papa está bem consciente do facto de que a propriedade privada não é um valor absoluto, nem deixa de proclamar os princípios complementares, como o do destino universal dos bens da terra (17).
Por outro lado, é certo também que o tipo de propriedade privada, que ele principalmente considera, é o da posse da terra (18). Todavia isso não impede que as razões aduzidas para tutelar a propriedade privada, ou seja, para afirmar o direito a possuir as coisas necessárias para o desenvolvimento pessoal e da própria família - nas diversas formas concretas que este direito possa assumir - conservem hoje o seu valor. Isto deve ser novamente afirmado quer perante as mudanças, de que hoje somos testemunhas, verificadas nos sistemas onde imperava a propriedade colectiva dos meios de produção, quer defronte aos crescentes fenómenos de pobreza ou, mais exactamente, às privações da propriedade privada, que se apresentam aos nossos olhos em muitas partes do mundo, inclusive naquelas onde predominam os sistemas cujo fulcro é precisamente a afirmação do direito de propriedade privada. Na sequência dessas alterações e da persistência da pobreza, torna-se necessária uma análise mais profunda do problema, que será desenvolvida mais adiante.
7. Em estreita relação com o tema do direito de propriedade a Encíclica de Leão XIII afirma de igual modo outros direitos, como próprios e inalienáveis da pessoa humana. Entre eles, é proeminente, pelo espaço que lhe dedica e a importância que lhe atribui, o "direito natural do homem" a formar associações privadas; o que, significa primariamente o direito de criar associações profissionais de empresários e operários, ou apenas de operários (19). Daqui a razão pela qual a Igreja defende e aprova a criação daquilo que agora designamos por sindicatos, não certamente por preconceitos ideológicos nem por cedência a uma mentalidade de classe, mas porque o associar-se é um "direito natural" do ser humano e, portanto, anterior à sua integração na sociedade política. De facto, "o Estado não pode proibir a sua formação", porque ele "deve tutelar os direitos naturais, não destruí-los. Impedindo tais associações, ele contradiz-se a si mesmo" (20).
Em conjunto com este direito, que o Papa - é justo sublinhá-lo - reconhece explicitamente aos operários, ou, segundo a sua linguagem, aos "proletários", são afirmados com igual clareza os direitos à "limitação das horas de trabalho", ao legítimo repouso, e a um tratamento diverso aos menores e às mulheres (21) no que se refere ao tipo e duração do trabalho.
Se se tem presente o que a história diz acerca dos processos consentidos, ou pelo menos não excluidos legalmente, em ordem à contratação, sem qualquer garantia quanto às horas de trabalho, nem quanto às condições higiénicas do ambiente, e ainda sem atender à idade e ao sexo dos candidatos ao emprego, é bem compreensível a severa afirmação do Papa. "Não é justo nem humano - escreve ele - exigir do homem um trabalho tal que, devido à exagerada fadiga, lhe faça brutalizar a mente e debilitar o corpo". E pormenorizando no que se refere ao contrato, que devia fazer entrar em vigor tais "relações de trabalho", afirma: "em toda a convenção estipulada entre patrões e operários, exista sempre a condição expressa ou subentendida" que preveja convenientemente o repouso proporcional "à soma das energias despendidas no trabalho"; depois conclui: "um pacto contrário seria imoral" (22).
8. Imediatamente a seguir o Papa enuncia um outro direito do operário como pessoa. Trata-se do direito ao "justo salário", que não pode ser deixado "ao livre acordo das partes: de modo que o dador de trabalho, uma vez paga a mercadoria, fez a sua parte, sem de nada mais ser devedor" (23). O Estado, não tem poder - dizia-se naquele tempo - para intervir na determinação destes contratos, mas apenas para garantir o cumprimento de quanto fora explicitamente estipulado. Semelhante concepção das relações entre patrões e operários, puramente pragmática e inspirada num rígido individualismo, é severamente reprovada na Encíclica, enquanto contrária à dupla natureza do trabalho, como facto pessoal e necessário. Com efeito, se o trabalho, na sua dimensão pessoal, pertence à disponibilidade de que cada um goza das próprias faculdades e energias, todavia enquanto necessário, é regulado pela obrigação grave que pende sobre cada um de "conservar a vida"; "daqui nasce por necessária consequência - conclui o Papa - o direito de procurar os meios de sustento, que, para a gente pobre, se reduzem ao salário do próprio trabalho" (24).
O salário deve ser suficiente para manter o operário e a sua família. Se o trabalhador, "pressionado pela necessidade, ou pelo medo do pior, aceita contratos mais duros porque impostos pelo proprietário ou pelo empresário, e que, por vontade ou sem ela, devem ser aceites, é claro que sofre uma violência, contra a qual a justiça protesta" (25).
Queira Deus que estas palavras, escritas enquanto crescia o que foi chamado "capitalismo selvagem", não tenham hoje de ser repetidas com a mesma severidade. Infelizmente ainda hoje é frequente encontrar casos de contratos entre patrões e operários, nos quais se ignora a mais elementar justiça, em matéria de trabalho de menores ou feminino, dos horários de trabalho, do estado higiénico dos locais de trabalho, e da legítima retribuição. E isto não obstante as Declarações e Convenções internacionais sobre o assunto (26), e as próprias leis internas dos Estados. O Papa atribuía à "autoridade puíblica", o "estrito dever" de cuidar adequadamente do bem-estar dos trabalhadores, porque se o não fizesse, ofenderia a justiça; não hesitava mesmo em falar de "justiça distributiva" (27).
9. A tais direitos, Leão XIII junta outro, sempre a propósito da condição operária, que considero necessário recordar expressamente, devido à importância que tem: é o direito de cumprir livremente os deveres religiosos. O Papa quis proclamá-lo no mesmo contexto dos outros direitos e deveres dos operários, e isso não obstante o clima geral que, também no seu tempo, considerava certas questões como pertencentes exclusivamente ao âmbito individual. Ele afirma a necessidade do repouso festivo, a fim de que o homem seja levado ao pensamento dos bens celestes e ao culto devido à majestade divina (28). Deste direito, radicado num mandamento, ninguém pode privar o homem: "a ninguém é lícito violar impunemente a dignidade do homem, e o Estado deve assegurar ao operário o exercício dessa liberdade" (29).
Não se equivocaria quem visse, nesta clara afirmação, o gérmen do princípio do direito à liberdade religiosa, que foi depois objecto de muitas Declarações solenes e Convenções internacionais (30), bem como da nossa Declaração conciliar e do meu constante ensinamento (31). A propósito, devemos interrogar-nos se os dispositivos legais vigentes e a práxis das sociedades industrializadas asseguram hoje efectivamente o exercício do direito elementar ao repouso festivo.
10. Outra nota importante, rica de ensinamentos para os nossos dias, é a concepção das relações entre o Estado e os cidadãos. A Rerum novarum critica os dois sistemas sociais e económicos: o socialismo e o liberalismo. Ao primeiro, é dedicada a parte inicial, na qual se reafirma o direito à propriedade privada; ao segundo, não se dedica nenhuma secção especial, mas - facto merecedor de atenção - inserem-se as críticas, quando se aborda o tema dos deveres do Estado (32). Este não pode limitar-se a "providenciar a favor de uma parte dos cidadãos", isto é, a rica e próspera, nem pode "transcurar a outra", que representa sem dúvida a larga maioria do corpo social; caso contrário, ofende-se a justiça, que quer que se dê a cada um o que lhe pertence. "Todavia, na tutela destes direitos pessoais, tenha-se uma atenção especial com os débeis e os pobres. A classe dos ricos, forte por si mesma, tem menos necessidade de defesa pública; a classe proletária, carente de um apoio próprio, tem uma necessidade especial de o procurar na protecção do Estado. Por isso aos operários, que se contam no número dos débeis e necessitados, o Estado deve preferentemente dirigir os seus cuidados e as suas providências" (33).
Estes passos têm hoje valor sobretudo em face das novas formas de pobreza existentes no mundo, tanto mais que são afirmações que não dependem de uma determinada concepção do Estado nem de uma particular teoria política. O Papa reafirma um princípio elementar de qualquer sã organização política, ou seja, os indivíduos quanto mais indefesos aparecem numa sociedade, tanto mais necessitam da atenção e do cuidado dos outros e, particularmente da intervenção da autoridade pública.
Deste modo o princípio, que hoje designamos de solidariedade, e cuja validade, quer na ordem interna de cada Nação, quer na ordem internacional, sublinhei na Sollicitudo rei socialis (34), apresenta-se como um dos princípios basilares da concepção cristã da organização social e política. Várias vezes Leão XIII o enuncia, com o nome "amizade", que encontrámos já na filosofia grega; desde Pio XI é designado pela expressão mais significativa "caridade social", enquanto Paulo VI, ampliando o conceito na linha das múltiplas dimensões actuais da questão social, falava de "civilização do amor" (35).
11. A releitura da Encíclica à luz da realidade contemporânea, permite apreciar a constante preocupação e dedicação da Igreja a favor daquelas categorias de pessoas, que são objecto de predilecção por parte do Senhor Jesus. O próprio conteúdo do texto é um testemunho excelente da continuidade, na Igreja, daquela que agora se designa "opção preferencial pelos pobres", opção que defini como "uma forma especial de primado na prática da caridade cristã" (36). A Encíclica sobre a "questão operária" é, pois, um documento sobre os pobres, e sobre a terrível condição à qual o novo e não raramente violento processo de industrialização reduzira enormes multidões. Também hoje, numa grande parte do mundo, semelhantes processos de transformação económica, social e política produzem os mesmos males.
Se Leão XIII recorre ao Estado para dar o justo remédio à condição dos pobres, é porque reconhece oportunamente que o Estado tem o dever de promover o bem comum, e de procurar que os diversos âmbitos da vida social, sem excluir o económico, contribuam para realizar aquele, embora no respeito da legítima autonomia de cada um deles. Isto, contudo, não deve fazer pensar que, para o Papa Leão XIII, toda a solução da questão social se deverá esperar do Estado. Pelo contrário, ele insiste várias vezes sobre os necessários limites à intervenção do Estado e sobre o seu carácter instrumental, já que o indivíduo, a família e a sociedade lhe são anteriores, e ele existe para tutelar os direitos de um e de outras, e não para os sufocar (37).
A ninguém escapa a actualidade destas reflexões. Sobre o importante tema dos limites inerentes à natureza do Estado, convirá voltar mais adiante. De momento, os pontos sublinhados, não certamente os únicos da Encíclica, põem-se na continuidade do Magistério social da Igreja e à luz também de uma sã concepção da propriedade privada, do trabalho, do processo económico, da realidade do Estado e, acima de tudo, do próprio homem. Outros temas serão depois mencionados, ao examinar alguns aspectos da realidade contemporânea; mas será conveniente desde já ter presente que aquilo que serve de trama e, em certo sentido, de linha condutora à Encíclica, e a toda a doutrina social da Igreja, é a correcta concepção da pessoa humana e do seu valor único, enquanto "o homem (é) a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma". Nele gravou a Sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26), conferindo-lhe uma dignidade incomparável, sobre a qual a Encíclica retorna várias vezes. Com efeito, além dos direitos que cada homem adquire com o próprio trabalho, existem direitos que não são correlativos a qualquer obra por ele realizada, mas derivam da sua dignidade essencial de pessoa.
II - Rumo às "Coisas Novas" de hoje
12. A comemoração da Rerum novarum não seria adequada, se não olhasse também à situação de hoje. Já no seu conteúdo, o Documento se presta a uma tal consideração, porque o quadro histórico e as previsões, aí delineadas, se revelam, à luz de quanto aconteceu no período sucessivo, surpreendentemente exactas.
Isto foi confirmado de modo particular pelos acontecimentos dos últimos meses do ano de 1989 e dos primeiros de 1990. Estes e as consequentes transformações radicais só se explicam com base nas situações anteriores, que em certa medida tinham materializado e institucionalizado as previsões de Leão XIII e os sinais, cada vez mais inquietantes, observados pelos seus sucessores. Aquele Pontífice, com efeito, previa as consequências negativas, sobre todos os aspectos - político, social e económico - de uma organização da sociedade, tal como a propunha o "socialismo", que então estava ainda no estado de filosofia social e de movimento mais ou menos estruturado. Alguém poderia admirar-se do facto de que o Papa começasse pelo "socialismo", a crítica das soluções que se davam à "questão operária", quando ele ainda não se apresentava - como depois aconteceu - sob a forma de um Estado forte e poderoso, com todos os recursos à disposição. Todavia Leão XIII mediu bem o perigo que representava, para as massas, a apresentação atraente de uma solução tão simples quão radical da "questão operária". Isto torna-se tanto mais verdadeiro se se considera em função da pavorosa situação de injustiça em que jaziam as massas proletárias, nas Nações há pouco industrializadas.
Ocorre aqui sublinhar duas coisas: por um lado, a extraordinária lucidez na apreensão, em toda a sua crueza, da verdadeira condição dos proletários, homens, mulheres e crianças; por outro lado, a não menor clareza com que intuiu o mal de uma solução que, sob a aparência de uma inversão das posições de pobres e ricos, redundava de facto em detrimento daqueles mesmos que se propunha ajudar. O remédio revelar-se-ia pior que a doença. Individuando a natureza do socialismo de então, como sendo a supressão da propriedade privada, Leão XIII atingia o fundo da questão.
As suas palavras merecem ser relidas com atenção: "Para remediar este mal (a injusta distribuição das riquezas e a miséria dos proletários), os socialistas excitam, nos pobres, o ódio contra os ricos, e defendem que a propriedade privada deve ser abolida, e os bens de cada um tornarem-se comuns a todos (...), mas esta teoria, além de não resolver a questão, acaba por prejudicar os próprios operários, e é até injusta por muitos motivos, já que vai contra os direitos dos legítimos proprietários, falseia as funções do Estado, e subverte toda a ordem social" (39). Não se poderia indicar melhor os males derivados da instauração deste tipo de socialismo como sistema de Estado: aquele tomaria o nome de "socialismo real".
13. Aprofundando agora a reflexão delineada, e fazendo ainda referência ao que foi dito nas Encíclicas Laborem exercens e Sollicitudo rei socialis, é preciso acrescentar que o erro fundamental do socialismo é de carácter antropológico. De facto, ele considera cada homem simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente subordinado ao funcionamento do mecanismo económico-social, enquanto, por outro lado, defende que esse mesmo bem se pode realizar prescindindo da livre opção, da sua única e exclusiva decisão responsável em face do bem ou do mal. O homem é reduzido a uma série de relações sociais, e desaparece o conceito de pessoa como sujeito autónomo de decisão moral, que constrói, através dessa decisão, o ordenamento social. Desta errada concepção da pessoa, deriva a distorção do direito, que define o âmbito do exercício da liberdade, bem como a oposição à propriedade privada. O homem, de facto, privado de algo que possa "dizer seu" e da possibilidade de ganhar com que viver por sua iniciativa, acaba por depender da máquina social e daqueles que a controlam, o que lhe torna muito mais difícil reconhecer a sua dignidade de pessoa e impede o caminho para a constituição de uma autêntica comunidade humana.
Pelo contrário, da concepção cristã da pessoa segue-se necessariamente uma justa visão da sociedade. Segundo a Rerum novarum e toda a doutrina social da Igreja, a sociabilidade do homem não se esgota no Estado, mas realiza-se em diversos aglomerados intermédios, desde a família até aos grupos económicos, sociais, políticos e culturais, os quais, provenientes da própria natureza humana, estão dotados - subordinando-se sempre ao bem comum - da sua própria autonomia. É o que designei de "subjectividade" da sociedade, que foi anulada pelo "socialismo real" (40).
Se se questiona ulteriormente onde nasce aquela errada concepção da natureza da pessoa e da subjectividade da sociedade, é necessário responder que a sua causa primeira é o ateísmo. É na resposta ao apelo de Deus, contido no ser das coisas, que o homem toma consciência da sua dignidade transcendente. Cada homem deve dar esta resposta, na qual se encontra o clímax da sua humanidade, e nenhum mecanismo social ou sujeito colectivo o pode substituir. A negação de Deus priva a pessoa do seu fundamento e consequentemente induz a reorganizar a ordem social, prescindido da dignidade e responsabilidade da pessoa.
O referido ateísmo está, aliás, estritamente conexo com o racionalismo iluminístico, que concebe a realidade humana e social do homem, de maneira mecanicista. Nega-se deste modo a intuição última sobre a verdadeira grandeza do homem, a sua transcendência relativamente ao mundo das coisas, a contradição que percebe no seu coração entre o desejo de uma plenitude de bem e a própria incapacidade de o conseguir e, sobretudo, a necessidade da salvação que daí deriva.
14. Da mesma raiz ateísta, deriva ainda a escolha dos meios de acção, própria do socialismo, que é condenada na Rerum novarum. Trata-se da luta de classes. O Papa - entenda-se! - não pretende condenar toda e qualquer forma de conflitualidade social. A Igreja sabe bem que, ao longo da história, os conflitos de interesses entre diversos grupos sociais surgem inevitavelmente, e que, perante eles, o cristão deve muitas vezes tomar posição decidida e coerentemente. A Encíclica Laborem exercens, aliás, reconheceu claramente o papel positivo do conflito, quando ele se configura como "luta pela justiça social"; e na Quadragesimo anno escrevia-se: "com efeito, a luta de classes, quando se abstém dos actos de violência e do ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco numa honesta discussão, fundada na busca da justiça" (42).
O que se condena na luta de classes é principalmente a ideia de um conflito que não é limitado por considerações de carácter ético ou jurídico, que se recusa a respeitar a dignidade da pessoa no outro (e, por consequência, em si próprio), que exclui por isso um entendimento razoável, e visa não já a formulação do bem geral da sociedade inteira, mas sim o interesse de uma parte que se substitui ao bem comum e quer destruir o que se lhe opõe. Trata-se, numa palavra, da representação - no terreno do confronto interno entre os grupos sociais - da doutrina da "guerra total", que o militarismo e o imperialismo daquela época impunham no âmbito das relações internacionais. Tal doutrina substituía a procura do justo equilíbrio entre os interesses das diversas Nações, pela prevalência absoluta da posição da própria parte, mediante a destruição da resistência da parte contrária, destruição realizada com todos os meios, sem excluir o uso da mentira, o terror contra os civis, as armas de extermínio, que naqueles anos começavam a ser projetadas. Luta de classes em sentido marxista e militarismo têm, portanto, a mesma raiz: o ateísmo e o desprezo da pessoa humana, que fazem prevalecer o princípio da força sobre o da razão e do direito.
15. A Rerum novarum opõe-se à colectivização pelo Estado dos meios de produção, que reduziria cada cidadão a uma "peça" na engrenagem da máquina do Estado. Igualmente critica uma concepção do Estado que deixe totalmente a esfera da economia fora do seu campo de interesse e de acção. Existe com certeza uma legítima esfera de autonomia do agir económico, onde o Estado não deve entrar. Compete a este, porém, a tarefa de determinar o enquadramento jurídico dentro do qual se desenrolem os relacionamentos económicos, e de salvaguardar deste modo as condições primárias de uma livre economia, que pressupõe uma certa igualdade entre as partes, de modo que uma delas não seja de tal maneira mais poderosa que a outra que praticamente a possa reduzir à escravidão (43).
A este propósito, a Rerum novarum aponta o caminho de justas reformas, que restituam ao trabalho a sua dignidade de livre actividade do homem. Aquelas implicam uma tomada de posição responsável por parte da sociedade e do Estado, tendente sobretudo a defender o trabalhador contra o pesadelo do desemprego. Isto verificou-se historicamente de dois modos convergentes: ou com políticas económicas, visando assegurar o crescimento equilibrado e a condição de pleno emprego; ou com os seguros de desemprego e com políticas de requalificação profissional capazes de facilitar a passagem dos trabalhadores dos sectores em crise para outros em expansão.
Além disso, a sociedade e o Estado devem assegurar níveis salariais adequados ao sustento do trabalhador e da sua família, inclusive com uma certa margem de poupança. Isto exige esforços para dar aos trabalhadores conhecimentos e comportamentos melhores, capazes de tornar o seu trabalho mais qualificado e produtivo; mas requer também uma vigilância assídua e adequadas medidas legislativas para truncar fenómenos vergonhosos de desfrutamento, com prejuízo sobretudo dos trabalhadores mais débeis, imigrantes ou marginalizados. Decisiva, neste sector, é a função dos sindicatos, que ajustam os mínimos salariais e as condições de trabalho.
Por último, é necessário garantir o respeito de horários "humanos" de trabalho e de repouso, bem como o direito de exprimir a própria personalidade no lugar de trabalho, sem serem violados seja de que modo for na própria consciência ou dignidade. Faz-se apelo de novo aqui ao papel dos sindicatos não só como instrumentos de contratação, mas também como "lugares" de expressão da personalidade dos trabalhadores: aqueles servem para o desenvolvimento de uma autêntica cultura do trabalho e ajudam os trabalhadores a participarem de modo plenamente humano na vida da empresa (44).
Para a realização destes objectivos, o Estado deve concorrer tanto directa como indirectamente. Indirectamente e segundo o princípio de subsidiariedade, criando as condições favoráveis ao livre exercício da actividade económica, que leve a uma oferta abundante de postos de trabalho e de fontes de riqueza. Directamente e segundo o princípio de solidariedade, pondo, em defesa do mais débil, algumas limitações à autonomia das partes, que decidem as condições de trabalho, e assegurando em todo o caso um mínimo de condições de vida ao desempregado (45).
A Encíclica e o Magistério social, a ela conexo, tiveram uma múltipla influência naqueles anos entre os séculos XIX e XX. Essa influência é visível em numerosas reformas introduzidas nos sectores da previdência social, das pensões, dos seguros contra a doença, da prevenção de acidentes, no quadro de um maior respeito dos direitos dos trabalhadores (46).
16. Tais reformas foram, em parte, realizadas pelos Estados, mas, na luta para as obter, desempenhou um importante papel a acção do Movimento operário. Nascido como reacção da consciência moral contra situações de injustiça e de dano, ele desenvolveu um vasto campo de actividade sindical, reformista, distante das utopias da ideologia e mais próxima às carências quotidianas dos trabalhadores e, neste âmbito, os seus esforços juntaram-se muitas vezes aos dos cristãos para obter o melhoramento humano das condições de vida dos trabalhadores. Logo a seguir, tal Movimento foi, em certa medida, dominado por aquela mesma ideologia marxista, contra a qual se dirigia a Rerum novarum.
Essas mesmas reformas foram também o resultado de um processo livre de auto-organização da sociedade, com a criação de instrumentos eficazes de solidariedade, capazes de sustentar um crescimento económico mais respeitador dos valores da pessoa. Recorde-se aqui a multiforme actividade, com um notável contributo dos cristãos, na fundação de cooperativas de produção, de consumo e de crédito, na promoção da instrução popular e formação profissional, na experimentação de várias formas de participação na vida da empresa e, em geral, da sociedade.
Se, portanto, olhando ao passado, há motivo para agradecer a Deus porque a grande Encíclica não ficou privada de ressonância nos corações e impeliu a uma activa generosidade, todavia é preciso reconhecer o facto de que o anúncio profético, nela contido, não foi cabalmente acolhido pelos homens daquele tempo, e precisamente dessa atitude vieram desgraças muito graves.
17. Lendo a Encíclica, em conexão com todo o rico Magistério leonino (47), nota-se como ela indica fundamentalmente as consequências, no terreno económico-social, de um erro de muito mais vastas dimensões. O erro, como se disse, consiste numa concepção da liberdade humana que a desvincula da obediência à verdade e, por conseguinte, também do dever de respeitar os direitos dos outros. O conteúdo da liberdade reduz-se então ao amor de si próprio, até chegar ao desprezo de Deus e do próximo, amor que conduz à afirmação ilimitada do interesse próprio, sem se deixar conter por qualquer obrigação de justiça (48).
Este erro atingiu as suas consequências extremas no trágico ciclo das guerras que revolveram a Europa e o mundo entre 1914 e 1945. Foram guerras ditadas pelo militarismo e pelo nacionalismo exacerbado, e pelas formas de totalitarismo a esses ligadas, e guerras derivadas da luta de classes, guerras civis e ideológicas. Sem a terrível carga de ódio e rancor, acumulada por causa de tanta injustiça quer a nível internacional quer a nível da injustiça social interna de cada Estado, não seriam possíveis guerras de tamanha ferocidade em que foram investidas as energias de grandes Nações, em que não se hesitou em violar os direitos humanos mais sagrados, e foi planificado e executado o extermínio de povos e grupos sociais inteiros. Recorde-se aqui, em particular, o povo hebreu, cujo destino terrível se tornou um símbolo da aberração a que pode chegar o homem, quando se volta contra Deus.
Todavia o ódio e a injustiça só se apoderam de inteiras Nações e fazem-nas entrar em acção, quando são legitimados e organizados por ideologias que se fundamentam mais naqueles do que na verdade do homem (49). A Rerum novarum combatia as ideologias do ódio e indicava os caminhos para destruir a violência e o rancor, mediante a justiça. Possa a memória desses terríveis acontecimentos guiar as acções dos homens e, de modo particular, dos dirigentes dos povos no nosso tempo, em que outras injustiças alimentam novos ódios e se desenham no horizonte novas ideologias que exaltam a violência.
18. É verdade que, desde 1945, as armas silenciam no Continente europeu; mas a verdadeira paz - deve-se lembrar - nunca é o resultado da vitória militar, mas implica o superamento das causas da guerra e a autêntica reconciliação entre os povos. Durante muitos anos, de facto, houve, na Europa e no mundo, mais uma situação de não-guerra do que de paz verdadeira. Metade do Continente caiu sob o domínio da ditadura comunista, enquanto a outra metade se organizava para se defender contra tal perigo. Muitos povos perdem o poder de dispor de si próprios, vêem-se encerrados nos limites sufocantes de um império, enquanto se procura destruir a sua memória histórica e a raiz secular da sua cultura. Multidões enormes são forçadas a abandonar a sua terra e violentamente deportadas.
Uma corrida louca aos armamentos absorve os recursos necessários para um equilibrado progresso das economias internas e para auxílio às Nações mais desfavorecidas. O progresso científico e tecnológico, que deveria contribuir para o bem estar do homem, acaba transformado num instrumento de guerra: ciência e técnica são usadas para produzir armas cada vez mais aperfeiçoadas e destrutivas, enquanto a uma ideologia, que não passa de uma perversão da autêntica filosofia, se pede que forneça justificações doutrinais para a nova guerra. E esta não é apenas temida e preparada, mas é combatida, com enorme derramamento de sangue, em várias partes do mundo. A lógica dos blocos ou impérios, já denunciada nos diversos Documentos da Igreja, sendo o mais recente a Encíclica Sollicitudo rei socialis (50), faz com que todas as controvérsias e discórdias, que surgem nos Países do Terceiro Mundo, sejam sistematicamente incrementadas e aproveitadas para criar dificuldades ao adversário.
Os grupos extremistas, que procuram resolver tais controvérsias com as armas, encontram facilmente apoios políticos e militares, são armados e adestrados para a guerra, enquanto aqueles que se esforçam por encontrar soluções pacíficas e humanas, no respeito dos legítimos interesses de todas as partes, permanecem isolados e muitas vezes caiem vítimas dos seus adversários. Mesmo a militarização de tantos Países do "Terceiro Mundo" e as lutas fratricidas que os atormentaram, a difusão do terrorismo e de meios cada vez mais bárbaros de luta político-militar, encontram uma das suas causas primárias na paz precária que se seguiu à II Guerra Mundial. Sobre todo o mundo, enfim, grava a ameaça de uma guerra atómica, capaz de levar à extinção da humanidade. A ciência, usada para fins militares, pôs à disposição do ódio, incrementado pelas ideologias, o instrumento decisivo. Mas a guerra pode terminar sem vencedores nem vencidos num suicídio da humanidade, e então é necessário rejeitar a lógica que a ela conduz, ou seja, a ideia de que a luta pela destruição do adversário, a contradição e a própria guerra são factores de progresso e avanço da história (51). Quando se compreende a necessidade dessa rejeição, devem necessariamente entrar em crise quer a lógica da "guerra total" quer a da "luta de classes".
19. No fim da II Guerra Mundial, porém, um tal desenvolvimento está ainda em formação nas consciências, e o dado mais saliente é o estender-se do totalitarismo comunista sobre mais de metade da Europa e parte do mundo. A guerra, que deveria restituir a liberdade aos indivíduos e restaurar os direitos dos povos, terminou sem ter conseguido estes fins; pelo contrário, acabou de um modo que, para muitos povos, especialmente para aqueles que mais tinham sofrido, abertamente os contradiz. Pode-se dizer que a situação criada deu lugar a diversas respostas.
Em alguns Países, e sob alguns aspectos, assiste-se a um esforço positivo para reconstruir, depois das destruições da guerra, uma sociedade democrática e inspirada na justiça social, a qual priva o comunismo do potencial revolucionário, constituído por multidões exploradas e oprimidas. Estas tentativas procuram em geral preservar os mecanismos do livre mercado, assegurando através da estabilidade da moeda e da firmeza das relações sociais, as condições de um crescimento económico estável e sadio, no qual as pessoas, com o seu trabalho, podem construir um futuro melhor para si e para os próprios filhos. Simultaneamente, estes países procuram evitar que os mecanismos de mercado sejam o único termo de referência da vida associada e tendem a submetê-los a um controle público que faça valer o princípio do destino comum dos bens da terra. Uma certa abundância de ofertas de trabalho, um sólido sistema de segurança social e de acesso profissional, a liberdade de associação e a acção incisiva do sindicato, a previdência em caso de desemprego, os instrumentos de participação democrática na vida social, neste contexto, deveriam subtrair o trabalho da condição de "mercadoria" e garantir a possibilidade de realizá-lo com dignidade.
Existem, depois, outras forças sociais e movimentos de ideias que se opõem ao marxismo com a construção de sistemas de "segurança nacional", visando controlar de modo capilar toda a sociedade, para tornar impossível a infiltração marxista. Exaltando e aumentando o poder do Estado, elas pretendem preservar o seu povo do comunismo; mas, fazendo isso, correm o grave risco de destruir aquela liberdade e aqueles valores da pessoa, em nome dos quais é preciso opor-se àquele.
Outra forma de resposta prática, enfim, está representada pela sociedade do bem-estar, ou sociedade do consumo. Ela tende a derrotar o marxismo no terreno de um puro materialismo, mostrando como uma sociedade de livre mercado pode conseguir uma satisfação mais plena das necessidades materiais humanas que a defendida pelo comunismo, e excluindo igualmente os valores espirituais. Na verdade, se por um lado é certo que este modelo social mostra a falência do marxismo ao construir uma sociedade nova e melhor, por outro lado, negando a existência autónoma e o valor da moral, do direito, da cultura e da religião, coincide com ele na total redução do homem à esfera do económico e da satisfação das necessidades materiais.
20. No mesmo período, desenvolve-se um grandioso processo de "descolonização", pelo qual numerosos Países adquirem ou reconquistam a independência e o direito de disporem livremente de si. Com a aquisição formal da soberania estatal, porém, estes Países muitas vezes estão apenas no início do caminho para a construção de uma autêntica independência. De facto, sectores decisivos da economia permanecem ainda nas mãos de grandes empresas estrangeiras, que recusam ligar-se estavelmente ao progresso do País que as acolhe, e a própria vida política é controlada por forças estrangeiras, enquanto, dentro das fronteiras do Estado, convivem grupos tribais, ainda não amalgamados numa autêntica comunidade nacional. Falta, além disso, uma classe de profissionais competentes, capazes de fazer funcionar de modo honesto e normal o aparelho do Estado, e não existem também os quadros para uma eficiente e responsável gestão da economia.
Dada a situação, a muitos parece que o comunismo poderia oferecer como que um atalho para a edificação da Nação e do Estado, e nascem, por isso, diversas variantes do socialismo com um carácter nacional específico. Misturam-se assim, nas múltiplas ideologias que acabam por se formar, em proporções variáveis, exigências legítimas de salvação nacional, formas de nacionalismo e de militarismo, princípios vindos de antigas tradições populares, por vezes conformes à doutrina social cristã, e conceitos do marxismo-leninismo.
21. Recorde-se, enfim, como, depois da II Guerra Mundial e mesmo por reacção aos seus erros, se difundiu um sentimento mais vivo dos direitos humanos, que foi reconhecido em diversos Documentos internacionais (52), e na elaboração, poder-se-ia dizer, de um novo "direito dos povos", a que a Santa Sé deu constante contributo. Fulcro desta evolução foi a Organização das Nações Unidas. Cresceu não só a consciência do direito dos indivíduos, mas também a dos direitos das Nações, enquanto se adverte mais claramente a necessidade de actuar para sanar os graves desequilíbrios entre as diversas áreas do mundo, o que transferiu, em certo sentido, o centro da questão social do âmbito nacional para o nível internacional (53).
Ao registar, com satisfação, um tal processo, não se pode todavia silenciar o facto de que o balanço geral das diversas políticas de auxílio ao desenvolvimento não é sempre positivo. Além disso, as Nações Unidas ainda não conseguiram construir instrumentos eficazes, alternativos à guerra, na solução dos conflitos internacionais, e este parece ser o problema mais urgente que a comunidade internacional tem para resolver.
III - O Ano de 1989
22. Partindo da situação mundial que acabamos de descrever, e que aparece já exposta na Encíclica Sollicitudo rei socialis, é que se compreende bem o inesperado e promissor alcance dos factos dos últimos anos. O seu ponto mais alto é constituído pelos acontecimentos de 1989, nos Países da Europa central e oriental, mas eles abraçam um arco de tempo e um horizonte geográfico mais amplo. No decurso dos anos '80, caem progressivamente certos regimes ditatoriais e opressivos em alguns Países da América Latina, e também da África e da Ásia. Noutros casos, inicia-se um difícil, mas fecundo caminho de transição para formas políticas mais participativas e mais justas. Contributo importante, mesmo decisivo, veio do empenho da Igreja na defesa e promoção dos direitos do homem: em ambientes fortemente ideologizados, onde a filiação partidária ofuscava o sentimento da dignidade humana comum, a Igreja, com simplicidade e coragem afirmou que todo o homem, - sejam quais forem as suas convições pessoais - traz gravada em si a imagem de Deus e, por isso, merece respeito. Com esta afirmação, muitas vezes se identificou a grande maioria do povo, o que levou à procura de formas de luta e de soluções políticas mais respeitadoras da dignidade da pessoa.
Deste processo histórico, emergiram novas formas de democracia, que oferecem a esperança de uma alteração nas frágeis estruturas políticas e sociais, agravadas pela hipoteca de uma penosa série de injustiças e rancores, além de uma economia desastrosa e de duros conflitos sociais. Ao mesmo tempo que, com toda a Igreja, agradeço a Deus o testemunho, muitas vezes heróico, que tantos Pastores, comunidades cristãs, simples fiéis e outros homens de boa vontade deram nessas difíceis circunstâncias, suplico-Lhe que ampare os esforços para construir um futuro melhor. Este constitui uma responsabilidade não só dos cidadãos desses Países, mas de todos os cristãos e dos homens de boa vontade. Trata-se de mostrar que os complexos problemas de tais povos obtêm melhor resolução pelo método do diálogo e da solidariedade, do que pela luta até à destruição do adversário, e pela guerra.
23. De entre os numerosos factores que concorreram para a queda dos regimes opressivos, alguns merecem uma referência particular. O factor decisivo, que desencadeou as mudanças, é certamente a violação dos direitos do trabalho. Não se pode esquecer que a crise fundamental dos sistemas, que pretendem exprimir o governo ou, melhor, a ditadura do proletariado, inicia com os grandes movimentos verificados na Polónia, em nome da solidariedade. São as multidões dos trabalhadores a tornar ilegítima a ideologia, que presume falar em nome deles, a reencontrar e quase redescobrir expressões e princípios da doutrina social da Igreja, a partir da experiência difícil do trabalho e da opressão que viveram.
Merece, portanto, ser sublinhado o facto de, quase por todo o lado, se ter chegado à queda de semelhante "bloco" ou império, através de uma luta pacífica que lançou mão apenas das armas da verdade e da justiça. Enquanto o marxismo defendia que somente extremando as contradições sociais, através do embate violento, seria possível chegar à sua solução, as lutas que conduziram ao derrube do marxismo insistem com tenácia em tentar todas as vias da negociação, do diálogo, do testemunho da verdade, fazendo apelo à consciência do adversário e procurando despertar nele o sentido da dignidade humana comum.
Parecia que a configuração europeia, saída da segunda guerra mundial e consagrada no Tratado de Ialta, só poderia ser abalada por outra guerra. Pelo contrário, foi superada pelo empenho não violento de homens que sempre se recusaram a ceder ao poder da força, e ao mesmo tempo souberam encontrar aqui e ali formas eficazes para dar testemunho da verdade. Isto desarmou o adversário, porque a violência sempre tem necessidade de se legitimar com a mentira, ou seja, de assumir, mesmo se falsamente, o aspecto da defesa de um direito ou de resposta a uma ameaça de outrem (54). Agradeço a Deus ainda por ter sustentado o coração dos homens durante o tempo da difícil prova, e pedimos-Lhe que um tal exemplo possa valer em outros lugares e circunstâncias. Que os homens aprendam a lutar pela justiça sem violência, renunciando tanto à luta de classes nas controvérsias internas, como à guerra nas internacionais.
24. O segundo factor de crise é com certeza a ineficácia do sistema económico, que não deve ser considerada apenas como um problema técnico, mas sobretudo como consequência da violação dos direitos humanos à iniciativa, à propriedade e à liberdade no sector da economia. A este aspecto, está ainda associada a dimensão cultural e nacional: não é possível compreender o homem, partindo unilateralmente do sector da economia, nem ele pode ser definido simplesmente com base na sua inserção de classe. A compreensão do homem torna-se mais exaustiva, se o virmos enquadrado na esfera da cultura, através da linguagem, da história e das posições que ele adopta diante dos acontecimentos fundamentais da existência, tais como o nascimento, o amor, o trabalho, a morte. No centro de cada cultura, está o comportamento que o homem assume diante do mistério maior: o mistério de Deus. As culturas das diversas Nações constituem fundamentalmente modos diferentes de enfrentar a questão sobre o sentido da existência pessoal: quando esta questão é eliminada, corrompem-se a cultura e a vida moral das Nações. Por isso, a luta pela defesa do trabalho une-se espontaneamente a esta, a favor da cultura e dos direitos nacionais.
A verdadeira causa das mudanças, porém, está no vazio espiritual provocado pelo ateísmo, que deixou as jovens gerações privadas de orientação e induziu-as em diversos casos, devido à irreprimível busca da própria identidade e do sentido da vida, a redescobrir as raízes religiosas da cultura das suas Nações e a própria Pessoa de Cristo, como resposta existencialmente adequada ao desejo de bem, de verdade, e de vida que mora no coração de cada homem. Esta procura encontrou guia e apoio no testemunho de quantos, em circunstâncias difíceis e até na perseguição, permaneceram fiéis a Deus. O marxismo tinha prometido desenraizar do coração do homem a necessidade de Deus, mas os resultados demonstram que não é possível consegui-lo sem desordenar o coração.
25. Os factos de '89 oferecem o exemplo do sucesso da vontade de negociação e do espírito evangélico, contra um adversário decidido a não se deixar vincular por princípios morais: eles são uma advertência para quantos, em nome do realismo político, querem banir o direito e a moral da arena política. É certo que a luta, que levou às mudanças de '89, exigiu lucidez, moderação, sofrimentos e sacrifícios; em certo sentido, aquela nasceu da oração, e teria sido impensável sem uma confiança ilimitada em Deus, Senhor da história, que tem nas suas mãos o coração dos homens. Só unindo o próprio sofrimento pela verdade e pela liberdade ao de Cristo na Cruz, é que o homem pode realizar o milagre da paz e discernir a senda frequentemente estreita entre a cobardia que cede ao mal, e a violência que, na ilusão de o estar a combater, ainda o agrava mais.
Todavia não é possível ignorar os inumeráveis condicionalismos, em que a liberdade do indivíduo se exerce: esses influenciam mas não determinam a liberdade; tornam mais ou menos fácil o seu exercício, mas não a podem destruir. Não é lícito do ponto de vista ético nem praticável menosprezar a natureza do homem que está feito para a liberdade. Na sociedade onde a sua organização reduz arbitrariamente ou até suprime a esfera em que a liberdade legitimamente se exerce, o resultado é que a vida social progressivamente se desorganiza e definha.
Além disso, o homem, criado para a liberdade, leva em si a ferida do pecado original, que continuamente o atrai para o mal e o torna necessitado de redenção. Esta doutrina é não só parte integrante da Revelação cristã, mas tem também um grande valor hermenêutico, enquanto ajuda a compreender a realidade humana. O homem tende para o bem, mas é igualmente capaz do mal; pode transcender o seu interesse imediato, e contudo permanecer ligado a ele. A ordem social será tanto mais sólida, quanto mais tiver em conta este facto e não contrapuser o interesse pessoal ao da sociedade no seu todo, mas procurar modos para a sua coordenação frutuosa. Com efeito, onde o interesse individual é violentemente suprimido, acaba substituído por um pesado sistema de controle burocrático, que esteriliza as fontes da iniciativa e criatividade. Quando os homens julgam possuir o segredo de uma organização social perfeita que torne o mal impossível, consideram também poder usar todos os meios, inclusive a violência e a mentira, para a realizar. A política torna-se então uma "religião secular", que se ilude de poder construir o Paraíso neste mundo. Mas qualquer sociedade política, que possui a sua própria autonomia e as suas próprias leis (55), nunca poderá ser confundida com o Reino de Deus. A parábola evangélica da boa semente e do joio (cf. Mt 13, 24-30. 36-43) ensina que apenas a Deus compete separar os filhos do Reino e os filhos do Maligno, e que o julgamento terá lugar no fim dos tempos. Pretendendo antecipar o juízo para agora, o homem substitui-se a Deus e opõe-se à sua paciência.
Graças ao sacrifício de Cristo na Cruz, a vitória do Reino de Deus está garantida de uma vez para sempre; todavia, a condição cristã comporta a luta contra as tentações e as forças do mal. Somente no fim da história é que o Senhor voltará glorioso para o juízo final (cf. Mt 25, 31), com a instauração dos novos céus e da nova terra (cf. 2 Ped 3, 13; Ap 21, 1), mas, enquanto perdura o tempo, a luta entre o bem e o mal continua, mesmo no coração do homem.
O que a Sagrada Escritura nos ensina sobre os caminhos do Reino de Deus tem valor e incidência na vida das sociedades temporais, que - segundo quanto ficou dito - pertencem às realidades do tempo, com sua dimensão de imperfeito e provisório. O Reino de Deus presente no mundo sem ser do mundo, ilumina a ordem da sociedade humana, enquanto a força da graça a penetra e a vivifica. Assim notam-se melhor as exigências de uma sociedade digna do homem, são rectificados os desvios, é reforçada a coragem do agir em favor do bem. A esta tarefa de animação evangélica das realidades humanas estão chamados, juntamente com todos os homens de boa vontade, os cristãos, e de modo especial os leigos (56).
26. Os acontecimentos de '89 desenrolam-se prevalentemente nos Países da Europa oriental e central; têm todavia uma importância universal, já que deles provêm consequências positivas e negativas que interessam a toda a família humana. Tais consequências não se revestem de um carácter mecânico-fatalista, trata-se antes de ocasiões oferecidas à liberdade humana para colaborar com o desígnio misericordioso de Deus que actua na história.
A primeira consequência, em alguns Países, foi o encontro entre a Igreja e o Movimento operário, nascido de uma reacção de ordem ética e explicitamente cristã, contra uma geral situação de injustiça. O referido Movimento, durante um século aproximadamente, esteve em parte sob a hegemonia do marxismo, na convicção de que, para lutar eficazmente contra a opressão, os proletários deveriam apropriar-se das teorias materialistas e economicistas.
Na crise do marxismo, ressurgem as formas espontâneas da consciência operária, que exprimem um pedido de justiça e reconhecimento da dignidade do trabalho, segundo a doutrina social da Igreja (57). O Movimento operário insere-se numa movimentação mais geral dos homens do trabalho e dos homens de boa vontade a favor da libertação da pessoa humana e da afirmação dos seus direitos; aquele cresce hoje em muitos Países, e, longe de se contrapor à Igreja Católica, olha-a com esperança.
A crise do marxismo não elimina as situações de injustiça e de opressão no mundo, das quais o próprio marxismo, instrumentalizando-as, tirava alimento. Àqueles que hoje estão à procura de uma nova e autêntica teoria e práxis de libertação, a Igreja oferece não só a sua doutrina social e, de um modo geral, o seu ensinamento acerca da pessoa redimida em Cristo, mas também o seu empenhamento concreto no combate da marginalização e do sofrimento.
Em passado recente, o desejo sincero de se colocar da parte dos oprimidos e de não ser lançado fora do curso da história induziu muitos crentes a procurar de diversos modos um compromisso impossível entre marxismo e cristianismo. O tempo presente, enquanto supera tudo o que havia de caduco nessas tentativas, convida a reafirmar a positividade de uma autêntica teologia da libertação humana integral (58). Considerados sob este ponto de vista, os acontecimentos de 1989 revelam-se importantes também para os Países do "Terceiro Mundo", que estão à procura do caminho do seu desenvolvimento, num processo idêntico àqueles da Europa central e oriental.
27. A segunda consequência diz respeito aos povos da Europa. Muitas injustiças individuais e sociais, regionais e nacionais se cometeram nos anos em que dominava o comunismo, e mesmo antes; muitos ódios e rancores se acumularam. É real o perigo de que estes expludam de novo após a queda da ditadura, provocando graves conflitos e lutos, se diminuírem a tensão moral e a força consciente de prestar testemunho da verdade, que animaram os esforços do tempo passado. É de desejar que o ódio e a violência não triunfem nos corações, sobretudo daqueles que lutam pela justiça, e que cresça em todos o espírito de paz e de perdão.
São necessários, porém, passos concretos para criar ou consolidar estruturas internacionais, capazes de intervir numa arbitragem conveniente dos conflitos que se levantam entre as Nações, de modo que cada uma delas possa fazer valer os próprios direitos e alcançar um acordo justo e a pacífica composição com os direitos das outras. Tudo isto se mostra particularmente necessário nas Nações europeias, unidas intimamente entre si pelo vínculo da cultura comum e história milenária. Impõe-se um grande esforço para a reconstrução moral e económica dos Países que abandonaram o comunismo. Durante muito tempo, as relações económicas mais elementares foram distorcidas, e virtudes fundamentais ligadas ao sector da economia, tais como a veracidade, a confiança, a laboriosidade, foram descuradas. É precisa uma paciente renovação material e moral, enquanto os povos, esgotados por longas privações, pedem aos seus governantes resultados tangíveis e imediatos de bem-estar e satisfação adequada das suas legítimas aspirações.
A queda do marxismo teve naturalmente efeitos de grande alcance no referente à divisão da terra em mundos fechados e em ciosa concorrência entre si. Ela faz sobressair mais claramente a realidade da interdependência dos povos, bem como o facto de o trabalho humano, por sua natureza, estar destinado a unir os povos, e não a dividi-los. A paz e a prosperidade, de facto, são bens que pertencem, por natureza, a todo o género humano, de tal modo que não é possível gozar deles de forma correcta e duradoura, se forem obtidos e conservados em prejuízo de outros povos e Nações, violando os seus direitos, ou excluindo-os das fontes do bem-estar.
28. De certo modo, em alguns Países da Europa, tem início agora o verdadeiro pós-guerra. A reorganização radical das economias, até há pouco colectivizadas, comporta problemas e sacrifícios, que podem ser comparados àqueles que os Países ocidentais do Continente se impuseram para a sua reconstrução após o segundo conflito mundial. É justo que, nas dificuldades presentes, os Países ex-comunistas sejam sustentados pelo esforço solidário das outras Nações: obviamente aqueles devem ser os primeiros artífices do próprio progresso; mas deve-lhes ser dada uma razoável oportunidade de o realizar, o que só pode acontecer com a ajuda dos outros Países. De resto, a presente condição de dificuldades e de necessidade é consequência de um processo histórico do qual os países ex-comunistas foram frequentemente objecto, e não sujeito: encontram-se, por isso, em tal situação não por livre escolha ou por causa de erros cometidos, mas em consequência de trágicos eventos históricos, impostos pela violência, impedindo-os de prosseguir ao longo da estrada do desenvolvimento económico e civil.
O auxílio dos outros Países, em particular da Europa, que tomaram parte na mesma história e por ela respondem, equivale a um débito de justiça. Mas corresponde também ao interesse e ao bem geral da Europa, que não poderá viver em paz, se os mais diversos conflitos resultantes do passado se aguçarem ainda mais por uma situação de desordem económica, de insatisfação e desespero espiritual.
Esta exigência, porém, não deve levar a diminuir os esforços de apoio e ajuda aos Países do "Terceiro Mundo", que muitas vezes sofrem condições de carência e pobreza bastante mais graves (59). Será necessário um extraordinário esforço para mobilizar os recursos, de que o mundo no seu todo não está privado, em ordem a objectivos de crescimento económico e desenvolvimento comum, redefinindo as prioridades e as escalas de valores, que estão servindo de base para decidir as opções económicas e políticas. Imensos recursos podem tornar-se disponíveis, com a desarticulação dos enormes arsenais militares, construídos para o conflito entre o Leste e o Oeste. Aqueles poder-se-ão tornar ainda maiores, se se conseguir estabelecer processos seguros de alternativa à guerra para a solução dos conflitos, e difundir, portanto, o princípio do controle e da redução dos armamentos, mesmo nos Países do "Terceiro Mundo", adoptando oportunas medidas contra o seu comércio (60). Mas sobretudo será necessário abandonar uma mentalidade que considera os pobres - pessoas e povos - como um fardo e como importunos maçadores, que pretendem consumir tudo o que os outros produziram. Os pobres pedem o direito de participar no usufruto dos bens materiais e de fazer render a sua capacidade de trabalho, criando assim um mundo mais justo e mais próspero para todos. A elevação dos pobres é uma grande ocasião para o crescimento moral, cultural e até económico da humanidade inteira.
29. Enfim, o progresso não deve ser entendido de modo exclusivamente económico, mas num sentido integralmente humano (61). Não se trata apenas de elevar todos os povos ao nível que hoje gozam somente os Países mais ricos, mas de construir no trabalho solidário uma vida mais digna, fazer crescer efectivamente a dignidade e a criatividade de cada pessoa, a sua capacidade de corresponder à própria vocação e, portanto, ao apelo de Deus. No ponto máximo do desenvolvimento, está o exercício do direito-dever de procurar Deus, de O conhecer e viver segundo tal conhecimento (62). Nos regimes totalitários e autoritários, foi levado ao extremo o princípio do primado da força sobre a razão. O homem foi obrigado a suportar uma concepção da realidade imposta pela força, e não conseguida através do esforço da própria razão e do exercício da sua liberdade. É necessário abater aquele princípio e reconhecer integralmente os direitos da consciência humana, apenas ligada à verdade, seja natural ou revelada. No reconhecimento destes direitos, está o fundamento principal de toda a ordenação política autenticamente livre (63). É importante reafirmar este princípio, por vários motivos:
porque as antigas formas de totalitarismo e autoritarismo não foram ainda completamente debeladas, existindo mesmo o risco de ganharem de novo vigor: isto apela a um renovado esforço de colaboração e de solidariedade entre todos os Países;
porque nos Países desenvolvidos, às vezes é feita uma excessiva propaganda dos valores puramente utilitários, com uma solicitação desenfreada dos instintos e das tendências ao prazer imediato, o que torna difícil o reconhecimento e o respeito da hierarquia dos verdadeiros valores da existência humana;
porque, em alguns Países, emergem novas formas de fundamentalismo religioso que, velada ou até abertamente, negam, aos cidadãos de crenças diversas daquela da maioria, o pleno exercício dos seus direitos civis ou religiosos, impedem-nos de entrar no debate cultural, restringem à Igreja o direito de pregar o Evangelho e o direito dos ouvintes dessa pregação, de a acolher e de se converterem a Cristo. Não é possível qualquer progresso autêntico sem o respeito do direito natural e originário mais basilar: o de conhecer a verdade e viver nela. A este direito está ligado, como seu exercício e aprofundamento, o direito de descobrir e de escolher livremente Jesus Cristo, que é o verdadeiro bem do homem (64).
IV - A propriedade privada e o destino universal dos bens
30. Na Rerum novarum, Leão XIII, com diversos argumentos, insistia fortemente, contra o socialismo do seu tempo, no carácter natural do direito de propriedade privada (65). Este direito, fundamental para a autonomia e o desenvolvimento da pessoa, foi sempre defendido pela Igreja até aos nossos dias. De igual modo a Igreja ensina que a propriedade dos bens não é um direito absoluto, mas, na sua natureza de direito humano, traz inscritos os próprios limites.
O Pontífice ao proclamar o direito de propriedade privada, afirmava com igual clareza que o "uso" das coisas, confiado à liberdade, está subordinado ao seu originário destino comum de bens criados e ainda à vontade de Jesus Cristo manifestada no Evangelho. Com efeito, escrevia: "os abastados, portanto, são advertidos (...); os ricos devem tremer, pensando nas ameaças de Jesus Cristo (...); do uso dos seus bens deverão um dia prestar rigorosíssimas contas a Deus Juiz"; e, citando S. Tomás de Aquino, acrescentava: "Mas se se perguntar qual deve ser o uso desses bens, a Igreja (...) não hesita em responder que, a este propósito, o homem não deve possuir os bens externos como próprios, mas como comuns", porque "acima das leis e juízos dos homens está a lei, o juízo de Cristo" (66).
Os sucessores de Leão XIII repetiram a dupla afirmação: a necessidade e, por conseguinte, a liceidade da propriedade privada e conjuntamente os limites que pesam sobre ela (67). Também o Concílio Vaticano II repropôs a doutrina tradicional com palavras que merecem ser textualmente referidas: "o homem, usando destes bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que podem beneficiar não apenas a si, mas também aos outros". E pouco depois: "A propriedade privada ou um certo domínio sobre os bens externos asseguram a cada um a indispensável esfera de autonomia pessoal e familiar, e devem ser considerados como que uma extensão da liberdade humana (...). A própria propriedade privada é, por sua natureza, de índole social, fundada na lei do destino comum dos bens" (68). Retomei a mesma doutrina, primeiramente no discurso à III Conferência do Episcopado latino-americano, em Puebla, e depois nas Encíclicas Laborem exercens e Sollicitudo rei socialis (69).
31. Relendo esse ensinamento relativo ao direito de propriedade e ao destino comum dos bens, no horizonte do nosso tempo, pode-se colocar a questão acerca da origem dos bens que sustentam a vida do homem, satisfazem as suas carências e são objecto dos seus direitos.
A origem primeira de tudo o que é bem é o próprio acto de Deus que criou a terra e o homem, e ao homem deu a terra para que a domine com o seu tabalho e goze dos seus frutos (cf. Gen 1, 28-29). Deus deu a terra a todo o género humano, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar ninguém. Está aqui a raiz do destino universal dos bens da terra. Esta, pela sua própria fecundidade e capacidade de satisfazer as necessidades do homem, constitui o primeiro dom de Deus para o sustento da vida humana. Ora, a terra não dá os seus frutos, sem uma peculiar resposta do homem ao dom de Deus, isto é, sem o trabalho: é mediante o trabalho que o homem, usando da sua inteligência e liberdade, consegue dominá-la e estabelecer nela a sua digna morada. Deste modo, ele apropria-se de uma parte da terra, adquirida precisamente com o trabalho. Está aqui a origem da propriedade individual. Obviamente ele tem também a responsabilidade de não impedir que os outros homens tenham igualmente a sua parte no dom de Deus, pelo contrário, deve cooperar com eles para conjuntamente dominarem toda a terra.
Ao longo da história, sempre se encontram estes dois factores - o trabalho e a terra -, no princípio de cada sociedade humana; nem sempre, porém, guardam a mesma relação entre si. Outrora a fecundidade natural da terra revelava-se e, de facto, era o principal factor de riqueza, sendo o trabalho uma espécie de ajuda e apoio a tal fecundidade. No nosso tempo, torna-se cada vez mais relevante o papel do trabalho humano, como factor produtivo das riquezas espirituais e materiais; aparece, além disso, evidente como o trabalho de um homem se cruza naturalmente com o de outros homens. Hoje mais do que nunca, trabalhar é um trabalhar com os outros e um trabalhar para os outros: torna-se cada vez mais um fazer qualquer coisa para alguém. O trabalho é tanto mais fecundo e produtivo, quanto mais o homem é capaz de conhecer as potencialidades criativas da terra e de ler profundamente as necessidades do outro homem, para o qual é feito o trabalho.
32. Mas existe, em particular no nosso tempo, uma outra forma de propriedade, que reveste uma importância nada inferior à da terra: é a propriedade do conhecimento, da técnica e do saber. A riqueza das Nações industrializadas funda-se muito mais sobre este tipo de propriedade, do que sobre a dos recursos naturais.
Acenou-se pouco antes ao facto de que o homem trabalha com os outros homens, participando num "trabalho social" que engloba progressivamente círculos cada vez mais amplos. Quem produz um objecto, para além do uso pessoal, fá-lo em geral para que outros o possam usar também, depois de ter pago o preço justo, estabelecido de comum acordo, mediante uma livre negociação. Ora, precisamente a capacidade de conhecer a tempo as carências dos outros homens e as combinações dos factores produtivos mais idóneos para as satisfazer, é outra importante fonte de riqueza na sociedade moderna. Aliás, muitos bens não podem ser adequadamente produzidos através de um único indivíduo, mas requerem a colaboração de muitos para o mesmo fim. Organizar um tal esforço produtivo, planear a sua duração no tempo, procurar que corresponda positivamente às necessidades que deve satisfazer, assumindo os riscos necessários: também esta é uma fonte de riqueza na sociedade actual. Assim aparece cada vez mais evidente e determinante o papel do trabalho humano disciplinado e criativo e - enquanto parte essencial desse trabalho - das capacidades de iniciativa empresarial (70).
Um tal processo, que faz concretamente ressaltar uma verdade da pessoa, afirmada incessantemente pelo cristianismo, deve ser visto com atenção e favor. Efectivamente, a riqueza principal do homem é, em conjunto com a terra, o próprio homem. É a sua inteligência que o leva a descobrir as potencialidades produtivas da terra e as múltiplas modalidades através das quais podem ser satisfeitas as necessidades humanas. É o seu trabalho disciplinado, em colaboração solidária, que permite a criação de comunidades de trabalho cada vez mais amplas e eficientes para operar a transformação do ambiente natural e do próprio ambiente humano. Para este processo, concorrem importantes virtudes, tais como a diligência, a laboriosidade, a prudência em assumir riscos razoáveis, a confiança e fidelidade nas relações interpessoais, a coragem na execução de decisões difíceis e dolorosas, mas necessárias para o trabalho comum da empresa, e para enfrentar os eventuais reveses da vida.
A moderna economia de empresa comporta aspectos positivos, cuja raiz é a liberdade da pessoa, que se exprime no campo económico e em muitos outros campos. A economia, de facto, é apenas um sector da multiforme actividade humana, e nela, como em qualquer outro campo, vale o direito à liberdade, da mesma forma que o dever de a usar responsavelmente. Mas é importante notar a existência de diferenças específicas entre essas tendências da sociedade actual, e as do passado, mesmo se recente. Se outrora o factor decisivo da produção era a terra e mais tarde o capital, visto como o conjunto de maquinaria e de bens instrumentais, hoje o factor decisivo é cada vez mais o próprio homem, isto é, a sua capacidade de conhecimento que se revela no saber científico, a sua capacidade de organização solidária, a sua capacidade de intuir e satisfazer a necessidade do outro.
33. Contudo não se podem deixar de denunciar os riscos e os problemas conexos com este tipo de processo. De facto, hoje muitos homens, talvez a maioria, não dispõem de instrumentos que consintam entrar, de modo efectivo e humanamente digno, dentro de um sistema de empresa, no qual o trabalho ocupa uma posição verdadeiramente central. Não têm a possibilidade de adquirir os conhecimentos de base que permitam exprimir a sua criatividade e desenvolver as suas potencialidades, nem de penetrar na rede de conhecimentos e intercomunicações, que lhes consentiria ver apreciadas e utilizadas as suas qualidades. Em suma, eles, se não são propriamente explorados, vêem-se amplamente marginalizados, e o progresso económico desenvolve-se, por assim dizer, por cima das suas cabeças, quando não restringe ainda mais os espaços já estreitos das suas economias tradicionais de subsistência. Incapazes de resistir à concorrência de mercadorias produzidas em moldes novos e adequados às necessidades - que antes eles costumavam resolver através das formas organizativas tradicionais -, aliciados pelo esplendor de uma opulência ostensiva, mas para eles inacessível, e ao mesmo tempo constrangidos pela necessidade, estes homens aglomeram-se nas cidades do Terceiro Mundo, onde com frequência aparecem culturalmente desenraizados e encontram-se em situações de precariedade violenta, sem possibilidade de integração. Não se lhes reconhece, de facto, dignidade, e procura-se às vezes eliminá-los da história por meio de formas coercivas de controle demográfico, contrárias à dignidade humana.
Muitos outros, embora não estando totalmente marginalizados, vivem inseridos em ambientes onde a luta pelo necessário é absolutamente primária, e vigoram ainda as regras do capitalismo original, na "crueldade" de uma situação que nada fica a dever à dos momentos mais negros da primeira fase da industrialização. Noutros casos, a terra é ainda o elemento central do processo económico, e aqueles que a cultivam, excluídos da sua posse, estão reduzidos a condições de semi-escravatura (71). Nestas situações pode-se ainda hoje, como no tempo da Rerum novarum, falar de exploração desumana. Apesar das grandes mudanças verificadas nas sociedades mais avançadas, as carências humanas do capitalismo, com o consequente domínio das coisas sobre os homens, ainda não desapareceram; pelo contrário, para os pobres à carência dos bens materiais juntou-se a do conhecimento e da ciência, que lhes impede de sair do estado de humilhante subordinação.
Infelizmente a grande maioria dos habitantes do Terceiro Mundo vive ainda nestas condições. Seria errado, porém, imaginar este Mundo, num sentido somente geográfico. Em algumas regiões e em alguns sectores sociais, foram activados processos de desenvolvimento centrados na valorização não tanto dos recursos materiais, mas dos "recursos humanos".
Há relativamente poucos anos, afirmou-se que o desenvolvimento dos Países mais pobres dependeria do seu isolamento do mercado mundial, e da confiança apenas nas próprias forças. A recente experiência demonstrou que os Países que foram excluídos registaram estagnação e recessão, enquanto conheceram o desenvolvimento aqueles que conseguiram entrar na corrente geral de interligação das actividades económicas a nível internacional. O maior problema, portanto, parece ser a obtenção de um acesso equitativo ao mercado internacional, não fundado sobre o princípio unilateral do aproveitamento dos recursos naturais, mas sobre a valorização dos recursos humanos (72).
Aspectos típicos do Terceiro Mundo emergem também nos Países desenvolvidos, onde a transformação incessante das modalidades de produção e consumo desvaloriza certos conhecimentos já adquiridos e capacidades profissionais consolidadas, exigindo um esforço contínuo de requalificação e actualização. Aqueles que não conseguem acompanhar os tempos podem facilmente ser marginalizados; juntamente com eles são-no os anciãos, os jovens incapazes de se inserirem na vida social e, de um modo geral, os sujeitos mais débeis e o denominado Quarto Mundo. Nestas condições, também a situação da mulher se apresenta muito difícil.
34. Tanto a nível da cada Nação, como no das relações internacionais, o livre mercado parece ser o instrumento mais eficaz para dinamizar os recursos e corresponder eficazmente às necessidades. Isto, contudo, vale apenas para as necessidades "solvíveis", que gozam da possibilidade de aquisição, e para os recursos que são "comercializavéis", isto é, capazes de obter um preço adequado. Mas existem numerosas carências humanas, sem acesso ao mercado. É estrito dever de justiça e verdade impedir que as necessidades humanas fundamentais permaneçam insatisfeitas e que pereçam os homens por elas oprimidos. Além disso, é necessário que estes homens carenciados sejam ajudados a adquirir os conhecimentos, a entrar no círculo de relações, a desenvolver as suas aptidões, para melhor valorizar as suas capacidades e recursos. Ainda antes da lógica da comercialização dos valores equivalentes e das formas de justiça, que lhe são próprias, existe algo que é devido ao homem porque é homem, com base na sua eminente dignidade. Esse algo que é devido comporta inseparavelmente a possibilidade de sobreviver e de dar um contributo activo para o bem comum da humanidade.
No contexto do Terceiro Mundo, conservam a sua validade (em certos casos é ainda uma meta a ser alcançada), aqueles mesmos objectivos indicados pela Rerum novarum para evitar a redução do trabalho humano e do próprio homem ao nível de simples mercadoria: o salário suficiente para a vida da família, seguros sociais para a ancianidade e o desemprego, a tutela adequada das condições de trabalho.
35. Abre-se aqui um grande e fecundo campo de empenhamento e luta, em nome da justiça, para os sindicatos e outras organizações dos trabalhadores que defendem direitos e tutelam o indivíduo, realizando simultaneamente uma função essencial de carácter cultural, com a finalidade de os fazer participar de modo mais pleno e digno na vida da Nação, e de os ajudar ao longo do caminho do progresso.
Neste sentido, é correcto falar de luta contra um sistema económico, visto como método que assegura a prevalência absoluta do capital, da posse dos meios de produção e da terra, relativamente à livre subjectividade do trabalho do homem (73). Nesta luta contra um tal sistema, não se veja, como modelo alternativo, o sistema socialista, que, de facto, não passa de um capitalismo de estado, mas uma sociedade do trabalho livre, da empresa e da participação. Esta não se contrapõe ao livre mercado, mas requer que ele seja oportunamente controlado pelas forças sociais e estatais, de modo a garantir a satisfação das exigências fundamentais de toda a sociedade.
A Igreja reconhece a justa função do lucro, como indicador do bom funcionamento da empresa: quando esta dá lucro, isso significa que os factores produtivos foram adequadamente usados e as correlativas necessidades humanas devidamente satisfeitas. Todavia o lucro não é o único indicador das condições da empresa. Pode acontecer que a contabilidade esteja em ordem e simultaneamente os homens, que constituem o património mais precioso da empresa, sejam humilhados e ofendidos na sua dignidade. Além de ser moralmente inadmissível, isso não pode deixar de se reflectir futuramente de modo negativo na própria eficiência económica da empresa. Com efeito, o objectivo desta não é simplemente o lucro, mas sim a própria existência da empresa como comunidade de homens que, de diverso modo, procuram a satisfação das suas necessidades fundamentais e constituem um grupo especial ao serviço de toda a sociedade. O lucro é um regulador da vida da empresa, mas não o único; a ele se deve associar a consideração de outros factores humanos e morais que, a longo prazo, são igualmente essenciais para a vida da empresa.
Como vimos lá atrás, é inaceitável a afirmação de que a derrocada do denominado "socialismo real" deixe o capitalismo como único modelo de organização económica. Torna-se necessário quebrar as barreiras e os monopólios que deixam tantos povos à margem do progresso, e garantir, a todos os indivíduos e Nações, as condições basilares que lhes permitam participar no desenvolvimento. Tal objectivo requer esforços programados e responsáveis por parte de toda a comunidade internacional. É necessário que as Nações mais fortes saibam oferecer às mais débeis, ocasiões de inserção na vida internacional e que as mais débeis saibam aproveitar essas ocasiões, realizando os esforços e sacrifícios necessários, assegurando a estabilidade do quadro político e económico, a certeza de perspectivas para o futuro, o crescimento da capacidade dos próprios trabalhadores, a formação de empresários eficientes e conscientes das suas responsabilidades (74).
Actualmente, sobre os esforços positivos realizados com tal finalidade, pesa o problema, em grande medida ainda por resolver, da dívida externa dos Países mais pobres. Com certeza que é justo o princípio de que as dívidas devem ser pagas; não é lícito, porém, pedir ou pretender um pagamento, quando esse levaria de facto a impor opções políticas tais que condenariam à fome e ao desespero populações inteiras. Não se pode pretender que as dívidas contraídas sejam pagas com sacríficios insuportáveis. Nestes casos, é necessário - como, de resto, está sucedendo em certa medida - encontrar modalidades para mitigar, reescalonar ou até cancelar a dívida, compatíveis com o direito fundamental dos povos à subsistência e ao progresso.
36. Convém agora prestar atenção aos problemas específicos e às ameaças, que se levantam no interior das economias mais avançadas e que estão conexas com as suas características peculiares. Nas fases precedentes do desenvolvimento, o homem sempre viveu sob o peso da necessidade. As suas carências eram poucas, de algum modo já fixadas nas estruturas objectivas da sua constituição corpórea, e a actividade económica estava orientada à sua satisfação. Hoje é claro que o problema não é só oferecer-lhes uma quantidade suficiente de bens, mas de responder a uma exigência de qualidade: qualidade das mercadorias a produzir e a consumir, qualidade dos serviços a ser utilizados, qualidade do ambiente e da vida em geral.
O pedido de uma existência qualitativamente mais satisfatória e mais rica é, em si mesmo, legítimo; mas devemos sublinhar as novas responsabilidades e os perigos conexos com esta fase histórica. No mundo onde surgem e se definem as novas necessidades, está sempre subjacente uma concepção mais ou menos adequada do homem e do seu verdadeiro bem: através das opções de produção e de consumo, manifesta-se uma determinada cultura, como concepção global da vida. É aqui que surge o fenómeno do consumismo. Individuando novas necessidades e novas modalidades para a sua satisfação, é necessário deixar-se guiar por uma imagem integral do homem, que respeite todas as dimensões do seu ser e subordine as necessidades materiais e instintivas às interiores e espirituais. Caso contrário, explorando directamente os seus instintos e prescindindo, de diversos modos, da sua realidade pessoal consciente e livre, podem-se criar hábitos de consumo e estilos de vida objectivamente ilícitos, e frequentemente prejudiciais à sua saúde física e espiritual. O sistema económico, em si mesmo, não possui critérios que permitam distinguir correctamente as formas novas e mais elevadas de satisfação das necessidades humanas, das necessidades artificialmente criadas que se opõem à formação de uma personalidade madura. Torna-se por isso necessária e urgente, uma grande obra educativa e cultural, que abranja a educação dos consumidores para um uso responsável do seu poder de escolha, a formação de um alto sentido de responsabilidade nos produtores, e, sobretudo, nos profissionais dos mass-media, além da necessária intervenção das Autoridades públicas.
Um exemplo flagrante de consumo artificial, contrário à saúde e à dignidade do homem, certamente difícil de ser controlado, é o da droga. A sua difusão é índice de uma grave disfunção do sistema social, e subentende igualmente uma "leitura" materialista, em certo sentido, destrutiva das necessidades humanas. Deste modo a capacidade de inovação da livre economia termina actuando-se de modo unilateral e inadequado. A droga, como também a pornografia e outras formas de consumismo, explorando a fragilidade dos débeis, tentam preencher o vazio espiritual que se veio a criar.
Não é mal desejar uma vida melhor, mas é errado o estilo de vida que se presume ser melhor, quando ela é orientada ao ter e não ao ser, e deseja ter mais não para ser mais, mas para consumir a existência no prazer, visto como fim em si próprio (75). É necessário, por isso, esforçar-se por construir estilos de vida, nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom, e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento. A propósito disto, não posso limitar-me a recordar o dever da caridade, isto é, o dever de acorrer com o "supérfluo", e às vezes até com o "necessário" para garantir o indispensável à vida do pobre. Mas aludo também ao facto de que a opção de investir num lugar em vez de outro, neste sector produtivo e não naquele, é sempre uma escolha moral e cultural. Postas certas condições económicas e de estabilidade política absolutamente imprescindíveis, a decisão de investir, isto é, de oferecer a um povo a ocasião de valorizar o próprio trabalho, é determinada também por uma atitude de solidariedade e pela confiança na Providência divina, que revela a qualidade humana daquele que decide.
37. Igualmente preocupante, ao lado do problema do consumismo e com ele estritamente ligada, é a questão ecológica. O homem, tomado mais pelo desejo do ter e do prazer, do que pelo de ser e de crescer, consome de maneira excessiva e desordenada os recursos da terra e da sua própria vida. Na raiz da destruição insensata do ambiente natural, há um erro antropológico, infelizmente muito espalhado no nosso tempo. O homem, que descobre a sua capacidade de transformar e, de certo modo, criar o mundo com o próprio trabalho, esquece que este se desenrola sempre sobre a base da doação originária das coisas por parte de Deus. Pensa que pode dispor arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas à sua vontade, como se ela não possuísse uma forma própria e um destino anterior que Deus lhe deu, e que o homem pode, sim, desenvolver, mas não deve trair. Em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele (76).
Nota-se aqui, antes de mais, uma pobreza ou mesquinhez da visão humana, mais animada pelo desejo de possuir as coisas do que relacioná-las com a verdade, privado do comportamento desinteressado, gratuito, estético que brota do assombro diante do ser e da beleza, que leva a ler, nas coisas visíveis, a mensagem do Deus invisível que as criou. A respeito disso, a humanidade de hoje deve estar consciente dos seus deveres e tarefas, em vista das gerações futuras.
38. Além da destruição irracional do ambiente natural, é de recordar aqui outra ainda mais grave, qual é a do ambiente humano, a que se está ainda longe de prestar a necessária atenção. Enquanto justamente nos preocupamos, apesar de bem menos do que o necessário, em preservar o "habitat" natural das diversas espécies animais ameaçadas de extinção, porque nos damos conta da particular contribuição que cada uma delas dá ao equilíbrio geral da terra, empenhamo-nos demasiado pouco em salvaguardar as condições morais de uma autêntica "ecologia humana". Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral, de que foi dotado. Neste contexto, são de mencionar os graves problemas da moderna urbanização, a necessidade de um urbanismo preocupado com a vida das pessoas, bem como a devida atenção a uma "ecologia social" do trabalho.
O homem recebe de Deus a sua dignidade essencial e com ela a capacidade de transcender todo o regime da sociedade, rumo à verdade e ao bem. Contudo está fortemente condicionado também pela estrutura social em que vive, pela educação recebida e pelo ambiente. Estes elementos tanto podem facilitar como dificultar o seu viver conforme à verdade. As decisões, graças às quais se constitui um ambiente humano, podem criar estruturas específicas de pecado, impedindo a plena realização daqueles que vivem de diversos modos oprimidos por elas. Destruir tais estruturas, substituindo-as por formas de convivência mais autênticas é uma tarefa que exige coragem e paciência (77).
39. A primeira e fundamental estrutura a favor da "ecologia humana" é a família, no seio da qual o homem recebe as primeiras e determinantes noções acerca da verdade e do bem, aprende o que significa amar e ser amado e, consequentemente, o que quer dizer, em concreto, ser uma pessoa. Pensa-se aqui na família fundada sobre o matrimónio, onde a doação recíproca de si mesmo, por parte do homem e da mulher, cria um ambiente vital onde a criança pode nascer e desenvolver as suas potencialidades, tornar-se consciente da sua dignidade e preparar-se para enfrentar o seu único e irrepetível destino. Muitas vezes dá-se o inverso; o homem é desencorajado de realizar as autênticas condições da geração humana, e aliciado a considerar-se a si próprio e à sua vida mais como um conjunto de sensações a ser experimentadas do que como uma obra a realizar. Daqui nasce uma carência de liberdade que o leva a renunciar ao compromisso de se ligar estavelmente com outra pessoa e de gerar filhos, ou que o induz a considerar estes últimos como uma de tantas "coisas" que é possível ter ou não ter, segundo os próprios gostos, e que entram em concorrência com outras possibilidades.
É necessário voltar a considerar a família como o santuário da vida. De facto, ela é sagrada: é o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico. Contra a denominada cultura da morte, a família constitui a sede da cultura da vida.
O engenho humano parece orientar-se, nesse campo, mais para limitar, suprimir ou anular as fontes da vida, chegando até ao recurso do aborto, infelizmente tão espalhado pelo mundo, do que para defender e criar possibilidades à mesma vida. Na Encíclica Sollicitudo rei socialis, foram denunciadas as campanhas sistemáticas contra a natalidade, que, baseadas numa concepção distorcida do problema demográfico e num clima de "absoluta falta de respeito pela liberdade de decisão das pessoas interessadas", as submetem muitas vezes "a pressões intoleráveis (...) a fim de cederem a esta nova forma de opressão" (78). Trata-se de políticas que, com novas técnicas, estendem o seu raio de acção até ao ponto de chegarem, como numa "guerra química", a envenenar a vida de milhões de seres humanos indefesos.
Estas críticas, são dirigidas não tanto contra um sistema económico, quanto contra um sistema ético-cultural. De facto, a economia é apenas um aspecto e uma dimensão da complexa actividade humana. Se ela for absolutizada, se a produção e o consumo das coisas acabar por ocupar o centro da vida social, tornando-se o único valor verdadeiro da sociedade, não subordinado a nenhum outro, a causa terá de ser procurada não tanto no próprio sistema económico, quanto no facto de que todo o sistema socio-cultural, ignorando a dimensão ética e religiosa, ficou debilitado, limitando-se apenas à produção dos bens e dos serviços (79).
Tudo isto se pode resumir afirmando mais uma vez que a liberdade económica é apenas um elemento da liberdade humana. Quando aquela se torna autónoma, isto é, quando o homem é visto mais como um produtor ou um consumidor de bens do que como um sujeito que produz e consome para viver, então ela perde a sua necessária relação com a pessoa humana e acaba por a alienar e oprimir (80).
40. É tarefa do Estado prover à defesa e tutela de certos bens colectivos como o ambiente natural e o ambiente humano, cuja salvaguarda não pode ser garantida pos simples mecanismos de mercado. Como nos tempos do antigo capitalismo, o Estado tinha o dever de defender os direitos fundamentais do trabalho, assim diante do novo capitalismo, ele e toda sociedade têm a obrigação de defender os bens colectivos que, entre outras coisas, constituem o enquadramento dentro do qual cada um poderá conseguir legitimamente os seus fins individuais.
Acha-se aqui um novo limite do mercado: há necessidades colectivas e qualitativas, que não podem ser satisfeitas através dos seus mecanismos; existem exigências humanas importantes, que escapam à sua lógica; há bens que, devido à sua natureza, não se podem nem se devem vender e comprar. Certamente os mecanismos de mercado oferecem seguras vantagens: ajudam, entre outras coisas, a utilizar melhor os recursos, favorecem o intercâmbio dos produtos e, sobretudo, põem no centro a vontade e as preferências da pessoa que, no contrato, se encontram com as de outrem. Todavia eles comportam o risco de uma "idolatria" do mercado, que ignora a existência de bens que, pela sua natureza, não são nem podem ser simples mercadoria.
41. O marxismo criticou as sociedades burguesas capitalistas, censurando-as pela "coisificação" e alienação da existência humana. Certamente esta censura baseia-se numa concepção errada e inadequada da alienação, porque restringe a sua causa apenas à esfera das relações de produção e propriedade, isto é, atribuindo-lhe um fundamento materialista e, além disso, negando a legitimidade e a positividade das relações de mercado, inclusive no âmbito que lhes é próprio. Acaba assim por afirmar que a alienação só poderia ser eliminada numa sociedade de tipo colectivista. Ora a experiência história dos Países socialistas demonstrou tristemente que o colectivismo não suprime a alienação, antes a aumenta, enquanto a ela junta ainda a carência das coisas necessárias e a ineficácia económica.
A experiência histórica do Ocidente, por sua vez, demonstra que, embora sejam falsas a análise e a fundamentação marxista da alienação, todavia esta, com a perda do sentido autêntico da existência, é também uma experiência real nas sociedades ocidentais. Ela verifica-se no consumo, quando o homem se vê implicado numa rede de falsas e superficiais satisfações, em vez de ser ajudado a fazer a autêntica e concreta experiência da sua personalidade. A alienação verifica-se também no trabalho, quando é organizado de modo a "maximizar" apenas os seus frutos e rendimentos, não se preocupando de que o trabalhador, por meio de seu trabalho, se realize mais ou menos como homem, conforme cresça a sua participação numa autêntica comunidade humana solidária, ou então cresça o seu isolamento num complexo de relações de exacerbada competição e de recíproco alheamento, no qual ele aparece considerado apenas como um meio, e não como um fim.
É necessário reconduzir o conceito de alienação à perspectiva cristã, reconhecendo-a como a inversão dos meios pelos fins: quando o homem não reconhece o valor e a grandeza da pessoa em si próprio e no outro, de facto priva-se da possibilidade de usufruir da própria humanidade e de entrar na relação de solidariedade e de comunhão com os outros homens para a qual Deus o criou. Com efeito, é mediante o livre dom de si que o homem se torna autenticamente ele próprio (81), e este dom é possível graças à essencial "capacidade de transcendência" da pessoa humana. O homem não se pode doar a um projecto somente humano da realidade, nem a um ideal abstracto ou a falsas utopias. Ele, enquanto pessoa, consegue doar-se a uma outra pessoa ou outras pessoas e, enfim, a Deus, que é o autor do seu ser e o único que pode acolher plenamente o seu dom (82). Alienado é o homem que recusa transcender-se a si próprio e viver a experiência do dom de si e da formação de uma autêntica comunidade humana, orientada para o seu destino último, que é Deus. Alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana.
Na sociedade ocidental foi superada a exploração, pelo menos nas formas analisadas e descritas por Karl Marx. Pelo contrário, não foi superada a alienação nas várias formas de exploração quando os homens se instrumentalizam mutuamente e, na satisfação cada vez mais refinada das suas necessidades particulares e secundárias, se tornam surdos às suas carências verdadeiras e autênticas, que devem regular as modalidades de satisfação das outras necessidades (83). O homem que se preocupa só ou prevalentemente do ter e do prazer, incapaz já de dominar os seus instintos e paixões e de subordiná-los pela obediência à verdade, não pode ser livre: a obediência à verdade sobre Deus e o homem é a primeira condição da liberdade, permitindo-lhe ordenar as próprias necessidades, os próprios desejos e as modalidades da sua satisfação, segundo uma justa hierarquia, de modo que a posse das coisas seja para ele um meio de crescimento. Um obstáculo a tal crescimento pode vir da manipulação realizada por alguns meios de comunicação social que impõem, pela força de uma bem orquestrada insistência, modos e movimentos de opinião, sem ser possível submeter a um exame crítico as premissas sobre as quais se fundamentam.
42. Voltando agora à questão inicial, pode-se porventura dizer que, após a falência do comunismo, o sistema social vencedor é o capitalismo e que para ele se devem encaminhar os esforços dos Países que procuram reconstruir as suas economias e a sua sociedade? É, porventura, este o modelo que se deve propor aos Países do Terceiro Mundo, que procuram a estrada do verdadeiro progresso económico e civil?
A resposta apresenta-se obviamente complexa. Se por "capitalismo" se indica um sistema económico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no sector da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de "economia de empresa", ou de "economia de mercado", ou simplesmente de "economia livre". Mas se por "capitalismo" se entende um sistema onde a liberdade no sector da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa.
A solução marxista faliu, mas permanecem no mundo fenómenos de marginalização e de exploração, especialmente no Terceiro Mundo, e fenómenos de alienação humana, especialmente nos Países mais avançados, contra os quais se levanta com firmeza a voz da Igreja. Tantas multidões vivem ainda agora em condições de grande miséria material e moral. A queda do sistema comunista, em tantos países, elimina certamente um obstáculo para enfrentar de modo adequado e realístico estes problemas, mas não basta para resolvê-los. Existe até o risco de se difundir uma ideologia radical de tipo capitalista, que se recusa mesmo a tomá-los em conta, considerando a priori condenada ao fracasso toda a tentativa de os encarar e confia fideisticamente a sua solução ao livre desenvolvimento das forças de mercado.
43. A Igreja não tem modelos a propor. Os modelos reais e eficazes poderão nascer apenas no quadro das diversas situações históricas, graças ao esforço dos responsáveis que enfrentam os problemas concretos em todos os seus aspectos sociais, económicos, políticos e culturais que se entrelaçam mutuamente (84). A esse empenhamento, a Igreja oferece, como orientação ideal indispensável, a própria doutrina social que - como se disse - reconhece o valor positivo do mercado e da empresa, mas indica ao mesmo tempo a necessidade de que estes sejam orientados para o bem comum. Ela reconhece também a legitimidade dos esforços dos trabalhadores para conseguirem o pleno respeito da sua dignidade e espaços maiores de participação na vida da empresa, de modo que eles, embora trabalhando em conjunto com outros e sob a direcção de outros, possam em certo sentido "trabalhar por conta própria" (85) exercitando a sua inteligência e liberdade.
O desenvolvimento integral da pessoa humana no trabalho não contradiz, antes favorece a maior produtividade e eficácia do próprio trabalho, embora isso possa enfraquecer estruturas consolidadas de poder. A empresa não pode ser considerada apenas como uma "sociedade de capitais"; é simultaneamente uma "sociedade de pessoas", da qual fazem parte, de modo diverso e com específicas responsabilidades, quer aqueles que fornecem o capital necessário para a sua actividade, quer aqueles que à colaboram com o seu trabalho. Para conseguir este fim, é ainda necessário um grande movimento associado dos trabalhadores, cujo objectivo é a libertação e a promoção integral da pessoa.
À luz das "coisas novas" de hoje, foi relida a relação entre a propriedade individual, ou privada, e o destino universal dos bens. O homem realiza-se através da sua inteligência e da sua liberdade e, ao fazê-lo, assume como objecto e instrumento as coisas do mundo e delas se apropria. Neste seu agir, está o fundamento do direito à iniciativa e à propriedade individual. Mediante o seu trabalho, o homem empenha-se não só para proveito próprio, mas também para os outros e com os outros: cada um colabora para o trabalho e o bem dos outros. O homem trabalha para acorrer às necessidades da sua família, da comunidade de que faz parte, da Nação e, em definitivo, da humanidade inteira (86). Além disso, colabora para o trabalho dos outros, que operam na mesma empresa, como também para o trabalho dos fornecedores ou para o consumo dos clientes, numa cadeia de solidariedade que se alarga progressivamente. A posse dos meios de produção, tanto no campo industrial como no agrícola, é justa e legítima, se serve para um trabalho útil; pelo contrário, torna-se ilegítima, quando não é valorizada ou serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração, da especulação, e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho (87). Semelhante propriedade não tem qualquer justificação, e constitui um abuso diante de Deus e dos homens.
A obrigação de ganhar o pão com o suor do próprio rosto supõe, ao mesmo tempo, um direito. Uma sociedade onde este direito seja sistematicamente negado, onde as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores alcançarem níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social (88). Tal como a pessoa se realiza plenamente na livre doação de si própria, assim a propriedade se justifica moralmente na criação, em moldes e tempos devidos, de ocasiões de trabalho e crescimento humano para todos.
V - Estado e Cultura
44. Leão XIII não ignorava que uma sã teoria do Estado é necessária para assegurar o desenvolvimento normal das actividades humanas: tanto as espirituais, como as materiais, sendo ambas indispensáveis (89). Por isso, numa passagem da Rerum novarum, ele apresenta a organização da sociedade segundo três poderes - legislativo, executivo e judicial - o que constituía, naquele tempo, uma novidade no ensinamento da Igreja (90). Tal ordenamento reflecte uma visão realista da natureza social do homem a qual exige uma legislação adequada para proteger a liberdade de todos. Para tal fim é preferível que cada poder seja equilibrado por outros poderes e outras esferas de competência que o mantenham no seu justo limite. Este é o princípio do "Estado de direito", no qual é soberana a lei, e não a vontade arbitrária dos homens.
A esta concepção se opôs, nos tempos modernos, o totalitarismo, o qual, na forma marxista-leninista, defende que alguns homens, em virtude de um conhecimento mais profundo das leis do desenvolvimento da sociedade, ou de uma particular consciência de classe ou por um contacto com as fontes mais profundas da consciência colectiva, estão isentos de erro e podem, por conseguinte, arrogar-se o exercício de um poder absoluto. Acrescente-se que o totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido objectivo: se não exis- te uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de Nação, contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder, e cada um tende a aproveitar-se ao máximo dos meios à sua disposição para impor o próprio interesse ou opinião, sem atender aos direitos do outro. Então o homem é respeitado apenas na medida em que for possível instrumentalizá-lo no sentido de uma afirmação egoísta. A raiz do totalitarismo moderno, portanto, deve ser individuada na negação da transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível e, precisamente por isso, pela sua própria natureza, sujeito de direitos que ninguém pode violar: seja indivíduo, grupo, classe, Nação ou Estado. Nem tão-pouco o pode fazer a maioria de um corpo social, lançando-se contra a minoria, marginalizando, oprimindo, explorando ou tentando destruí-la (91).
45. A cultura e a práxis do totalitarismo comportam também a negação da Igreja. O Estado, ou então o partido, que pretende poder realizar na história o bem absoluto e se arvora por cima de todos os valores, não pode tolerar que seja afirmado um critério objectivo do bem e do mal, para além da vontade dos governantes, o qual, em determinadas circunstâncias, pode servir para julgar o seu comportamento. Isto explica porquê o totalitarismo procura destruir a Igreja ou, pelo menos, subjugá-la, fazendo-a instrumento do próprio aparelho ideológico (92).
O Estado totalitário tende, ainda, a absorver em si próprio a Nação, a sociedade, a família, as comunidades religiosas e as próprias pessoas. Defendendo a própria liberdade, a Igreja defende a pessoa, que deve obedecer antes a Deus que aos homens (cf. Act 5, 29), a família, as diversas organizações sociais e as Nações, realidades essas que gozam de uma específica esfera de autonomia e soberania.
46. A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno; (83) ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor dos seus interesses particulares ou dos objectivos ideológicos.
Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma recta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da "subjectividade" da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e cor-responsabilidade. Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo céptico constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idóneos às formas políticas democráticas, e que todos quantos estão convencidos de conhecer a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos. A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a acção política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra.
A Igreja também não fecha os olhos diante do perigo do fanatismo, ou fundamentalismo, daqueles que, em nome de uma ideologia que se pretende científica ou religiosa, defendem poder impor aos outros homens a sua concepção da verdade e do bem. Não é deste tipo a verdade cristã. Não sendo ideológica, a fé cristã não presume encarcerar num esquema rígido a variável realidade sócio-política e reconhece que a vida do homem se realiza na história, em condições diversas e não perfeitas. A Igreja, portanto, reafirmando constantemente a dignidade transcendente da pessoa, tem, por método, o respeito da liberdade (94).
Mas a liberdade só é plenamente valorizada pela aceitação da verdade: num mundo sem verdade, a liberdade perde a sua consistência, e o homem acaba exposto à violência das paixões e a condicionalismos visíveis ou ocultos. O cristão vive a liberdade (cf. Jo 8, 31-32), e serve-a propondo continuamente, segundo a natureza missionária da sua vocação, a verdade que conheceu. No diálogo com os outros homens, ele, atento a toda a parcela de verdade que encontre na experiência de vida e na cultura dos indivíduos e das Nações, não renunciará a afirmar tudo o que a sua fé e o recto uso da razão lhe deram a conhecer (95).
47. Após a queda do totalitarismo comunista e de muitos outros regimes totalitários e de "segurança nacional", assistimos hoje à prevalência, não sem con- trastes, do ideal democrático, em conjunto com uma viva atenção e preocupação pelos direitos humanos. Mas, exactamente por isso, é necessário que os povos, que estão reformando os seus regimes, dêem à democracia um autêntico e sólido fundamento mediante o reconhecimento explícito dos referidos direitos (96). Entre os principais, recordem-se: o direito à vida, do qual é parte integrante o direito a crescer à sombra do coração da mãe depois de ser gerado; o direito a viver numa família unida e num ambiente moral favorável ao desenvolvimento da própria personalidade; o direito a maturar a sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade; o direito a participar no trabalho para valorizar os bens da terra e a obter dele o sustento próprio e dos seus familiares; o direito a fundar uma família e a acolher e educar os filhos, exercitando responsavelmente a sua sexualidade. Fonte e síntese destes direitos é, em certo sentido, a liberdade religiosa, entendida como direito a viver na verdade da própria fé e em conformidade com a dignidade transcendente da pessoa (97).
Também nos Países onde vigoram formas de governo democrático, nem sempre estes direitos são totalmente respeitados. Não se trata apenas do escândalo do aborto, mas de diversos aspectos de uma crise dos sistemas democráticos, que às vezes parecem ter perdido a capacidade de decidir segundo o bem comum. As questões levantadas pela sociedade não são examinadas à luz dos critérios de justiça e moralidade, mas antes na base da força eleitoral ou financiária dos grupos que as apoiam. Semelhantes desvios da prática política geram, com o tempo, desconfiança e apatia e consequentemente diminuição da participação política e do espírito cívico, no seio da população, que se sente prejudicada e desiludida. Disso resulta a crescente incapacidade de enquadrar os interesses particulares numa coerente visão do bem comum. Este efectivamente não é a mera soma dos interesses particulares, mas implica a sua avaliação e composição feita com base numa equilibrada hierarquia de valores e, em última análise, numa correcta compreensão da dignidade e dos direitos da pessoa (98).
A Igreja respeita a legítima autonomia da ordem democrática, mas não é sua atribuição manifestar preferência por uma ou outra solução institucional ou constitucional. O contributo, por ela oferecido nesta ordem, é precisamente aquela visão da dignidade da pessoa, que se revela em toda a sua plenitude no mistério do Verbo encarnado (99).
48. Estas considerações gerais reflectem-se também no papel do Estado no sector da economia. A actividade económica, em particular a da economia de mercado, não se pode realizar num vazio institucional, jurídico e político. Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes. A principal tarefa do Estado é, portanto, a de garantir esta segurança, de modo que quem trabalha e produz possa gozar dos frutos do próprio trabalho e, consequentemente, se sinta estimulado a cumpri-lo com eficiência e honestidade. A falta de segurança, acompanhada pela corrupção dos poderes públicos e pela difusão de fontes impróprias de enriquecimento e de lucros fáceis fundados em actividades ilegais ou puramente especulativas, é um dos obstáculos principais ao desenvolvimento e à ordem económica.
Outra tarefa do Estado é a de vigiar e orientar o exercício dos direitos humanos, no sector económico; neste campo, porém, a primeira responsabilidade não é do Estado, mas dos indivíduos e dos diversos grupos e associações em que se articula a sociedade. O Estado não poderia assegurar directamente o direito de todos os cidadãos ao trabalho, sem uma excessiva estruturação da vida económica e restrição da livre iniciativa dos indivíduos. Contudo isto não significa que ele não tenha qualquer competência neste âmbito, como afirmaram aqueles que defendiam uma ausência completa de regras na esfera económica. Pelo contrário, o Estado tem o dever de secundar a actividade das empresas, criando as condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise.
O Estado tem também o direito de intervir quando situações particulares de monopólio criem atrasos ou obstáculos ao desenvolvimento. Mas, além destas tarefas de harmonização e condução do progresso, pode desempenhar funções de suplência em situações excepcionais, quando sectores sociais ou sistemas de empresas, demasiado débeis ou em vias de formação, se mostram inadequados à sua missão. Estas intervenções de suplência, justificadas por urgentes razões que se prendem com o bem comum, devem ser, quanto possível, limitadas no tempo, para não retirar permanentemente aos mencionados sectores e sistemas de empresas as competências que lhes são próprias e para não ampliar excessivamente o âmbito da intervenção estatal, tornando-se prejudicial tanto à liberdade económica como à civil.
Assistiu-se, nos últimos anos, a um vasto alargamento dessa esfera de intervenção, o que levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de estado, o "Estado do bem-estar". Esta alteração deu-se em alguns Países, para responder de modo mais adequado a muitas necessidades e carências, dando remédio a formas de pobreza e privação indignas da pessoa humana. Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como "Estado assistencial". As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas. Também neste âmbito, se deve respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum (100).
Ao intervir directamente, irresponsabilizando a sociedade, o Estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominando mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os usuários com um acréscimo enorme das despesas. De facto, parece conhecer melhor a necessidade e ser mais capaz de satisfazê-la quem a ela está mais vizinho e vai ao encontro do necessitado. Acrescente-se que, frequentemente, um certo tipo de necessidades requer uma resposta que não seja apenas material, mas que saiba compreender nelas a exigência humana mais profunda. Pense-se na condição dos refugiados, emigrantes, anciãos ou doentes e em todas as diversas formas que exigem assistência, como no caso dos toxicómanos: todas estas são pessoas que podem ser ajudadas eficazmente apenas por quem lhes ofereça, além dos cuidados necessários, um apoio sinceramente fraterno.
49. Neste campo, a Igreja fiel ao mandato de Cristo, seu Fundador, sempre esteve presente com as suas obras para oferecer ao homem carente um auxílio material que não o humilde e não o reduza a ser apenas objecto de assistência, mas o ajude a sair da sua precária condição, promovendo a sua dignidade de pessoa. Com profunda gratidão a Deus, deve-se registar que a caridade operativa nunca faltou na Igreja, verificando-se até um variado e reconfortante incremento hoje. A propósito, merece especial menção o fenómeno do voluntariado que a Igreja favorece e promove apelando à colaboração de todos para sustentá-lo e encorajá-lo nas suas iniciativas.
Para superar a mentalidade individualista hoje difundida, requer-se um concreto empenho de solidariedade e caridade que tem início no seio da família com o apoio mútuo dos esposos, e depois com os cuidados que uma geração presta à outra. Assim a família qualifica-se como comunidade de trabalho e de solidariedade. Acontece porém que, quando ela se decide a corresponder plenamente à própria vocação, pode-se encontrar privada do apoio necessário por parte do Estado, e não dispõe de recursos suficientes. É urgente promover não apenas políticas para a família, mas também políticas sociais, que tenham como principal objectivo a própria família, ajudando-a, mediante a atribuição de recursos adequados e de instrumentos eficazes de apoio quer na educação dos filhos quer no cuidado dos anciãos, evitando o seu afastamento do núcleo familiar e reforçando os laços entre as gerações (101).
Além da família, também outras sociedades intermédias desenvolvem funções primárias e constróem específicas redes de solidariedade. Estas, de facto, maturam como comunidades reais de pessoas e dinamizam o tecido social, impedindo-o de cair no anonimato e na massificação, infelizmente frequente na sociedade moderna. É na múltipla actuação de relações que vive a pessoa e cresce a "subjectividade" da sociedade. O indivíduo é hoje muitas vezes sufocado entre os dois pólos: o Estado e o mercado. Às vezes dá a impressão de que ele existe apenas como produtor e consumidor de mercadorias ou então como objecto da administração do Estado, esquecendo-se que a convivência entre os homens não se reduz ao mercado nem ao Estado, já que a pessoa possui em si mesma um valor singular, ao qual devem servir o Estado e o mercado. O homem é, acima de tudo, um ser que procura a verdade e se esforça por vivê-la e aprofundá-la num diálogo contínuo que envolve as gerações passadas e as futuras (102).
50. Por esta procura clara da verdade que se renova em cada geração, caracteriza-se a cultura da Nação. Com efeito, o património dos valores transmitidos e adquiridos é não raro submetido pelos jovens à contestação. Contestar, de resto, não quer dizer necessariamente destruir ou rejeitar de modo apriorístico, mas sobretudo pôr à prova na própria vida e, por meio desta verificação existencial, tornar tais valores mais vivos, actuais e personalizados, discernindo o que na tradição é válido daquilo que é falso e errado ou constitui formas antiquadas, que podem ser substituídas por outras mais adequadas aos novos tempos.
Neste contexto, convém lembrar que também a evangelização se insere na cultura das Nações, sustentando-a no seu caminho rumo à verdade e ajudando-a no trabalho de purificação e de enriquecimento (103). Quando, no entanto, uma cultura se fecha em si própria e procura perpetuar formas antiquadas de vida, recusando qualquer mudança e confronto com a verdade do homem, então ela torna-se estéril e entra em decadência.
51. Toda a actividade humana tem lugar no seio de uma cultura e integra-se nela. Para uma adequada formação de tal cultura, se requer a participação de todo o homem, que aí aplica a sua a criatividade, a sua inteligência, o seu conhecimento do mundo e dos homens. Aí investe ainda a sua capacidade de autodomínio, de sacrifício pessoal, de solidariedade e disponibilidade para promover o bem comum. Por isso, o primeiro e maior trabalho realiza-se no coração do homem, e o modo como ele se empenha em construir o seu futuro depende da concepção que tem de si mesmo e do seu destino. É a este nível que se coloca o contributo específico e decisivo da Igreja a favor da verdadeira cultura. Ela promove as qualidades dos comportamentos humanos, que favorecem a cultura da paz, contra os modelos que confundem o homem na massa, ignoram o papel da sua iniciativa e liberdade e põem a sua grandeza nas artes do conflito e da guerra. A Igreja presta este serviço, pregando a verdade relativa à criação do mundo, que Deus colocou nas mãos dos homens para que o tornem fecundo e mais perfeito com o seu trabalho, e pregando a verdade referente à redenção, pela qual o Filho de Deus salvou todos os homens e, simultaneamente, uniu-os entre si, tornando-os responsáveis uns pelos outros. A Sagrada Escritura fala-nos continuamente do compromisso activo a favor do irmão e apresenta-nos a exigência de uma co-responsabilidade que deve abraçar todos os homens.
Esta exigência não se restringe aos limites da própria família, nem sequer da Nação ou do Estado, mas abarca ordenadamente a humanidade inteira, de modo que ninguém se pode considerar alheio ou indiferente à sorte de outro membro da família humana. Ninguém pode afirmar que não é responsável pela sorte do próprio irmão (cf. Gn 4, 9; Lc 10, 29-37; Mt 25, 31-46)! A atenta e pressurosa solicitude em relação ao próximo, na hora da necessidade, facilitada hoje também pelos novos meios de comunicação que tornaram os homens mais vizinhos entre si, é particularmente importante quando se trata de encontrar os instrumentos de solução dos conflitos internacionais alternativos à guerra. Não é difícil afirmar que a terrível capacidade dos meios de destruição, acessíveis já às médias e pequenas potências, e a conexão cada vez mais estreita entre os povos de toda a terra, tornam muito difícil ou praticamente impossível limitar as consequências de um conflito.
52. Os pontífices Bento XV e seus sucessores compreenderam lucidamente este perigo (104), e eu próprio, por ocasião da recente guerra dramática no Golfo Pérsico, repeti o grito: "Nunca mais a guerra"! Nunca mais a guerra, que destrói a vida dos inocentes, que ensina a matar e igualmente perturba a vida dos assassinos, que deixa atrás de si um cortejo de rancores e de ódios, tornando mais difícil a justa solução dos próprios problemas que a provocaram! Como dentro dos Estados chegou finalmente o tempo em que o sistema da vingança privada e da represália foi substituído pelo império da lei, do mesmo modo é agora urgente que um progresso semelhante tenha lugar na Comunidade internacional. Não se deve esquecer também que, na raiz da guerra, geralmente há reais e graves razões: injustiças sofridas, frustração de legítimas aspirações, miséria e exploração de multidões humanas desesperadas, que não vêem possibilidade real de melhorar as suas condições, através dos caminhos da paz.
Por isso, o outro nome da paz é o desenvolvimento (105). Como existe a responsabilidade colectiva de evitar a guerra, do mesmo modo há a responsabilidade colectiva de promover o desenvolvimento. Como a nível interno é possível e obrigatório construir uma economia social que oriente o funcionamento do mercado para o bem comum, assim é necessário que hajam intervenções adequadas a nível internacional. Por isso deve-se fazer um grande esforço de recíproca compreensão, de conhecimento e de sensibilização da consciência. É esta a cultura almejada que faz crescer a confiança nas potencialidades humanas do pobre e, consequentemente, na sua capacidade de melhorar a sua condição através do trabalho, ou de dar um contributo positivo ao bem-estar económico. Para o fazer, porém, o pobre - indivíduo ou Nação - tem necessidade que lhe sejam oferecidas condições realisticamente acessíveis. Criar essas ocasiões é a tarefa de uma concertação mundial para o desenvolvimento, que implica inclusive o sacrifício das situações de lucro e de poder, usufruídas pelas economias mais desenvolvidas (106).
Isto pode acarretar importantes mudanças nos estilos consolidados de vida, com o objectivo de limitar o desperdício dos recursos ambientais e humanos, permitindo assim a todos os homens e povos da terra dispôr deles em medida suficiente. Acrescente-se a isso a valorização dos novos bens materiais e espirituais, fruto do trabalho e da cultura dos povos hoje marginalizados, obtendo-se assim o global enriquecimento humano da família das Nações.
VI - O Homem é o Caminho da Igreja
53. Em face da miséria do proletariado, Leão XIII dizia: "Abordamos este argumento com confiança e no nosso pleno direito (...). Parecer-nos-ia faltar à nossa missão, se calássemos" (107). Nos últimos 100 anos, a Igreja manifestou repetidamente o seu pensamento, seguindo de perto a evolução contínua da questão social. Não o fez para recuperar privilégios do passado ou para impor a sua concepção social. O seu único objectivo era o cuidado e a responsabilidade pelo homem, a Ela confiado pelo próprio Cristo: por este homem que, como o Concílio Vaticano II recorda, é a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma, e para a qual Deus tem o seu projecto, isto é, a participação na salvação eterna. Não se trata do homem "abstracto", mas do homem real, "concreto", "histórico": trata-se de cada homem, porque cada um foi englobado no mistério da redenção e Cristo uniu-se com cada um para sempre, através desse mistério. Disto se segue que a Igreja não pode abandonar o homem e que "este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer na realização da sua missão (...) o caminho traçado pelo próprio Cristo, caminho que invariavelmente passa pelo mistério da incarnação e da redenção" (109).
A inspiração que preside à doutrina social da Igreja é esta, e só esta. Se a foi elaborando pouco a pouco de forma sistemática, sobretudo a partir da data que comemoramos, é porque toda a riqueza doutrinal da Igreja tem como horizonte o homem, na sua concreta realidade de pecador e de justo.
54. A doutrina social hoje especialmente visa o homem, enquanto inserido na complexa rede de relações das sociedades modernas. As ciências humanas e a filosofia servem de ajuda para interpretar a centralidade do homem dentro da sociedade, e para o capacitarem a uma melhor compreensão de si mesmo, enquanto "ser social". Todavia somente a fé lhe revela plenamente a sua verdadeira identidade, e é dela precisamente que parte a doutrina social da Igreja, que, recolhendo todos os contributos das ciências e da filosofia, se propõe assistir o homem no caminho da salvação.
A Encíclica Rerum novarum pode ser lida como um importante contributo à análise sócio-económica do fim do século XIX, mas o seu valor particular deriva de ela ser um Documento do Magistério que se insere perfeitamente na missão evangelizadora da Igreja, conjuntamente com muitos outros Documentos desta natureza. Daqui resulta que a doutrina social, por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização: enquanto tal, anuncia Deus e o mistério de salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo. A esta luz, e somente nela, se ocupa do resto: dos direitos humanos de cada um e, em particular, do "proletariado", da família e da educação, dos deveres do Estado, do ordenamento da sociedade nacional e internacional, da vida económica, da cultura, da guerra e da paz, do respeito pela vida desde o momento da concepção até à morte.
55. A Igreja recebe o "sentido do homem" da Revelação divina. "Para conhecer o homem, o homem verdadeiro, o homem integral, é preciso conhecer Deus", dizia Paulo VI, citando imediatamente Santa Catarina de Sena, que, em oração, exprimia a mesma doutrina: "Na tua natureza, Divindade eterna, conhecerei a minha natureza" (110).
Portanto, a antropologia cristã é realmente um capítulo da teologia e, pela mesma razão, a doutrina social da Igreja, ocupando-se do homem, interassando-se por ele e pelo seu modo de se comportar no mundo, "pertence (...) ao campo da teologia e especialmente da teologia moral" (11). A dimensão teológica revela-se necessária para interpretar e resolver os problemas actuais da convivência humana. Isto é válido - tenha-se na devida conta - tanto no que se refere à solução "ateia", que priva o homem de uma das suas componentes fundamentais, a espiritual, quanto no que diz respeito às soluções permissivas e consumísticas, que buscam, sob vários pretextos, convencê-lo da sua independência de toda a lei e de Deus, encerrando-o num egoísmo que acaba por lesar a si e aos outros.
Quando a Igreja anuncia ao homem a salvação de Deus, quando lhe oferece e comunica, através dos sacramentos, a vida divina, quando orienta a sua vida segundo os mandamentos do amor a Deus e ao próximo, contribui para a valorização da dignidade do homem. Mas como nunca poderá abandonar esta sua missão religiosa e transcendente a favor do homem, eis porque se empenha sempre com novas forças e novos métodos na evangelização que promove o homem todo. Apesar de se dar conta de que a sua obra encontra hoje particulares dificuldades e obstáculos, a Igreja, quase ao início do Terceiro Milénio, permanece "sinal e salvaguarda do carácter transcendente da pessoa humana" (112) como, aliás, sempre procurou fazer, desde o princípio da sua existência, caminhando conjuntamente com o homem, ao longo de toda a história. A Encíclica Rerum novarum é disso uma expressão significativa.
56. Quero agradecer, no centenário desta Encíclica, a todos os que se empenharam em estudar, aprofundar e divulgar a doutrina social cristã. Para este fim, é indispensável a colaboração das Igrejas locais e faço votos de que a ocorrência seja motivo de um novo estímulo para o seu estudo, divulgação e aplicação nos múltiplos âmbitos da realidade.
Desejava, de modo particular, que ela fosse dada a conhecer e actuada nos Países, onde, após a queda do socialismo real, se revela uma grave desorientação na obra de reconstrução. Por sua vez os Países ocidentais correm o perigo de verem, nesta derrocada, a vitória unilateral do próprio sistema sócio-económico, sem se preocuparem, por isso, em fazerem nele as devidas correcções. Depois os Países do Terceiro Mundo encontram-se mais que nunca na dramática situação do subdesenvolvimento, que cada dia se torna mais grave.
Leão XIII, depois de ter formulado os princípios e as orientações para a solução da questão operária, escreveu esta palavra decisiva: "Cada um realize a parte que lhe compete e não demore porque o atraso poderia ainda tornar mais difícil a cura de um mal já tão grave", acrescentando ainda: "Quanto à Igreja, não deixará de modo nenhum faltar a sua quota-parte" (113).
57. Para a Igreja, a mensagem social do Evangelho não deve ser considerada uma teoria, mas sobretudo um fundamento e uma motivação para a acção. Impelidos por esta mensagem, alguns dos primeiros cristãos distribuíam os seus bens pelos pobres e davam testemunho de que era possível uma convivência pacífica e solidária, apesar das diversas proveniências sociais. Pela força do Evangelho, ao longo dos séculos, os monges cultivaram as terras, os religiosos e as religiosas fundaram hospitais e asilos para os pobres, as confrarias, bem como homens e mulheres de todas as condições empenharam-se a favor dos pobres e dos marginalizados, convencidos de que as palavras de Cristo: "Cada vez que fizestes estas coisas a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes" (Mt 25, 40), não deviam permanecer um piedoso desejo, mas tornar-se um compromisso concreto de vida.
A Igreja está consciente hoje mais que nunca de que a sua mensagem social encontrará credibilidade primeiro no testemunho das obras e só depois na sua coerência e lógica interna. Desta convicção provém também a sua opção preferencial pelos pobres, que nunca será exclusiva nem descriminatória relativamente aos outros grupos. Trata-se, de facto, de uma opção que não se estende apenas à pobreza material, dado que se encontram, especialmente na sociedade moderna, formas de pobreza não só económica mas também cultural e religiosa. O amor da Igreja pelos pobres, que é decisivo e pertence à sua constante tradição, impele-a a dirigir-se ao mundo no qual, apesar do progresso técnico-económico, a pobreza ameaça assumir formas gigantescas. Nos Países ocidentais, existe a variada pobreza dos grupos marginalizados, dos anciãos e doentes, das vítimas do consumismo, e ainda de tantos refugiados e emigrantes; nos Países em vias de desenvolvimento, desenham-se no horizonte crises dramáticas se não forem tomadas medidas internacionalmente coordenadas.
58. O amor ao homem - e em primeiro lugar ao pobre, no qual a Igreja vê Cristo - concretiza-se na promoção da justica. Esta nunca se poderá realizar plenamente, se os homens não deixarem de ver no necessitado, que pede ajuda para a sua vida, um importuno ou um fardo, para reconhecerem nele a ocasião de um bem em si, a possibilidade de uma riqueza maior. Só esta consciência dará a coragem para enfrentar o risco e a mudança implícita em toda a tentativa de ir em socorro do outro homem. De facto, não se trata apenas de "dar o supérfluo", mas de ajudar povos inteiros, que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo do desenvolvimento económico e humano. Isto será possível não só fazendo uso do supérfluo, que o nosso mundo produz em abundância, mas sobretudo alterando os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades. Não se trata de destruir instrumentos de organização social que deram boa prova de si, mas principalmente de os orientar segundo uma concepção adequada do bem comum dirigido a toda a família humana. Hoje está-se a verificar a denominada "mundialização da economia", fenómeno este que não deve ser desprezado, porque pode criar ocasiões extraordinárias de maior bem-estar. Mas é sentida uma necessidade cada vez maior de que a esta crescente internacionalização da economia correspondam válidos organismos internacionais de controle e orientação que encaminhem a economia para o bem comum, já que nenhum Estado por si só, ainda que fosse o mais poderoso da terra, seria capaz de o fazer. Para poder conseguir tal resultado é necessário que cresça o entendimento entre os grandes Países, e que nos organismos internacionais sejam equitativamente representados os interesses da grande família humana. Mas impõe-se também que, ao avaliarem as consequências das suas decisões, tenham em devida conta aqueles povos e Países que têm escasso peso no mercado internacional, mas em si concentram as necessidades mais graves e dolorosas, e necessitam de maior apoio para o seu desenvolvimento. Sem dúvida, há ainda muito a fazer neste campo.
59. Para se cumprir a justiça e serem bem sucedidas as tentativas dos homens para a realizar, é necessário o dom da graça que vem de Deus. Por meio dela, em colaboração com a liberdade dos homens, obtém-se aquela misteriosa presença de Deus na história que é a Providência.
A experiência da novidade vivida no seguimento de Cristo requer a sua comunicação aos outros homens, nas situações concretas das suas dificuldades, lutas, problemas e desafios, para que sejam iluminadas e tornadas mais humanas à luz da fé. Esta não ajuda simplesmente a encontrar soluções, mas torna humanamente aceitáveis inclusive as situações de sofrimento, de modo que nelas o homem não se perca nem esqueça a sua dignidade e vocação.
A doutrina social tem, além disso, uma importante dimensão interdisciplinar. Para encarnar melhor nos diversos contextos sociais, económicos e políticos em contínua mutação, essa doutrina entra em diálogo com diversas disciplinas que se ocupam do homem, assumindo em si os contributos que delas provêm, e ajudando-as, por sua vez, a abrir-se numa dimensão mais ampla ao serviço de cada pessoa, conhecida e amada na plenitude da sua vocação.
A par desta dimensão interdisciplinar, aparece depois a dimensão prática e em certo sentido experimental desta doutrina. De facto, ela situa-se no cruzamento da vida e da consciência cristã com as situações do mundo e exprime-se nos esforços que indivíduos, famílias, agentes culturais e sociais, políticos e homens de Estado realizam para lhe dar forma e aplicação na história.
60. Ao anunciar os princípios para a solução da questão operária, Leão XIII escrevia: "A solução de um problema tão árduo requer o concurso e a cooperação eficaz de outros também" (114). Ele estava convencido que os graves problemas, causados pela sociedade industrial, só podiam ser resolvidos pela colaboração entre todas as forças intervenientes. Essa afirmação tornou-se um elemento permanente da doutrina social da Igreja, e isto explica, entre outras razões, porquê o Papa João XXIII dirigiu a sua Encíclica sobre a paz, também a "todos os homens de boa vontade".
Todavia Leão XIII constatava com tristeza que as ideologias do tempo, especialmente o liberalismo e o marxismo, recusavam essa colaboração. Entretanto muitas coisas mudaram, especialmente nos últimos anos. O mundo de hoje está sempre mais consciente de que a solução dos graves problemas nacionais e internacionais não é apenas uma questão de produção económica ou de uma organização jurídica ou social, mas requer valores ético-religiosos específicos, bem como mudanças de mentalidade, de comportamentos e de estruturas. A Igreja sente-se particularmente responsável em oferecer este contributo e, como escrevi na Encíclica Sollicitudo rei socialis, há fundada esperança de que mesmo o grupo numeroso dos que não professam explicitamente uma religião possa contribuir para esse fundamento ético necessário à questão social (115).
No mesmo Documento, dirigi precisamente um apelo às Igrejas cristãs e a todas as grandes religiões do mundo, convidando-as a dar um testemunho unânime das nossas convicções comuns sobre a dignidade do homem, criado por Deus (116). De facto, estou persuadido que as religiões têm hoje e continuarão a ter um papel proeminente a desempenhar na conservação da paz e na construção de uma sociedade digna do homem.
A disponibilidade para o diálogo e colaboração vale, além disso, para todos os homens de boa vontade e, de modo particular, para as pessoas e grupos com uma responsabilidade específica no campo político, económico e social tanto a nível nacional como internacional.
61. No início da sociedade industrial, foi "o jugo quase servil" que obrigou o meu predecessor a tomar a palavra em defesa do homem. Nestes cem anos, a Igreja permaneceu fiel a esse empenho! De facto, interveio nos anos turbolentos da luta de classes, a seguir à primeira guerra mundial, para defender o homem da exploração económica e da tirania dos sistemas totalitários. Colocou a dignidade de pessoa no centro das suas mensagens sociais, após a segunda guerra mundial, insistindo sobre o destino universal dos bens materiais, sobre uma ordem social sem opressão e fundada no espírito de colaboração e solidariedade. Depois reiterou constantemente que a pessoa e a sociedade não têm necessidade apenas destes bens, mas também de valores espirituais e religiosos. Além disso, tendo verificado cada vez mais como tantos homens vivem, não no bem-estar do mundo ocidental, mas na miséria dos Países em vias de desenvolvimento e padecem uma condição que é ainda a do "jugo quase servil", sentiu-se na obrigação de denunciar essa realidade clara e francamente, embora sabendo que este seu grito não será sempre acolhido favoravelmente por todos.
Cem anos depois da publicação da Rerum novarum, a Igreja encontra-se ainda diante de "coisas novas" e de novos desafios. Por isso, este centenário da Encíclica deve confirmar em sua tarefa todos os "homens de boa vontade", e especialmente os crentes.
62. Esta minha Encíclica quis olhar ao passado, mas ela está sobretudo lançada para o futuro. Como a Rerum novarum, ela coloca-se quase no limiar do novo século e deseja, com a ajuda de Deus, preparar a sua vinda.
A verdadeira e perene "novidade das coisas" em cada tempo provém do infinito poder divino, que diz: "Eis que eu faço novas todas as coisas" (Ap 21, 5). Estas palavras referem-se à conclusão da história quando Cristo "entregar o reino a Deus Pai (...) para que Deus seja tudo em todos" (1 Cor 15, 24.28). Mas o cristão sabe que esta novidade, cuja plenitude aguardamos com o Regresso do Senhor, está presente desde a criação do mundo, e, mais precisamente, desde que Deus se fez homem em Jesus Cristo, e com Ele e por Ele realizou uma "nova criação" (2 Cor 5, 17; Gal 6, 15).
Ao concluir, quero agradecer a Deus omnipotente por ter dado à sua Igreja a luz e a força para acompanhar o homem no seu caminho terreno para o destino eterno. A Igreja, também no Terceiro Milénio, permanecerá fiel no assumir como próprio o caminho do homem, sabendo que não caminha só, mas com Cristo, seu Senhor. Foi Ele que fez Seu o caminho do homem, e o guia mesmo quando ele disso não se dá conta.
Maria, a Mãe do Redentor, que permaneceu ao lado de Cristo, no seu caminho ao encontro dos homens e com os homens, e precede a Igreja na peregrinação da fé, acompanhe, com Sua maternal intercessão, a humanidade em direcção ao próximo Milénio, na fidelidade Àquele que "ontem como hoje, é o mesmo e sê-lo-á para sempre" (cf. Heb 13, 8), Jesus Cristo, Nosso Senhor, em Nome do Qual a todos abençoo.
- Dado em Roma, junto de S. Pedro, na memória de S. José Operário, dia 1 de Maio do ano de 1991, décimo terceiro de pontificado.
Dall'Alto Dell'Apostolico Seggio
ENCÍCLICA
DALL'ALTO DELL'APOSTOLICO SEGGIO
DO PAPA LEÃO XIII
SOBRE A MAÇONARIA NA ITÁLIA
Aos Bispos, ao Clero, e ao Povo da Itália.
Veneráveis Irmãos e Amados Filhos, Saúde e Bênção Apostólica.
1. Do alto do Trono Apostólico, aonde a Providência Divina Nos colocou para vigiar pela salvação de todas as nações, Nós olhamos sobre a Itália em cujo seio, por um ato de singular predilecção, Deus estabeleceu a Sede de Seu Vigário, e da qual Nos vem no tempo presente muitas e amarguíssimas tristezas.
Não é nenhuma ofensa pessoal que Nos entristece, nem as privações e sacrifícios impostos a Nós pela actual condição das coisas, nem os ultrajes e escárnios que uma imprensa insolente tem todo o poder para atirar todos os dias contra Nós. Se somente a Nossa pessoa estivesse envolvida, e não a ruína à qual a Itália ameaçada em sua fé está se atirando, Nós suportaríamos estas ofensas sem reclamar, alegrando-Nos até por repetir o que um de Nossos mais ilustres Predecessores disse de si mesmo: "Se o aprisionamento do meu país não aumentasse a cada momento e a cada dia, quanto ao desprezo e escárnio de mim mesmo eu alegremente silenciaria."[1]
Mas, além da independência e dignidade da Santa Sé, a própria religião e a salvação de toda uma nação estão envolvidas, de uma nação que desde os primeiros tempos abriu o seu seio à Fé Católica e sempre a tem zelosamente preservado. Por incrível que pareça, é verdade; a tal ponto chegamos, que devemos temer que esta nossa Itália perca até a fé.
Muitas vezes Nós soamos o alarme, para advertir do perigo; mas por este motivo Nós não pensamos que tenhamos feito o suficiente. Em face aos continuados e ainda mais furiosos assaltos que são feitos, Nós ouvimos a voz do dever chamando-Nos mais poderosamente do que antes para falar-vos novamente, Veneráveis Irmãos, aos seus Clérigos, e a todo o povo italiano. Uma vez que o inimigo não dá trégua, então nem vós nem Nós podemos permanecer calados ou inertes. Pela Divina misericórdia Nós fomos constituídos guardiões e defensores da religião do povo confiado ao Nosso cuidado, Pastores e vigilantes sentinelas do rebanho de Cristo; e por este rebanho Nós devemos estar prontos, se necessário, a sacrificar tudo, até a própria vida.
2. Nós não diremos nada de novo; pois os fatos não mudaram daquilo que eles eram, e Nós em outros tempos falamos sobre eles quando a oportunidade surgiu.
Mas Nós agora pretendemos recapitular estes fatos de algum modo, e agrupá-los em uma única imagem, de modo a deduzir para instrução geral as consequências que seguem deles. Os fatos são incontestáveis e aconteceram à clara luz do dia; não separados uns dos outros, mas tão conectados entre si em uma série de modo a revelar com a mais completa evidência um sistema do qual eles são a verdadeira operação e desenvolvimento. O sistema não é novo; mas a audácia, a fúria, e a rapidez com as quais ele está sendo levado adiante agora, são novas. É o plano das seitas que está agora se desenrolando na Itália, especialmente no que se refere à religião Católica e à Igreja, com o propósito final e jurado, se isso fosse possível, de reduzi-la a nada.
Agora é desnecessário colocar as seitas Maçónicas em julgamento. Elas já estão julgadas; seus fins, seus meios, suas doutrinas, e sua acção, são todos conhecidos com indisputável certeza. Possuídos pelo espírito de Satanás, cujos instrumentos eles são, eles ardem como ele com um ódio mortal e implacável a Jesus Cristo e Sua obra; e eles se esforçam por todos os meios para derrubá-la e acorrentá-la. Esta guerra no momento presente se desenrola mais do que em qualquer outro lugar na Itália, na qual a religião Católica se enraizou mais profundamente; e acima de tudo em Roma, o centro da unidade Católica, e a Sede do Pastor Universal e Mestre da Igreja.
3. É bom traçar desde o início as diferentes fases deste combate.
4. A guerra começou pela derrubada do poder civil dos Papas, cuja queda, de acordo com as intenções secretas dos verdadeiros líderes, mais tarde abertamente declarada, era, sob um pretexto político, para ser o meio de pelo menos escravizar, se não destruir, o supremo poder espiritual dos Pontífices Romanos.
Para que nenhuma dúvida restasse quanto ao verdadeiro objectivo desta guerra, seguiu-se rapidamente a supressão das Ordens Religiosas; e portanto uma grande redução no número de operários evangélicos para a propagação da fé entre os pagãos, e para o ministério sagrado e serviço religioso nos países Católicos.
Mais tarde, a obrigação do serviço militar foi estendida aos clérigos, com o necessário resultado de que muitos e graves obstáculos foram colocados no recrutamento e devida formação até do Clero secular. Lançaram mãos das propriedades eclesiásticas, em parte por absoluto confisco, e em parte taxando-as com enormes cargas, de modo a empobrecer o Clero e a Igreja, e privar a Igreja do que é necessário para seu suporte temporal e para levar adiante instituições e obras auxiliares ao seu divino apostolado. Isto os próprios sectários abertamente declararam. Para diminuir a influência do Clero e de corpos clericais, apenas um meio eficaz precisa ser usado: tirar deles todos os seus bens, e reduzi-los à absoluta pobreza. Assim também a acção do Estado é em si mesma toda dirigida para erradicar da nação seu carácter religioso e Cristão. Das leis, e de toda a vida oficial, toda inspiração e ideia religiosa é sistematicamente banida, quando não directamente atacada. Cada manifestação pública de fé e de piedade Católica é ou proibida ou, sob pretextos vãos, de mil maneiras impedida.
Da família são tiradas sua fundação e constituição religiosa pela proclamação do casamento civil, como ele é chamado; e também pela educação inteiramente leiga que agora é exigida, dos primeiros elementos até o mais alto ensino das universidades, de modo que as gerações em crescimento, tanto quanto isto possa ser afectado pelo Estado, devem crescer sem qualquer ideia de religião, e sem as primeiras noções essenciais de seus deveres para com Deus. Isto é colocar o machado na raiz. Nenhum meio mais universal e eficaz poderia ser imaginado de retirar a sociedade, as famílias, e os indivíduos, da influência da Igreja e da fé. Demolir o Clericalismo (ou Catolicismo) até os seus fundamentos e em suas próprias fontes de vida, especificamente, na escola e na família: esta é a autêntica declaração dos escritores Maçons.
5. Será dito que isto não acontece somente na Itália, mas é um sistema de governo que os Estados seguem de modo geral.
Nós respondemos, que isto não refuta, mas confirma o que Nós estamos dizendo sobre os desígnios e acção da Maçonaria na Itália. Sim, este sistema é adoptado e levado adiante aonde quer que a Maçonaria use sua acção ímpia e pervertida; e, como a sua acção é largamente difundida, do mesmo modo este sistema anticristão é largamente aplicado. Mas a aplicação se torna mais veloz e geral, e é levada a maiores extremos, em países aonde o governo está mais sob o controle da seita e melhor promove os seus interesses. Infelizmente, no momento presente a nova Itália está entre estes países. Não apenas hoje ela está sujeita à pervertida e maligna influência das seitas; mas já por algum tempo eles a têm tiranizado como quiseram, com absoluto domínio e poder. Agora a direcção dos assuntos públicos, no que diz respeito à religião, está totalmente em conformidade com as aspirações das seitas; e para atingir as suas aspirações, eles encontram auxiliadores declarados e instrumentos de prontidão naqueles que detém o poder público. Leis adversas à Igreja e medidas hostis a ela são primeiro propostas, decididas, e resolvidas, nos encontros secretos da seita; e se algo apresenta até a mínima aparência de hostilidade ou prejuízo à Igreja, é imediatamente recebido favoravelmente e levado adiante.
Entre os fatos mais recentes Nós podemos mencionar a aprovação do novo código penal, no qual o que era mais obstinadamente exigido, a despeito de todas as razões em contrário, eram os artigos contra o Clero, que forma para eles uma lei excepcional, e até condenam como criminosas certas acções que são deveres sagrados de seus ministros.
A lei quanto às obras de piedade, pela qual qualquer propriedade de caridade, acumulada pela piedade e religião de nossos ancestrais sob a protecção e a guarda da Igreja, foi retirada completamente da acção e controle da Igreja, foi por alguns anos levada adiante nos encontros da seita, precisamente porque iria infligir um novo ultraje à Igreja, diminuir sua influência social, e suprimir imediatamente um grande número de doações feitas para o culto divino.
Então veio aquela obra eminentemente sectária, a erecção do monumento ao renomado apóstata de Nola, o qual, com a ajuda e favor do governo, foi promovido, determinado, e levado adiante pela Maçonaria, cujo mais autorizado porta-voz não se envergonhou de reconhecer o seu propósito e declarar seu significado. Seu propósito era insultar o Papado; seu significado que, ao invés da Fé Católica, deve agora haver em substituição a mais absoluta liberdade de examinação, de crítica, de pensamento, e de consciência: e o que é entendido por tal linguagem na boca das seitas é bem conhecido.
O selo foi colocado pelas mais explícitas declarações feitas pelo chefe de governo, que eram no seguinte sentido: - Que o verdadeiro e real conflito, que o governo tem o mérito de entender, é o conflito entre a fé e a Igreja de um lado e a livre examinação e a razão do outro. Que a Igreja tente fazer como ela fez antes, acorrentar novamente a razão e o livre-pensar, e prevalecer; mas o governo neste conflito declara-se abertamente a favor da razão como contrária à fé, e toma sobre si mesmo a tarefa de fazer do Estado Italiano a expressão evidente desta razão e liberdade: uma triste tarefa, que agora há pouco foi enfaticamente reafirmada em uma ocasião semelhante.
6. À luz de tais fatos e tais declarações como estas, é mais do que nunca claro que a ideia dominante que, em tudo que diz respeito à religião, controla o curso dos assuntos públicos na Itália, é a realização do programa Maçónico. Nós vemos quanto já foi realizado; nós sabemos quanto ainda resta a ser feito; e nós podemos prever com certeza que, enquanto os destinos da Itália estiverem nas mãos de governantes sectários ou de homens sujeitos às seitas, a realização do programa será forçada adiante, mais ou menos rapidamente de acordo com as circunstâncias, até o seu completo desenvolvimento.
A acção das seitas é no presente dirigida para atingir os seguintes objectivos, de acordo com os votos e resoluções passadas em suas mais importantes assembleias, - votos e resoluções inspirados por um ódio mortal à Igreja. A abolição nas escolas de qualquer tipo da instrução religiosa, e a fundação de instituições nas quais até as moças devem ser retiradas de toda influência clerical, qualquer que ela possa ser; porque o Estado, que deve ser absolutamente ateu, tem o inalienável direito e dever de formar o coração e os espíritos de seus cidadãos, e nenhuma escola deveria existir fora de sua inspiração e controle.
A aplicação rigorosa de todas as leis agora vigorando, que visam assegurar a absoluta independência da sociedade civil da influência clerical.
A estrita observância de leis suprimindo corporações religiosas, e o emprego de meios para fazê-las efectivas.
O controle de todas propriedades eclesiásticas, partindo do princípio que a sua propriedade pertence ao Estado, e a sua administração ao poder civil.
A exclusão de todo elemento Católico ou clerical de todas administrações públicas, de obras de caridade, hospitais, e escolas, dos conselhos que governam os destinos do país, de uniões académicas e semelhantes, de companhias, comités, e famílias, - uma exclusão de tudo, em qualquer lugar, e para sempre. Ao invés, a influência Maçónica deve ser sentida em todas as circunstâncias da vida social, e se tornar mestra e controladora de tudo.
Por meio disto o caminho vai ser aplainado em direcção à abolição do Papado; a Itália irá deste modo ser livre de seu implacável e mortal inimigo; e Roma, que no passado foi o centro da Teocracia universal no futuro será o centro da secularização universal, do qual a Carta Magna da liberdade humana deve ser proclamada à face do mundo inteiro. Estas são as autênticas declarações, aspirações, e resoluções, dos Maçons ou de suas assembleias.
7. Sem exagero, esta é a presente condição e a futura perspectiva da religião na Itália. Encolher-se para não ver a gravidade disto seria um erro fatal. Reconhecer isto como é, confrontar isto com a prudência e fortaleza evangélicas, inferir os deveres que isto impõe sobre todos os Católicos, e sobre nós especialmente que como Pastores temos que vigiar sobre eles e guiá-los à salvação, é entrar nos olhares da Providência, fazer uma obra de sabedoria e zelo pastoral.
Tanto quanto diz respeito a Nós, o ofício Apostólico põe sobre Nós o dever de protestar em alta voz mais uma vez contra tudo que tem sido feito, está sendo feito, ou está sendo tentado na Itália para prejudicar a religião. Defendendo e guardando os direitos sagrados da Igreja e do Pontificado, Nós abertamente repelimos e denunciamos a todo o mundo Católico os ultrajes que a Igreja e o Pontificado estão continuamente recebendo, especialmente em Roma, e que nos atrapalham no governo da Igreja Católica, e adicionam dificuldade e indignidade à Nossa condição. Nós estamos determinados a não omitir nada de Nossa parte que possa servir para manter a fé viva e vigorosa entre o povo italiano, e para protegê-lo contra os assaltos de seus inimigos. Nós, portanto, fazemos um apelo, Veneráveis Irmãos, ao vosso zelo e vosso grande amor pelas almas, de modo que, possuídos com um sentido da gravidade e do perigo no qual elas incorrem, vós possais aplicar os remédios adequados e fazer tudo o que puderdes para dispersar este perigo.
8. Nenhum meio que esteja em vosso poder deve ser negligenciado. Todos os recursos da palavra, todo expediente na acção, todos os imensos tesouros de socorro e graça que a Igreja coloca em vossas mãos, devem ser usados, para a formação de um Clero instruído e cheio do espírito de Jesus Cristo, para a educação cristã dos jovens, para a extirpação de doutrinas malignas, para a defesa das verdades Católicas, e para a manutenção do carácter Cristão e do espírito de vida familiar.
9. Quanto ao povo Católico, antes de mais nada é necessário que eles sejam instruídos quanto ao verdadeiro estado de coisas na Itália no que diz respeito à religião, o carácter essencialmente religioso do conflito na Itália contra o Pontífice, e os objectivos reais constantemente visados, para que eles possam ver pela evidência dos fatos os muitos modos pelos quais se conspira contra a sua religião, e possam se convencer do risco que eles correm de serem roubados e despojados do inestimável tesouro da fé.
Com esta convicção em suas mentes, e tendo ao mesmo tempo a certeza de que sem fé é impossível agradar a Deus e ser salvo, eles irão entender que o que agora está em jogo é o maior, para não dizer o único interesse, o qual cada um na terra está obrigado antes de todas as coisas, ao custo de qualquer sacrifício, a colocar fora de perigo, sob pena de miséria eterna. Eles irão, ainda mais, facilmente entender que, neste tempo de aberto e furioso conflito, seria desgraçante para eles desertarem do campo e se esconderem. Seu dever é permanecer em seus postos, e abertamente mostrar serem verdadeiros católicos por suas crenças e acções, em conformidade com a sua fé. Isto eles devem fazer pela honra de sua fé, e a glória do Soberano Líder cuja bandeira eles seguem; e para que eles possam escapar do grande infortúnio de serem repudiados no último dia, e de não serem reconhecidos como Seus pelo Supremo Juiz que declarou que qualquer um que não está com Ele está contra Ele.
Sem ostentação ou timidez, que eles dêem prova daquela verdadeira coragem que vem da consciência de cumprir um dever sagrado perante Deus e os homens. A esta franca profissão de fé os Católicos devem unir uma perfeita docilidade e amor filial para com a Igreja, um respeito sincero por seus Bispos, e uma absoluta devoção e obediência ao Pontífice Romano. Em uma palavra, eles irão reconhecer quão necessário é largar tudo que seja obra das seitas, ou que receba impulso ou favor da parte deles, como sendo sem dúvida alguma infectado pelo espírito anticristão; e eles irão, ao contrário, devotar-se com actividade, coragem e constância, a obras Católicas, e às associações e instituições que a Igreja abençoou, e que os Bispos e o Pontífice Romano encorajam e mantêm.
Além disso, vendo que o principal instrumento empregado por nossos inimigos é a imprensa, que em grande parte recebe deles sua inspiração e suporte, é importante que os Católicos se oponham à imprensa maligna por uma imprensa que seja boa, para a defesa da verdade, nascida do amor à religião, e para sustentar os direitos da Igreja. Enquanto a imprensa Católica estiver ocupada em deixar nus os desígnios pérfidos das seitas, em ajudar e defender as acções dos sagrados Pastores, e em defender a promover as obras Católicas, é dever os fiéis suportar eficazmente esta imprensa, - recusando ou cessando de favorecer de qualquer modo a imprensa maligna; e também directamente, concorrendo, tanto quanto cada um possa, para ajudá-la a viver e florescer: e neste assunto Nós pensamos que até agora não foi feito o suficiente na Itália.
Finalmente, o ensinamento dirigido por Nós a todos os Católicos, especialmente nas encíclicas "Humanum genus" e "Sapientiae Christianae", deveria ser particularmente aplicado aos Católicos da Itália, e ser imprimido sobre eles. Se eles têm algo a sofrer ou a sacrificar para permanecer fiéis aos seus deveres, que eles tomem coragem no pensamento de que o Reino dos Céus sofre violência e é ganhado somente fazendo violência a nós mesmos; e que aquele que ama a si mesmo e o que é seu mais do que Jesus Cristo, não é digno d'Ele. O exemplo dos muitos campeões invencíveis que, em todos os tempos, generosamente sacrificaram tudo pela fé, e os especiais auxílios da graça que fazem o jugo de Jesus Cristo suave e Seu fardo leve, devem animar poderosamente a sua coragem e sustentá-los no glorioso combate.
10. Até agora Nós temos considerado apenas o lado religioso do presente estado de coisas na Itália, uma vez que este é para Nós o mais essencial, e o assunto que eminentemente diz respeito a Nós em razão do ofício Apostólico que Nós temos. Mas é valioso considerar também o lado social e político, para que os italianos possam ver que não apenas o amor pela religião, mas também o mais nobre e sincero amor à pátria deveria incitá-los a resistir às ímpias tentativas das seitas. - Como uma prova convincente disto, é suficiente notar o tipo de futuro, na ordem social e política, que está sendo preparado para a Itália por homens cujo objectivo é - e eles não fazem segredo disto - combater uma guerra sem trégua contra o Catolicismo e o Papado.
11. Já o teste do passado fala eloquentemente por si mesmo.
O que a Itália se tornou neste primeiro Período de sua nova vida, quanto à moralidade pública e privada, segurança interna, ordem e paz, riqueza nacional e prosperidade, tudo isto é conhecido por vós pelos fatos, Veneráveis Irmãos, melhor do que Nós poderíamos descrever em palavras. Os próprios homens cujo interesse seria esconder tudo isto, são constrangidos pela verdade a admiti-lo. Nós apenas diremos que, sob as presentes condições, uma necessidade triste mas real, as coisas não poderiam ser de outro modo: a seita Maçónica, com toda a sua jactância de um espírito de beneficência e filantropia, pode apenas exercer uma influência maligna - uma influência que é maligna porque ataca e esforça-se por destruir a religião de Cristo, a verdadeira benfeitora da humanidade.
12. Todos sabem com que efeito salutar e em quantos modos a influência da religião penetra a sociedade. Está além de disputa que a sólida moralidade pública e privada dá honra e força aos Estados. Mas é igualmente certo que, sem religião não há verdadeira moralidade, pública ou privada.
Da família, solidamente baseada em seus fundamentos naturais, vem a vida, o crescimento, e a energia da sociedade. Mas sem religião, e sem moralidade, a parceria doméstica não tem estabilidade, e os laços familiares se tornam mais fracos e se rompem.
A prosperidade dos povos e das nações vem de Deus e de Suas bênçãos. Se um povo não atribui a sua prosperidade a Ele, mas se levanta contra Ele, e no orgulho de seu coração tacitamente diz a Ele que não tem necessidade d'Ele, sua prosperidade é apenas uma imagem, certa a desaparecer tão logo agrade ao Senhor confundir a orgulhosa insolência de Seus inimigos.
É a religião que, penetrando no fundo da consciência de cada um, faz com que ele sinta a força do dever e incita-o a cumpri-lo. É a religião que dá aos governantes sentimentos de justiça e amor para com seus súbditos; que faz os súbditos fiéis e sinceramente devotados aos seus governantes; que faz legisladores rectos e bons, magistrados justos e incorruptíveis, soldados bravos e heróicos, administradores conscienciosos e diligentes. É a religião que produz concórdia e afeição entre marido e esposa, amor e reverência entre os pais e seus filhos; que faz os pobres respeitarem as propriedades dos outros, e faz com que os ricos façam um uso justo de sua riqueza. Desta fidelidade ao dever, e deste respeito pelos direitos dos outros vem a ordem, a tranquilidade, e a paz, que formam uma parte tão importante da prosperidade de um povo e de um Estado. Tire a religião, e com ela todos estes benefícios imensamente preciosos desaparecerão da sociedade.
13. Para a Itália, além disso, a perda seria sensível.
Todas as suas glórias e grandezas, que por um longo tempo deram a ela o primeiro lugar entre as mais cultas nações, são inseparáveis da religião, que ou as produziu ou as inspirou, ou certamente as favoreceu, ajudou, e aumentou. Suas comunas nos falam de suas liberdades públicas: de suas glórias militares nós lemos em suas muitas memoráveis empresas contra os inimigos do nome Cristão. Suas ciências são vistas em suas universidades que, fundadas, mantidas, e privilegiadas pela Igreja, têm sido sua casa e teatro. Suas artes são mostradas nos inumeráveis monumentos de todo tipo com os quais a Itália está profusamente coberta. De suas instituições para auxílio dos sofredores, para os miseráveis e as classes trabalhadoras nós temos evidência em suas muitas fundações de caridade Cristã, nos muitos asilos estabelecidos para todo tipo de necessidade e infortúnio, e nas associações e corporações que cresceram sob a protecção da religião. A virtude e a força da religião são imortais porque a religião é de Deus. Ela tem tesouros de auxílio e eficacíssimos remédios, que podem ser maravilhosamente adaptados às necessidades de cada tempo e época. O que a religião tem sabido como fazer e tem feito em tempos passados, ela pode fazer também agora com uma virtude sempre fresca e vigorosa. Retirar a religião da Itália, é secar imediatamente a mais abundante fonte de inestimável auxílio e benefícios.
14. Além disso, um dos maiores e mais formidáveis perigos da sociedade de hoje, é a agitação dos Socialistas, que ameaçam levantá-la de seus fundamentos. Deste grande perigo a Itália não está livre; e embora outras nações possam estar mais infestadas do que a Itália por este espírito de subversão e desordem, não é entretanto menos verdadeiro que até aqui este espírito está se espalhando largamente e aumentando a cada dia em força. Tão criminosa é sua natureza, tão grande o poder de sua organização e a audácia de seus desígnios, que é necessário unir todas as forças conservadoras, se quisermos impedir seu progresso e evitar com sucesso o seu triunfo. Destas forças a principal, e sobre todas a chefe, é aquela que pode ser fornecida pela religião e a Igreja: sem isto, as mais estritas leis, os mais severos tribunais, e até a força das armas, vão se provar sem utilidade e insuficiente. Como, em tempos antigos, a força material não adiantou contra as hordas dos bárbaros, mas somente o poder da religião Cristã, que entrando em suas almas apagou sua ferocidade, civilizou suas maneiras, e os fez dóceis à voz da verdade e à lei do evangelho; do mesmo modo contra a fúria das multidões sem lei não haverá defesa efectiva sem o salutar poder da religião. É somente este poder que, derramando sobre suas mentes a luz da verdade, e instilando em seus corações os sagrados preceitos morais de Jesus Cristo, pode fazê-los ouvir a voz da consciência e do dever, e, antes de restringir suas mãos, restringir suas mentes e acalmar a violência da paixão.
Atacar a religião, é portanto privar a Itália de seu mais poderoso aliado contra um inimigo que se torna a cada dia mais formidável.
15. Mas isto não é tudo.
Como, na ordem social, a guerra contra a religião está se tornando mais desastrosa e destrutiva para a Itália, do mesmo modo, na ordem política, a inimizade contra a Santa Sé e o Pontífice Romano é para a Itália uma fonte dos maiores males. Mesmo quanto a isto, a demonstração não é necessária; é suficiente, para a completa expressão de Nosso pensamento, declarar em poucas palavras as suas conclusões. A guerra contra o Papa é para a Itália, internamente, uma causa de profunda divisão entra a Itália oficial e a grande parte dos italianos que são verdadeiramente Católicos: e toda divisão é uma fraqueza. Esta guerra priva nossa terra do suporte e da cooperação do partido que é mais francamente conservador; ela mantém no seio da nação um conflito religioso que nunca trouxe até agora qualquer bem público, mas até mesmo traz dentro de si os germes fatais do mal e do mais pesado castigo.
Externamente, o conflito com a Santa Sé, além de privar a Itália do prestígio e esplendor que ela com certeza teria vivendo em paz com o Pontificado, atrai sobre ela a hostilidade dos Católicos de todo o mundo, é uma causa de imensos sacrifícios, e pode em qualquer ocasião fornecer aos seus inimigos uma arma para ser usada contra ela.
16. Este é o assim chamado bem-estar e grandeza preparado para a Itália por aqueles que, tendo seus destinos em suas mãos, fazem tudo que podem, de acordo com as ímpias aspirações das seitas, para derrubar a religião Católica e o Papado.
17. Suponhamos, ao invés disto, que todas as ligações e conspirações com as seitas fossem deixadas de lado; que à religião e à Igreja, como o maior poder social, fosse permitida verdadeira liberdade e completo exercício de seus direitos.
Que feliz mudança viria sobre os destinos da Itália! Os males e os perigos que nós temos lamentado, como o resultado da guerra contra a religião e a Igreja, cessariam com o término do conflito; e ainda mais, nós veríamos mais uma vez florescer no solo escolhido da Itália Católica a grandeza e glória que a religião e a Igreja tem sempre abundantemente produzido. De seus poderes divinos nasceria espontaneamente uma reforma da moralidade pública e privada; os laços familiares seriam fortalecidos; e sob as influências religiosas, o sentido de dever e de fidelidade em seu cumprimento seria despertado em todos os níveis do povo para uma nova vida.
As questões sociais que agora ocupam tanto as mentes dos homens encontrariam seu caminho para a melhor e mais completa solução, pela aplicação prática dos preceitos evangélicos de caridade e justiça. A liberdade popular, não permitida a degenerar em licenciosidade, seria dirigida somente para bons fins, e se tornaria verdadeiramente digna do homem. As ciências, através daquela verdade da qual a Igreja é senhora, se levantariam rapidamente para uma mais alta excelência; e do mesmo modo as artes, através da poderosa inspiração que a religião deriva do alto, e que ela sabe como transfundir às mentes dos homens.
A paz sendo feita com a Igreja, a unidade religiosa e a concórdia civil seriam grandemente fortalecidas; a separação entre a Itália e os Católicos fiéis à Igreja cessaria, e a Itália iria deste modo adquirir um poderoso elemento de ordem e estabilidade. As justas demandas do Pontífice Romano sendo satisfeitas, e seus direitos soberanos reconhecidos, ele seria restaurado a uma condição de verdadeira e efectiva independência; e Católicos de outras partes do mundo, que, não através da influência exterior da ignorância do que desejam, mas através de um sentimento de fé e sentido do dever, levantam suas vozes em defesa da dignidade e liberdade do supremo Pastor de suas almas, não teriam mais razão para considerar a Itália como inimiga do Pontífice.
Ao contrário, a Itália ganharia um maior respeito e estima das outras nações por viver em harmonia com a Sé Apostólica; pois não somente tem esta Sé conferido especiais benefícios aos italianos por sua presença em meio a eles, mas também, pela constante difusão dos tesouros da fé deste centro de bênção e salvação, ela fez o nome italiano grande e respeitado entre todas as nações. A Itália reconciliada com o Pontífice, e fiel à sua religião, seria capaz de dignamente emular a glória de seus antigos tempos; e de qualquer progresso real que haja na época actual ela receberia um novo impulso para avançar em seu glorioso caminho. Roma, proeminentemente a cidade Católica, destinada por Deus para ser o centro da religião de Cristo e a Sede de Seu Vigário, tem tido nisso a causa de sua estabilidade e grandeza através das momentosas mudanças das muitas épocas que passaram. Colocada novamente sob o pacífico e paternal cetro do Pontífice Romano, ela se tornaria novamente o que a Providência e o curso das épocas a fizeram - não encolhida à condição de capital de um reino, nem dividida entre dois poderes soberanos diferentes em um dualismo contrário à toda sua história; mas a digna capital do mundo Católico, grande com toda a majestade da Religião e do supremo Sacerdócio, uma mestra e um exemplo para todas as nações da moralidade e da civilização.
18 Estas não são vãs ilusões, Veneráveis Irmãos, mas esperanças repousando sobre o mais sólido e verdadeiro fundamento. A sentença que tem sido por algum tempo comummente repetida, que os Católicos e o Pontífice são os inimigos da Itália, e aliados, por assim dizer, daqueles que derrubariam tudo, é um insulto gratuito e uma desavergonhada calúnia, ardilosamente espalhada por todos os lugares pelas seitas para disfarçar seus desígnios perversos, e para capacitá-los a continuar sem obstáculo sua odiosa obra de desnudar a Itália de seu carácter Católico. A verdade que é vista da maneira mais clara daquilo que nós dissemos até agora, é que os Católicos são os melhores amigos da Itália. Mantendo-se completamente distantes das seitas, renunciando ao seu espírito e às suas obras, lutando de todos os modos para que a Itália não perca a sua fé, mas a preserve em todo seu vigor - para que não lute contra a Igreja, mas seja sua fiel filha, - para que não ataque o Pontificado, mas se reconcilie com ele, - os Católicos dão prova por tudo isto de seu amor forte e verdadeiro pela religião de seus ancestrais e por sua terra.
Fazei tudo que puderdes, Veneráveis Irmãos, para difundir a luz da verdade entre o povo para que eles possam chegar finalmente ao entendimento de onde seu bem-estar e seu verdadeiro interesse se encontram; e para que se convençam que somente da fidelidade à religião e da paz com a Igreja e com o Pontífice Romano, eles podem esperar obter para a Itália um futuro digno de seu glorioso passado.
Para isto Nós chamaríamos a atenção, não daqueles afiliados às seitas, cujo propósito deliberado é estabelecer a nova edificação da Península Italiana sobre as ruínas da Religião Católica; mas de outros que, sem acolherem tais desígnios malévolos, ajudam estes homens em suas obras dando suporte à sua política; e especialmente dos jovens rapazes, que estão tão sujeitos a se extraviarem pela inexperiência e predominância do mero sentimento. Nós desejaríamos que todos se convencessem que o curso que agora é seguido não pode ser senão fatal para a Itália; e, em fazer este perigo mais uma vez conhecido, Nós somos movidos somente por uma consciência de dever e pelo amor à nossa terra.
19. Mas, para a iluminação das mentes dos homens, nós devemos acima de tudo pedir pelo especial auxílio do céu. Portanto, à nossa unida acção, Veneráveis Irmãos, nós precisamos juntar a oração; e que seja uma oração geral, constante, e fervorosa: uma oração que irá oferecer gentil violência ao coração de Deus e fazê-lo misericordioso à Itália nosso país, para que Ele desvie dela toda calamidade, especialmente aquela que seria a mais terrível - a perda da fé. - Tomemos como nossa medianeira junto a Deus a gloriosíssima VIRGEM MARIA, a invencível Rainha do Rosário, que tem tão grande poder sobre as forças do inferno, e por tantas vezes fez a Itália sentir os efeitos de Seu amor maternal.
Recorramos também com confiança aos santos Apóstolos PEDRO e PAULO, que sujeitaram esta terra abençoada à fé, santificaram-na por seus trabalhos, e a banharam em seu sangue.
20. Como uma garantia enquanto isso do auxílio que Nós pedimos, e como símbolo de Nossa mais especial afeição, recebei a Bênção Apostólica, que do fundo de Nosso coração Nós vos concedemos, Veneráveis Irmãos, ao vosso Clero, e ao povo italiano.
- Dado em Roma, junto de São Pedro, a 15 de Outubro de 1890, o décimo terceiro ano de Nosso Pontificado.
Referências:
[1] S. Gregório o Grande: Carta ao Imperador Maurício, Reg. 5.
Deiparae Virginis
Carta Encíclica
DEIPARAE VIRGINIS
sobre a oportunidade em definir o
Dogma da Assunção de Maria
Pio XII
01.03.1946
1. Invocando e experimentando os fiéis e cristãos o contínuo auxílio da Virgem Maria Mãe de Deus, desejam honrá-la cada vez mais; e, porque o amor, se está verdadeira e profundamente arraigado nos corações, por si mesmo se manifesta em novos testemunhos, esforçam-se por dar provas, no decurso dos séculos de mais intensa devoção para com ela. Acontece por isso, segundo a nossa convicção, que desde há algum tempo se apresentam à Sé Apostólica cartas de súplica - as que foram recebidas entre 1849 e 1940, reunidas em dois volumes e ilustradas com oportunos comentários, foram editadas recentemente - enviadas por cardeais, arcebispos, bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, associações, universidades e, enfim, por inumeráveis fiéis particulares, com o objectivo de que se declare e defina solenemente como dogma de fé que a bem-aventurada virgem Maria subiu em corpo aos céus. E, de certo, ninguém ignora que isso mesmo foi pedido com ardentes votos por quase 200 padres do concílio Vaticano.
2. Posto à frente do reino de Cristo para o defender e ajudar, cabe-nos o incessante cuidado e o vigilante dever, não só de afastar quanto lhe seja prejudicial, mas ainda de levar por diante quanto lhe seja de proveito. Por isso já desde o começo do nosso supremo pontificado se nos oferece a questão que há de ser diligentemente examinada e investigada: se é lícito, decoroso e conveniente que, interposto o nosso poder, sejam secundadas as referidas petições. Por este motivo não temos deixado nem deixaremos de elevar a Deus insistentes preces, para que nos inspire e dê a conhecer os desígnios da sua sempre adorável benignidade.
3. A fim de alcançarmos favoravelmente este auxílio da luz celestial, uni, veneráveis irmãos, com piedoso esforço, as vossas preces às nossas. Enquanto com paternal coração a isso vos exortamos, seguindo o caminho e o modo de proceder de nossos predecessores, sobretudo de Pio IX ao ter que definir a imaculada Conceição da Mãe de Deus, insistentemente vos rogamos que nos deis a conhecer com que devoção, conforme a sua fé e piedade, o clero e o povo confiados à vossa direcção veneram a assunção da beatíssima Virgem Maria. E, sobretudo, desejamos vivamente conhecer se vós, veneráveis irmãos, julgais, segundo a vossa sabedoria e prudência, que a assunção corporal da bem-aventurada Virgem Maria pode ser proposta e definida, e se o desejais ansiosamente com o vosso clero e povo.
4. Esperando as vossas respostas, que quanto mais rápidas mais gratas nos serão, pedimos para vós, veneráveis irmãos, e para os vossos fiéis, a largueza dos dons divinos e o favor da excelsa Virgem Maria, enquanto amantissimamente no senhor vos concedemos a vós e à grei confiada aos vossos cuidados, em testemunho da nossa paternal benevolência, a bênção apostólica.
- Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 1° de Março do ano de 1946, VIII do nosso pontificado.
Pio PP. XII
Divino Afflante Spiritu
Carta Encíclica
DIVINO AFFLANTE SPIRITU
sobre os estudos bíblicos
Aos Veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos,
Bispos e outros Ordinários dos Lugares,
em Paz e Comunhão com a Sé Apostólica,
e igualmente a todo o Clero e Fiéis Cristãos do Orbe Católico.
Veneráveis Irmãos e Amados Filhos: Saúde e Bênção Apostólica!
INTRODUÇÃO
Ocasião da Encíclica "Providentissimus Deus". Modo de celebrar o seu quinquagésimo aniversário.
Sob a inspiração do Espírito Santo compuseram os escritores sagrados aqueles livros que Deus, pelo seu paternal amor ao género humano, quis prodigalizar "para ensinar, para convencer, para corrigir, para instruir na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e apto para toda a obra boa" (1). Não é pois para admirar que a Santa Igreja, assim como recebeu incontaminado, das mãos dos Apóstolos, este tesouro concedido pelo céu, que ela considera preciosíssima fonte e norma divina da doutrina de fé e costumes, o tenha também guardado com cuidado especial, o defenda de toda a interpretação falsa e perversa, e o utilize solicitamente na missão de granjear às almas a salvação suprema, como o demonstram amplamente quase inumeráveis documentos de todas as épocas. Mas como nos tempos recentes se discutiu de modo especial a origem divina e a recta interpretação das Sagradas Letras, a Igreja propôs-se defendê-las e protegê-las com denodo e empenho ainda maiores. E assim, já o sacrossanto Concílio de Trento decretou solenemente que era preciso reconhecer "como sagrados e canónicos os livros íntegros, com todas as suas partes, na forma como se costumavam ler na Igreja Católica e se contêm na antiga edição Vulgata Latina" (2). E no nosso tempo o Concilio Vaticano, para reprovar as falsas teorias sobre a inspiração, declarou que estes mesmos livros os tinha de considerar a Igreja "como sagrados e canónicos", "não porque, compostos unicamente pela indústria humana, tenham sido depois aprovados pela sua autoridade, nem precisamente porque contenham a revelação sem erro, mas porque, escritos sob inspiração do Espírito Santo, têm por autor a Deus, e como tais foram entregues à Igreja" (3). E posteriormente ainda, como contra esta solene definição da doutrina católica, segundo a qual os livros "íntegros, como todas as suas partes", gozam da dita autoridade divina, que implica a imunidade de todo o erro, certos escritores católicos se atrevessem a circunscrever a verdade da Sagrada Escritura unicamente às coisas de fé e costumes, reputando as outras, quer de ordem física quer de ordem histórica, como "ditos acidentais" e - como eles pretendiam - sem conexão com a fé, o Nosso Predecessor Leão XIII, de imortal memória, na Carta Encíclica "Providentissimus Deus" de 18 de Novembro de 1893, feriu de morte, com plena razão, aqueles erros, e deu ao mesmo tempo sapientíssimos preceitos e normas para o estudo dos Livros Divinos.
Ao apresentar-se a conveniência de comemorar o 50º aniversário da publicação daquela Encíclica, considerada lei fundamental nos estudos bíblicos, pareceu-Nos da maior oportunidade, segundo a solicitude que desde o princípio do Nosso pontificado temos consagrado às disciplinas sagradas (4), confirmar e inculcar o que o Nosso Predecessor estabeleceu sabiamente e os seus sucessores contribuíram para consolidar e aperfeiçoar, e determinar o que os tempos presentes parecem requerer para incitar cada vez mais a uma coisa tão necessária e louvável, todos os filhos da Igreja que se dedicam a estes estudos.
I. PARTE HISTÓRICA: SOLICITUDE DE LEÃO XIII E DOS SEUS SUCESSORES PELOS ESTUDOS BÍBLICOS
§ lº - A obra de Leão XIII. Doutrina da inerrância bíblica.
O primeiro e máximo cuidado de Leão XIII foi expor a doutrina da verdade dos livros sagrados e defendê-la das impugnações contrárias. Assim, pois, fixou com graves expressões, que se não dá erro algum quando o escritor sagrado, ao falar de coisas físicas, "se deixa guiar pelas aparências sensíveis", como diz o Angélico (5), falando "ou de um modo figurado, ou como a linguagem vulgar costumava fazê-lo naquele tempo, e o faz hoje em muitas coisas da vida quotidiana, entre os próprios homens mais cultos". Porque os mesmos "escritores sagrados, ou mais exactamente - as palavras são de Santo Agostinho (6) - o espírito de Deus que falava por eles, não se propôs ensinar aos homens essas matérias (isto é: a constituição íntima das coisas aparentes), pois não aproveitavam à salvação de ninguém" (7); isto "convirá transportá-lo para as disciplinas afins, especialmente para a história", refutando com efeito "de modo semelhante as falsidades dos adversários" e defendendo "dos seus ataques a autoridade histórica da Sagrada Escritura" (8).
Nem seria de imputar-se ao escritor sagrado o erro quando "escapassem algumas inexactidões aos copistas na transcrição dos códices "ou quando fosse ambígua a significação genuína de alguma frase". Finalmente, que não é lícito de modo nenhum "restringir a inspiração unicamente a algumas partes da Sagrada Escritura, ou conceder que errou o próprio escritor sagrado", sendo que a inspiração divina "não só exclui por si mesma qualquer erro, senão que tão necessariamente o exclui e repele como necessário é que Deus, suma verdade, não seja absolutamente autor de erro nenhum. Esta é a antiga e constante fé da Igreja" (9).
Pois esta doutrina, que com tanta gravidade expôs o Nosso Predecessor Leão XIII, propomo-la também Nós, com a Nossa autoridade, e inculcamos que todos a sustentem religiosamente. Determinamos, além disso, que se não ponha menor cuidado em obedecer nos nossos próprios dias aos mesmos conselhos e incitações que ele para o seu tempo acrescentou, com grande sabedoria. Porque como surgissem novas e não leves dificuldades e questões, tanto das preconcebidas opiniões do "racionalismo", que por toda a parte se difundia, como, sobretudo, pelos antiquíssimos documentos achados e explorados em numerosos lugares das regiões orientais, o mesmo Nosso Predecessor, impelido pela solicitude do seu cargo apostólico, não só para que tão preclara fonte da revelação católica estivesse aberta mais segura e abundantemente para utilidade da grei do Senhor, mas também para que em parte alguma fosse violada, desejou ardentemente "que fossem muitos os que tomassem como coisa sua, e a mantivessem com vigor, a defesa das Letras Sagradas; e que sobretudo aqueles a quem a divina graça chamou às ordens sacras, empregassem cada dia maior diligência e indústria em lê-las, meditá-las e explicá-las, o que tudo é justíssimo que assim seja" (l0).
Impulso dado aos estudos bíblicos. Escola Bíblica de Jerusalém. Comissão Bíblica.
Por isso o mesmo Pontífice, que já muito antes tinha louvado e aprovado a Escola Bíblica de Jerusalém, fundada junto da Basílica de Santo Estêvão, pelo Mestre Geral da Sagrada Ordem dos Pregadores, para fomentar o estudo dos livros sagrados, dizendo especialmente dela "que os estudos bíblicos tinham recebido não pequeno impulso e o esperavam ainda maior" (11), no último ano da sua vida acrescentou nova razão para que estes estudos, tão recomendados na Encíclica "Providentissimus Deus", se aperfeiçoassem cada vez mais e se promovessem mais eficazmente.
Porque por meio da carta apostólica "Vigilantiae", datada de 30 de Outubro de 1902, constituiu o Conselho, ou como hoje se chama, a Comissão de graves varões, "que teriam como seu campo de actividade própria cuidar com todas as suas forças e fazer que a palavra divina seja entre nós objecto daquele estudo mais cuidado que os tempos pedem, e se mantenha isenta não só de todo o sopro de erro, mas de qualquer opinião temerária" (12); Comissão que também Nós, seguindo o exemplo dos Nossos Predecessores, confirmamos e ampliamos, usando do seu serviço, como o tínhamos feito antes muitas vezes para levar os intérpretes dos livros sagrados àquelas leis sãs da exegese católica que os Santos Padres, os doutores da Igreja e os próprios Sumos pontífices Nos confiaram (13).
§ 2º - A obra dos sucessores de Leão XIII. Pio X: Criação dos graus académicos. Programa dos Estudos Bíblicos. Instituto Bíblico.
Ao chegar a este ponto, não Nos parece inoportuno fazer grata menção do que os Nossos restantes Predecessores acrescentaram de mais importante e útil para o mesmo fim, e que bem poderíamos chamar complemento ou fruto da feliz iniciativa leonina. E em primeiro lugar Pio X, querendo "subministrar um modo certo de se obterem com abundância mestres recomendáveis pôr sua gravidade e sincera doutrina, que interpretassem nas escolas católicas os livros divinos, institui os graus académicos de licenciado e doutor em Sagrada Escritura, que a Comissão Bíblica havia de conferir" (14).
Depois promulgou a lei "sobre a orientação que se havia de observar no estudo da Sagrada Escritura nos seminários eclesiásticos", procurando que os alunos "não só entendessem e conhecessem por si mesmos a força, os modos e a doutrina da Bíblia, mas também pudessem fácil e frutuosamente dedicar-se ao ministério da palavra divina, e defender de qualquer ataque, os livros escritos sob a inspiração de Deus" (15).
Finalmente, "para que na cidade de Roma houvesse um Centro de Estudos Superiores sobre a Sagrada Escritura, que promovesse da maneira mais eficaz que fosse possível a doutrina bíblica, e todos os estudos a ela anexos, segundo o sentir da Igreja Católica", fundou, confiando-o à ínclita Companhia de Jesus, o Pontifício Instituto Bíblico, que quis fosse "dotado dos mais acreditados mestres e de todos os instrumentos de erudição bíblica", e traçou as suas leis e disciplina, professando seguir neste ponto "o salutar e frutuoso propósito" de Leão XIII (16).
Pio XI: Prescrição dos graus académicos. Mosteiro de S. Jerónimo para a revisão da Vulgata.
Tudo isto aperfeiçoou, finalmente, o Nosso próximo antecessor, de feliz memória, Pio XI, determinando, entre outras coisas, que ninguém "ensinasse nos seminários Sagrada Escritura senão depois que, terminado o curso especial de tais disciplinas, estivesse na posse legítima dos graus académicos conferidos pela Comissão Bíblica ou pelo Instituto Bíblico". Quis além disso que estes graus gozassem de iguais direitos e tivessem os mesmos efeitos que os legitimamente outorgados em Sagrada Teologia e Direito Canónico; estabeleceu também que a ninguém se conferisse um "beneficio a que estivesse canonicamente anexa a obrigação de explicar ao povo a Sagrada Escritura, se além dos restantes requisitos não possuísse a licenciatura ou o doutorado em Sagrada Escritura". E ao mesmo tempo que exortava os gerais das Ordens e Congregações religiosas, e os Bispos do orbe católico, a escolher alguns entre os seus melhores alunos, para os enviar a cursar estudos e obter os graus académicos no Instituto Bíblico, confirmava essas exortações com o seu próprio exemplo, constituindo da sua liberalidade rendas anuais para o mesmo fim (17).
Foi o mesmo Pontífice quem, depois de ter, pelo favor e com a aprovação de Pio X, de feliz recordação, no ano de 1907 "confiado aos monges beneditinos o encargo de preparar as investigações e os estudos onde se firmasse a nova versão latina das Escrituras, que tem o nome de "Vulgata" (18), querendo estabelecer com mais firmeza e segurança esta "árdua e trabalhosa empresa", que exige largo tempo e grandes dispêndios, e cuja extraordinária utilidade havia já sido demonstrada pelos egrégios volumes editados, criou desde os fundamentos, e dotou abundantissimamente de biblioteca e mais subsídios da investigação, o Mosteiro de S. Jerónimo, na cidade de Roma, que devia dedicar-se àquela exclusiva finalidade" (19).
§ 3º - Cuidados dos Sumos Pontífices pelo uso e difusão da Sagrada Escritura.
Também parece que se não deve passar aqui em silêncio o que recomendaram os Nossos Predecessores nas ocasiões oportunas: o estudo, a pregação, a piedosa leitura e meditação das Sagradas Escrituras. Porque Pio X aprovou com ardor a sociedade de S. Jerónimo, que procura levar os fiéis ao costume, certamente louvável, de ler e meditar os Santos Evangelhos, e facilitá-los o mais possível; e exortou-a a perseverar animosamente no propósito, dizendo "que era a coisa mais útil de todas, e a mais apropriada a estes tempos", pois contribuía não pouco para "desfazer a opinião de que a Igreja repugnava que a Sagrada Escritura fosse lida nas línguas modernas, ou a isso opunha algum impedimento" (20). Bento XV, por sua parte, ao cumprir-se o XV centenário da morte do Doutor Máximo, na exposição das Sagradas Escrituras, depois de ter inculcado com empenho os preceitos e o exemplo deste santo doutor, e os princípios e normas dados por Leão XIII e por ele próprio, e de ter feito novas recomendações nesta matéria, oportuníssimas e inolvidáveis, exortou "todos os filhos da Igreja, especialmente os clérigos, ao respeito à Sagrada Escritura, unido à sua piedosa leitura e assídua meditação"; e advertiu "que nestas páginas se havia de procurar o alimento com que a vida do espírito se nutrisse para a perfeição" e que "o principal uso da Escritura havia de ser para o exercício santo e frutuoso do ministério e da palavra divina"; e louvou igualmente de novo os trabalhos da sociedade que recebia o nome de S. Jerónimo, por cujos cuidados se difundem tão extensamente os Evangelhos e os Actos dos Apóstolos, "que já não há família cristã que os não tenha, e todos têm por costume a sua leitura e meditação diária" (21).
§ 4º - Frutos desta multíplice acção.
É grato e justo confessar que o conhecimento e o uso das Sagradas Escrituras progrediram não pouco entre os católicos, não só por estas iniciativas, preceitos e exortações dos Nossos Predecessores, mas também pelo trabalho e fadigas de quantos os secundaram com diligência, escrevendo, ensinando, pregando, traduzindo e propagando os Livros Sagrados. Porque das escolas em que se dão cursos superiores de Teologia e Escritura, especialmente do Nosso Pontifício Instituto Bíblico, saíram e saem cada dia mais numerosos cultores da Sagrada Escritura, que animados de ardente amor aos livros sagrados educam com o mesmo ardor o clero adolescente, e comunicam-lhe cuidadosamente a mesma doutrina que beberam. Não poucos deles promoveram e promovem também com os seus escritos os temas bíblicos, quer editando os textos sagrados segundo as normas da arte crítica, explicando-os, ilustrando-os, traduzindo-os nas línguas modernas, quer propondo-os à piedosa leitura e meditação dos fiéis, quer, finalmente, cultivando e estudando as disciplinas profanas que são úteis para a explanação da Escritura. Destas e outras iniciativas que cada dia se propagam e desenvolvem, como são, para dar algum exemplo, as Associações Bíblicas, os Congressos, as Reuniões, Semanas, Bibliotecas e Confrarias para a meditação dos Evangelhos, concebemos a esperança de que não poderá deixar de crescer em toda a parte, para bem das almas, a reverência, o uso e o conhecimento das Sagradas Letras, contanto que todos sustentem mais firme, mais ardorosa, mais fielmente a norma do estudo bíblico, prescrita por Leão XIII, declarada com mais amplitude e perfeição pelos seus Sucessores e confirmada e aumentada por Nós - pois é a única segura e comprovada pela experiência - sem recuarem ante as dificuldades que, como acontece em toda a obra humana, também não faltarão nunca nesta empresa gloriosa.
II. PARTE DOUTRINAL: O ESTUDO DA SAGRADA ESCRITURA NOS NOSSOS TEMPOS
Estado actual dos Estudos Bíblicos.
Ninguém há que não possa facilmente, notar que nos últimos cinquenta anos mudaram muito as condições da ciência bíblica e das suas ciências auxiliares. Porque omitindo outros muitos fatos, quando o Nosso Predecessor escreveu a encíclica "Providentissimus Deus" apenas um ou outro lugar da Palestina se havia começado a explorar com escavações destinadas a tais estudos. Agora, porém, estas investigações cresceram muitíssimo em número e, aperfeiçoadas com método e processos mais rigorosos, ensinam-nos muito mais e com mais certeza. Todos os especialistas e os que se dedicam a estes estudos conhecem bem quanta luz saiu daquelas investigações, para mais recta e plena inteligência dos Livros Sagrados. A importância dessas explorações aumenta ainda com a descoberta de documentos escritos, que servem grandemente para o conhecimento das línguas, literaturas, acontecimentos, costumes e cultos dos homens mais antigos. De não menor importância é o descobrimento e a investigação - tão frequente na nossa época - de papiros, que tanto serviram para conhecer as letras e instituições públicas e privadas, sobretudo da época do nosso Salvador. Além disso encontraram-se e editaram-se conscienciosamente velhos códices dos Livros Sagrados; investigou-se mais ampla e profundamente a exegese dos Padres da Igreja; esclareceu-se, finalmente, com inumeráveis exemplos, o modo de falar, narrar e escrever dos antigos. Tudo isto, que não sem especial desígnio da Providência o nosso tempo conseguiu, convida e adverte em certo modo os intérpretes das Sagradas Letras para que usem animosamente de tanta luz conseguida, para perscrutar com mais perfeição, ilustrar mais claramente, e propor mais luminosamente a palavra de Deus. E se é certo que, com grande conforto da alma, vemos que os aludidos intérpretes já secundaram e secundam cuidadosamente este convite, isso é fruto, e não o último nem o mais pequeno, da encíclica "Providentissimus Deus", com que o Nosso Predecessor Leão XIII, como que pressagiando este novo florescimento das disciplinas bíblicas, chamou ao trabalho os exegetas católicos e lhes definiu sabiamente qual havia de ser o seu caminho e o seu método de trabalho.
Nós, também, por Nossa parte, desejamos conseguir, por meio desta encíclica, que este trabalho não só perdure constante, mas se aperfeiçoe e torne mais fecundo, procurando sobretudo mostrar a todos o que resta fazer e com que disposição de ânimo o exegeta católico há de empreender hoje tão grande e excelsa empresa, e acrescentar novo alento e novos estímulos aos operários que trabalham com diligência na vinha do Senhor.
§ 1º - Recurso aos textos primitivos. Estudo das línguas bíblicas.
Já os Padres da Igreja, e especialmente Santo Agostinho, recomendavam com instância ao intérprete católico, que se propunha entender e explanar as Sagradas Escrituras, o conhecimento das línguas antigas e o recurso aos textos primitivos (22).
Mas as condições dos tempos eram então tais que muito poucos, e esses só imperfeitamente, conheciam a língua hebraica. Na Idade Média, por seu lado, quando chegou ao seu máximo florescimento a Teologia Escolástica, havia diminuído tanto o próprio conhecimento da língua grega, que até os maiores doutores daquelas épocas, ao explicar os Livros Divinos, se apoiavam unicamente na versão latina, que chamam Vulgata. Ao contrário, em nossos dias não só é familiar a quase todos os cultores das antiguidades e das letras a língua grega, que já desde o Renascimento havia sido em certo modo chamada a nova vida, mas propagou-se extensamente entre os homens cultos o conhecimento do hebreu e de outras línguas orientais. A ponto tal, que hoje há tanta abundância de subsídios para aprender aquelas línguas que o intérprete bíblico, que, rechaçando-os, se tolhe o acesso aos textos originais, não poderá evitar a nota de leviano e descuidado.
Porque é também missão do exegeta recolher com extremo cuidado e veneração os mais pequenos pormenores que sob a inspiração do Espírito Divino saíram da pena do hagiógrafo, para chegar a um conhecimento mais perfeito e pleno do seu pensamento. Por isso deve procurar com diligência adquirir cada dia mais perícia nas línguas bíblicas e nos outros idiomas orientais e dotar a sua interpretação com todos os auxílios que lhe possa fornecer qualquer género de filologia. Já S. Jerónimo intentou com empenho consegui-lo, conforme o permitiram os conhecimentos da sua época, e a isto mesmo tenderam, com incansável trabalho e não mediano fruto, não poucos dos grandes exegetas dos séculos XVI e XVII, embora então fosse muito mais escasso que hoje o conhecimento das línguas. Pela mesma razão convirá, pois, explanar o texto primitivo, que, escrito pelo próprio autor sagrado, tem maior autoridade e peso que qualquer tradução antiga ou moderna, por boa que seja; o que se conseguirá com maior facilidade e fruto, se ao conhecimento das línguas se aliar também, pelo que diz respeito ao próprio texto, um sólido conhecimento dos preceitos da crítica.
Importância da crítica textual.
Advertiu claramente Santo Agostinho a importância que se deve atribuir a esta crítica, quando entre os preceitos que se deviam inculcar ao estudioso dos Livros Sagrados pôs, em primeiro lugar, o cuidado de obter textos bem corrigidos. "A diligência de quem deseja conhecer as Escrituras Divinas - diz aquele preclaríssimo doutor da Igreja - deve olhar primeiramente à correcção dos códices, de modo que aos não emendados se prefiram aos emendados" (23).
Actualmente esta arte, conhecida pelo nome de "crítica textual" e que com grande louvor e fruto se usa na edição de textos profanos, emprega-se também nos Livros Sagrados, e com maior razão, pela própria reverência devida à palavra de Deus. Porque de sua própria natureza ela oferece a vantagem de restabelecer o mais perfeitamente possível o texto sagrado, expurgando-o das corrupções introduzidas, por deficiência dos copistas, e libertando-o, tanto quanto possível, de glosas, lacunas, inversões de palavras, repetições e outros erros de toda a espécie, que costumam infiltrar-se em escritos transmitidos ao longo de muitos séculos. Escusado será advertir que esta crítica, empregada há uns tantos decénios por alguns, a seu livre arbítrio, e de tal maneira que alguém pôde dizer que o que pretendiam era introduzir no texto sagrado, as suas opiniões e preconceitos, chegou a alcançar tal fixidez nas suas leis, e tal segurança, que veio a tornar-se notável auxílio para editar mais pura e esmeradamente a Palavra divina, e para que qualquer abuso se possa descobrir facilmente. Nem é preciso também recordar aqui - porque é notório e claro para todos os estudiosos da Sagrada Escritura - em quanto apreço e honra a Igreja teve, desde os primeiros séculos aos nossos dias, estes estudos da crítica. Hoje, pois, que a tanta perfeição chegou o emprego desta arte, é honrosa missão dos estudiosos da Bíblia, embora nem sempre seja fácil, procurar com todas as forças, que os católicos preparem oportunamente, e quanto antes, edições, tanto dos Livros Sagrados, como das versões antigas, redigidas segundo estas normas, isto é, de modo que aliem à máxima reverência ao texto sagrado a mais exacta observância das leis da crítica.
E saibam todos que este longo trabalho não é só necessário para ler rectamente os escritos que nos foram dados por inspiração divina, mas que o exige aquela piedade com que nos fica bem mostrar a nossa gratidão a Deus providentíssimo, que do trono da sua majestade nos enviou a nós, seus próprios filhos, estes livros, como se fossem cartas paternais.
Valor do decreto Tridentino sobre o uso da Vulgata. Versões em língua vulgar.
Não pense alguém que este uso dos textos primitivos, obtidos pelos métodos críticos, seja contrário, no mínimo que seja, ao que o Concílio Tridentino sabiamente estabeleceu a respeito da Vulgata Latina (24). Consta, na verdade, dos documentos, que os Presidentes do Concílio foram encarregados de pedir ao Sumo Pontífice, em nome do mesmo Concílio - o que eles fizeram - que mandasse corrigir, como melhor se pudesse, primeiro, a edição latina, depois o texto grego e hebreu, divulgando-o para utilidade da Santa Igreja de Deus (25); e se então, pelas dificuldades dos tempos e outros obstáculos, se não pôde satisfazer plenamente a este desejo, actualmente, como confiamos, poder-se-á satisfazer, com mais amplitude e perfeição, juntos os esforços de todos os doutores católicos. Quanto à vontade do Concílio de Trento de que "todos usem como autêntica" a versão latina Vulgata, todos sabem que isto se refere unicamente à Igreja latina e ao uso público da Escritura e de modo nenhum diminui, sem dúvida de espécie alguma, a autoridade e força dos textos originais. Porque se não tratava então dos textos originais, mas das versões latinas que então circulavam, entre as quais determinou o Concílio que deveria preferir-se, com razão, aquela que "recebeu aprovação na mesma Igreja pelo largo uso de tantos séculos".
Assim pois, esta autoridade proeminente da Vulgata, ou, como lhe chamam, esta autenticidade, não a estabeleceu o Concílio guiado sobretudo por razões críticas, mas antes pelo legítimo uso que dela se tinha feito na Igreja, no decurso de tantos séculos: uso que por si só demonstra que está imune de qualquer erro em matéria de fé e costumes, de modo que, segundo o manifesta e confirma a mesma Igreja, pode citar-se com segurança, e sem termo de errar, nas disputas, lições e pregações; de tal modo que a sobredita autenticidade mais merece o nome de jurídica que o de crítica. Por isso esta autoridade da Vulgata em assuntos doutrinais não impede - mais ainda, quase exige hoje em dia - que esta mesma doutrina se comprove e confirme pelos próprios textos originais, e que se invoque continuamente o auxílio dos mesmos textos, com os quais se aclare e patenteie cada vez mais a recta significação das Sagradas Letras.
Também se não proíbe pelo decreto do Concílio Tridentino que para uso e proveito dos fiéis, e mais fácil inteligência da palavra divina, se façam traduções nas línguas vivas, e directamente dos textos originais, como sabemos que já se fez, louvavelmente, em muitas regiões, com aprovação da autoridade eclesiástica.
§ 2º - Interpretação dos Livros Sagrados. Importância e investigação do sentido literal.
Bem apetrechado com o conhecimento das línguas antigas e os recursos da crítica, o exegeta católico há de empreender o trabalho de encontrar e expor a genuína significação dos Livros Sagrados, que é o principal de todos os trabalhos que lhe estão confiados. Na execução deste trabalho há de ter presente os intérpretes que o seu maior cuidado se há de pôr em distinguir e definir com clareza qual é o sentido das palavras bíblicas a que chamam literal, "do qual somente - como afirma bem o Aquinatense - se pode argumentar" (26). Assim, pois, deduzam com toda a diligência a significação literal das palavras com o seu conhecimento das línguas, recorrendo ao contexto e comparando com outras passagens semelhantes: subsídios todos de que se costuma lançar mão na interpretação dos escritos profanos, com o fim de aclarar até à evidência o pensamento do autor.
Porém os exegetas das Sagradas Letras, recordando que neste caso se trata da Palavra inspirada por Deus, cuja guarda e interpretação foi, pelo mesmo Deus, confiada à Igreja, hão de ter em conta, com diligência não menor, as explanações e declarações do magistério da Igreja, bem como as explicações dadas pelos Santos Padres, e também a "analogia da fé", como advertiu sabiamente Leão XIII, na encíclica "Providentissimus Deus" (27). Procurarão com singular empenho não expor somente - como lamentamos que se faça em certos comentários - as matérias relativas à história, à arqueologia, à filologia e outras disciplinas semelhantes, mas embora utilizadas estas, na medida em que possa ajudar a exegese, hão de mostrar de preferência qual é a doutrina teológica de fé e costumes de cada livro ou texto, de modo que esta sua explicação não só ajude os Professores de Teologia na tarefa de propor e confirmar os dogmas da fé, mas sirva de auxílio aos sacerdotes para explicar ao povo a doutrina cristã, e sirva finalmente a todos os fiéis para levarem uma vida santa e digna de um homem cristão.
Reto uso do sentido espiritual.
Ao dar esta interpretação preferentemente teológica, como dissemos, reduzirão eficazmente ao silêncio aqueles que, afirmando pouco encontrarem que eleve o espírito a Deus, alimente a alma e promova a vida interior, apregoam que é preciso refugiar-se numa certa interpretação espiritual e mística. Quão pouco assisadamente estes pensam demonstra-o a própria experiência de tantos que na consideração e meditação contínuas da palavra divina aperfeiçoam a sua alma e se tomaram de veemente amor a Deus; e ensinam-no claramente a constante prática da Igreja e os ensinamentos dos maiores doutores.
É certo que se não exclui da Escritura qualquer sentido espiritual. Porque as coisas que se disseram e se fizeram no Antigo Testamento, foram dispostas e ordenadas por Deus tão sabiamente que o passado fosse, de modo espiritual, um símbolo antecipado do que havia de suceder na nova lei da Graça. Por isso o exegeta deve encontrar e expor esta significação espiritual, contanto que conste exactamente que Deus a quis dar, do mesmo modo que o faz com a interpretação própria ou literal, como lhe chamam, que o hagi6grafo teve em vista e exprimiu. Só Deus pôde com efeito conhecer e revelar-nos esta significação espiritual.
Que tal sentido existe é-nos indicado e ensinado pelo próprio divino Salvador nos santos Evangelhos; mostram-no os Apóstolos oralmente e por escrito, imitando o exemplo do Mestre; mostra-o a doutrina perpetuamente transmitida pela tradição da Igreja; declara-o, finalmente, o mais antigo uso da liturgia, segundo o conhecido axioma: "lex precandi lex credendi est" (a norma da oração é norma de fé). Assim, pois, os exegetas católicos devem esclarecer e expor este sentido espiritual, querido e ordenado pelo próprio Deus, com a diligência que pede a dignidade da palavra divina; mas tenham meticuloso cuidado em não propor como sentido genuíno da Sagrada Escritura outras significações figurativas das coisas.
Porque se, sobretudo no cumprimento do dever da pregação, pode ser útil, para ilustrar e recomendar os assuntos de fé e moral, um certo uso mais amplo do texto sagrado, obtido por translação da significação verbal, contanto que se faça com sobriedade e moderação, nunca se deve esquecer contudo, que este uso das palavras da Sagrada Escritura lhe é como que externo e adventício, e não está isento de perigo, sobretudo hoje que os fiéis, e especialmente os instruídos nas ciências sagradas e profanas, procuram mais que o próprio Deus, nos quer significar nas Sagradas Letras do que aquilo que o eloquente orador ou escritor expõe usando com certa destreza as palavras da Bíblia: "a palavra de Deus, que é viva e eficaz, e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes, e que atinge até a alma e o espírito, até as junturas e as medulas, e que discerne os pensamentos e as intenções do coração" (28), não necessita acicates nem retoques humanos para mover e sacudir as almas; porque as páginas sagradas, escritas sob a inspiração do Espírito Divino, abundam só por si em significações originais; dotadas de força divina, valem por si mesmas; adornadas de galas celestiais, luzem e brilham por si, contanto que o intérprete as explique tão íntegra e escrupulosamente que se mostrem à luz todos os tesouros de sabedoria e prudência que nelas se escondem.
Incitamento ao estudo dos Santos Padres e dos grandes Intérpretes.
Na consecução destes fins poderá o exegeta católico receber grande benefício do diligente estudo das obras em que os Santos Padres, os Doutores da Igreja e os ilustres intérpretes dos tempos passados expuseram as Sagradas Letras. Porque embora eles por vezes possuam menos erudição profana e conhecimentos linguísticos que os intérpretes do nosso tempo, contudo, em virtude do papel que Deus lhes havia marcado na Igreja, sobressaem por certa e suave perspicácia nas coisas celestes, e por uma admirável agudeza mental com que penetram intimamente os recônditos da palavra divina e trazem à luz tudo quanto possa conduzir a ilustrar a doutrina de Cristo e promover a santidade da vida. Precisamente se deve lamentar que esses preciosos tesouros da antiguidade cristã sejam escassamente conhecidos para não poucos dos escritores actuais, e que os cultores da história da exegese não tenham feito já quanto era necessário para investigar cuidadosamente, e dar o devido valor a coisa de tanta importância. Oxalá haja muitos que, investigando com afinco os autores e obras de interpretação católica das Escrituras, como para esgotar as imensas riquezas que outros amontoam, contribuam eficazmente para que cada dia se veja melhor até que ponto penetraram e ilustraram a doutrina dos Livros Sagrados e deles tomem exemplo os modernos intérpretes para voltar aos temas oportunos. Porque assim se conseguirá finalmente a feliz aliança da solidez e da suavidade espiritual da linguagem dos antigos, com a maior erudição e mais avançado método dos modernos, que há de trazer, certamente, novos frutos ao campo das letras divinas, nunca assás cultivado e nunca esgotado.
§ 3º - Cuidados especiais dos Intérpretes nos nossos tempos. Estado actual da exegese.
Além disso, com razão se pode esperar que também os nossos tempos nalguma coisa poderão contribuir para a mais completa e minuciosa interpretação das Letras Sagradas. Porque não poucas coisas, especialmente das relativas à história, ou mal foram explicadas pelos escritores dos séculos passados ou não o foram no grau necessário, porque lhes faltavam quase todos os conhecimentos necessários para as ilustrar. Com que dificuldades e quase impossibilidades tropeçaram os próprios Santos Padres vê-se bem, para omitir outros pormenores, pelos esforços em que muitos deles insistiram para interpretar os primeiros capítulos do Génesis, e também pelas repetidas tentativas de S. Jerónimo de traduzir os salmos de modo que se visse claramente o seu sentido literal, ou seja: o que exprimem as próprias palavras. Há, finalmente, outros livros ou textos sagrados cujas dificuldades se descobriram recentemente, quando com mais profundo conhecimento das antiguidades surgiram novas questões que requerem mais atento estudo.
Sem razão, pois, andam dizendo alguns, que não compreendem bem as condições das ciências bíblicas, que ao exegeta católico do nosso tempo nada falta acrescentar ao já dito pela antiguidade cristã, quando é certo que a nossa época suscitou tantas coisas que necessitam nova investigação e exame e estimulam não pouco a actividade científica do intérprete de hoje.
Deve-se estudar a índole do Hagiógrafo.
Assim como a nossa época tem de arrostar com novas questões e novas dificuldades, oferece também, por mercê de Deus, novos subsídios e ajudas para a exegese. Entre estes parece digno de peculiar menção o de que os teólogos católicos, seguindo a doutrina dos Santos Padres, e especialmente a doutrina do Doutor Angélico e Comum, tenham investigado e apresentado a natureza e os efeitos da inspiração bíblica melhor do que era costume fazê-lo nos séculos passados. Porque partindo, no seu raciocínio, da suposição de que o hagiógrafo ao compor o livro sagrado é "organon" ou instrumento do Espírito Santo, mas instrumento vivo e dotado de razão, advertem justamente que ele, levado de moção divina, emprega as suas faculdades e forças de tal modo que, do livro que nasce por obra sua, podem coligir todos facilmente "a sua índole própria e peculiar e, por assim dizer, os seus traços e qualidades singulares" (29). Portanto, o intérprete, com todo o esmero e sem descurar nenhuma luz que hajam trazido as investigações mais recentes, esforçar-se-á por distinguir qual foi a índole própria e o teor de vida do escritor sagrado, em que época floresceu, que fontes escritas ou tradição oral utilizou, que formas de linguagem empregou. Porque deste modo melhor poderá conhecer quem foi o hagiógrafo e o que ele escrevendo quis significar.
Com efeito, não passa despercebido a ninguém que a norma suprema da interpretação é que se veja e defina o que quis dizer o escritor, segundo a magnífica advertência de Santo Atanásio: "Aqui, como convém praticar em qualquer outro lugar da Escritura divina, é preciso observar em que ocasião falou o Apóstolo e ter em conta escrupulosa e fielmente quem é a pessoa e qual o assunto por cuja causa escreveu, não seja caso que, por ignorância destes pormenores, ou entendendo outra coisa em vez daquela, alguém se afaste do significado verdadeiro" (30).
Importância do género literário especialmente na história.
Nas palavras e escritos dos antigos autores orientais frequentemente não é claro, como nos escritores nossos contemporâneos, qual é o sentido literal. Porque nem as leis da Gramática e da Filologia nem o contexto determinam, por si sós, o que eles quiseram significar com as suas palavras; é imprescindível que o intérprete remonte mentalmente a esses recuados séculos do Oriente e auxiliado convenientemente pelos subsídios da história, da arqueologia, da etnologia e outras disciplinas distinga e veja claro, que género literário, como se diz, quiseram empregar e de fato empregaram os escritores daquela vetusta idade. Porque os antigos orientais, para exprimir o que tinham na mente não empregavam sempre as mesmas formas e modos de dizer que nós usamos hoje, mas sim os que corriam entre os homens do seu tempo e da sua nação.
Quais foram estes, não pode o exegeta estabelecê-lo de antemão, mas só depois de cuidadosa investigação da antiga literatura do Oriente. Porém esta investigação, nos últimos decénios, conduza com maior cuidado e diligência que antes, esclareceu quais as formas de linguagem se usaram na antiguidade para descrever poeticamente as coisas, ou para apresentar as leis e normas de vida, ou finalmente, para narrar os fatos e sucessos da história. Esta mesma investigação comprovou também com evidência que o povo israelita sobressaiu singularmente entre as demais nações do velho Oriente no tocante ao escrever devidamente a história, tanto pela antiguidade como pelo fiel relato dos sucessos, o que já se deduziria pelo carisma da inspiração divina e pelo fim peculiar da história bíblica, que é religioso.
Pois bem: ninguém que conceba retamente a inspiração bíblica deve admirar-se de que também nos escritores sagrados, como nos outros antigos, se encontrem certos modos de expor e narrar, certos idiomatismos peculiares sobretudo às línguas semíticas, chamados aproximações, e certas hipérboles e, por vezes, até paradoxos com que as coisas se gravam mais firmemente no espírito. Porque não é alheio aos livros sagrados nenhum daqueles modos de falar de que a linguagem humana costuma servir-se, para expor um pensamento, entre os povos antigos, e sobretudo entre os orientais, com esta só condição: que o género literário usado não repugne à santidade e à verdade de Deus, como, segundo era de esperar da sua sagacidade, adverte já o mesmo Doutor Angélico com as seguintes palavras: "Na Escritura as coisas divinas são-nos comunicadas segundo os modos usados pelos homens" (31). Pois assim como o Verbo substancial de Deus se tornou semelhante aos homens em tudo "excepto no pecado" (32), também as palavras de Deus expressas pela língua humana se tornam semelhantes à linguagem humana em tudo menos no erro, o que já foi exaltado por S. João Crisóstomo, com grandes louvores, como "synkatábasin" ou "condescendência de Deus, e assegurou repetidas vezes que se dava nos Livros Sagrados" (33).
Por isso o exegeta católico que queira satisfazer plenamente as exigências actuais dos estudos bíblicos, quando expõe a Sagrada Escritura e trata de mostrar e provar que ela está imune de qualquer erro, há de empregar também prudentemente este subsídio, a saber: averiguar em que pode contribuir para a verdadeira e genuína interpretação a forma de expressão ou género literário usado pelo hagiógrafo; e convença-se de que este aspecto do seu dever não pode ser descurado sem grande detrimento da exegese católica. Não raro, com efeito - para só mencionar um exemplo - quando alguns lançam a acusação de que os autores sagrados se afastaram da fidelidade histórica, ou referiram sucessos com menos exactidão, vem a provar-se que só se trata daquelas expressões usuais antigas que eles costumavam empregar continuamente no seu trato mútuo e de fato se empregam correcta e universalmente. A imparcialidade exige, portanto, que quando se encontrem coisas semelhantes na elocução divina, que fala para os homens com palavras humanas, não se devam arguir de erro mais do que se faria se se encontrassem no uso quotidiano da vida.
Assim conhecidos e apreciados retamente os modos de dizer e género de falar e escrever dos antigos poder-se-ão resolver muitas das objecções contra a verdade e fidelidade histórica das Letras Divinas, além de que este estudo conduzirá à mais plena e clara compreensão do pensamento do autor sagrado.
Estudo das antiguidades bíblicas.
Os nossos estudiosos dos assuntos bíblicos trabalharão, pois, também nisto, com a devida diligência, e não omitirão nenhuma das provas descobertas que ofereçam a arqueologia, a história antiga ou o estudo das línguas primitivas e que sejam idóneas para fazer conhecer melhor a mentalidade dos escritores antigos e a sua maneira, forma e arte de raciocinar, narrar e escrever.
Nesta ordem de coisas advirtam também os seculares católicos, que podem não só trazer algum proveito aos estudos profanos, mas bem merecer da causa católica, entregando-se a explorar e investigar as antiguidades com toda a diligência e empenho convenientes, e colaborando na medida das suas forças para a solução desse tipo de problemas, até agora menos claros e nítidos. Porque todo o conhecimento humano, ainda que não seja de coisas sagradas, tem já uma íntima dignidade e excelência - como participação finita que é do conhecimento infinito de Deus; mas adquire nova e mais alta dignidade e como que consagração, quando se emprega para ilustrar com mais intensa luz as próprias coisas divinas.
§ 4º - Como tratar as questões mais difíceis.
Dificuldades felizmente resolvidas com os estudos modernos
Em virtude dessa mais perfeita investigação das antiguidades orientais de que falamos, do estudo mais cuidadoso do próprio texto original e do conhecimento mais amplo e diligente das línguas bíblicas e de todas as particularidades relativas ao Oriente, aconteceu felizmente, com a graça de Deus, que não poucas daquelas questões que no tempo do Nosso Predecessor Leão XIII, de perpétua recordação, tinham levantado contra a autenticidade, antiguidade, integridade e fidelidade dos livros sagrados, os críticos afastados da Igreja, ou inclusivamente adversários dela, hoje estão já resolvidas e solucionadas. Porque os exegetas católicos, empregando retamente as mesmas armas científicas de que os adversários não raro abusavam, propuseram as interpretações, que estando de acordo com a doutrina católica e o parecer tradicional e genuíno dos antigos, parecem ao mesmo tempo ter evitado as dificuldades que as novas investigações e descobertas suscitaram ou as que a antiguidade legou sem solução ao nosso tempo.
Daí proveio entre os católicos uma restauração total da confiança na autoridade e na verdade histórica da Bíblia, que no parecer de alguns se havia diminuído um pouco perante o número dos ataques; e ainda mais: porque não faltam escritores não católicos, que depois de levar a cabo um inquérito com ânimo sereno e imparcial, foram levados a deixar as teorias dos modernos e voltaram, pelo menos neste ou naquele caso, às opiniões mais antigas.
Esta mudança de situação deve-se em grande parte ao trabalho incansável com que os expositores católicos das Sagradas Letras, sem se amedrontarem ante as dificuldades e obstáculos de todo o género, lutaram com todas as suas forças por fazer reto uso dos conhecimentos, que trouxera para a solução dos problemas a investigação dos eruditos contemporâneos, no campo da arqueologia, da história e da filologia.
Dificuldades ainda não resolvidas
Ninguém se admire, contudo, de que ainda se não hajam resolvido e vencido todas as dificuldades, e que ainda hoje inquietam não pouco as inteligências dos exegetas católicos graves questões. Certo é que não deve perder-se por isso o ânimo, nem se deve esquecer que nas disciplinas humanas sucede exactamente o que sucede na natureza: que as coisas crescem lentamente e não se podem colher os frutos se não depois de muitos trabalhos. Assim sucedeu que algumas disputas, que nos tempos passados estiveram por resolver e suspensas, se solucionaram feliz e finalmente em nossos dias com o progresso dos estudos. Pela mesma razão se deve esperar que também estas outras, que hoje parecem extraordinariamente complicadas e extremamente árduas, acabem por aparecer em plena luz, graças ao constante esforço.
E se a solução desejada tarda e não nos sorri, e temos de deixar porventura que sejam os nossos sucessores que consigam o êxito feliz, ninguém se inquiete por isso, pois é justo que apliquemos a nós, o que já os Padres, e especialmente Santo Agostinho, advertiram no seu tempo: que Deus semeou de propósito dificuldades nos livros sagrados, que Ele mesmo inspirou, para que, por um lado, nos excitássemos a estudá-los e a examiná-los com mais afinco, e, por outro lado, sentindo salutarmente os limites da nossa inteligência, nos exercitássemos na devida humildade da alma (34). Nada teria portanto de estranho que nunca se chegasse a obter resposta de todo satisfatória a tal ou tal questão, tratando-se, como por vezes se trata, de coisas obscuras e demasiado afastadas dos nossos tempos e experiência, e podendo ter a exegese, como outras disciplinas, os seus segredos próprios, insuperáveis para os nossos espíritos, e incapazes de ceder a qualquer esforço.
Como se podem procurar as soluções positivas.
Apesar de ser esta a posição das coisas, o intérprete católico, impelido por um amor forte e operoso da sua especialidade e sinceramente dedicado à Santa Madre Igreja, de modo algum deve deixar de arrostar uma e outra vez com as difíceis questões ainda não resolvidas, não só para rechaçar as objecções dos adversários, mas também para tentar descobrir uma sólida explicação que concorde fielmente com a doutrina da Igreja, e nomeadamente com o que a tradição ensina sobre a imunidade de todo o erro da Sagrada Escritura e satisfaça ao mesmo tempo, como deve ser, as conclusões certas das disciplinas profanas.
Todos os outros filhos da Igreja recordem que todas as tentativas desses valentes operários da vinha do Senhor devem ser julgadas não só com imparcialidade e justiça, mas também com suma caridade; e detestem aquele modo menos prudente de pensar, segundo o qual tudo o que é novo é por isso mesmo rejeitável, ou pelo menos suspeito. Porque devem ter sempre presente, que quando a Igreja dá normas e leis é porque se trata da doutrina de fé e costumes, e que entre as muitas coisas que se propõem nos livros sagrados legais, históricos, sapienciais e proféticos, só muito poucas há cujo sentido tenha sido declarado pela autoridade da Igreja, e não são muitas mais aquelas em que seja unânime o sentir dos Santos Padres.
Restam, pois, muitas outras e gravíssimas, em cuja discussão e explicação se pode e deve exercer livremente a agudeza e o engenho dos intérpretes católicos, de modo que cada um contribua na medida das suas forças para o progresso cada vez maior da doutrina sagrada e para a defesa e honra da Igreja.
Esta verdadeira liberdade dos filhos da Igreja de Deus - que mantém por um lado com fidelidade a doutrina da Igreja, e por outro lado aceita com prazer, e utiliza como uma dádiva de Deus, os contributos dos conhecimento profanos - unanimemente mostrada e sustentada, é condição e fonte de todo o fruto sincero e de todo o avanço sólido na ciência católica, como adverte sabiamente o Nosso Predecessor Leão XIII, de feliz memória, quando diz: "se não fica salvaguardada a concórdia dos ânimos, e não se respeitam os princípios, não se poderão esperar grandes progressos desta ciência, por muito que se estude" (35).
§ 5º - Uso da Sagrada Escritura na instrução dos fiéis. Várias maneiras de empregar a Sagrada Escritura no ministério sagrado.
Quem considere os ingentes trabalhos que a exegese católica tomou sobre os seus ombros durante quase dois mil anos, para que a palavra de Deus, dirigida aos homens por meio das Sagradas Escrituras, seja cada vez mais total e perfeitamente conhecida, e com mais ardor amada, facilmente se convencerá de que os fiéis, e especialmente os Sacerdotes, têm a grave obrigação de usar copiosa e santamente desse tesouro acumulado ao longo de tantos séculos pelos mais altos engenhos. Porque Deus não concedeu os Livros Sagrados aos homens para lhes satisfazer a curiosidade ou para lhes dar um tema de investigação e estudo, mas como adverte o Apóstolo, para que estas divinas palavras nos pudessem "instruir para a salvação mediante a fé em Jesus Cristo"; e "para que o homem de Deus seja perfeito e esteja apto para toda a obra boa" (36).
Assim, pois, os sacerdotes que têm a incumbência de procurar a salvação dos fiéis, depois de terem investigado por si com diligente estudo as Páginas Sagradas e de as terem tornado suas, na oração e na meditação, tomem diligentemente, nos seus sermões, homilias e exortações, das riquezas celestes da palavra divina, confirmem a doutrina cristã com sentenças tomadas dos Livros Sagrados e a ilustrem com os preclaros exemplos da História Sagrada e especialmente do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo e tudo isto - evitando com todo o empenho e diligência as acomodações feitas a seu capricho e tomadas das coisas mais remotas, o que não é uso mas abuso da palavra divina - hão de propô-lo com tal eloquência, com tal nitidez e clareza, que os fiéis não só se movam e inflamem a conduzir retamente a vida, mas também concebam no seu espírito suma veneração pela Sagrada Escritura.
Os Bispos, por sua parte, tratarão de aumentar e aperfeiçoar cada dia esta veneração nos fiéis que lhes estão confiados, promovendo todas as iniciativas com que os homens cheios de ardor apostólico tratam louvavelmente de excitar e fomentar entre os católicos o conhecimento e o amor dos livros sagrados.
Favoreçam, pois e auxiliem as piedosas associações que se propõem difundir entre os fiéis as edições da Bíblia, e em especial dos Evangelhos, e procurem com todo o empenho que a sua leitura diária se faça nas famílias cristãs, recta e santamente; recomendem eficazmente a Sagrada Escritura traduzida nas línguas vivas com a aprovação da autoridade da Igreja, falando dela e empregando-a quando o permitam as leis da liturgia, e façam, ou procurem que outros oradores sagrados bem peritos façam dissertações públicas ou conferências sobre temas bíblicos. E quanto aos comentários que com tanto louvor e tão grande fruto se editam de vez em quando nos diversos países, ou para tratar e expor cientificamente as questões ou para acomodar os frutos de tais investigações ao ministério sagrado e à utilidade dos fiéis, cuidem os ministros Sagrados de apoiá-los com todas as suas forças e divulgá-los oportunamente entre os vários estados e classes do seu rebanho. Porque devem convencer-se estes ministros sagrados de que tais coisas e todas quantas o zelo apostólico e o sincero amor da Palavra divina achem idóneas para tão excelso propósito, lhes serão eficazes auxiliares na cura das almas.
Ensino da Sagrada Escritura nos Seminários
A ninguém passa despercebido que isto não o poderão fazer bem os sacerdotes, se estes, enquanto estiveram nos seminários não se embeberam de activo e perene amor das Sagradas Escrituras. Por isso os Bispos, a quem incumbe o paternal cuidado dos seus seminários, vigiem diligentemente que também nesta matéria nada se omita do que poderia contribuir para tal fim. Os professores de Sagrada Escritura, por sua parte, completem toda a sua instrução bíblica nos seminários de modo que para a formação dos adolescentes para o sacerdócio e para o ministério da palavra divina os instruam com aquele conhecimento e lhes inculquem aquele amor das sagradas letras sem as quais não podem obter-se abundantes frutos de apostolado. Por isso a explanação exegética seja sobretudo orientada para o aspecto teológico evitando as discussões ociosas e omitindo o que mais alimenta a curiosidade do que fomenta a verdadeira doutrina e a piedade sólida; apresentem o sentido literal, e sobretudo o teológico com tal solidez expliquem-no com tal perícia, inculquem-no com tanto ardor, que aconteça em certo modo aos seus alunos o que aconteceu aos discípulos de Jesus Cristo que iam para Emaús e que depois de ouvir as palavras do Mestre exclamaram: "Não é certo que o nosso coração se inflamava quando nos explicava as Escrituras"? (37).
Convertam-se assim as Letras Divinas, para os futuros sacerdotes da Igreja, em parte pura e perene da vida espiritual de cada um e em alimento e robustecimento da missão sagrada da pregação, que vão receber. Se chegarem a conseguir isto os professores desta importantíssima disciplina nos seminários, convençam-se com júbilo de que contribuíram notavelmente para a salvação das almas, para o progresso da causa católica, para a honra e glória de Deus e levaram a cabo uma obra em estreitíssima relação com a sua missão apostólica.
Oportunidade da Palavra de Deus neste tempo de guerra: consolação para os aflitos; para todos caminho de justiça.
Se o que expusemos, Veneráveis Irmãos e amados filhos, era necessário em qualquer época, é com certeza muito mais urgente em nossos lutuosos tempos, em que quase todos os povos e nações se submergem num mar de calamidades e uma guerra cruel acumula ruínas sobre ruínas e mortes sobre mortes, e em que, excitados mutuamente os mais acerbos ódios dos povos, vemos com suma dor que em não poucos diminuiu não já o sentimento da moderação dos ânimos e da caridade cristã, mas o próprio sentimento de humanidade.
E quem poderá sanar as feridas mortais da sociedade humana senão Aquele a quem o Príncipe dos Apóstolos, cheio de amor e confiança, invoca com as palavras: "Senhor, para quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna"? (38). A este nosso misericordiosíssimo Redentor convém, pois, atrair a todos com todas as forças, porque Ele é quem a todos ensina - aos que têm a prerrogativa da autoridade pública e aos que têm o dever da submissão e da obediência - a probidade verdadeira, a justiça integral, a caridade generosa. Ele é, finalmente, o único fundamento firme e a única defesa que pode existir da paz e da tranquilidade. "Porque ninguém pode pôr outro fundamento que não seja o que está posto, que é Jesus Cristo" (39).
Pois a este Cristo, autor da salvação, conhecê-lo-ão os homens tanto mais plenamente, amá-lo-ão tanto mais intensamente, imitá-lo-ão tanto mais fielmente, quanto maior for o empenho com que se resolvam a conhecer e meditar as Sagradas Escrituras e sobretudo o Novo Testamento. Porque, como diz o Estrídonense (40): "Ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo", "se alguma coisa há que nesta vida contenha o varão sábio e prudente, e entre as solicitações e torvelinhos do mundo o convença a permanecer de ânimo sereno, creio que é antes de mais nada, a meditação e a ciência das Escrituras" (41). Porque aqueles que estão fatigados e oprimidos por sucessos adversos e tristes aqui haurirão os verdadeiros confortos e a força divina para padecer e sofrer: aqui - isto é, nos Santos Evangelhos - todos têm a Cristo, sumo e perfeito modelo de justiça, caridade e misericórdia, e estão abertas, para o género humano ferido e receoso, as fontes daquela divina graça, que, quando se menospreza e esquece, nem os povos nem os seus governantes podem iniciar nem consolidar a tranquilidade social e a concórdia; finalmente, aqui aprenderão todos a Cristo, "que é cabeça de todo o principado e potestade" (42) e "que foi feito por Deus para nós, sabedoria, justiça, santificação e redenção" (43).
CONCLUSÃO
Exortação aos estudiosos da Sagrada Escritura.
Depois de ter exposto e recomendado tudo isto com o fim de adaptar os estudos bíblicos às necessidades do nosso tempo, só Nos resta, Veneráveis Irmãos e amados filhos, relativamente aos cultores da Bíblia que sejam filhos dedicados da Igreja e sigam fielmente a sua doutrina e normas, não só felicitá-los com ânimo paternal, porque foram escolhidos e chamados a tão excelsa missão, mas dar-lhes alento para que prossigam com todo o empenho e cuidado na execução da obra felizmente empreendida, renovando diariamente as suas forças.
Dissemos excelsa missão, porque que coisa há mais sublime do que perscrutar, explicar e apresentar aos fiéis, e defender contra os infiéis a própria palavra de Deus, dada aos homens por inspiração do Espírito Santo? Alimenta-se com este manjar espiritual a alma do próprio intérprete e nutre-se "para recordação da fé, consolo da esperança e alento da caridade" (44). Viver entre estas coisas, meditá-las, não saber mais nada, não procurar mais nada, não vos parece que é já viver no reino celestial aqui na terra"? (45). Apascentem-se com esta mesma comida os espíritos dos fiéis que daí tirarão conhecimento e amor de Deus e proveito e felicidade para suas próprias almas. Os expositores da palavra divina entreguem-se a esta santa ocupação: com toda a sua alma. "Orem para entenderem" (46), trabalhem para penetrarem cada vez mais profundamente nos segredos das sagradas páginas, ensinem e preguem para distribuírem também aos outros os tesouros da palavra de Deus. O que nos séculos passados conseguiram com tanto fruto os preclaros intérpretes da Sagrada Escritura, tratem de o emular na medida de suas forças os actuais, de modo que a Igreja, como nos tempos passados, tenha também no presente doutores na exposição das Letras Divinas, e os fiéis, pelo trabalho e esforço daqueles recebam toda a luz, exortação e alegria das Sagradas Escrituras. Neste trabalho, árduo, sem dúvida, e grave, tenham eles mesmos "por consolo os livros santos" (47), e lembrem-se do prémio prometido, visto que aqueles que "forem doutos brilharão como esplendor, no firmamento, e, os que ensinam aos outros a justiça, como estrelas durante perpétuas eternidades" (48).
Entretanto, desejando ardentemente a todos os filhos da Igreja e especialmente aos professores das ciências bíblicas, ao clero jovem e aos oradores sagrados, que meditando continuamente a palavra de Deus saboreiem como é bom e suave o espírito do Senhor (49), como augúrio de celestes dádivas e testemunho da Nossa paternal benevolência, a cada um de todos vós, Veneráveis Irmãos e amados filhos, concedemos, amorosamente no Senhor, a bênção apostólica.
- Dado em Roma, junto de S. Pedro, aos 30 de Setembro, festa de S. Jerónimo, Doutor Máximo na exposição das Sagradas Escrituras, no ano de 1943, quinto do Nosso Pontificado.
Pio Papa XII
REFERÊNCIAS
(1) 2Tim. 3,16ss.
(2) Sessão IV, decr. I; Ench. Bibl. nº 45.
(3) Sessão III, cap. 2; Ench. Bibl. nº 62.
(4) Alocução aos alunos dos seminários de Roma, 24.06.1939; AAS XXXI (1939), pp. 245-251.
(5) Cf. 1ª, q.70, art. 1 ad. 3.
(6) De Gen. ad. Litt. 2,9,20; PL XXXIV, vol. 270s.; CSEL XXVIII,3,1, p. 46.
(7) Leão XIII, Acta XIII, p. 355; Encf. Bibl. nº 106.
(8) Cf. Bento XV, encíclica Spiritus Paraclitus, AAS XII (1920), p. 396; Ench. Bibl. nº 471.
(9) Leão XIII, Acta XIII, p. 357ss.; Ench. Bibl. nº 109ss.
(10) Cf. Leão XIII, Acta XIII, p. 328; Ench. Bibl. nº 67ss.
(11) Carta apostólica Hyerosolymae in Coenobio, 17.09.1892; Leão XIII, Acta XII, pp. 32-2941, v. p. 240.
(12) Cf. Leão XIII, Acta XXII, p. 232s.; Ench. Bibl. nnº 140-141.
(13) Carta da Pontifícia Comissão Bíblica aos exmos. arcebispos e bispos da Itália, 20.08.1941; AAS XXXII (1941), pp. 465-672.
(14) Carta apostólica Scriturae Sanctae, 23.02.1904; Pio X, Acta I, pp. 176-179; Ench. Bibl. nnº 142-150, v. nnº 143-144.
(15) Cf. carta apostólica Quoniam in Re Biblica, 27.03.1906; Pio X, Acta III, pp. 72-76; Ench. Bibl. nnº 155-173, v. nº 155.
(16) Carta apostólica Vinea Electa, 07.05.1909; AAS I (1909), pp. 447-449; Ench. Bibl. nnº 293-306, v. nnº 296 e 294.
(17) Cf. motu proprio Bibliorum Scientiam, 27.04.1924; AAS XVI (1924), pp. 180-182; Ench. Bibl. nnº 518-525.
(18) Carta ao revmo. d. Aidano Gasquet, 03.12.1907; Pio X, Acta IV, pp. 117-119; Ench. Bibl. nnº 285ss.
(19) Constituição apostólica Inter Praecipuas, 15.06.1933; AAS XXVI (1934), pp.85-87.
(20) Carta Qui Piam ao emº. card. Casseta, 21.01.1907; Pio X, Acta IV, pp. 23-25.
(21) Carta encíclica Spiritus Paraclitus, 25.09.1920; AAS XII (1920), pp. 385-442; Ench. Bibl. nnº 457-508, v. nnº 457, 495, 497 e 491.
(22) Cf., p.ex., S. Jerónimo, in IV Evang. ad Damasum, PL XXIX, col. 526-527. S. Agostinho, De Doctr. Christ. II,21, PL XXXIV, col. 42-43.
(23) De Doctr. Christ. II,21; PL XXXIV, vol. 46.
(24) Decreto De Editione et Usu Sacrorum Librorum; Conc. Trento, ed. Soc. Goeres, t. V, p. 91s.
(25) Ibidem, p. 29.
(26) 1ª, q.1, art. 10 ad lum.
(27) Leão XIII, Acta XIII, pp. 345-346; Ench. Bibl. nnº 94-96.
(28) Hebr. 4,12.
(29) Cf. Bento XV, encíclica Spiritus Paraclitus; AAS XII (1920), p. 390; Ench. Bibl. nº 461.
(30) Contra Arianos I,54; PG XXVI, vol. 123.
(31) Comment. ad Hebr. cap. I, lectio IV.
(32) Hebr. 4,15.
(33) Cf. v. gr. in Gen. 1,4 (PG LIII, col. 34-35); in Gen. 2,21 (ibidem, col. 121); in Gen. 2,8 (ibidem, col. 135); Hom. XV in Joan, ad I,18 (PG LIX, col. 97ss.).
(34) Cf. S. Agostinho, Ep. 149 ad Paulinum nº 34 (PL XXXIII, col. 644); De Diversis Quaestionibus, q. 53, nº 2 (ibi. XL, col. 36); Enarr. in Ps 146 nº 12 (ibi. XXXVII, col. 1907).
(35) Carta apostólica Vigilantiae; Leão XIII, Acta XXII, p. 237; Ench. Bibl. nº 136.
(36) Cf. 1Tim. 3,15.17.
(37) Luc. 24,32.
(38) Jo. 6,69.
(39) 1Cor. 3,11.
(40) S. Jerónimo, in Isaim, prologus; PL XXIV, col. 17.
(41) Id., in Ephesios, prologus; PL XXVI, col. 439.
(42) Col. 2,10.
(43) 1Cor. 1,30.
(44) Cf. S. Agostinho, Contra Faustum XIII,18; PL XLII, col. 294; CSEL XXV, p. 400.
(45) S. Jerónimo, Ep. 53,10; PL XXII, col. 549; CSEL LIV, p. 463.
(46) S. Agostinho, De Doctr. Christ. III,56; PL XXXIV, col. 89.
(47) 1Mac. 12,9.
(48) Dan. 12,3.
(49) Cf. Sab. 12,1.
Ecclesia de Eucharistia
Carta Encíclica
ECCLESIA DE EUCHARISTIA
do Sumo Pontífice
João Paulo II
Aos Bispos
Aos Presbíteros e Diáconos
Às Pessoas Consagradas
E a todos os Fiéis Leigos
Sobre a Eucaristia
Na sua relação com a Igreja
INTRODUÇÃO
1. A Igreja vive da Eucaristia. Esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contém em síntese o próprio núcleo do mistério da Igreja. É com alegria que ela experimenta, de diversas maneiras, a realização incessante desta promessa: « Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo » (Mt 28, 20); mas, na sagrada Eucaristia, pela conversão do pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor, goza desta presença com uma intensidade sem par. Desde o Pentecostes, quando a Igreja, povo da nova aliança, iniciou a sua peregrinação para a pátria celeste, este sacramento divino foi ritmando os seus dias, enchendo-os de consoladora esperança.
O Concílio Vaticano II justamente afirmou que o sacrifício eucarístico é « fonte e centro de toda a vida cristã ».(1)Com efeito, « na santíssima Eucaristia, está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo ».(2) Por isso, o olhar da Igreja volta-se continuamente para o seu Senhor, presente no sacramento do Altar, onde descobre a plena manifestação do seu imenso amor.
2. Durante o Grande Jubileu do ano 2000, pude celebrar a Eucaristia no Cenáculo de Jerusalém, onde, segundo a tradição, o próprio Cristo a realizou pela primeira vez. O Cenáculo é o lugar da instituição deste santíssimo sacramento. Foi lá que Jesus tomou nas suas mãos o pão, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: « Tomai, todos, e comei: Isto é o meu Corpo que será entregue por vós » (cf. Mt 26, 26; Lc 22, 19; 1 Cor 11, 24). Depois, tomou nas suas mãos o cálice com vinho e disse-lhes: « Tomai, todos, e bebei: Este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos para remissão dos pecados » (cf. Mc 14, 24; Lc 22, 20; 1 Cor 11, 25). Dou graças ao Senhor Jesus por me ter permitido repetir no mesmo lugar, obedecendo ao seu mandato: « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19), as palavras por Ele pronunciadas há dois mil anos.
Teriam os Apóstolos, que tomaram parte na Última Ceia, entendido o significado das palavras saídas dos lábios de Cristo? Talvez não. Aquelas palavras seriam esclarecidas plenamente só no fim do Triduum Sacrum, ou seja, aquele período de tempo que vai da tarde de Quinta-feira Santa até à manhã do Domingo de Páscoa. Nestes dias, está contido o mysterium paschale; neles está incluído também o mysterium eucharisticum.
3. Do mistério pascal nasce a Igreja. Por isso mesmo a Eucaristia, que é o sacramento por excelência do mistério pascal, está colocada no centro da vida eclesial. Isto é visível desde as primeiras imagens da Igreja que nos dão os Actos do Apóstolos: « Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão, e às orações » (2, 42). Na « fracção do pão », é evocada a Eucaristia. Dois mil anos depois, continuamos a realizar aquela imagem primordial da Igreja. E, ao fazê-lo na celebração eucarística, os olhos da alma voltam-se para o Tríduo Pascal: para o que se realizou na noite de Quinta-feira Santa, durante a Última Ceia, e nas horas sucessivas. De facto, a instituição da Eucaristia antecipava, sacramentalmente, os acontecimentos que teriam lugar pouco depois, a começar da agonia no Getsémani. Revemos Jesus que sai do Cenáculo, desce com os discípulos, atravessa a torrente do Cedron e chega ao Horto das Oliveiras. Existem ainda hoje naquele lugar algumas oliveiras muito antigas; talvez tenham sido testemunhas do que aconteceu junto delas naquela noite, quando Cristo, em oração, sentiu uma angústia mortal « e o seu suor tornou-se-Lhe como grossas gotas de sangue, que caíam na terra » (Lc 22, 44). O sangue que, pouco antes, tinha entregue à Igreja como vinho de salvação no sacramento eucarístico, começava a ser derramado; a sua efusão completar-se-ia depois no Gólgota, tornando-se o instrumento da nossa redenção: « Cristo, vindo como Sumo Sacerdote dos bens futuros [...] entrou uma só vez no Santo dos Santos, não com o sangue dos carneiros ou dos bezerros, mas com o seu próprio sangue, tendo obtido uma redenção eterna » (Heb 9, 11-12).
4. A hora da nossa redenção. Embora profundamente turvado, Jesus não foge ao ver chegar a sua « hora »: « E que direi Eu? Pai, salva-Me desta hora? Mas por causa disto é que cheguei a esta hora! » (Jo 12, 27). Quer que os discípulos Lhe façam companhia, mas deve experimentar a solidão e o abandono: « Nem sequer pudestes vigiar uma hora Comigo. Vigiai e orai para não cairdes em tentação » (Mt 26, 40-41). Aos pés da cruz, estará apenas João ao lado de Maria e das piedosas mulheres. A agonia no Getsémani foi o prelúdio da agonia na cruz de Sexta-feira Santa. A hora santa, a hora da redenção do mundo. Quando se celebra a Eucaristia na basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, volta-se de modo quase palpável à « hora » de Jesus, a hora da cruz e da glorificação. Até àquele lugar e àquela hora se deixa transportar em espírito cada presbítero ao celebrar a Santa Missa, juntamente com a comunidade cristã que nela participa.
« Foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia ». Estes artigos da profissão de fé ecoam nas seguintes palavras de contemplação e proclamação: Ecce lignum crucis in quo salus mundi pependit. Venite adoremus - « Eis o madeiro da Cruz, no qual esteve suspenso o Salvador do mundo. Vinde adoremos! » É o convite que a Igreja faz a todos na tarde de Sexta-feira Santa. E, quando voltar novamente a cantar já no tempo pascal, será para proclamar: Surrexit Dominus de sepulcro qui pro nobis pependit in ligno. Alleluia - « Ressuscitou do sepulcro o Senhor que por nós esteve suspenso no madeiro. Aleluia ».
5. Mysterium fidei! - « Mistério da fé ». Quando o sacerdote pronuncia ou canta estas palavras, os presentes aclamam: « Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus! ».
Com estas palavras ou outras semelhantes, a Igreja, ao mesmo tempo que apresenta Cristo no mistério da sua Paixão, revela também o seu próprio mistério: Ecclesia de Eucharistia. Se é com o dom do Espírito Santo, no Pentecostes, que a Igreja nasce e se encaminha pelas estradas do mundo, um momento decisivo da sua formação foi certamente a instituição da Eucaristia no Cenáculo. O seu fundamento e a sua fonte é todo o Triduum Paschale, mas este está de certo modo guardado, antecipado e « concentrado » para sempre no dom eucarístico. Neste, Jesus Cristo entregava à Igreja a actualização perene do mistério pascal. Com ele, instituía uma misteriosa « contemporaneidade » entre aquele Triduum e o arco inteiro dos séculos.
Este pensamento suscita em nós sentimentos de grande e reconhecido enlevo. Há, no evento pascal e na Eucaristia que o actualiza ao longo dos séculos, uma « capacidade » realmente imensa, na qual está contida a história inteira, enquanto destinatária da graça da redenção. Este enlevo deve invadir sempre a assembleia eclesial reunida para a celebração eucarística; mas, de maneira especial, deve inundar o ministro da Eucaristia, o qual, pela faculdade recebida na Ordenação sacerdotal, realiza a consagração; é ele, com o poder que lhe vem de Cristo, do Cenáculo, que pronuncia: « Isto é o meu Corpo que será entregue por vós »; « este é o cálice do meu Sangue, [...] que será derramado por vós ». O sacerdote pronuncia estas palavras ou, antes, coloca a sua boca e a sua voz à disposição d'Aquele que as pronunciou no Cenáculo e quis que fossem repetidas de geração em geração por todos aqueles que, na Igreja, participam ministerialmente do seu sacerdócio.
6. É este « enlevo » eucarístico que desejo despertar com esta carta encíclica, que dá continuidade à herança jubilar que quis entregar à Igreja com a carta apostólica Novo millennio ineunte e o seu coroamento mariano – a carta apostólica Rosarium Virginis Mariæ. Contemplar o rosto de Cristo e contemplá-lo com Maria é o « programa » que propus à Igreja na aurora do terceiro milénio, convidando-a a fazer-se ao largo no mar da história lançando-se com entusiasmo na nova evangelização. Contemplar Cristo implica saber reconhecê-Lo onde quer que Ele Se manifeste, com as suas diversas presenças mas sobretudo no sacramento vivo do seu corpo e do seu sangue. A Igreja vive de Jesus eucarístico, por Ele é nutrida, por Ele é iluminada. A Eucaristia é mistério de fé e, ao mesmo tempo, « mistério de luz ».(3)Sempre que a Igreja a celebra, os fiéis podem de certo modo reviver a experiência dos dois discípulos de Emaús: « Abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-No » (Lc 24, 31).
7. Desde quando iniciei o ministério de Sucessor de Pedro, sempre quis contemplar a Quinta-feira Santa, dia da Eucaristia e do Sacerdócio, com um sinal de particular atenção enviando uma carta a todos os sacerdotes do mundo. Neste vigésimo quinto ano do meu Pontificado, desejo envolver mais plenamente a Igreja inteira nesta reflexão eucarística para agradecer ao Senhor especialmente pelo dom da Eucaristia e do sacerdócio: « Dom e mistério ».(4) Se, ao proclamar o Ano do Rosário, quis pôr este meu vigésimo quinto ano sob o signo da contemplação de Cristo na escola de Maria, não posso deixar passar esta Quinta-feira Santa de 2003 sem me deter diante do « rosto eucarístico » de Jesus, propondo à Igreja, com renovado ardor, a centralidade da Eucaristia. Dela vive a Igreja; nutre-se deste « pão vivo ». Por isso senti a necessidade de exortar a todos a experimentá-lo sempre de novo.
8. Quando penso na Eucaristia e olho para a minha vida de sacerdote, de Bispo, de Sucessor de Pedro, espontaneamente ponho-me a recordar tantos momentos e lugares onde tive a dita de celebrá-la. Recordo a igreja paroquial de Niegowic, onde desempenhei o meu primeiro encargo pastoral, a colegiada de S. Floriano em Cracóvia, a catedral do Wawel, a basílica de S. Pedro e tantas basílicas e igrejas de Roma e do mundo inteiro. Pude celebrar a Santa Missa em capelas situadas em caminhos de montanha, nas margens dos lagos, à beira do mar; celebrei-a em altares construídos nos estádios, nas praças das cidades... Este cenário tão variado das minhas celebrações eucarísticas faz-me experimentar intensamente o seu carácter universal e, por assim dizer, cósmico. Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo. Une o céu e a terra. Abraça e impregna toda a criação. O Filho de Deus fez-Se homem para, num supremo acto de louvor, devolver toda a criação Àquele que a fez surgir do nada. Assim, Ele, o sumo e eterno Sacerdote, entrando com o sangue da sua cruz no santuário eterno, devolve ao Criador e Pai toda a criação redimida. Fá-lo através do ministério sacerdotal da Igreja, para glória da Santíssima Trindade. Verdadeiramente este é o mysterium fidei que se realiza na Eucaristia: o mundo saído das mãos de Deus criador volta a Ele redimido por Cristo.
9. A Eucaristia, presença salvífica de Jesus na comunidade dos fiéis e seu alimento espiritual, é o que de mais precioso pode ter a Igreja no seu caminho ao longo da história. Assim se explica a cuidadosa atenção que ela sempre reservou ao mistério eucarístico, uma atenção que sobressai com autoridade no magistério dos Concílios e dos Sumos Pontífices. Como não admirar as exposições doutrinais dos decretos sobre a Santíssima Eucaristia e sobre o Santo Sacrifício da Missa promulgados pelo Concílio de Trento? Aquelas páginas guiaram a teologia e a catequese nos séculos sucessivos, permanecendo ainda como ponto de referência dogmático para a incessante renovação e crescimento do povo de Deus na sua fé e amor à Eucaristia. Em tempos mais recentes, há que mencionar três encíclicas: a encíclica Miræ caritatis de Leão XIII (28 de Maio de 1902),(5) a encíclica Mediator Dei de Pio XII (20 de Novembro de 1947) (6) e a encíclica Mysterium fidei de Paulo VI (3 de Setembro de 1965).(7)
O Concílio Vaticano II, embora não tenha publicado qualquer documento específico sobre o mistério eucarístico, todavia ilustra os seus vários aspectos no conjunto dos documentos, especialmente na constituição dogmática sobre a Igreja Lumen gentium e na constituição sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum concilium.
Eu mesmo, nos primeiros anos do meu ministério apostólico na Cátedra de Pedro, tive oportunidade de tratar alguns aspectos do mistério eucarístico e da sua incidência na vida daquele que é o seu ministro, com a carta apostólica Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980).(8) Hoje retomo o fio daquele discurso com o coração transbordante de emoção e gratidão, dando eco às palavras do Salmista: « Que darei eu ao Senhor por todos os seus benefícios? Elevarei o cálice da salvação invocando o nome do Senhor » (Sal 116/115, 12-13).
10. A este esforço de anúncio por parte do Magistério correspondeu um crescimento interior da comunidade cristã. Não há dúvida que a reforma litúrgica do Concílio trouxe grandes vantagens para uma participação mais consciente, activa e frutuosa dos fiéis no santo sacrifício do altar. Mais ainda, em muitos lugares, é dedicado amplo espaço à adoração do Santíssimo Sacramento, tornando-se fonte inesgotável de santidade. A devota participação dos fiéis na procissão eucarística da solenidade do Corpo e Sangue de Cristo é uma graça do Senhor que anualmente enche de alegria quantos nela participam. E mais sinais positivos de fé e de amor eucarísticos se poderiam mencionar.
A par destas luzes, não faltam sombras, infelizmente.De facto, há lugares onde se verifica um abandono quase completo do culto de adoração eucarística. Num contexto eclesial ou outro, existem abusos que contribuem para obscurecer a recta fé e a doutrina católica acerca deste admirável sacramento. Às vezes transparece uma compreensão muito redutiva do mistério eucarístico. Despojado do seu valor sacrificial, é vivido como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesa. Além disso, a necessidade do sacerdócio ministerial, que assenta na sucessão apostólica, fica às vezes obscurecida, e a sacramentalidade da Eucaristia é reduzida à simples eficácia do anúncio. Aparecem depois, aqui e além, iniciativas ecuménicas que, embora bem intencionadas, levam a práticas na Eucaristia contrárias à disciplina que serve à Igreja para exprimir a sua fé. Como não manifestar profunda mágoa por tudo isto? A Eucaristia é um dom demasiado grande para suportar ambiguidades e reduções.
Espero que esta minha carta encíclica possa contribuir eficazmente para dissipar as sombras de doutrinas e práticas não aceitáveis, a fim de que a Eucaristia continue a resplandecer em todo o fulgor do seu mistério.
CAPÍTULO I - MISTÉRIO DA FÉ
11. « O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue » (1 Cor 11, 23), instituiu o sacrifício eucarístico do seu corpo e sangue. As palavras do apóstolo Paulo recordam-nos as circunstâncias dramáticas em que nasceu a Eucaristia.Esta tem indelevelmente inscrito nela o evento da paixão e morte do Senhor. Não é só a sua evocação, mas presença sacramental. É o sacrifício da cruz que se perpetua através dos séculos.(9) Esta verdade está claramente expressa nas palavras com que o povo, no rito latino, responde à proclamação « mistério da fé » feita pelo sacerdote: « Anunciamos, Senhor, a vossa morte ».
A Igreja recebeu a Eucaristia de Cristo seu Senhor, não como um dom, embora precioso, entre muitos outros, mas como o dom por excelência, porque dom d'Ele mesmo, da sua Pessoa na humanidade sagrada, e também da sua obra de salvação. Esta não fica circunscrita no passado, pois « tudo o que Cristo é, tudo o que fez e sofreu por todos os homens, participa da eternidade divina, e assim transcende todos os tempos e em todos se torna presente ».(10)
Quando a Igreja celebra a Eucaristia, memorial da morte e ressurreição do seu Senhor, este acontecimento central de salvação torna-se realmente presente e « realiza-se também a obra da nossa redenção ».(11) Este sacrifício é tão decisivo para a salvação do género humano que Jesus Cristo realizou-o e só voltou ao Pai depois de nos ter deixado o meio para dele participarmos como se tivéssemos estado presentes. Assim cada fiel pode tomar parte nela, alimentando-se dos seus frutos inexauríveis. Esta é a fé que as gerações cristãs viveram ao longo dos séculos, e que o magistério da Igreja tem continuamente reafirmado com jubilosa gratidão por dom tão inestimável.(12) É esta verdade que desejo recordar mais uma vez, colocando-me convosco, meus queridos irmãos e irmãs, em adoração diante deste Mistério: mistério grande, mistério de misericórdia. Que mais poderia Jesus ter feito por nós?Verdadeiramente, na Eucaristia demonstra-nos um amor levado até ao « extremo » (cf. Jo 13, 1), um amor sem medida.
12. Este aspecto de caridade universal do sacramento eucarístico está fundado nas próprias palavras do Salvador. Ao instituí-lo, não Se limitou a dizer « isto é o meu corpo », « isto é o meu sangue », mas acrescenta: « entregue por vós (...) derramado por vós » (Lc 22, 19-20). Não se limitou a afirmar que o que lhes dava a comer e a beber era o seu corpo e o seu sangue, mas exprimiu também o seu valor sacrificial, tornando sacramentalmente presente o seu sacrifício, que algumas horas depois realizaria na cruz pela salvação de todos. « A Missa é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o memorial sacrificial em que se perpetua o sacrifício da cruz e o banquete sagrado da comunhão do corpo e sangue do Senhor ».(13)
A Igreja vive continuamente do sacrifício redentor, e tem acesso a ele não só através duma lembrança cheia de fé, mas também com um contacto actual, porque este sacrifício volta a estar presente, perpetuando-se, sacramentalmente, em cada comunidade que o oferece pela mão do ministro consagrado. Deste modo, a Eucaristia aplica aos homens de hoje a reconciliação obtida de uma vez para sempre por Cristo para humanidade de todos os tempos. Com efeito, « o sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício ».(14) Já o afirmava em palavras expressivas S. João Crisóstomo: « Nós oferecemos sempre o mesmo Cordeiro, e não um hoje e amanhã outro, mas sempre o mesmo. Por este motivo, o sacrifício é sempre um só. [...] Também agora estamos a oferecer a mesma vítima que então foi oferecida e que jamais se exaurirá ».(15)
A Missa torna presente o sacrifício da cruz; não é mais um, nem o multiplica.(16) O que se repete é a celebração memorial, a « exposição memorial » (memorialis demonstratio),(17) de modo que o único e definitivo sacrifício redentor de Cristo se actualiza incessantemente no tempo. Portanto, a natureza sacrificial do mistério eucarístico não pode ser entendida como algo isolado, independente da cruz ou com uma referência apenas indirecta ao sacrifício do Calvário.
13. Em virtude da sua íntima relação com o sacrifício do Gólgota, a Eucaristia é sacrifício em sentido próprio, e não apenas em sentido genérico como se se tratasse simplesmente da oferta de Cristo aos fiéis para seu alimento espiritual. Com efeito, o dom do seu amor e da sua obediência até ao extremo de dar a vida (cf. Jo 10,17-18) é em primeiro lugar um dom a seu Pai. Certamente, é um dom em nosso favor, antes em favor de toda a humanidade (cf. Mt 26, 28; Mc 14, 24; Lc 22, 20; Jo 10, 15), mas primariamente um dom ao Pai: « Sacrifício que o Pai aceitou, retribuindo esta doação total de seu Filho, que Se fez “obediente até à morte” (Flp 2, 8), com a sua doação paterna, ou seja, com o dom da nova vida imortal na ressurreição ».(18)
Ao entregar à Igreja o seu sacrifício, Cristo quis também assumir o sacrifício espiritual da Igreja, chamada por sua vez a oferecer-se a si própria juntamente com o sacrifício de Cristo. Assim no-lo ensina o Concílio Vaticano II: « Pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, [os fiéis] oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela ».(19)
14. A Páscoa de Cristo inclui, juntamente com a paixão e morte, a sua ressurreição. Assim o lembra a aclamação da assembleia depois da consagração: « Proclamamos a vossa ressurreição ». Com efeito, o sacrifício eucarístico torna presente não só o mistério da paixão e morte do Salvador, mas também o mistério da ressurreição, que dá ao sacrifício a sua coroação. Por estar vivo e ressuscitado é que Cristo pode tornar-Se « pão da vida » (Jo 6, 35.48), « pão vivo » (Jo 6, 51), na Eucaristia. S. Ambrósio lembrava aos neófitos esta verdade, aplicando às suas vidas o acontecimento da ressurreição: « Se hoje Cristo é teu, Ele ressuscita para ti cada dia ».(20) Por sua vez, S. Cirilo de Alexandria sublinhava que a participação nos santos mistérios « é uma verdadeira confissão e recordação de que o Senhor morreu e voltou à vida por nós e em nosso favor ».(21)
15. A reprodução sacramental na Santa Missa do sacrifício de Cristo coroado pela sua ressurreição implica uma presença muito especial, que – para usar palavras de Paulo VI – « chama-se “real”, não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem “reais”, mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela se torna presente Cristo completo, Deus e homem ».(22) Reafirma-se assim a doutrina sempre válida do Concílio de Trento: « Pela consagração do pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue; a esta mudança, a Igreja católica chama, de modo conveniente e apropriado, transubstanciação ».(23) Verdadeiramente a Eucaristia é mysterium fidei, mistério que supera os nossos pensamentos e só pode ser aceite pela fé, como lembram frequentemente as catequeses patrísticas sobre este sacramento divino. « Não hás-de ver – exorta S. Cirilo de Jerusalém – o pão e o vinho [consagrados] simplesmente como elementos naturais, porque o Senhor disse expressamente que são o seu corpo e o seu sangue: a fé t'o assegura, ainda que os sentidos possam sugerir-te outra coisa ».(24)
« Adoro te devote, latens Deitas »: continuaremos a cantar com S. Tomás, o Doutor Angélico. Diante deste mistério de amor, a razão humana experimenta toda a sua limitação. Compreende-se como, ao longo dos séculos, esta verdade tenha estimulado a teologia a árduos esforços de compreensão.
São esforços louváveis, tanto mais úteis e incisivos se capazes de conjugarem o exercício crítico do pensamento com a « vida de fé » da Igreja, individuada especialmente « no carisma da verdade » do Magistério e na « íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais » (25) sobretudo os Santos. Permanece o limite apontado por Paulo VI: « Toda a explicação teológica que queira penetrar de algum modo neste mistério, para estar de acordo com a fé católica deve assegurar que na sua realidade objectiva, independentemente do nosso entendimento, o pão e o vinho deixaram de existir depois da consagração, de modo que a partir desse momento são o corpo e o sangue adoráveis do Senhor Jesus que estão realmente presentes diante de nós sob as espécies sacramentais do pão e do vinho ».(26)
16. A eficácia salvífica do sacrifício realiza-se plenamente na comunhão, ao recebermos o corpo e o sangue do Senhor. O sacrifício eucarístico está particularmente orientado para a união íntima dos fiéis com Cristo através da comunhão: recebemo-Lo a Ele mesmo que Se ofereceu por nós, o seu corpo entregue por nós na cruz, o seu sangue « derramado por muitos para a remissão dos pecados » (Mt 26, 28). Recordemos as suas palavras: « Assim como o Pai, que vive, Me enviou e Eu vivo pelo Pai, assim também o que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). O próprio Jesus nos assegura que tal união, por Ele afirmada em analogia com a união da vida trinitária, se realiza verdadeiramente. A Eucaristia é verdadeiro banquete, onde Cristo Se oferece como alimento. A primeira vez que Jesus anunciou este alimento, os ouvintes ficaram perplexos e desorientados, obrigando o Mestre a insistir na dimensão real das suas palavras: « Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós » (Jo 6, 53). Não se trata de alimento em sentido metafórico, mas « a minha carne é, em verdade, uma comida, e o meu sangue é, em verdade, uma bebida » (Jo 6, 55).
17. Através da comunhão do seu corpo e sangue, Cristo comunica-nos também o seu Espírito. Escreve S. Efrém: « Chamou o pão seu corpo vivo, encheu-o de Si próprio e do seu Espírito. [...] E aquele que o come com fé, come Fogo e Espírito. [...] Tomai e comei-o todos; e, com ele, comei o Espírito Santo. De facto, é verdadeiramente o meu corpo, e quem o come viverá eternamente ».(27) A Igreja pede este Dom divino, raiz de todos os outros dons, na epiclese eucarística. Assim reza, por exemplo, a Divina Liturgia de S. João Crisóstomo: « Nós vos invocamos, pedimos e suplicamos: enviai o vosso Santo Espírito sobre todos nós e sobre estes dons, [...] para que sirvam a quantos deles participarem de purificação da alma, remissão dos pecados, comunicação do Espírito Santo ».(28) E, no Missal Romano, o celebrante suplica: « Fazei que, alimentando-nos do Corpo e Sangue do vosso Filho, cheios do seu Espírito Santo, sejamos em Cristo um só corpo e um só espírito ».(29) Assim, pelo dom do seu corpo e sangue, Cristo aumenta em nós o dom do seu Espírito, já infundido no Baptismo e recebido como « selo » no sacramento da Confirmação.
18. A aclamação do povo depois da consagração termina com as palavras « Vinde, Senhor Jesus », justamente exprimindo a tensão escatológica que caracteriza a celebração eucarística (cf. 1 Cor 11, 26). A Eucaristia é tensão para a meta, antegozo da alegria plena prometida por Cristo (cf. Jo 15, 11); de certa forma, é antecipação do Paraíso, « penhor da futura glória ».(30)A Eucaristia é celebrada na ardente expectativa de Alguém, ou seja, « enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador ».(31) Quem se alimenta de Cristo na Eucaristia não precisa de esperar o Além para receber a vida eterna: já a possui na terra, como primícias da plenitude futura, que envolverá o homem na sua totalidade. De facto, na Eucaristia recebemos a garantia também da ressurreição do corpo no fim do mundo: « Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia » (Jo 6, 54). Esta garantia da ressurreição futura deriva do facto de a carne do Filho do Homem, dada em alimento, ser o seu corpo no estado glorioso de ressuscitado. Pela Eucaristia, assimila-se, por assim dizer, o « segredo » da ressurreição. Por isso, S. Inácio de Antioquia justamente definia o Pão eucarístico como « remédio de imortalidade, antídoto para não morrer ».(32)
19. A tensão escatológica suscitada pela Eucaristia exprime e consolida a comunhão com a Igreja celeste. Não é por acaso que, nas Anáforas orientais e nas Orações Eucarísticas latinas, se lembra com veneração Maria sempre Virgem, Mãe do nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, os anjos, os santos apóstolos, os gloriosos mártires e todos os santos. Trata-se dum aspecto da Eucaristia que merece ser assinalado: ao celebrarmos o sacrifício do Cordeiro unimo-nos à liturgia celeste, associando-nos àquela multidão imensa que grita: « A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro » (Ap 7, 10). A Eucaristia é verdadeiramente um pedaço de céu que se abre sobre a terra; é um raio de glória da Jerusalém celeste, que atravessa as nuvens da nossa história e vem iluminar o nosso caminho.
20. Consequência significativa da tensão escatológica presente na Eucaristia é o estímulo que dá à nossa caminhada na história, lançando uma semente de activa esperança na dedicação diária de cada um aos seus próprios deveres. De facto se a visão cristã leva a olhar para o « novo céu » e a « nova terra » (Ap 21, 1), isso não enfraquece, antes estimula o nosso sentido de responsabilidade pela terra presente.(33) Desejo reafirmá-lo com vigor ao início do novo milénio, para que os cristãos se sintam ainda mais decididos a não descurar os seus deveres de cidadãos terrenos. Têm o dever de contribuir com a luz do Evangelho para a edificação de um mundo à medida do homem e plenamente conforme ao desígnio de Deus.
Muitos são os problemas que obscurecem o horizonte do nosso tempo. Basta pensar quanto seja urgente trabalhar pela paz, colocar sólidas premissas de justiça e solidariedade nas relações entre os povos, defender a vida humana desde a concepção até ao seu termo natural. E também que dizer das mil contradições dum mundo « globalizado », onde parece que os mais débeis, os mais pequenos e os mais pobres pouco podem esperar? É neste mundo que tem de brilhar a esperança cristã! Foi também para isto que o Senhor quis ficar connosco na Eucaristia, inserindo nesta sua presença sacrificial e comensal a promessa duma humanidade renovada pelo seu amor. É significativo que, no lugar onde os Sinópticos narram a instituição da Eucaristia, o evangelho de João proponha, ilustrando assim o seu profundo significado, a narração do « lava-pés », gesto este que faz de Jesus mestre de comunhão e de serviço (cf. Jo 13, 1-20). O apóstolo Paulo, por sua vez, qualifica como « indi- gna » duma comunidade cristã a participação na Ceia do Senhor que se verifique num contexto de discórdia e de indiferença pelos pobres (cf. 1 Cor 11, 17-22.27-34).(34)
Anunciar a morte do Senhor « até que Ele venha » (1 Cor 11, 26) inclui, para os que participam na Eucaristia, o compromisso de transformarem a vida, de tal forma que esta se torne, de certo modo, toda « eucarística ». São precisamente este fruto de transfiguração da existência e o empenho de transformar o mundo segundo o Evangelho que fazem brilhar a tensão escatológica da celebração eucarística e de toda a vida cristã: « Vinde, Senhor Jesus! » (cf. Ap 22, 20).
CAPÍTULO II - A EUCARISTIA EDIFICA A IGREJA
21. O Concílio Vaticano II veio recordar que a celebração eucarística está no centro do processo de crescimento da Igreja. De facto, depois de afirmar que « a Igreja, ou seja, o Reino de Cristo já presente em mistério, cresce visivelmente no mundo pelo poder de Deus »,(35) querendo de algum modo responder à questão sobre o modo como cresce, acrescenta: « Sempre que no altar se celebra o sacrifício da cruz, no qual “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (1 Cor 5, 7), realiza-se também a obra da nossa redenção. Pelo sacramento do pão eucarístico, ao mesmo tempo é representada e se realiza a unidade dos fiéis, que constituem um só corpo em Cristo (cf. 1 Cor 10, 17) ».(36)
Existe um influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da Igreja. Os evangelistas especificam que foram os Doze, os Apóstolos, que estiveram reunidos com Jesus na Última Ceia (cf. Mt 26, 20; Mc 14, 17; Lc 22, 14). Trata-se de um detalhe de notável importância, porque os Apóstolos « foram a semente do novo Israel e ao mesmo tempo a origem da sagrada Hierarquia ».(37) Ao oferecer-lhes o seu corpo e sangue como alimento, Cristo envolvia-os misteriosamente no sacrifício que iria consumar-se dentro de poucas horas no Calvário. De modo análogo à aliança do Sinai, que foi selada com um sacrifício e a aspersão do sangue,(38) os gestos e as palavras de Jesus na Última Ceia lançavam os alicerces da nova comunidade messiânica, povo da nova aliança.
No Cenáculo, os Apóstolos, tendo aceite o convite de Jesus: « Tomai, comei [...]. Bebei dele todos » (Mt 26, 26.27), entraram pela primeira vez em comunhão sacramental com Ele. Desde então e até ao fim dos séculos, a Igreja edifica-se através da comunhão sacramental com o Filho de Deus imolado por nós: « Fazei isto em minha memória [...]. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em minha memória » (1 Cor 11, 24-25; cf. Lc 22, 19).
22. A incorporação em Cristo, realizada pelo Baptismo, renova-se e consolida-se continuamente através da participação no sacrifício eucarístico, sobretudo na sua forma plena que é a comunhão sacramental. Podemos dizer não só que cada um de nós recebe Cristo, mas também que Cristo recebe cada um de nós. Ele intensifica a sua amizade connosco: « Chamei-vos amigos » (Jo 15, 14). Mais ainda, nós vivemos por Ele: « O que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). Na comunhão eucarística, realiza-se de modo sublime a inabitação mútua de Cristo e do discípulo: « Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós » (Jo 15, 4).
Unindo-se a Cristo, o povo da nova aliança não se fecha em si mesmo; pelo contrário, torna-se « sacramento » para a humanidade,(39) sinal e instrumento da salvação realizada por Cristo, luz do mundo e sal da terra (cf. Mt 5, 13-16) para a redenção de todos.(40) A missão da Igreja está em continuidade com a de Cristo: « Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós » (Jo 20, 21). Por isso, a Igreja tira a força espiritual de que necessita para levar a cabo a sua missão da perpetuação do sacrifício da cruz na Eucaristia e da comunhão do corpo e sangue de Cristo. Deste modo, a Eucaristia apresenta-se como fonte e simultaneamente vértice de toda a evangelização, porque o seu fim é a comunhão dos homens com Cristo e, n'Ele, com o Pai e com o Espírito Santo.(41)
23. Pela comunhão eucarística, a Igreja é consolidada igualmente na sua unidade de corpo de Cristo. A este efeito unificador que tem a participação no banquete eucarístico, alude S. Paulo quando diz aos coríntios: « O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão » (1 Cor 10, 16-17). Concreto e profundo, S. João Crisóstomo comenta: « Com efeito, o que é o pão? É o corpo de Cristo. E em que se transformam aqueles que o recebem?No corpo de Cristo; não muitos corpos, mas um só corpo. De facto, tal como o pão é um só apesar de constituído por muitos grãos, e estes, embora não se vejam, todavia estão no pão, de tal modo que a sua diferença desapareceu devido à sua perfeita e recíproca fusão, assim também nós estamos unidos reciprocamente entre nós e, todos juntos, com Cristo ».(42) A argumentação é linear: a nossa união com Cristo, que é dom e graça para cada um, faz com que, n'Ele, sejamos parte também do seu corpo total que é a Igreja. A Eucaristia consolida a incorporação em Cristo operada no Baptismo pelo dom do Espírito (cf. 1 Cor 12, 13.27).
A acção conjunta e indivisível do Filho e do Espírito Santo, que está na origem da Igreja, tanto da sua constituição como da sua continuidade, opera na Eucaristia. Bem ciente disto, o autor da Liturgia de S. Tiago, na epiclese da anáfora, pede a Deus Pai que envie o Espírito Santo sobre os fiéis e sobre os dons, para que o corpo e o sangue de Cristo « sirvam a todos os que deles participarem [...] de santificação para as almas e os corpos ».(43) A Igreja é fortalecida pelo Paráclito divino através da santificação eucarística dos fiéis.
24. O dom de Cristo e do seu Espírito, que recebemos na comunhão eucarística, realiza plena e sobreabundantemente os anseios de unidade fraterna que vivem no coração humano e ao mesmo tempo eleva esta experiência de fraternidade, que é a participação comum na mesma mesa eucarística, a níveis que estão muito acima da mera experiência dum banquete humano. Pela comunhão do corpo de Cristo, a Igreja consegue cada vez mais profundamente ser, « em Cristo, como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ».(44)
Aos germes de desagregação tão enraizados na humanidade por causa do pecado, como demonstra a experiência quotidiana, contrapõe-se a força geradora de unidade do corpo de Cristo. A Eucaristia, construindo a Igreja, cria por isso mesmo comunidade entre os homens.
25. O culto prestado à Eucaristia fora da Missa é de um valor inestimável na vida da Igreja, e está ligado intimamente com a celebração do sacrifício eucarístico. A presença de Cristo nas hóstias consagradas que se conservam após a Missa – presença essa que perdura enquanto subsistirem as espécies do pão do vinho (45) – resulta da celebração da Eucaristia e destina-se à comunhão, sacramental e espiritual.(46)Compete aos Pastores, inclusive pelo testemunho pessoal, estimular o culto eucarístico, de modo particular as exposições do Santíssimo Sacramento e também as visitas de adoração a Cristo presente sob as espécies eucarísticas(47)
É bom demorar-se com Ele e, inclinado sobre o seu peito como o discípulo predilecto (cf. Jo 13, 25), deixar-se tocar pelo amor infinito do seu coração. Se actualmente o cristianismo se deve caracterizar sobretudo pela « arte da oração »,(48) como não sentir de novo a necessidade de permanecer longamente, em diálogo espiritual, adoração silenciosa, atitude de amor, diante de Cristo presente no Santíssimo Sacramento? Quantas vezes, meus queridos irmãos e irmãs, fiz esta experiência, recebendo dela força, consolação, apoio!
Desta prática, muitas vezes louvada e recomendada pelo Magistério,(49) deram-nos o exemplo numerosos Santos. De modo particular, distinguiu-se nisto S. Afonso Maria de Ligório, que escrevia: « A devoção de adorar Jesus sacramentado é, depois dos sacramentos, a primeira de todas as devoções, a mais agradável a Deus e a mais útil para nós ».(50) A Eucaristia é um tesouro inestimável: não só a sua celebração, mas também o permanecer diante dela fora da Missa permite-nos beber na própria fonte da graça. Uma comunidade cristã que queira contemplar melhor o rosto de Cristo, segundo o espírito que sugeri nas cartas apostólicas Novo millennio ineunte e Rosarium Virginis Mariæ, não pode deixar de desenvolver também este aspecto do culto eucarístico, no qual perduram e se multiplicam os frutos da comunhão do corpo e sangue do Senhor.
CAPÍTULO III - A APOSTOLICIDADE DA EUCARISTIA E DA IGREJA
26. Se a Eucaristia edifica a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia, como antes recordei, consequentemente há entre ambas uma conexão estreitíssima, podendo nós aplicar ao mistério eucarístico os atributos que dizemos da Igreja quando professamos, no Símbolo Niceno-Constantinopolitano, que é « una, santa, católica e apostólica ». Também a Eucaristia é una e católica; e é santa, antes, é o Santíssimo Sacramento. Mas é principalmente sobre a sua apostolicidade que agora queremos concentrar a nossa atenção.
27. Quando o Catecismo da Igreja Católica explica em que sentido a Igreja se diz apostólica, ou seja, fundada sobre os Apóstolos, individua na expressão um tríplice sentido. O primeiro significa que a Igreja « foi e continua a ser construída sobre o “alicerce dos Apóstolos” (Ef 2, 20), testemunhas escolhidas e enviadas em missão pelo próprio Cristo ».(51) Ora, no caso da Eucaristia, os Apóstolos também estão na sua base: naturalmente o sacramento remonta ao próprio Cristo, mas foi confiado por Jesus aos Apóstolos e depois transmitido por eles e seus sucessores até nós. É em continuidade com a acção dos Apóstolos e obedecendo ao mandato do Senhor que a Igreja celebra a Eucaristia ao longo dos séculos.
O segundo sentido que o Catecismo indica para a apostolicidade da Igreja é este: ela « guarda e transmite, com a ajuda do Espírito Santo que nela habita, a doutrina, o bom depósito, as sãs palavras recebidas dos Apóstolos ».(52) Também neste sentido a Eucaristia é apostólica, porque é celebrada de acordo com a fé dos Apóstolos. Diversas vezes na história bimilenária do povo da nova aliança, o magistério eclesial especificou a doutrina eucarística, nomeadamente quanto à sua exacta terminologia, precisamente para salvaguardar a fé apostólica neste excelso mistério. Esta fé permanece imutável, e é essencial para a Igreja que assim continue.
28. Por último, a Igreja é apostólica enquanto « continua a ser ensinada, santificada e dirigida pelos Apóstolos até ao regresso de Cristo, graças àqueles que lhes sucedem no ofício pastoral: o Colégio dos Bispos, assistido pelos presbíteros, em união com o Sucessor de Pedro, Pastor supremo da Igreja ».(53) Para suceder aos Apóstolos na missão pastoral é necessário o sacramento da Ordem, graças a uma série ininterrupta, desde as origens, de Ordenações episcopais válidas.(54) Esta sucessão é essencial, para que exista a Igreja em sentido próprio e pleno.
A Eucaristia apresenta também este sentido da apostolicidade. De facto, como ensina o Concílio Vaticano II, « os fiéis por sua parte concorrem para a oblação da Eucaristia, em virtude do seu sacerdócio real »,(55)mas é o sacerdote ministerial que « realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo ».(56)Por isso se prescreve no Missal Romano que seja unicamente o sacerdote a recitar a oração eucarística, enquanto o povo se lhe associa com fé e em silêncio.(57)
29. A afirmação, várias vezes feita no Concílio Vaticano II, de que « o sacerdote ministerial realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo (in persona Christi) »,(58) estava já bem radicada no magistério pontifício.(59) Como já tive oportunidade de esclarecer noutras ocasiões, a expressão in persona Christi « quer dizer algo mais do que “em nome”, ou então “nas vezes” de Cristo. In persona, isto é, na específica e sacramental identificação com o Sumo e Eterno Sacerdote, que é o Autor e o principal Sujeito deste seu próprio sacrifício, no que verdadeiramente não pode ser substituído por ninguém ».(60) Na economia de salvação escolhida por Cristo, o ministério dos sacerdotes que receberam o sacramento da Ordem manifesta que a Eucaristia, por eles celebrada, é um dom que supera radicalmente o poder da assembleia e, em todo o caso, é insubstituível para ligar validamente a consagração eucarística ao sacrifício da cruz e à Última Ceia.
A assembleia que se reúne para a celebração da Eucaristia necessita absolutamente de um sacerdote ordenado que a ela presida, para poder ser verdadeiramente uma assembleia eucarística. Por outro lado, a comunidade não é capaz de dotar-se por si só do ministro ordenado. Este é um dom que ela recebe através da sucessão episcopal que remonta aos Apóstolos. É o Bispo que constitui, pelo sacramento da Ordem, um novo presbítero, conferindo-lhe o poder de consagrar a Eucaristia. Por isso, « o mistério eucarístico não pode ser celebrado em nenhuma comunidade a não ser por um sacerdote ordenado, como ensinou expressamente o Concílio Ecuménico Lateranense IV ».(61)
30. Tanto esta doutrina da Igreja Católica sobre o ministério sacerdotal na sua relação com a Eucaristia, como a referente ao sacrifício eucarístico foram, nos últimos decénios, objecto de profícuo diálogo no âmbito da acção ecuménica. Devemos dar graças à Santíssima Trindade pelos significativos progressos e aproximações que se verificaram e que nos ajudam a esperar um futuro de plena partilha da fé. Permanece plenamente válida ainda a observação feita pelo Concílio Vaticano II acerca das Comunidades eclesiais surgidas no ocidente depois do século XVI e separadas da Igreja Católica: « Embora falte às Comunidades eclesiais de nós separadas a unidade plena connosco proveniente do Baptismo, e embora creamos que elas não tenham conservado a genuína e íntegra substância do mistério eucarístico, sobretudo por causa da falta do sacramento da Ordem, contudo, quando na santa Ceia comemoram a morte e a ressurreição do Senhor, elas confessam ser significada a vida na comunhão de Cristo e esperam o seu glorioso advento ».(62)
Por isso, os fiéis católicos, embora respeitando as convicções religiosas destes seus irmãos separados, devem abster-se de participar na comunhão distribuída nas suas celebrações, para não dar o seu aval a ambiguidades sobre a natureza da Eucaristia e, consequentemente, faltar à sua obrigação de testemunhar com clareza a verdade. Isso acabaria por atrasar o caminho para a plena unidade visível. De igual modo, não se pode pensar em substituir a Missa do domingo por celebrações ecuménicas da Palavra, encontros de oração comum com cristãos pertencentes às referidas Comunidades eclesiais, ou pela participação no seu serviço litúrgico. Tais celebrações e encontros, em si mesmos louváveis quando em circunstâncias oportunas, preparam para a almejada comunhão plena incluindo a comunhão eucarística, mas não podem substituí-la.
Além disso, o facto de o poder de consagrar a Eucaristia ter sido confiado apenas aos Bispos e aos presbíteros não constitui qualquer rebaixamento para o resto do povo de Deus, já que na comunhão do único corpo de Cristo, que é a Igreja, este dom redunda em benefício de todos.
31. Se a Eucaristia é centro e vértice da vida da Igreja, é-o igualmente do ministério sacerdotal. Por isso, com espírito repleto de gratidão a Jesus Cristo nosso Senhor, volto a afirmar que a Eucaristia « é a principal e central razão de ser do sacramento do Sacerdócio, que nasceu efectivamente no momento da instituição da Eucaristia e juntamente com ela ».(63)
Muitas são as actividades pastorais do presbítero. Se depois se pensa às condições sócio-culturais do mundo actual, é fácil ver como grava sobre ele o perigo da dispersão pelo grande número e diversidade de tarefas. O Concílio Vaticano II individuou como vínculo, que dá unidade à sua vida e às suas actividades, a caridade pastoral. Esta – acrescenta o Concílio – « flui sobretudo do sacrifício eucarístico, que permanece o centro e a raiz de toda a vida do presbítero ».(64) Compreende-se, assim, quão importante seja para a sua vida espiritual, e depois para o bem da Igreja e do mundo, que o sacerdote ponha em prática a recomendação conciliar de celebrar diariamente a Eucaristia, « porque, mesmo que não possa ter a presença dos fiéis, é acto de Cristo e da Igreja ».(65) Deste modo, ele será capaz de vencer toda a dispersão ao longo do dia, encontrando no sacrifício eucarístico, verdadeiro centro da sua vida e do seu ministério, a energia espiritual necessária para enfrentar as diversas tarefas pastorais. Assim, os seus dias tornar-se-ão verdadeiramente eucarísticos.
Da centralidade da Eucaristia na vida e no ministério dos sacerdotes deriva também a sua centralidade na pastoral em prol das vocações sacerdotais. Primeiro, porque a oração pelas vocações encontra nela o lugar de maior união com a oração de Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote; e, depois, porque a solícita atenção dos sacerdotes pelo ministério eucarístico, juntamente com a promoção da participação consciente, activa e frutuosa dos fiéis na Eucaristia, constituem exemplo eficaz e estímulo para uma resposta generosa dos jovens ao apelo de Deus. Com frequência, Ele serve-Se do exemplo de zelosa caridade pastoral dum sacerdote para semear e fazer crescer no coração do jovem o germe da vocação ao sacerdócio.
32. Tudo isto comprova como é triste e anómala a situação duma comunidade cristã que, embora se apresente quanto a número e variedade de fiéis como uma paróquia, todavia não tem um sacerdote que a guie. De facto, a paróquia é uma comunidade de baptizados que exprime e afirma a sua identidade, sobretudo através da celebração do sacrifício eucarístico; mas isto requer a presença dum presbítero, o único a quem compete oferecer a Eucaristia in persona Christi. Quando uma comunidade está privada do sacerdote, procura-se justamente remediar para que de algum modo continuem as celebrações dominicais; e os religiosos ou os leigos que guiam os seus irmãos e irmãs na oração exercem de modo louvável o sacerdócio comum de todos os fiéis, baseado na graça do Baptismo. Mas tais soluções devem ser consideradas provisórias, enquanto a comunidade espera um sacerdote.
A deficiência sacramental destas celebrações deve, antes de mais nada, levar toda a comunidade a rezar mais fervorosamente ao Senhor para que mande trabalhadores para a sua messe (cf. Mt 9, 38); e estimulá-la a pôr em prática todos os demais elementos constitutivos duma adequada pastoral vocacional, sem ceder à tentação de procurar soluções que passem pela atenuação das qualidades morais e formativas requeridas nos candidatos ao sacerdócio.
33. Quando, devido à escassez de sacerdotes, foi confiada a fiéis não ordenados uma participação no cuidado pastoral duma paróquia, eles tenham presente que, como ensina o Concílio Vaticano II, « nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração eucarística ».(66) Portanto, hão-de pôr todo o cuidado em manter viva na comunidade uma verdadeira « fome » da Eucaristia, que leve a não perder qualquer ocasião de ter a celebração da Missa, valendo-se nomeadamente da presença eventual de um sacerdote não impedido pelo direito da Igreja de celebrá-la.
CAPÍTULO IV - A EUCARISTIA E A COMUNHÃO ECLESIAL
34. Em 1985, a Assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos reconheceu a « eclesiologia da comunhão » como a ideia central e fundamental dos documentos do Concílio Vaticano II.(67) Enquanto durar a sua peregrinação aqui na terra, a Igreja é chamada a conservar e promover tanto a comunhão com a Trindade divina como a comunhão entre os fiéis. Para isso, possui a Palavra e os sacramentos, sobretudo a Eucaristia; desta « vive e cresce »,(68) e ao mesmo tempo exprime-se nela. Não foi sem razão que o termo comunhão se tornou um dos nomes específicos deste sacramento excelso.
Daí que a Eucaristia se apresente como o sacramento culminante para levar à perfeição a comunhão com Deus Pai através da identificação com o seu Filho Unigénito por obra do Espírito Santo. Com grande intuição de fé, um insigne escritor de tradição bizantina assim exprimia esta verdade: na Eucaristia, « mais do que em qualquer outro sacramento, o mistério [da comunhão] é tão perfeito que conduz ao apogeu de todos os bens: nela está o termo último de todo o desejo humano, porque nela alcançamos Deus e Deus une-Se connosco pela união mais perfeita ».(69) Por isso mesmo, é conveniente cultivar continuamente na alma o desejo do sacramento da Eucaristia. Daqui nasceu a prática da « comunhão espiritual » em uso na Igreja há séculos, recomendada por santos mestres de vida espiritual. Escrevia S. Teresa de Jesus: « Quando não comungais e não participais na Missa, comungai espiritualmente, porque é muito vantajoso. [...] Deste modo, imprime-se em vós muito do amor de nosso Senhor ».(70)
35. Entretanto a celebração da Eucaristia não pode ser o ponto de partida da comunhão, cuja existência pressupõe, visando a sua consolidação e perfeição. O sacramento exprime esse vínculo de comunhão quer na dimensão invisível que em Cristo, pela acção do Espírito Santo, nos une ao Pai e entre nós, quer na dimensão visível que implica a comunhão com a doutrina dos Apóstolos, os sacramentos e a ordem hierárquica. A relação íntima entre os elementos invisíveis e os elementos visíveis da comunhão eclesial é constitutiva da Igreja enquanto sacramento de salvação.(71) Somente neste contexto, tem lugar a celebração legítima da Eucaristia e a autêntica participação nela. Por isso, uma exigência intrínseca da Eucaristia é que seja celebrada na comunhão e, concretamente, na integridade dos seus vínculos.
36. A comunhão invisível, embora por natureza esteja sempre em crescimento, supõe a vida da graça, pela qual nos tornamos « participantes da natureza divina » (cf. 2 Ped 1, 4), e a prática das virtudes da fé, da esperança e da caridade. De facto, só deste modo se pode ter verdadeira comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Não basta a fé; mas é preciso perseverar na graça santificante e na caridade, permanecendo na Igreja com o « corpo » e o « coração »; (72) ou seja, usando palavras de S. Paulo, é necessária « a fé que actua pela caridade » (Gal 5, 6).
A integridade dos vínculos invisíveis é um dever moral concreto do cristão que queira participar plenamente na Eucaristia, comungando o corpo e o sangue de Cristo. Um tal dever, recorda-o o referido Apóstolo com a advertência seguinte: « Examine-se cada qual a si mesmo e, então, coma desse pão e beba desse cálice » (1 Cor 11, 28). Com a sua grande eloquência, S. João Crisóstomo assim exortava os fiéis: « Também eu levanto a voz e vos suplico, peço e esconjuro para não vos abeirardes desta Mesa sagrada com uma consciência manchada e corrompida. De facto, uma tal aproximação nunca poderá chamar-se comunhão, ainda que toquemos mil vezes o corpo do Senhor, mas condenação, tormento e redobrados castigos ».(73)
Nesta linha, o Catecismo da Igreja Católica estabelece justamente: « Aquele que tiver consciência dum pecado grave, deve receber o sacramento da Reconciliação antes de se aproximar da Comunhão ».(74) Desejo, por conseguinte, reafirmar que vigora ainda e sempre há-de vigorar na Igreja a norma do Concílio de Trento que concretiza a severa advertência do apóstolo Paulo, ao afirmar que, para uma digna recepção da Eucaristia, « se deve fazer antes a confissão dos pecados, quando alguém está consciente de pecado mortal ».(75)
37. A Eucaristia e a Penitência são dois sacramentos intimamente unidos. Se a Eucaristia torna presente o sacrifício redentor da cruz, perpetuando-o sacramentalmente, isso significa que deriva dela uma contínua exigência de conversão, de resposta pessoal à exortação que S. Paulo dirigia aos cristãos de Corinto: « Suplicamo-vos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus » (2 Cor 5, 20). Se, para além disso, o cristão tem na consciência o peso dum pecado grave, então o itinerário da penitência através do sacramento da Reconciliação torna-se caminho obrigatório para se abeirar e participar plenamente do sacrifício eucarístico.
Tratando-se de uma avaliação de consciência, obviamente o juízo sobre o estado de graça compete apenas ao interessado; mas, em casos de comportamento externo de forma grave, ostensiva e duradoura contrário à norma moral, a Igreja, na sua solicitude pastoral pela boa ordem comunitária e pelo respeito do sacramento, não pode deixar de sentir-se chamada em causa. A esta situação de manifesta infracção moral se refere a norma do Código de Direito Canónico relativa à não admissão à comunhão eucarística de quantos « obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto ».(76)
38. A comunhão eclesial, como atrás recordei, é também visível, manifestando-se nos vínculos elencados pelo próprio Concílio Vaticano II quando ensina: « São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, e que, pelos laços da profissão da fé, dos sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, se unem, na sua estrutura visível, com Cristo, que a governa por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos ».(77)
A Eucaristia, como suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja, exige para ser celebrada um contexto de integridade dos laços, inclusive externos, de comunhão. De modo especial, sendo ela « como que a perfeição da vida espiritual e o fim para que tendem todos os sacramentos »,(78) requer que sejam reais os laços de comunhão nos sacramentos, particularmente no Baptismo e na Ordem sacerdotal. Não é possível dar a comunhão a uma pessoa que não esteja baptizada ou que rejeite a verdade integral de fé sobre o mistério eucarístico. Cristo é a verdade, e dá testemunho da verdade (cf. Jo 14, 6; 18, 37); o sacramento do seu corpo e sangue não consente ficções.
39. Além disso, em virtude do carácter próprio da comunhão eclesial e da relação que o sacramento da Eucaristia tem com a mesma, convém recordar que « o sacrifício eucarístico, embora se celebre sempre numa comunidade particular, nunca é uma celebração apenas dessa comunidade: de facto esta, ao receber a presença eucarística do Senhor, recebe o dom integral da salvação e manifesta-se assim, apesar da sua configuração particular que continua visível, como imagem e verdadeira presença da Igreja una, santa, católica e apostólica ».(79) Daí que uma comunidade verdadeiramente eucarística não possa fechar-se em si mesma, como se fosse auto-suficiente, mas deve permanecer em sintonia com todas as outras comunidades católicas.
A comunhão eclesial da assembleia eucarística é comunhão com o próprio Bispo e com o Romano Pontífice. Com efeito, o Bispo é o princípio visível e o fundamento da unidade na sua Igreja particular.(80) Seria, por isso, uma grande incongruência celebrar o sacramento por excelência da unidade da Igreja sem uma verdadeira comunhão com o Bispo. Escrevia S. Inácio de Antioquia: « Seja tida como legítima somente aquela Eucaristia que é presidida pelo Bispo ou por quem ele encarregou ».(81) De igual modo, visto que « o Romano Pontífice, como sucessor de Pedro, é perpétuo e visível fundamento da unidade não só dos Bispos mas também da multidão dos fiéis »,(82) a comunhão com ele é uma exigência intrínseca da celebração do sacrifício eucarístico. Esta grande verdade é expressa de vários modos pela Liturgia: « Cada celebração eucarística é feita em união não só com o próprio Bispo mas também com o Papa, com a Ordem episcopal, com todo o clero e com todo o povo. Toda a celebração válida da Eucaristia exprime esta comunhão universal com Pedro e com toda a Igreja ou, como no caso das Igrejas cristãs separadas de Roma, assim a reclama objectivamente ».(83)
40. A Eucaristia cria comunhão e educa para a comunhão. Ao escrever aos fiéis de Corinto, S. Paulo fazia-lhes ver como as suas divisões, que se davam nas assembleias eucarísticas, estavam em contraste com o que celebravam – a Ceia do Senhor. E convidava-os, por isso, a reflectirem sobre a verdadeira realidade da Eucaristia, para fazê-los voltar ao espírito de comunhão fraterna (cf. 1 Cor 11, 17-34). Encontramos um válido eco desta exigência em S. Agostinho quando, depois de recordar a afirmação do Apóstolo « vós sois corpo de Cristo e seus membros » (1 Cor 12, 27), observava: « Se sois o corpo de Cristo e seus membros, é o vosso sacramento que está colocado sobre a mesa do Senhor; é o vosso sacramento que recebeis ».(84) E daí concluía: « Cristo Senhor [...] consagrou na sua mesa o sacramento da nossa paz e unidade. Quem recebe o sacramento da unidade, sem conservar o vínculo da paz, não recebe um sacramento para seu benefício, mas antes uma condenação ».(85)
41. Esta eficácia peculiar que tem a Eucaristia para promover a comunhão é um dos motivos da importância da Missa dominical. Já me detive sobre esta e outras razões que a tornam fundamental para a vida da Igreja e dos fiéis, na carta apostólica sobre a santificação do domingo Dies Domini,(86) recordando, para além do mais, que participar na Missa é uma obrigação dos fiéis, a não ser que tenham um impedimento grave, pelo que aos Pastores impõe-se o correlativo dever de oferecerem a todos a possibilidade efectiva de cumprirem o preceito.(87) Mais tarde, na carta apostólica Novo millennio ineunte, ao traçar o caminho pastoral da Igreja no início do terceiro milénio, quis assinalar de modo particular a Eucaristia dominical, sublinhando a sua eficácia para criar comunhão: « É o lugar privilegiado, onde a comunhão é constantemente anunciada e fomentada. Precisamente através da participação eucarística, o dia do Senhor torna-se também o dia da Igreja, a qual poderá assim desempenhar de modo eficaz a sua missão de sacramento de unidade ».(88)
42. A defesa e promoção da comunhão eclesial é tarefa de todo o fiel, que encontra na Eucaristia, enquanto sacramento da unidade da Igreja, um campo de especial solicitude. De forma mais concreta e com particular responsabilidade, a referida tarefa recai sobre os Pastores da Igreja, segundo o grau e o ministério eclesiástico próprio de cada um. Por isso, a Igreja estabeleceu normas que visam promover o acesso frequente e frutuoso dos fiéis à mesa eucarística e simultaneamente determinar as condições objectivas nas quais se deve abster de administrar a comunhão. O cuidado com que se favorece a sua fiel observância torna-se uma expressão efectiva de amor à Eucaristia e à Igreja.
43. Quando se considera a Eucaristia como sacramento da comunhão eclesial, há um tema que, pela sua importância, não pode ser transcurado: refiro-me à sua relação com o empenho ecuménico. Todos devemos dar graças à Santíssima Trindade porque, nestas últimas décadas em todo o mundo, muitos fiéis foram contagiados pelo desejo ardente da unidade entre todos os cristãos. O Concílio Vaticano II, ao princípio do seu decreto sobre o ecumenismo, considera isto como um dom especial de Deus.(89) Foi uma graça eficaz que fez caminhar pela senda ecuménica tanto a nós, filhos da Igreja Católica, como aos nossos irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais.
A aspiração por chegar à meta da unidade impele-nos a voltar o olhar para a Eucaristia, que é o sacramento supremo da unidade do povo de Deus, a sua condigna expressão e fonte insuperável.(90) Na celebração do sacrifício eucarístico, a Igreja eleva a sua prece a Deus, Pai de misericórdia, para que conceda aos seus filhos a plenitude do Espírito Santo de modo que se tornem em Cristo um só corpo e um só espírito.(91) Quando apresenta esta súplica ao Pai das luzes, do Qual provém toda a boa dádiva e todo o dom perfeito (cf. Tg 1, 17), a Igreja acredita na eficácia da mesma, porque ora em união com Cristo, Cabeça e Esposo, o Qual assume a súplica da Esposa unindo-a à do seu sacrifício redentor.
44. Precisamente porque a unidade da Igreja, que a Eucaristia realiza por meio do sacrifício e da comunhão do corpo e sangue do Senhor, comporta a exigência imprescindível duma completa comunhão nos laços da profissão de fé, dos sacramentos e do governo eclesiástico, não é possível concelebrar a liturgia eucarística enquanto não for restabelecida a integridade de tais laços. A referida concelebração não seria um meio válido, podendo mesmo revelar-se um obstáculo, para se alcançar a plena comunhão, atenuando o sentido da distância da meta e introduzindo ou dando aval a ambiguidades sobre algumas verdades da fé. O caminho para a plena união só pode ser construído na verdade. Neste ponto, a interdição na lei da Igreja não deixa espaço a incertezas,(92) atendo-se à norma moral proclamada pelo Concílio Vaticano II.(93)
No entanto quero reafirmar as palavras que ajuntei, na carta encíclica Ut unum sint, depois de reconhecer a impossibilidade da partilha eucarística: « E todavia nós temos o desejo ardente de celebrar juntos a única Eucaristia do Senhor, e este desejo torna-se já um louvor comum, uma mesma imploração. Juntos dirigimo-nos ao Pai e fazemo-lo cada vez mais com um só coração ».(94)
45. Se não é legítima em caso algum a concelebração quando falta a plena comunhão, o mesmo não acontece relativamente à administração da Eucaristia, em circunstâncias especiais, a indivíduos pertencentes a Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. De facto, neste caso tem-se como objectivo prover a uma grave necessidade espiritual em ordem à salvação eterna dos fiéis, e não realizar uma intercomunhão, o que é impossível enquanto não forem plenamente reatados os laços visíveis da comunhão eclesial.
Nesta direcção se moveu o Concílio Vaticano II ao fixar como comportar-se com os Orientais que de boa fé se acham separados da Igreja Católica, quando espontaneamente pedem para receber a Eucaristia do ministro católico e estão bem preparados.(95) Tal modo de proceder seria depois ratificado por ambos os Códigos canónicos, nos quais é contemplado também, com os devidos ajustamentos, o caso dos outros cristãos não orientais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica.(96)
46. Na encíclica Ut unum sint, manifestei a minha complacência por esta norma que consente prover à salvação das almas, com o devido discernimento: « É motivo de alegria lembrar que os ministros católicos podem, em determinados casos particulares, administrar os sacramentos da Eucaristia, da Penitência e da Unção dos Enfermos a outros cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica, mas que desejam ardentemente recebê-los, pedem-nos livremente e manifestam a fé que a Igreja Católica professa nestes sacramentos. Reciprocamente, em determinados casos e por circunstâncias particulares, os católicos também podem recorrer, para os mesmos sacramentos, aos ministros daquelas Igrejas onde eles são válidos »(97)
É preciso reparar bem nestas condições que são imprescindíveis, mesmo tratando-se de determinados casos particulares, porque a rejeição duma ou mais verdades de fé relativas a estes sacramentos, contando-se entre elas a necessidade do sacerdócio ministerial para serem válidos, deixa o requerente impreparado para uma legítima recepção dos mesmos. E, vice-versa, também um fiel católico não poderá receber a comunhão numa comunidade onde falte o sacramento da Ordem.(98)
A fiel observância do conjunto das normas estabelecidas nesta matéria (99) é prova e simultaneamente garantia de amor por Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, pelos irmãos de outra confissão cristã aos quais é devido o testemunho da verdade, e ainda pela própria causa da promoção da unidade.
CAPÍTULO V - O DECORO DA CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
47. Quando alguém lê o relato da instituição da Eucaristia nos Evangelhos Sinópticos, fica admirado ao ver a simplicidade e simultaneamente a dignidade com que Jesus, na noite da Última Ceia, institui este grande sacramento. Há um episódio que, de certo modo, lhe serve de prelúdio: é a unção de Betânia. Uma mulher, que João identifica como sendo Maria, irmã de Lázaro, derrama sobre a cabeça de Jesus um vaso de perfume precioso, suscitando nos discípulos – particularmente em Judas (Mt 26, 8; Mc 14, 4; Jo 12, 4) – uma reacção de protesto contra tal gesto que, em face das necessidades dos pobres, constituía um « desperdício » intolerável. Mas Jesus faz uma avaliação muito diferente: sem nada tirar ao dever da caridade para com os necessitados, aos quais sempre se hão-de dedicar os discípulos – « Pobres, sempre os tereis convosco » (Jo 12, 8; cf. Mt 26, 11; Mc 14, 7) –, Ele pensa no momento já próximo da sua morte e sepultura, considerando a unção que Lhe foi feita como uma antecipação daquelas honras de que continuará a ser digno o seu corpo mesmo depois da morte, porque indissoluvelmente ligado ao mistério da sua pessoa.
Nos Evangelhos Sinópticos, a narração continua com o encargo dado por Jesus aos discípulos para fazerem uma cuidadosa preparação da « grande sala », necessária para comer a ceia pascal (cf. Mc 14, 15; Lc 22, 12), e com a descrição da instituição da Eucaristia. Deixando entrever, pelo menos em parte, o desenrolar dos ritos hebraicos da ceia pascal até ao canto do « Hallel » (cf. Mt 26, 30; Mc 14, 26), o relato, de maneira tão concisa como solene, embora com variantes nas diversas tradições, refere as palavras pronunciadas por Cristo sobre o pão e sobre o vinho, assumidos por Ele como expressões concretas do seu corpo entregue e do seu sangue derramado. Todos estes particulares são recordados pelos evangelistas à luz duma prática, consolidada já na Igreja primitiva, da « fracção do pão ». O certo é que, desde o tempo histórico de Jesus, no acontecimento de Quinta-feira Santa são visíveis os traços duma « sensibilidade » litúrgica, modulada sobre a tradição do Antigo Testamento e pronta a remodular-se na celebração cristã em sintonia com o novo conteúdo da Páscoa.
48. Tal como a mulher da unção de Betânia, a Igreja não temeu « desperdiçar », investindo o melhor dos seus recursos para exprimir o seu enlevo e adoração diante do dom incomensurável da Eucaristia. À semelhança dos primeiros discípulos encarregados de preparar a « grande sala », ela sentiu-se impelida, ao longo dos séculos e no alternar-se das culturas, a celebrar a Eucaristia num ambiente digno de tão grande mistério. Foi sob o impulso das palavras e gestos de Jesus, desenvolvendo a herança ritual do judaísmo, que nasceu a liturgia cristã. Porventura haverá algo que seja capaz de exprimir de forma devida o acolhimento do dom que o Esposo divino continuamente faz de Si mesmo à Igreja-Esposa, colocando ao alcance das sucessivas gerações de crentes o sacrifício que ofereceu uma vez por todas na cruz e tornando-Se alimento para todos os fiéis? Se a ideia do « banquete » inspira familiaridade, a Igreja nunca cedeu à tentação de banalizar esta « intimidade » com o seu Esposo, recordando-se que Ele é também o seu Senhor e que, embora « banquete », permanece sempre um banquete sacrificial, assinalado com o sangue derramado no Gólgota. O Banquete eucarístico é verdadeiramente banquete « sagrado », onde, na simplicidade dos sinais, se esconde o abismo da santidade de Deus: O Sacrum convivium, in quo Christus sumitur! - « Ó Sagrado Banquete, em que se recebe Cristo! » O pão que é repartido nos nossos altares, oferecido à nossa condição de viandantes pelas estradas do mundo, é « panis angelorum », pão dos anjos, do qual só é possível abeirar-se com a humildade do centurião do Evangelho: « Senhor, eu não sou digno que entres debaixo do meu tecto » (Mt 8, 8; Lc 6, 6).
49. Movida por este elevado sentido do mistério, compreende-se como a fé da Igreja no mistério eucarístico se tenha exprimido ao longo da história não só através da exigência duma atitude interior de devoção, mas também mediante uma série de expressões exteriores, tendentes a evocar e sublinhar a grandeza do acontecimento celebrado. Daqui nasce o percurso que levou progressivamente a delinear um estatuto especial de regulamentação da liturgia eucarística, no respeito pelas várias tradições eclesiais legitimamente constituídas. Sobre a mesma base, se desenvolveu um rico património de arte. Deixando-se orientar pelo mistério cristão, a arquitectura, a escultura, a pintura, a música encontraram na Eucaristia, directa ou indirectamente, um motivo de grande inspiração.
Tal é, por exemplo, o caso da arquitectura que viu a passagem, logo que o contexto histórico o permitiu, da sede inicial da Eucaristia colocada na « domus » das famílias cristãs às solenes basílicas dos primeiros séculos, às imponentes catedrais da Idade Média, até às igrejas, grandes ou pequenas, que pouco a pouco foram constelando as terras onde o cristianismo chegou. Também as formas dos altares e dos sacrários se foram desenvolvendo no interior dos espaços litúrgicos, seguindo não só os motivos da imaginação criadora, mas também os ditames duma compreensão específica do Mistério. O mesmo se pode dizer da música sacra; basta pensar às inspiradas melodias gregorianas, aos numerosos e, frequentemente, grandes autores que se afirmaram com os textos litúrgicos da Santa Missa. E não sobressai porventura uma enorme quantidade de produções artísticas, desde realizações de um bom artesanato até verdadeiras obras de arte, no âmbito dos objectos e dos paramentos utilizados na celebração eucarística?
Deste modo, pode-se afirmar que a Eucaristia, ao mesmo tempo que plasmou a Igreja e a espiritualidade, incidiu intensamente sobre a « cultura », especialmente no sector estético.
50. Neste esforço de adoração do mistério, visto na sua perspectiva ritual e estética, empenharam-se, como se fosse uma « competição », os cristãos do Ocidente e do Oriente. Como não dar graças ao Senhor especialmente pelo contributo prestado à arte cristã pelas grandes obras arquitectónicas e pictóricas da tradição greco-bizantina e de toda a área geográfica e cultural eslava? No Oriente, a arte sacra conservou um sentido singularmente intenso do mistério, levando os artistas a conceberem o seu empenho na produção do belo não apenas como expressão do seu génio, mas também como autêntico serviço à fé. Não se contentando apenas da sua perícia técnica, souberam abrir-se com docilidade ao sopro do Espírito de Deus.
Os esplendores das arquitecturas e dos mosaicos no Oriente e no Ocidente cristão são um património universal dos crentes, contendo em si mesmos um voto e – diria – um penhor da desejada plenitude de comunhão na fé e na celebração. Isto supõe e exige, como na famosa pintura da Trindade de Rublëv, uma Igreja profundamente « eucarística », na qual a partilha do mistério de Cristo no pão repartido esteja de certo modo imersa na unidade inefável das três Pessoas divinas, fazendo da própria Igreja um « ícone » da Santíssima Trindade.
Nesta perspectiva duma arte que em todos os seus elementos visa exprimir o sentido da Eucaristia segundo a doutrina da Igreja, é preciso prestar toda a atenção às normas que regulamentam a construção e o adorno dos edifícios sacros. A Igreja sempre deixou largo espaço criativo aos artistas, como a história o demonstra e como eu mesmo sublinhei na Carta aos Artistas; (100) mas, a arte sacra deve caracterizar-se pela sua capacidade de exprimir adequadamente o mistério lido na plenitude de fé da Igreja e segundo as indicações pastorais oportunamente dadas pela competente autoridade. Isto vale tanto para as artes figurativas como para a música sacra.
51. O que aconteceu em terras de antiga cristianização no âmbito da arte sacra e da disciplina litúrgica, está a verificar-se também nos continentes onde o cristianismo é mais jovem. Tal é a orientação assumida pelo Concílio Vaticano II a propósito da exigência duma sã e necessária « inculturação ». Nas minhas numerosas viagens pastorais, pude observar por todo o lado a grande vitalidade de que é capaz a celebração eucarística em contacto com as formas, os estilos e as sensibilidades das diversas culturas. Adaptando-se a condições variáveis de tempo e espaço, a Eucaristia oferece alimento não só aos indivíduos, mas ainda aos próprios povos, e plasma culturas de inspiração cristã.
Mas é necessário que tão importante trabalho de adaptação seja realizado na consciência constante deste mistério inefável, com que cada geração é chamada a encontrar-se. O « tesouro » é demasiado grande e precioso para se correr o risco de o empobrecer ou prejudicar com experimentações ou práticas introduzidas sem uma cuidadosa verificação pelas competentes autoridades eclesiásticas. Além disso, a centralidade do mistério eucarístico requer que tal verificação seja feita em estreita relação com a Santa Sé. Como escrevia na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Asia, « tal colaboração é essencial porque a Liturgia Sagrada exprime e celebra a única fé professada por todos e, sendo herança de toda a Igreja, não pode ser determinada pelas Igreja locais isoladamente da Igreja universal ».(101)
52. De quanto fica dito, compreende-se a grande responsabilidade que têm sobretudo os sacerdotes na celebração eucarística, à qual presidem in persona Christi, assegurando um testemunho e um serviço de comunhão não só à comunidade que participa directamente na celebração, mas também à Igreja universal, sempre mencionada na Eucaristia. Temos a lamentar, infelizmente, que sobretudo a partir dos anos da reforma litúrgica pós-conciliar, por um ambíguo sentido de criatividade e adaptação, não faltaram abusos, que foram motivo de sofrimento para muitos. Uma certa reacção contra o « formalismo » levou alguns, especialmente em determinadas regiões, a considerarem não obrigatórias as « formas » escolhidas pela grande tradição litúrgica da Igreja e do seu magistério e a introduzirem inovações não autorizadas e muitas vezes completamente impróprias.
Por isso, sinto o dever de fazer um veemente apelo para que as normas litúrgicas sejam observadas, com grande fidelidade, na celebração eucarística. Constituem uma expressão concreta da autêntica eclesialidade da Eucaristia; tal é o seu sentido mais profundo. A liturgia nunca é propriedade privada de alguém, nem do celebrante, nem da comunidade onde são celebrados os santos mistérios. O apóstolo Paulo teve de dirigir palavras àsperas à comunidade de Corinto pelas falhas graves na sua celebração eucarística, que tinham dado origem a divisões (skísmata) e à formação de facções ('airéseis) (cf. 1 Cor 11, 17-34). Actualmente também deveria ser redescoberta e valorizada a obediência às normas litúrgicas como reflexo e testemunho da Igreja, una e universal, que se torna presente em cada celebração da Eucaristia. O sacerdote, que celebra fielmente a Missa segundo as normas litúrgicas, e a comunidade, que às mesmas adere, demonstram de modo silencioso mas expressivo o seu amor à Igreja. Precisamente para reforçar este sentido profundo das normas litúrgicas, pedi aos dicastérios competentes da Cúria Romana que preparem, sobre este tema de grande importância, um documento específico, incluindo também referências de carácter jurídico. A ninguém é permitido aviltar este mistério que está confiado às nossas mãos: é demasiado grande para que alguém possa permitir-se de tratá-lo a seu livre arbítrio, não respeitando o seu carácter sagrado nem a sua dimensão universal.
CAPÍTULO VI - NA ESCOLA DE MARIA, MULHER «EUCARÍSTICA»
53. Se quisermos redescobrir em toda a sua riqueza a relação íntima entre a Igreja e a Eucaristia, não podemos esquecer Maria, Mãe e modelo da Igreja. Na carta apostólica Rosarium Virginis Mariæ, depois de indicar a Virgem Santíssima como Mestra na contemplação do rosto de Cristo, inseri também entre os mistérios da luz a instituição da Eucaristia.(102) Com efeito, Maria pode guiar-nos para o Santíssimo Sacramento porque tem uma profunda ligação com ele.
À primeira vista, o Evangelho nada diz a tal respeito. A narração da instituição, na noite de Quinta-feira Santa, não fala de Maria. Mas sabe-se que Ela estava presente no meio dos Apóstolos, quando, « unidos pelo mesmo sentimento, se entregavam assiduamente à oração » (Act 1, 14), na primeira comunidade que se reuniu depois da Ascensão à espera do Pentecostes. E não podia certamente deixar de estar presente, nas celebrações eucarísticas, no meio dos fiéis da primeira geração cristã, que eram assíduos à « fracção do pão » (Act 2, 42).
Para além da sua participação no banquete eucarístico, pode-se delinear a relação de Maria com a Eucaristia indirectamente a partir da sua atitude interior. Maria é mulher « eucarística » na totalidade da sua vida. A Igreja, vendo em Maria o seu modelo, é chamada a imitá-La também na sua relação com este mistério santíssimo.
54. Mysterium fidei! Se a Eucaristia é um mistério de fé que excede tanto a nossa inteligência que nos obriga ao mais puro abandono à palavra de Deus, ninguém melhor do que Maria pode servir-nos de apoio e guia nesta atitude de abandono. Todas as vezes que repetimos o gesto de Cristo na Última Ceia dando cumprimento ao seu mandato: « Fazei isto em memória de Mim », ao mesmo tempo acolhemos o convite que Maria nos faz para obedecermos a seu Filho sem hesitação: « Fazei o que Ele vos disser » (Jo 2, 5). Com a solicitude materna manifestada nas bodas de Caná, Ela parece dizer-nos: « Não hesiteis, confiai na palavra do meu Filho. Se Ele pôde mudar a água em vinho, também é capaz de fazer do pão e do vinho o seu corpo e sangue, entregando aos crentes, neste mistério, o memorial vivo da sua Páscoa e tornando-se assim “pão de vida” ».
55. De certo modo, Maria praticou a sua fé eucarística ainda antes de ser instituída a Eucaristia, quando ofereceu o seu ventre virginal para a encarnação do Verbo de Deus. A Eucaristia, ao mesmo tempo que evoca a paixão e a ressurreição, coloca-se no prolongamento da encarnação. E Maria, na anunciação, concebeu o Filho divino também na realidade física do corpo e do sangue, em certa medida antecipando n'Ela o que se realiza sacramentalmente em cada crente quando recebe, no sinal do pão e do vinho, o corpo e o sangue do Senhor.
Existe, pois, uma profunda analogia entre o fiat pronunciado por Maria, em resposta às palavras do Anjo, e o amen que cada fiel pronuncia quando recebe o corpo do Senhor. A Maria foi-Lhe pedido para acreditar que Aquele que Ela concebia « por obra do Espírito Santo » era o « Filho de Deus » (cf. Lc 1, 30-35). Dando continuidade à fé da Virgem Santa, no mistério eucarístico é-nos pedido para crer que aquele mesmo Jesus, Filho de Deus e Filho de Maria, Se torna presente nos sinais do pão e do vinho com todo o seu ser humano-divino.
« Feliz d'Aquela que acreditou » (Lc 1, 45): Maria antecipou também, no mistério da encarnação, a fé eucarística da Igreja. E, na visitação, quando leva no seu ventre o Verbo encarnado, de certo modo Ela serve de « sacrário » – o primeiro « sacrário » da história –, para o Filho de Deus, que, ainda invisível aos olhos dos homens, Se presta à adoração de Isabel, como que « irradiando » a sua luz através dos olhos e da voz de Maria. E o olhar extasiado de Maria, quando contemplava o rosto de Cristo recém-nascido e O estreitava nos seus braços, não é porventura o modelo inatingível de amor a que se devem inspirar todas as nossas comunhões eucarísticas?
56. Ao longo de toda a sua existência ao lado de Cristo, e não apenas no Calvário, Maria viveu a dimensão sacrificial da Eucaristia. Quando levou o menino Jesus ao templo de Jerusalém, « para O apresentar ao Senhor » (Lc 2, 22), ouviu o velho Simeão anunciar que aquele Menino seria « sinal de contradição » e que uma « espada » havia de trespassar também a alma d'Ela (cf. Lc 2, 34-35). Assim foi vaticinado o drama do Filho crucificado e de algum modo prefigurado o « stabat Mater » aos pés da Cruz. Preparando-Se dia a dia para o Calvário, Maria vive uma espécie de « Eucaristia antecipada », dir-se-ia uma « comunhão espiritual » de desejo e oferta, que terá o seu cumprimento na união com o Filho durante a Paixão, e manifestar-se-á depois, no período pós-pascal, na sua participação na celebração eucarística, presidida pelos Apóstolos, como « memorial » da Paixão.
Impossível imaginar os sentimentos de Maria, ao ouvir dos lábios de Pedro, João, Tiago e restantes apóstolos as palavras da Última Ceia: « Isto é o meu corpo que vai ser entregue por vós » (Lc 22, 19). Aquele corpo, entregue em sacrifício e presente agora nas espécies sacramentais, era o mesmo corpo concebido no seu ventre! Receber a Eucaristia devia significar para Maria quase acolher de novo no seu ventre aquele coração que batera em uníssono com o d'Ela e reviver o que tinha pessoalmente experimentado junto da Cruz.
57. « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19). No « memorial » do Calvário, está presente tudo o que Cristo realizou na sua paixão e morte. Por isso, não pode faltar o que Cristo fez para com sua Mãe em nosso favor. De facto, entrega-Lhe o discípulo predilecto e, nele, entrega cada um de nós: « Eis aí o teu filho ». E de igual modo diz a cada um de nós também: « Eis aí a tua mãe » (cf. Jo 19, 26-27).
Viver o memorial da morte de Cristo na Eucaristia implica também receber continuamente este dom. Significa levar connosco – a exemplo de João – Aquela que sempre de novo nos é dada como Mãe. Significa ao mesmo tempo assumir o compromisso de nos conformarmos com Cristo, entrando na escola da Mãe e aceitando a sua companhia. Maria está presente, com a Igreja e como Mãe da Igreja, em cada uma das celebrações eucarísticas. Se Igreja e Eucaristia são um binómio indivisível, o mesmo é preciso afirmar do binómio Maria e Eucaristia. Por isso mesmo, desde a antiguidade é unânime nas Igrejas do Oriente e do Ocidente a recordação de Maria na celebração eucarística.
58. Na Eucaristia, a Igreja une-se plenamente a Cristo e ao seu sacrifício, com o mesmo espírito de Maria. Tal verdade pode-se aprofundar relendo o Magnificat em perspectiva eucarística. De facto, como o cântico de Maria, também a Eucaristia é primariamente louvor e acção de graças. Quando exclama: « A minha alma glorifica ao Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus meu Salvador », Maria traz no seu ventre Jesus. Louva o Pai « por » Jesus, mas louva-O também « em » Jesus e « com » Jesus. É nisto precisamente que consiste a verdadeira « atitude eucarística ».
Ao mesmo tempo Maria recorda as maravilhas operadas por Deus ao longo da história da salvação, segundo a promessa feita aos nossos pais (cf. Lc 1, 55), anunciando a maravilha mais sublime de todas: a encarnação redentora. Enfim, no Magnificat está presente a tensão escatológica da Eucaristia. Cada vez que o Filho de Deus Se torna presente entre nós na « pobreza » dos sinais sacramentais, pão e vinho, é lançado no mundo o germe daquela história nova, que verá os poderosos « derrubados dos seus tronos » e « exaltados os humildes » (cf. Lc 1, 52). Maria canta aquele « novo céu » e aquela « nova terra », cuja antecipação e em certa medida a « síntese » programática se encontram na Eucaristia. Se o Magnificat exprime a espiritualidade de Maria, nada melhor do que esta espiritualidade nos pode ajudar a viver o mistério eucarístico. Recebemos o dom da Eucaristia, para que a nossa vida, à semelhança da de Maria, seja toda ela um magnificat!
CONCLUSÃO
59. « Ave, verum corpus natum de Maria Virgine ». Celebrei há poucos anos as bodas de ouro do meu sacerdócio. Hoje tenho a graça de oferecer à Igreja esta encíclica sobre a Eucaristia, na Quinta-feira Santa do meu vigésimo quinto ano de ministério petrino. Faço-o com o coração cheio de gratidão. Há mais de meio século todos os dias, a começar daquele 2 de Novembro de 1946 quando celebrei a minha Missa Nova na cripta de S. Leonardo na catedral do Wawel, em Cracóvia, os meus olhos concentram-se sobre a hóstia e sobre o cálice onde o tempo e o espaço de certo modo estão « contraídos » e o drama do Gólgota é representado ao vivo, desvendando a sua misteriosa « contemporaneidade ». Cada dia pôde a minha fé reconhecer no pão e no vinho consagrados aquele Viandante divino que um dia Se pôs a caminho com os dois discípulos de Emaús para abrir-lhes os olhos à luz e o coração à esperança (cf. Lc 24, 13-35).
Deixai, meus queridos irmãos e irmãs, que dê com íntima emoção, em companhia e para conforto da vossa fé, o meu testemunho de fé na Eucaristia: « Ave, verum corpus natum de Maria Virgine, / vere passum, immolatum, in cruce pro homine! ». Eis aqui o tesouro da Igreja, o coração do mundo, o penhor da meta pela qual, mesmo inconscientemente, suspira todo o homem. Mistério grande, que nos excede – é certo – e põe a dura prova a capacidade da nossa mente em avançar para além das aparências. Aqui os nossos sentidos falham – « visus, tactus, gustus in te fallitur », diz-se no hino Adoro te devote –; mas basta-nos simplesmente a fé, radicada na palavra de Cristo que nos foi deixada pelos Apóstolos. Como Pedro no fim do discurso eucarístico, segundo o Evangelho de João, deixai que eu repita a Cristo, em nome da Igreja inteira, em nome de cada um de vós: « Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna » (Jo 6, 68).
60. Na aurora deste terceiro milénio, todos nós, filhos da Igreja, somos convidados a progredir com renovado impulso na vida cristã. Como escrevi na carta apostólica Novo millennio ineunte, « não se trata de inventar um “programa novo”. O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n'Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste ».(103) A concretização deste programa de um renovado impulso na vida cristã passa pela Eucaristia.
Cada esforço de santidade, cada iniciativa para realizar a missão da Igreja, cada aplicação dos planos pastorais deve extrair a força de que necessita do mistério eucarístico e orientar-se para ele como o seu ponto culminante. Na Eucaristia, temos Jesus, o seu sacrifício redentor, a sua ressurreição, temos o dom do Espírito Santo, temos a adoração, a obediência e o amor ao Pai. Se transcurássemos a Eucaristia, como poderíamos dar remédio à nossa indigência?
61. O mistério eucarístico – sacrifício, presença, banquete – não permite reduções nem instrumentalizações; há-de ser vivido na sua integridade, quer na celebração, quer no colóquio íntimo com Jesus acabado de receber na comunhão, quer no período da adoração eucarística fora da Missa. Então a Igreja fica solidamente edificada, e exprime-se o que ela é verdadeiramente: una, santa, católica e apostólica; povo, templo e família de Deus; corpo e esposa de Cristo, animada pelo Espírito Santo; sacramento universal de salvação e comunhão hierarquicamente organizada.
O caminho que a Igreja percorre nestes primeiros anos do terceiro milénio é também caminho de renovado empenho ecuménico. Os últimos decénios do segundo milénio, com o seu apogeu no Grande Jubileu do ano 2000, impeliram-nos nesta direcção, convidando todos os baptizados a corresponderem à oração de Jesus « ut unum sint » (Jo 17, 11). É um caminho longo, cheio de obs- táculos que superam a capacidade humana; mas temos a Eucaristia e, na sua presença, podemos ouvir no fundo do coração, como que dirigidas a nós, as mesmas palavras que ouviu o profeta Elias: « Levanta-te e come, porque ainda tens um caminho longo a percorrer » (1 Re 19, 7). O tesouro eucarístico, que o Senhor pôs à nossa disposição, incita-nos para a meta que é a sua plena partilha com todos os irmãos, aos quais estamos unidos pelo mesmo Baptismo. Mas para não desperdiçar esse tesouro, é preciso respeitar as exigências que derivam do facto de ele ser sacramento da comunhão na fé e na sucessão apostólica.
Dando à Eucaristia todo o realce que merece e procurando com todo o cuidado não atenuar nenhuma das suas dimensões ou exigências, damos provas de estar verdadeiramente conscientes da grandeza deste dom. A isto nos convida uma tradição ininterrupta desde os primeiros séculos, que mostra a comunidade cristã vigilante na defesa deste « tesouro ». Movida pelo amor, a Igreja preocupa-se em transmitir às sucessivas gerações cristãs a fé e a doutrina sobre o mistério eucarístico, sem perder qualquer fragmento. E não há perigo de exagerar no cuidado que lhe dedicamos, porque, « neste sacramento, se condensa todo o mistério da nossa salvação ».(104)
62. Meus queridos irmãos e irmãs, vamos à escola dos Santos, grandes intérpretes da verdadeira piedade eucarística. Neles, a teologia da Eucaristia adquire todo o brilho duma vivência, « contagia-nos » e, por assim dizer, nos « abrasa ». Ponhamo-nos sobretudo à escuta de Maria Santíssima, porque n'Ela, como em mais ninguém, o mistério eucarístico aparece como o mistério da luz. Olhando-A, conhecemos a força transformadora que possui a Eucaristia. N'Ela, vemos o mundo renovado no amor. Contemplando-A elevada ao Céu em corpo e alma, vemos um pedaço do « novo céu » e da « nova terra » que se hão-de abrir diante dos nossos olhos na segunda vinda de Cristo. A Eucaristia constitui aqui na terra o seu penhor e, de algum modo, antecipação: « Veni, Domine Iesu » (Ap 22, 20)!
Nos sinais humildes do pão e do vinho transubstanciados no seu corpo e sangue, Cristo caminha connosco, como nossa força e nosso viático, e torna-nos testemunhas de esperança para todos. Se a razão experimenta os seus limites diante deste mistério, o coração iluminado pela graça do Espírito Santo intui bem como comportar-se, entranhando-se na adoração e num amor sem limites.
Façamos nossos os sentimentos de S. Tomás de Aquino, máximo teólogo e ao mesmo tempo cantor apaixonado de Jesus eucarístico, e deixemos que o nosso espírito se abra também na esperança à contemplação da meta pela qual suspira o coração, sedento como é de alegria e de paz:
« Bone Pastor, panis vere
Iesu, notri miserere... ».
« Bom Pastor, pão da verdade,
Tende de nós piedade,
Conservai-nos na unidade,
Extingui nossa orfandade
E conduzi-nos ao Pai.
Aos mortais dando comida
Dais também o pão da vida:
Que a família assim nutrida
Seja um dia reunida
Aos convivas lá do Céu ».
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 17 de Abril, Quinta-feira Santa, do ano 2003, vigésimo quinto do meu Pontificado e Ano do Rosário.
IOANNES PAULUS II
Notas
(1)Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11.
(2)Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 5.
(3)Cf. João Paulo II, Carta ap. Rosarium Virginis Mariæ (16 de Outubro de 2002), 21: AAS 95 (2003), 19.
(4)Assim quis intitular um testemunho autobiográfico que escrevi por ocasião das Bodas de Ouro do meu sacerdócio.
(5)Leonis XIII Acta, XXII (1903), 115-136.
(6)AAS 39 (1947), 521-595.
(7)AAS 57 (1965), 753-774.
(8)AAS 72 (1980), 113-148.
(9)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 47: « O nosso Salvador instituiu [...] o sacrifício eucarístico do seu Corpo e do seu Sangue para perpetuar pelo decorrer dos séculos, até Ele voltar, o sacrifício da cruz ».
(10)Catecismo da Igreja Católica, 1085.
(11)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 3.
(12)Cf. Paulo VI, Solene profissão de fé (30 de Junho de 1968), 24: AAS 60 (1968), 442; João Paulo II, Carta ap. Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980), 12: AAS 72 (1980), 142.
(13)Catecismo da Igreja Católica, 1382.
(14)Ibid., 1367.
(15)Homilias sobre a Carta aos Hebreus, 17, 3: PG 63, 131.
(16)« Trata-se realmente de uma única e mesma vítima, que o próprio Jesus oferece pelo ministério dos sacerdotes, Ele que um dia Se ofereceu a Si mesmo na cruz; somente o modo de oferecer-Se é que é diverso »: Conc. Ecum. de Trento, Sess. XXII, Doctrina de ss. Missæ sacrificio, cap. 2: DS 1743.
(17)Pio XII, Carta enc. Mediator Dei (20 de Novembro de 1947): AAS 39 (1947), 548.
(18)João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (15 de Março de 1979), 20: AAS 71 (1979), 310.
(19)Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11.
(20)De Sacramentis, V, 4, 26: CSEL 73, 70.
(21)Comentário ao Evangelho de João, XII, 20: PG 74, 726.
(22)Carta enc. Mysterium fidei (3 de Setembro de 1965): AAS 57 (1965), 764.
(23)Sess. XIII, Decretum de ss. Eucharistia, cap. 4: DS 1642.
(24)Catequeses mistagógicas, IV, 6: SCh 126, 138.
(25)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina Revelação Dei Verbum, 8.
(26)Solene profissão de fé (30 de Junho de 1968), 25: AAS 60 (1968), 442-443.
(27)Homilia IV para a Semana Santa: CSCO 413 / Syr. 182, 55.
(28)Anáfora.
(29)Oração Eucarística III.
(30)Antífona do Magnificat nas II Vésperas da Solenidade do SS. Corpo e Sangue de Cristo.
(31)Missal Romano, Embolismo depois do Pai Nosso.
(32)Carta aos Efésios, 20: PG 5, 661.
(33)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 39.
(34)« Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que disse: « Isto é o meu Corpo », [...] também afirmou: « Vistes-Me com fome e não me destes de comer », e ainda: « Na medida em que o recusastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes. [...] De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se Ele morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e depois ornamenta a sua mesa com o que sobra »: S. João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 50, 3-4: PG 58, 508-509; cf. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 31: AAS 80 (1988), 553-556.
(35)Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 3.
(36)Ibid., 3.
(37)Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, 5.
(38)« Moisés tomou o sangue e aspergiu com ele o povo, dizendo: “Este é o sangue da aliança que o Senhor concluiu convosco mediante todas estas palavras” » (Ex 24, 8).
(39)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 1.
(40)Cf. ibid., 9.
(41)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 5. No n. 6 do mesmo decreto, lê-se: « Nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia ».
(42)Homilias sobre a I Carta aos Coríntios, 24, 2: PG 61, 200; cf. Didaké, IX, 4: F. X. Funk, I, 22; S. Cipriano, Epistula LXIII, 13: PL 4, 384.
(43)Patrologia Orientalis, 26, 206.
(44)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 1.
(45)Cf. Conc. Ecum. de Trento, Sess. XIII, Decretum de ss. Eucharistia, cân. 4: DS 1654.
(46)Cf. Ritual Romano: Sagrada Comunhão e Culto do Mistério Eucarístico fora da Missa, n. 80.
(47)Cf. ibid., nn. 86-90.
(48)João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), 32: AAS 93 (2001), 288.
(49)« Durante o dia, os fiéis não deixem de visitar o Santíssimo Sacramento, que se deve conservar nas igrejas, no lugar mais digno e com as honras devidas segundo as leis litúrgicas; cada visita é prova de gratidão, sinal de amor e dever de adoração a Cristo ali presente »: Paulo VI, Carta enc. Mysterium fidei (3 de Setembro de 1965): AAS 57 (1965), 771.
(50)Visitas ao Santíssimo Sacramento e a Maria Santíssima, Introdução: Obras Ascéticas (Avelino 2000), 295.
(51)N. 857.
(52)2Ibid., 857.
(53)Ibid., 857.
(54)Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre algumas questões concernentes ao ministro da Eucaristia Sacerdotium ministeriale (6 de Agosto de 1983), III, 2: AAS 75 (1983), 1005.
(55)Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 10.
(56)Ibid., 10.
(57)Cf. Institutio generalis (editio typica tertia), n. 147.
(58)Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 10 e 28; Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 2.
(59)« O ministro do altar age personificando Cristo cabeça, que oferece em nome de todos os membros »: Pio XII, Carta enc. Mediator Dei (20 de Novembro de 1947): AAS 39 (1947), 556; cf. Pio X, Exort. ap. Hærent animo (4 de Agosto de 1908): Pii X Acta, IV, 16; Pio XI, Carta enc. Ad catholici sacerdotii (20 de Dezembro de 1935): AAS 28 (1936), 20.
(60)Carta ap. Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980), 8: AAS 72 (1980), 128-129.
(61)Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre algumas questões concernentes ao ministro da Eucaristia Sacerdotium ministeriale (6 de Agosto de 1983), III, 4: AAS 75 (1983), 1006; cf. IV Conc. Ecum. de Latrão, Const. sobre a fé católica Firmiter credimus, cap. 1: DS 802.
(62)Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 22.
(63)Carta ap. Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980), 2: AAS 72 (1980), 115.
(64)Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 14.
(65)Ibid., 13; Código de Direito Canónico, cân. 904; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 378.
(66)Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 6.
(67)Cf. Relação final, II-C.1: L'Osservatore Romano (ed. port. de 22/XII/1985), 651.
(68)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 26.
(69)Nicolau Cabasilas, A vida em Cristo, IV, 10: SCh 355, 270.
(70)Caminho de perfeição, c. 35.
(71)Cf. Congr. da Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 4: AAS 85 (1993), 839-840.
(72)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 14.
(73)Homilias sobre Isaías, 6, 3: PG 56, 139.
(74)N. 1385; cf. Código de Direito Canónico, cân. 916; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 711.
(75)Discurso aos membros da Sagrada Penitenciaria Apostólica e aos padres penitenciários das Basílicas Patriarcais de Roma (30 de Janeiro de 1981): AAS 73 (1981), 203; cf. Conc. Ecum. de Trento, Sess. XIII, Decretum de ss. Eucharistia, cap. 7 e can 11: DS 1647, 1661.
(76)Cân. 915; cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 712.
(77)Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 14.
(78)S. Tomás de Aquino, Summa theologiæ, III, q. 73, a. 3c.
(79)Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 11: AAS 85 (1993), 844.
(80)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 23.
(81)Carta aos cristãos de Esmirna, 8: PG 5, 713.
(82)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 23.
(83)Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 14: AAS 85 (1993), 847.
(84)Sermo 272: PL 38, 1247.
(85)Ibid.: o.c., 1248.
(86)Cf. nn. 31-51: AAS 90 (1998), 731-746.
(87)Cf. ibid., 48-49: o.c., 744.
(88)N. 36: AAS 93 (2001), 291-292.
(89)Cf. Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 1.
(90)Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11.
(91)« Fazei que, participando do único pão e do único cálice, permaneçamos unidos uns aos outros na comunhão do único Espírito Santo »: Anáfora da Liturgia de S. Basílio.
(92)Cf. Código de Direito Canónico, cân. 908; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 702; Pont. Cons. para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Directório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo (25 de Março de 1993), 122-125.129-131: AAS 85 (1993), 1086-1089; Congr. da Doutrina da Fé, Carta Ad exsequendam (18 de Maio de 2001): AAS 93 (2001), 786.
(93)« A comunicação nas coisas sagradas que ofende a unidade da Igreja ou inclui adesão formal ao erro ou perigo de aberração na fé, de escândalo e de indiferentismo, é proibida por lei divina »: Decr. sobre as Igrejas católicas orientais Orientalium Ecclesiarum, 26.
(94)N. 45: AAS 87 (1995), 948.
(95)Decr. sobre as Igrejas católicas orientais Orientalium Ecclesiarum, 27.
(96)Cf. Código de Direito Canónico, cân. 844-§§ 3 e 4; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 671-§§ 3 e 4.
(97)N. 46: AAS 87 (1995), 948.
(98)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 22.
(99)Cf. Código de Direito Canónico, cân. 844; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 671.
(100)Cf. AAS 91 (1999), 1155-1172.
(101)N. 22: AAS 92 (2000), 485.
(102)Cf. n. 21: AAS 95 (2003), 20.
(103)N. 29: AAS 93 (2001), 285.
(104)S. Tomás de Aquino, Summa theologiae, III, q. 83, a. 4c.
Evangelium Vitae
CARTA ENCÍCLICA
EVANGELIUM VITAE
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS
AOS RELIGIOSOS E RELIGIOSAS
AOS FIÉIS LEIGOS
E A TODAS AS PESSOAS DE BOA VONTADE
SOBRE O VALOR E A INVIOLABILIDADE
DA VIDA HUMANA
INTRODUÇÃO
1. O Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus. Amorosamente acolhido cada dia pela Igreja, há-de ser fiel e corajosamente anunciado como boa nova aos homens de todos os tempos e culturas.
Na aurora da salvação, é proclamado como feliz notícia o nascimento de um menino: " Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor " (Lc 2, 10-11). O motivo imediato que faz irradiar esta " grande alegria " é, sem dúvida, o nascimento do Salvador; mas, no Natal, manifesta-se também o sentido pleno de todo o nascimento humano, pelo que a alegria messiânica se revela fundamento e plenitude da alegria por cada criança que nasce (cf. Jo 16, 21).
Ao apresentar o núcleo central da sua missão redentora, Jesus diz: " Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância " (Jo 10, 10). Ele fala daquela vida " nova " e " eterna " que consiste na comunhão com o Pai, à qual todo o homem é gratuitamente chamado no Filho, por obra do Espírito Santificador. Mas é precisamente em tal " vida " que todos os aspectos e momentos da vida do homem adquirem pleno significado.
O valor incomparável da pessoa humana
2. O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para além das dimensões da sua existência terrena, porque consiste na participação da própria vida de Deus.
A sublimidade desta vocação sobrenatural revela a grandeza e o valor precioso da vida humana, inclusive já na sua fase temporal. Com efeito, a vida temporal é condição basilar, momento inicial e parte integrante do processo global e unitário da existência humana: um processo que, para além de toda a expectativa e merecimento, fica iluminado pela promessa e renovado pelo dom da vida divina, que alcançará a sua plena realização na eternidade (cf. 1 Jo 3, 1-2). Ao mesmo tempo, porém, o próprio chamamento sobrenatural sublinha a relatividade da vida terrena do homem e da mulher. Na verdade, esta vida não é realidade " última ", mas " penúltima "; trata-se, em todo o caso, de uma realidade sagrada que nos é confiada para a guardarmos com sentido de responsabilidade e levarmos à perfeição no amor pelo dom de nós mesmos a Deus e aos irmãos.
A Igreja sabe que este Evangelho da vida, recebido do seu Senhor,1 encontra um eco profundo e persuasivo no coração de cada pessoa, crente e até não crente, porque se ele supera infinitamente as suas aspirações, também lhes corresponde de maneira admirável. Mesmo por entre dificuldades e incertezas, todo o homem sinceramente aberto à verdade e ao bem pode, pela luz da razão e com o secreto influxo da graça, chegar a reconhecer, na lei natural inscrita no coração (cf. Rm 2, 14-15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início até ao seu termo, e afirmar o direito que todo o ser humano tem de ver plenamente respeitado este seu bem primário. Sobre o reconhecimento de tal direito é que se funda a convivência humana e a própria comunidade política.
De modo particular, devem defender e promover este direito os crentes em Cristo, conscientes daquela verdade maravilhosa, recordada pelo Concílio Vaticano II: " Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ".2 De facto, neste acontecimento da salvação, revela-se à humanidade não só o amor infinito de Deus que " amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único " (Jo 3, 16), mas também o valor incomparável de cada pessoa humana.
A Igreja, perscrutando assiduamente o mistério da Redenção, descobre com assombro incessante 3 este valor, e sente-se chamada a anunciar aos homens de todos os tempos este " evangelho ", fonte de esperança invencível e de alegria verdadeira para cada época da história. O Evangelho do amor de Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa e o Evangelho da vida são um único e indivisível Evangelho. É por este motivo que o homem, o homem vivo, constitui o primeiro e fundamental caminho da Igreja.4
As novas ameaças à vida humana
3. Precisamente por causa do mistério do Verbo de Deus que Se fez carne (cf. Jo 1, 14), cada homem está confiado à solicitude materna da Igreja. Por isso, qualquer ameaça à dignidade e à vida do homem não pode deixar de se repercutir no próprio coração da Igreja, é impossível não a tocar no centro da sua fé na encarnação redentora do Filho de Deus, não pode passar sem a interpelar na sua missão de anunciar o Evangelho da vida pelo mundo inteiro a toda a criatura (cf. Mc 16, 15).
Hoje, este anúncio torna-se particularmente urgente pela impressionante multiplicação e agravamento das ameaças à vida das pessoas e dos povos, sobretudo quando ela é débil e indefesa. Às antigas e dolorosas chagas da miséria, da fome, das epidemias, da violência e das guerras, vêm-se juntar outras com modalidades inéditas e dimensões inquietantes.
Já o Concílio Vaticano II, numa página de dramática actualidade, deplorou fortemente os múltiplos crimes e atentados contra a vida humana. À distância de trinta anos e fazendo minhas as palavras da Assembleia Conciliar, uma vez mais e com idêntica força os deploro em nome da Igreja inteira, com a certeza de interpretar o sentimento autêntico de toda a consciência recta: " Tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador ".5
4. Infelizmente, este panorama inquietante, longe de diminuir, tem vindo a dilatar-se: com as perspectivas abertas pelo progresso científico e tecnológico, nascem outras formas de atentados à dignidade do ser humano, enquanto se delínea e consolida uma nova situação cultural que dá aos crimes contra a vida um aspecto inédito e - se é possível - ainda mais iníquo, suscitando novas e graves preocupações: amplos sectores da opinião pública justificam alguns crimes contra a vida em nome dos direitos da liberdade individual e, sobre tal pressuposto, pretendem não só a sua impunidade mas ainda a própria autorização da parte do Estado para os praticar com absoluta liberdade e, mais, com a colaboração gratuita dos Serviços de Saúde.
Ora, tudo isto provoca uma profunda alteração na maneira de considerar a vida e as relações entre os homens. O facto de as legislações de muitos países, afastando-se quiçá dos próprios princípios basilares das suas Constituições, terem consentido em não punir ou mesmo até reconhecer a plena legitimidade de tais acções contra a vida, é conjuntamente sintoma preocupante e causa não marginal de uma grave derrocada moral: opções, outrora consideradas unanimamente criminosas e rejeitadas pelo senso moral comum, tornam-se pouco a pouco socialmente respeitáveis. A própria medicina que, por vocação, se orienta para a defesa e cuidado da vida humana, em alguns dos seus sectores vai-se prestando em escala cada vez maior a realizar tais actos contra a pessoa, e, deste modo, deforma o seu rosto, contradiz-se a si mesma e humilha a dignidade de quantos a exercem. Em semelhante contexto cultural e legal, os graves problemas demográficos, sociais ou familiares - que incidem sobre numerosos povos do mundo e exigem a atenção responsável e operante das comunidades nacionais e internacionais -, encontram-se também sujeitos a soluções falsas e ilusórias, em contraste com a verdade e o bem das pessoas e das nações.
O resultado de tudo isto é dramático: se é muitíssimo grave e preocupante o fenómeno da eliminação de tantas vidas humanas nascentes ou encaminhadas para o seu ocaso, não o é menos o facto de à própria consciência, ofuscada por tão vastos condicionalismos, lhe custar cada vez mais a perceber a distinção entre o bem e o mal, precisamente naquilo que toca o fundamental valor da vida humana.
Em comunhão com todos os Bispos do mundo
5. Ao problema das ameaças à vida humana no nosso tempo, foi dedicado o Consistório Extraordinário dos Cardeais, realizado em Roma de 4 a 7 de Abril de 1991. Depois de amplo e profundo debate do problema e dos desafios postos à família humana inteira e, de modo particular, à Comunidade cristã, os Cardeais, com voto unânime, pediram-me que reafirmasse, com a autoridade do Sucessor de Pedro, o valor da vida humana e a sua inviolabilidade, à luz das circunstâncias actuais e dos atentados que hoje a ameaçam.
Acolhendo tal pedido, no Pentecostes de 1991 escrevi uma carta pessoal a cada Irmão no Episcopado para que, em espírito de colegialidade, me oferecesse a sua colaboração com vista à elaboração de um específico documento.6 Agradeço profundamente a todos os Bispos que responderam, fornecendo-me preciosas informações, sugestões e propostas. Deram também assim testemunho da sua participação concorde e convicta na missão doutrinal e pastoral da Igreja acerca do Evangelho da vida.
Nessa mesma carta, que fora enviada poucos dias depois da celebração do centenário da Encíclica Rerum novarum, chamava a atenção de todos para esta singular analogia: " Como há um século, oprimida nos seus direitos fundamentais era a classe operária, e a Igreja com grande coragem tomou a sua defesa, proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do trabalhador, assim agora, quando outra categoria de pessoas é oprimida no direito fundamental à vida, a Igreja sente que deve, com igual coragem, dar voz a quem a não tem. O seu é sempre o grito evangélico em defesa dos pobres do mundo, de quantos estão ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus direitos humanos ".7
Espezinhada no direito fundamental à vida, é hoje uma grande multidão de seres humanos débeis e indefesos, como o são, em particular, as crianças ainda não nascidas. Se, ao findar do século passado, não fora consentido à Igreja calar perante as injustiças então reinantes, menos ainda pode ela calar hoje, quando às injustiças sociais do passado - infelizmente ainda não superadas - se vêm somar, em tantas partes do mundo, injustiças e opressões ainda mais graves, mesmo se disfarçadas em elementos de progresso com vista à organização de uma nova ordem mundial.
A presente Encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de cada país do mundo, quer ser uma reafirmação precisa e firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade, e, conjuntamente, um ardente apelo dirigido em nome de Deus a todos e cada um:respeita, defende, ama e serve a vida, cada vida humana! Unicamente por esta estrada, encontrarás justiça, progresso, verdadeira liberdade, paz e felicidade!
Cheguem estas palavras a todos os filhos e filhas da Igreja! Cheguem a todas as pessoas de boa vontade, solícitas pelo bem de cada homem e mulher e pelo destino da sociedade inteira!
6. Em profunda comunhão com cada irmão e irmã na fé e animado por sincera amizade para com todos, quero meditar de novo e anunciar o Evangelho da vida, clara luz que ilumina as consciências, esplendor de verdade que cura o olhar ofuscado, fonte inexaurível de constância e coragem para enfrentar os desafios sempre novos que encontramos no nosso caminho.
Tendo no pensamento a rica experiência vivida durante o Ano da Família, e quase completando idealmente a Carta que dirigi " a cada família concreta de cada região da terra ",8 olho com renovada confiança para todas as comunidades domésticas e faço votos por que renasça ou se reforce, em todos e aos diversos níveis, o compromisso de apoiarem a família, para que também hoje - mesmo no meio de numerosas dificuldades e graves ameaças - ela se conserve sempre, segundo o desígnio de Deus, como " santuário da vida ".9
A todos os membros da Igreja, povo da vida e pela vida, dirijo o mais premente convite para que, juntos, possamos dar novos sinais de esperança a este nosso mundo, esforçando-nos por que cresçam a justiça e a solidariedade e se afirme uma nova cultura da vida humana, para a edificação de uma autêntica civilização da verdade e do amor.
CAPÍTULO I - A VOZ DO SANGUE DO TEU IRMÃO CLAMA DA TERRA ATÉ MIM
AS ACTUAIS AMEAÇAS À VIDA HUMANA
7. " Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência. (...) Com efeito, Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e fê- -lo à imagem da sua própria natureza. Por inveja do demónio é que a morte entrou no mundo e prová-la-ão os que pertencem ao demónio " (Sab 1, 13-14; 2, 23-24).
O Evangelho da vida, que ressoa, logo ao princípio, com a criação do homem à imagem de Deus para um destino de vida plena e perfeita (cf. Gn 2, 7; Sab 9, 2-3), vê-se contestado pela experiência dilacerante da morte que entra no mundo, lançando o espectro da falta de sentido sobre toda a existência do homem.
A morte entra por causa da inveja do diabo (cf. Gn 3, 1.4-5) e do pecado dos primeiros pais (cf. Gn 2, 17; 3, 17-19). E entra de modo violento, através do assassínio de Abel por obra do seu irmão: " Logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra o irmão Abel e matou-o " (Gn 4, 8). Este primeiro assassínio é apresentado, com singular eloquência, numa página paradigmática do Livro do Génesis: página transcrita cada dia, sem cessar e com degradante repetição, no livro da história dos povos.
Queremos ler de novo, juntos, esta página bíblica, que, apesar do seu aspecto arcaico e extrema simplicidade, se apresenta riquíssima de ensinamentos.
" Abel foi pastor; e Caim, lavrador. Ao fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. Por seu lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as gorduras deles. O Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta, mas não olhou para Caim nem para a sua oferta.
Caim ficou muito irritado e o rosto transtornou- -se-lhe. O Senhor disse a Caim: "Porque estás zangado e o teu rosto abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto; se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo". Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: "Vamos ao campo". Porém, logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra o irmão Abel e matou-o.
O Senhor disse a Caim: "Onde está Abel, teu irmão?" Caim respondeu: "Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?" O Senhor replicou: "Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim. De futuro, serás maldito sobre a terra que abriu a sua boca para beber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, negar-te-á as suas riquezas. Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra".
Caim disse ao Senhor: "A minha culpa é grande demais para obter perdão! Expulsas-me hoje desta terra; obrigado a ocultar-me longe da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar-me matar-me-á".
O Senhor respondeu: "Não, se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais". E o Senhor marcou-o com um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar. Caim afastou-se da presença do Senhor e foi residir na região de Nod, ao oriente do Éden " (Gn 4, 2-16).
8. Caim está " muito irritado " e tem o rosto " transtornado ", porque " o Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta " (Gn 4, 4). O texto bíblico não revela o motivo pelo qual Deus preferiu o sacrifício de Abel ao de Caim; mas indica claramente que, mesmo preferindo a oferta de Abel, não interrompe o seu diálogo com Caim. Acautela-o, recordando-lhe a sua liberdade frente ao mal: o homem não está de forma alguma predestinado para o mal. Certamente, à semelhança de Adão, ele é tentado pela força maléfica do pecado que, como um animal feroz, se agacha à porta do seu coração, à espera de lançar-se sobre a presa. Mas Caim permanece livre diante do pecado. Pode e deve dominá-lo: " Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo " (Gn 4, 7).
Sobre a advertência feita pelo Senhor, porém, levam a melhor o ciúme e a ira, e Caim atira-se contra o próprio irmão e mata-o. Como lemos no Catecismo da Igreja Católica, " a Sagrada Escritura, na narrativa da morte de Abel por seu irmão Caim, revela, desde os primórdios da história humana, a presença no homem da cólera e da inveja, consequências do pecado original. O homem tornou-se inimigo do seu semelhante ".10
O irmão mata o irmão. Como naquele primeiro fratricídio, também em cada homicídio é violado o parentesco " espiritual " que congrega os homens numa única grande família,11 sendo todos participantes do mesmo bem fundamental: a igual dignidade pessoal. E, não raro, resulta violado também o parentesco " da carne e do sangue ", quando, por exemplo, as ameaças à vida se verificam ao nível do relacionamento pais e filhos, como sucede com o aborto ou quando, no mais vasto contexto familiar ou de parentela, é encorajada ou provocada a eutanásia.
Na raiz de qualquer violência contra o próximo, há uma cedência à " lógica " do maligno, isto é, daquele que " foi assassino desde o princípio " (Jo 8, 44), como nos recorda o apóstolo João: " Porque esta é a mensagem que ouvistes desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. Não seja como Caim que era do maligno, e matou o seu irmão " (1 Jo 3, 11-12). Assim o assassinato do irmão, desde os alvores da história, é o triste testemunho de como o mal progride com rapidez impressionante: à revolta do homem contra Deus no paraíso terreal segue-se a luta mortal do homem contra o homem.
Depois do crime, Deus intervém para vingar a vítima. Frente a Deus que o interroga sobre a sorte de Abel, Caim, em vez de se mostrar confundido e desculpar-se, esquiva-se à pergunta com arrogância: " Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão? " (Gn 4, 9). " Não sei dele ": com a mentira, Caim procura encobrir o crime. Assim aconteceu frequentemente e continua a verificar-se quando se servem das mais diversas ideologias para justificar e mascarar os crimes mais atrozes contra a pessoa. " Sou, porventura, guarda do meu irmão? ": Caim não quer pensar no irmão, e recusa-se a assumir aquela responsabilidade que cada homem tem pelo outro. Saltam espontaneamente ao pensamento as tendências actuais para sonegar a responsabilidade do homem pelo seu semelhante, de que são sintomas, entre outros, a falta de solidariedade com os membros mais débeis da sociedade - como são os idosos, os doentes, os imigrantes, as crianças -, e a indiferença que tantas vezes se regista nas relações entre os povos, mesmo quando estão em jogo valores fundamentais como a sobrevivência, a liberdade e a paz.
9. Mas Deus não pode deixar impune o crime: da terra onde foi derramado, o sangue da vítima exige que Ele faça justiça (cf. Gn 37, 26; Is 26, 21; Ez 24, 7-8). Deste texto, a Igreja retirou a denominação de " pecados que bradam ao Céu ", incluindo em primeiro lugar o homicídio voluntário.12 Para os hebreus, como para muitos povos da antiguidade, o sangue é a sede da vida, ou melhor " o sangue é a vida " (Dt 12, 23), e a vida, sobretudo a humana, pertence unicamente a Deus: por isso, quem atenta contra a vida do homem, de algum modo atenta contra o próprio Deus.
Caim é amaldiçoado por Deus como também pela terra, que lhe recusará os seus frutos (cf. Gn 4, 11-12). E épunido: habitará em terras agrestes e desertas. A violência homicida altera profundamente o ambiente da vida do homem. A terra, que era o " jardim do Éden " (Gn 2, 15), lugar de abundância, de serenas relações interpessoais e de amizade com Deus, torna-se o " país de Nod " (Gn 4, 16), lugar de " miséria ", de solidão e de afastamento de Deus. Caim será " fugitivo e vagabundo pela terra " (Gn 4, 14): dúvida e instabilidade sempre o acompanharão.
Contudo Deus, misericordioso mesmo quando castiga, " marcou 1 com um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar " (Gn 4, 15): põe-lhe um sinal, cujo objectivo não é condená-lo à abominação dos outros homens, mas protegê-lo e defendê-lo daqueles que o quiserem matar, ainda que seja para vingar a morte de Abel. Nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus Se constitui seu garante. E é precisamente aqui que se manifesta o mistério paradoxal da justiça misericordiosa de Deus, como escreve Santo Ambrósio: " Visto que tinha sido cometido um fratricídio - ou seja, o maior dos crimes -, no momento em que se introduziu o pecado, teve imediatamente de ser ampliada a lei da misericórdia divina; para que, caso o castigo atingisse imediatamente o culpado, não sucedesse que os homens, ao punirem, não usassem de qualquer tolerância nem mansidão, mas entregassem imediatamente ao castigo os culpados. (...) Deus repeliu Caim da sua presença e, renegado pelos seus pais, como que o desterrou para o exílio de uma habitação separada, pelo facto de ter passado da mansidão humana à crueldade selvagem. Todavia Deus não quer punir o homicida com um homicídio, porque prefere o arrependimento do pecador à sua morte ".13
" Que fizeste? " (Gn 4, 10): o eclipse do valor da vida
10. O Senhor disse a Caim: " Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim " (Gn 4, 10). A voz do sangue derramado pelos homens não cessa de clamar, de geração em geração, assumindo tons e acentos sempre novos e diversos.
A pergunta do Senhor " que fizeste? ", à qual Caim não se pode esquivar, é dirigida também ao homem contemporâneo, para que tome consciência da amplitude e gravidade dos atentados à vida que continuam a registar-se na história da humanidade, para que vá à procura das múltiplas causas que os geram e alimentam, e, enfim, para que reflita com extrema seriedade sobre as consequências que derivam desses mesmos atentados para a existência das pessoas e dos povos.
Algumas ameaças provêm da própria natureza, mas são agravadas pelo descuido culpável e pela negligência dos homens que, não raro, lhes poderiam dar remédio; outras, ao contrário, são fruto de situações de violência, de ódio, de interesses contrapostos, que induzem homens a agredirem outros homens com homicídios, guerras, massacres, genocídios.
Como não pensar na violência causada à vida de milhões de seres humanos, especialmente crianças, constrangidos à miséria, à subnutrição e à fome, por causa da iníqua distribuição das riquezas entre os povos e entre as classes sociais? Ou na violência inerente às guerras, e ainda antes delas, ao escandaloso comércio de armas, que favorece o torvelinho de tantos conflitos armados que ensanguentam o mundo? Ou então na sementeira de morte que se provoca com a imprudente alteração dos equilíbrios ecológicos, com a criminosa difusão da droga, ou com a promoção do uso da sexualidade segundo modelos que, além de serem moralmente inaceitáveis, acarretam ainda graves riscos para a vida? É impossível registar de modo completo a vasta gama das ameaças à vida humana, tantas são as formas, abertas ou camufladas, de que se revestem no nosso tempo!
11. Mas queremos concentrar a nossa atenção, de modo particular, sobre outro género de atentados, relativos à vida nascente e terminal, que apresentam novas características em relação ao passado e levantam problemas de singular gravidade: é que, na consciência colectiva, aqueles tendem a perder o carácter de " crimes " para assumir, paradoxalmente, o carácter de " direitos ", a ponto de se pretender um verdadeiro e próprioreconhecimento legal da parte do Estado e a consequente execução gratuita por intermédio dos profissionais da saúde. Tais atentados ferem a vida humana em situações de máxima fragilidade, quando se acha privada de qualquer capacidade de defesa. Mais grave ainda é o facto de serem consumados, em grande parte, mesmo no seio e por obra da família que está, pelo contrário, chamada constitutivamente a ser " santuário da vida ".
Como se pôde criar semelhante situação? Há que tomar em consideração diversos factores. Como pano de fundo, existe uma crise profunda da cultura, que gera cepticismo sobre os próprios fundamentos do conhecimento e da ética e torna cada vez mais difícil compreender claramente o sentido do homem, dos seus direitos e dos seus deveres. A isto, vêm juntar-se as mais diversas dificuldades existenciais e interpessoais, agravadas pela realidade de uma sociedade complexa, onde frequentemente as pessoas, os casais, as famílias são deixadas sozinhas a braços com os seus problemas. Não faltam situações de particular pobreza, angústia e exasperação, onde a luta pela sobrevivência, a dor nos limites do suportável, as violências sofridas, especialmente aquelas que investem as mulheres, tornam por vezes exigentes até ao heroísmo as opções de defesa e promoção da vida.
Tudo isto explica - pelo menos em parte - como possa o valor da vida sofrer hoje uma espécie de " eclipse ", apesar da consciência não cessar de o apontar como valor sagrado e intocável; e comprova-o o próprio fenómeno de se procurar encobrir alguns crimes contra a vida nascente ou terminal com expressões de âmbito terapêutico, que desviam o olhar do facto de estar em jogo o direito à existência de uma pessoa humana concreta.
12. Com efeito, se muitos e graves aspectos da problemática social actual podem, de certo modo, explicar o clima de difusa incerteza moral e, por vezes, atenuar a responsabilidade subjectiva no indivíduo, não é menos verdade que estamos perante uma realidade mais vasta que se pode considerar como verdadeira e própria estrutura de pecado, caracterizada pela imposição de uma cultura anti-solidária, que em muitos casos se configura como verdadeira " cultura de morte ". É activamente promovida por fortes correntes culturais, económicas e políticas, portadoras de uma concepção eficientista da sociedade.
Olhando as coisas deste ponto de vista, pode-se, em certo sentido, falar de uma guerra dos poderosos contra os débeis: a vida que requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é reputada inútil ou considerada como um peso insuportável, e, consequentemente, rejeitada sob múltiplas formas. Todo aquele que, pela sua enfermidade, a sua deficiência ou, mais simplesmente ainda, a sua própria presença, põe em causa o bem-estar ou os hábitos de vida daqueles que vivem mais avantajados, tende a ser visto como um inimigo do qual defender-se ou um inimigo a eliminar. Desencadeia-se assim uma espécie de " conjura contra a vida ". Esta não se limita apenas a tocar os indivíduos nas suas relações pessoais, familiares ou de grupo, mas alarga-se muito para além até atingir e subverter, a nível mundial, as relações entre os povos e os Estados.
13. Para facilitar a difusão do aborto, foram investidas - e continuam a sê-lo - somas enormes, destinadas à criação de fármacos que tornem possível a morte do feto no ventre materno, sem necessidade de recorrer à ajuda do médico. A própria investigação científica, neste âmbito, parece quase exclusivamente preocupada em obter produtos cada vez mais simples e eficazes contra a vida e, ao mesmo tempo, capazes de subtrair o aborto a qualquer forma de controlo e responsabilidade social.
Afirma-se frequentemente que a contracepção, tornada segura e acessível a todos, é o remédio mais eficaz contra o aborto. E depois acusa-se a Igreja Católica de, na realidade, favorecer o aborto, porque continua obstinadamente a ensinar a ilicitude moral da contracepção.
Bem vista, porém, a objecção é falaciosa. De facto, pode acontecer que muitos recorram aos contraceptivos com a intenção também de evitar depois a tentação do aborto. Mas os pseudo-valores inerentes à " mentalidade contraceptiva " - muito diversa do exercício responsável da paternidade e maternidade, actuada no respeito pela verdade plena do acto conjugal - são tais que tornam ainda mais forte essa tentação, na eventualidade de ser concebida uma vida não desejada. De facto, a cultura pro-aborto aparece sobretudo desenvolvida nos mesmos ambientes que recusam o ensinamento da Igreja sobre a contracepção. Certo é que a contracepção e o aborto são males especificamente diversos do ponto de vista moral: uma contradiz a verdade integral do acto sexual enquanto expressão própria do amor conjugal, o outro destrói a vida de um ser humano; a primeira opõe-se à virtude da castidade matrimonial, o segundo opõe-se à virtude da justiça e viola directamente o preceito divino " não matarás ".
Mas, apesar de terem natureza e peso moral diversos, eles surgem, com muita frequência, intimamente relacionados como frutos da mesma planta. É verdade que não faltam casos onde, à contracepção e ao próprio aborto se vem juntar a pressão de diversas dificuldades existenciais que, no entanto, não podem nunca exonerar do esforço de observar plenamente a lei de Deus. Mas, em muitíssimos outros casos, tais práticas afundam as suas raízes numa mentalidade hedonista e desresponsabilizadora da sexualidade, e supõem um conceito egoísta da liberdade que vê na procriação um obstáculo ao desenvolvimento da própria personalidade. A vida que poderia nascer do encontro sexual torna-se assim o inimigo que se há-de evitar absolutamente, e o aborto a única solução possível diante de uma contracepção falhada.
Infelizmente, emerge cada vez mais a estreita conexão que existe, a nível de mentalidade, entre as práticas da contracepção e do aborto, como o demonstra, de modo alarmante, a produção de fármacos, dispositivos intra-uterinos e preservativos, os quais, distribuídos com a mesma facilidade dos contraceptivos, actuam na prática como abortivos nos primeiros dias de desenvolvimento da vida do novo ser humano.
14. Também as várias técnicas de reprodução artificial, que pareceriam estar ao serviço da vida e que, não raro, são praticadas com essa intenção, na realidade abrem a porta a novos atentados contra a vida. Para além do facto de serem moralmente inaceitáveis, porquanto separam a procriação do contexto integralmente humano do acto conjugal,14 essas técnicas registam altas percentagens de insucesso: este diz respeito não tanto à fecundação como sobretudo ao desenvolvimento sucessivo do embrião, sujeito ao risco de morte em tempos geralmente muito breves. Além disso, são produzidos às vezes embriões em número superior ao necessário para a implantação no útero da mulher e esses, chamados " embriões supranumerários ", são depois suprimidos ou utilizados para pesquisas que, a pretexto de progresso científico ou médico, na realidade reduzem a vida humana a simples " material biológico ", de que se pode livremente dispor.
Os diagnósticos pré-natais, que não apresentam dificuldades morais quando feitos para individuar a eventualidade de curas necessárias à criança ainda no seio materno, tornam-se, com muita frequência, ocasião para propor e solicitar o aborto. É o aborto eugénico, cuja legitimação, na opinião pública, nasce de uma mentalidade - julgada, erradamente, coerente com as exigências " terapêuticas " - que acolhe a vida apenas sob certas condições, e que recusa a limitação, a deficiência, a enfermidade.
Seguindo a mesma lógica, chegou-se a negar os cuidados ordinários mais elementares, mesmo até a alimentação, a crianças nascidas com graves deficiências ou enfermidades. E o cenário contemporâneo apresenta-se ainda mais desconcertante com as propostas - avançadas aqui e além - para, na mesma linha do direito ao aborto, se legitimar até o infanticídio, retornando assim a um estado de barbárie que se esperava superado para sempre.
15. Ameaças não menos graves pesam também sobre os doentes incuráveis e os doentes terminais, num contexto social e cultural que, tornando mais difícil enfrentar e suportar o sofrimento, aviva a tentação de resolver o problema do sofrimento eliminando-o pela raiz, com a antecipação da morte para o momento considerado mais oportuno.
Para tal decisão concorrem, muitas vezes, elementos de natureza diversa mas infelizmente convergentes para essa terrível saída. Pode ser decisivo, na pessoa doente, o sentimento de angústia, exasperação, ou até desespero, provocado por uma experiência de dor intensa e prolongada. Vêem-se, assim, duramente postos à prova os equilíbrios, por vezes já abalados, da vida pessoal e familiar, de maneira que, por um lado, o doente, não obstante os auxílios cada vez mais eficazes da assistência médica e social, corre o risco de se sentir esmagado pela própria fragilidade; por outro lado, naqueles que lhe estão afectivamente ligados, pode gerar-se um sentimento de compreensível, ainda que mal-entendida, compaixão. Tudo isto fica agravado por uma atmosfera cultural que não vê qualquer significado nem valor no sofrimento, antes considera-o como o mal por excelência, que se há-de eliminar a todo o custo; isto verifica- -se especialmente quando não se possui uma visão religiosa que ajude a decifrar positivamente o mistério da dor.
Mas, no conjunto do horizonte cultural, não deixa de incidir também uma espécie de atitude prometéica do homem que, desse modo, se ilude de poder apropriar-se da vida e da morte para decidir delas, quando na realidade acaba derrotado e esmagado por uma morte irremediavelmente fechada a qualquer perspectiva de sentido e a qualquer esperança. Uma trágica expressão de tudo isto, encontramo-la na difusão da eutanásia, ora mascarada e subreptícia, ora actuada abertamente e até legalizada. Para além do motivo de presunta compaixão diante da dor do paciente, às vezes pretende-se justificar a eutanásia também com uma razão utilitarista, isto é, para evitar despesas improdutivas demasiado gravosas para a sociedade. Propõe-se, assim, a supressão dos recém-nascidos defeituosos, dos deficientes profundos, dos inválidos, dos idosos, sobretudo quando não auto-suficientes, e dos doentes terminais. Nem nos é lícito calar frente a outras formas mais astuciosas, mas não menos graves e reais, de eutanásia, como são as que se poderiam verificar, por exemplo, quando, para aumentar a disponibilidade de material para transplantes, se procedesse à extracção dos órgãos sem respeitar os critérios objectivos e adequados de certificação da morte do dador.
16. Outro motivo actual, que frequentemente é acompanhado por ameaças e atentados à vida, é o fenómeno demográfico. Este reveste aspectos diversos, nas várias partes do mundo: nos países ricos e desenvolvidos, regista-se uma preocupante diminuição ou queda da natalidade; os países pobres, ao contrário, apresentam em geral uma elevada taxa de aumento da população, dificilmente suportável num contexto de menor progresso económico e social, ou até de grave subdesenvolvimento. Face ao sobrepovoamento dos países pobres, verifica-se, a nível internacional, a falta de intervenções globais - sérias políticas familiares e sociais, programas de crescimento cultural e de justa produção e distribuição dos recursos - enquanto se continuam a actuar políticas anti-natalistas.
Devendo, sem dúvida, incluir-se a contracepção, a esterilização e o aborto entre as causas que contribuem para determinar as situações de forte queda da natalidade, pode ser fácil a tentação de recorrer aos mesmos métodos e atentados contra a vida, nas situações de " explosão demográfica ".
O antigo Faraó, sentindo como um íncubo a presença e a multiplicação dos filhos de Israel, sujeitou-os a todo o tipo de opressão e ordenou que fossem mortas todas as crianças do sexo masculino (cf. Ex 1, 7-22). Do mesmo modo se comportam hoje bastantes poderosos da terra.
Também estes vêem como um íncubo o crescimento demográfico em acto, e temem que os povos mais prolíferos e mais pobres representem uma ameaça para o bem-estar e a tranquilidade dos seus países. Consequentemente, em vez de procurarem enfrentar e resolver estes graves problemas dentro do respeito da dignidade das pessoas e das famílias e do inviolável direito de cada homem à vida, preferem promover e impor, por qualquer meio, um maciço planeamento da natalidade. As próprias ajudas económicas, que se dizem dispostos a dar, ficam injustamente condicionadas à aceitação desta política anti-natalista.
17. A humanidade de hoje oferece-nos um espectáculo verdadeiramente alarmante, se pensarmos não só aos diversos âmbitos em que se realizam os atentados à vida, mas também à singular dimensão numérica dos mesmos, bem como ao múltiplo e poderoso apoio que lhes é dado pelo amplo consenso social, pelo frequente reconhecimento legal, pelo envolvimento de uma parte dos profissionais da saúde.
Como senti dever bradar em Denver, por ocasião do VIII Dia Mundial da Juventude, " com o tempo, as ameaças contra a vida não diminuíram. Elas, ao contrário, assumem dimensões enormes. Não se trata apenas de ameaças vindas do exterior, de forças da natureza ou dos " Cains " que assassinam os " Abéis "; não, trata-se de ameaças programadas de maneira científica e sistemática. O século XX ficará considerado uma época de ataques maciços contra a vida, uma série infindável de guerras e um massacre permanente de vidas humanas inocentes. Os falsos profetas e os falsos mestres conheceram o maior sucesso possível ".15 Para além das intenções, que podem ser várias e quiçá assumir formas persuasivas em nome até da solidariedade, a verdade é que estamos perante uma objectiva " conjura contra a vida " que vê também implicadas Instituições Internacionais, empenhadas a encorajar e programar verdadeiras e próprias campanhas para difundir a contracepção, a esterilização e o aborto. Não se pode negar, enfim, que os mass-media são frequentemente cúmplices dessa conjura, ao abonarem junto da opinião pública aquela cultura que apresenta o recurso à contracepção, à esterilização, ao aborto e à própria eutanásia como sinal do progresso e conquista da liberdade, enquanto descrevem como inimigas da liberdade e do progresso as posições incondicionalmente a favor da vida.
" Sou, porventura, guarda do meu irmão? " (Gn 4, 9): uma noção perversa de liberdade
18. O panorama descrito requer ser conhecido não somente nos fenómenos de morte que o caracterizam, mas também nas múltiplas causas que o determinam. A pergunta do Senhor " que fizeste? " (Gn 4, 10) quase parece um convite dirigido a Caim para que, ultrapassando a materialidade do gesto homicida, veja toda a gravidade nas motivações que estão na sua origem e nas consequências que dele derivam.
As opções contra a vida nascem, às vezes, de situações difíceis ou mesmo dramáticas de profundo sofrimento, de solidão, de carência total de perspectivas económicas, de depressão e de angústia pelo futuro. Estas circunstâncias podem atenuar, mesmo até notavelmente, a responsabilidade subjectiva e, consequentemente, a culpabilidade daqueles que realizam tais opções em si mesmas criminosas. Hoje, todavia, o problema estende-se muito para além do reconhecimento, sempre necessário, destas situações pessoais. Põe-se também no plano cultural, social e político, onde apresenta o seu aspecto mais subversivo e perturbador na tendência, cada vez mais largamente compartilhada, de interpretar os mencionados crimes contra a vida como legítimas expressões da liberdade individual, que hão-de ser reconhecidas e protegidas como verdadeiros e próprios direitos.
Chega assim a uma viragem de trágicas consequências, um longo processo histórico, o qual, depois de ter descoberto o conceito de " direitos humanos " - como direitos inerentes a cada pessoa e anteriores a qualquer Constituição e legislação dos Estados -, incorre hoje numa estranha contradição: precisamente numa época em que se proclamam solenemente os direitos invioláveis da pessoa e se afirma publicamente o valor da vida, o próprio direito à vida é praticamente negado e espezinhado, particularmente nos momentos mais emblemáticos da existência, como são o nascer e o morrer.
Por um lado, as várias declarações dos direitos do homem e as múltiplas iniciativas que nelas se inspiram, indicam a consolidação a nível mundial de uma sensibilidade moral mais diligente em reconhecer o valor e a dignidade de cada ser humano enquanto tal, sem qualquer distinção de raça, nacionalidade, religião, opinião política, estrato social.
Por outro lado, a estas nobres proclamações contrapõem-se, infelizmente nos factos, a sua trágica negação. Esta é ainda mais desconcertante, antes mais escandalosa, precisamente porque se realiza numa sociedade que faz da afirmação e tutela dos direitos humanos o seu objectivo principal e, conjuntamente, o seu título de glória. Como pôr de acordo essas repetidas afirmações de princípio com a contínua multiplicação e a difusa legitimação dos atentados à vida humana? Como conciliar estas declarações com a recusa do mais débil, do mais carenciado, do idoso, daquele que acaba de ser concebido? Estes atentados encaminham-se exactamente na direcção contrária à do respeito pela vida e representam uma ameaça frontal a toda a cultura dos direitos do homem. É uma ameaça capaz, em última análise, de pôr em risco o próprio significado da convivência democrática: de sociedade de " con-viventes ", as nossas cidades correm o risco de passar a sociedade de excluídos, marginalizados, irradiados e suprimidos. Se depois o olhar se alarga ao horizonte mundial, como não pensar que a afirmação dos direitos das pessoas e dos povos, verificada em altas reuniões internacionais, se reduz a um estéril exercício retórico, se lá não é desmascarado o egoísmo dos países ricos que fecham aos países pobres o acesso ao desenvolvimento ou o condicionam a proibições absurdas de procriação, contrapondo o progresso ao homem? Porventura não é de pôr em discussão os próprios modelos económicos, adoptados pelos Estados frequentemente também por pressões e condicionamentos de carácter internacional, que geram e alimentam situações de injustiça e violência, nas quais a vida humana de populações inteiras fica degradada e espezinhada?
19. Onde estão as raízes de uma contradição tão paradoxal? Podemo-las individuar em avaliações globais de ordem cultural e moral, a começar daquela mentalidade que, exasperando e até deformando o conceito de subjectividade, só reconhece como titular de direitos quem se apresente com plena ou, pelo menos, incipiente autonomia e esteja fora da condição de total dependência dos outros. Mas, como conciliar tal impostação com a exaltação do homem enquanto ser " não-disponível "? A teoria dos direitos humanos funda-se precisamente na consideração do facto de o homem, ao contrário dos animais e das coisas, não poder estar sujeito ao domínio de ninguém. Deve-se acenar ainda àquela lógica que tende a identificar a dignidade pessoal com a capacidade de comunicação verbal e explícita e, em todo o caso, experimentável. Claro que, com tais pressupostos, não há espaço no mundo para quem, como o nascituro ou o doente terminal, é um sujeito estruturalmente débil, parece totalmente à mercê de outras pessoas e radicalmente dependente delas, e sabe comunicar apenas mediante a linguagem muda de uma profunda simbiose de afectos. Assim a força torna-se o critério de decisão e de acção, nas relações interpessoais e na convivência social. Mas isto é precisamente o contrário daquilo que, historicamente, quis afirmar o Estado de direito, como comunidade onde as " razões da força " são substituídas pela " força da razão ".
A outro nível, as raízes da contradição que se verifica entre a solene afirmação dos direitos do homem e a sua trágica negação na prática, residem numa concepção da liberdade que exalta o indivíduo de modo absoluto e não o predispõe para a solidariedade, o pleno acolhimento e serviço do outro. Se é certo que, por vezes, a supressão da vida nascente ou terminal aparece também matizada com um sentido equivocado de altruísmo e de compaixão humana, não se pode negar que tal cultura de morte, no seu todo, manifesta uma concepção da liberdade totalmente individualista que acaba por ser a liberdade dos " mais fortes " contra os débeis, destinados a sucumbir.
Precisamente neste sentido, se pode interpretar a resposta de Caim à pergunta do Senhor " onde está Abel, teu irmão? ": " Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão? " (Gn 4, 9). Sim, todo o homem é " guarda do seu irmão ", porque Deus confia o homem ao homem. E é tendo em vista também tal entrega que Deus dá a cada homem a liberdade, que possui uma dimensão relacional essencial. Trata-se de um grande dom do Criador, quando colocada como deve ser ao serviço da pessoa e da sua realização mediante o dom de si e o acolhimento do outro; quando, pelo contrário, a liberdade é absolutizada em chave individualista, fica esvaziada do seu conteúdo originário e contestada na sua própria vocação e dignidade.
Mas há um aspecto ainda mais profundo a sublinhar: a liberdade renega-se a si mesma, autodestrói-se e predispõe-se à eliminação do outro, quando deixa de reconhecer e respeitar a sua ligação constitutiva com a verdade. Todas as vezes que a razão humana, querendo emancipar-se de toda e qualquer tradição e autoridade, se fecha até às evidências primárias de uma verdade objectiva e comum, fundamento da vida pessoal e social, a pessoa acaba por assumir como única e indiscutível referência para as próprias decisões, não já a verdade sobre o bem e o mal, mas apenas a sua subjectiva e volúvel opinião ou, simplesmente, o seu interesse egoísta e o seu capricho.
20. Nesta concepção da liberdade, a convivência social fica profundamente deformada. Se a promoção do próprio eu é vista em termos de autonomia absoluta, inevitavelmente chega-se à negação do outro, visto como um inimigo de quem defender-se. Deste modo, a sociedade torna-se um conjunto de indivíduos, colocados uns ao lado dos outros mas sem laços recíprocos: cada um quer afirmar-se independentemente do outro, mais, quer fazer prevalecer os seus interesses. Todavia, na presença de análogos interesses da parte do outro, terá de se render a procurar qualquer forma de compromisso, se se quer que, na sociedade, seja garantido a cada um o máximo de liberdade possível. Deste modo, diminui toda a referência a valores comuns e a uma verdade absoluta para todos: a vida social aventura-se pelas areias movediças de um relativismo total. Então, tudo é convencional, tudo é negociável: inclusivamente o primeiro dos direitos fundamentais, o da vida.
É aquilo que realmente acontece, mesmo no âmbito mais especificamente político e estatal: o primordial e inalienável direito à vida é posto em discussão ou negado com base num voto parlamentar ou na vontade de uma parte - mesmo que seja maioritária - da população. É o resultado nefasto de um relativismo que reina incontestado: o próprio " direito " deixa de o ser, porque já não está solidamente fundado sobre a inviolável dignidade da pessoa, mas fica sujeito à vontade do mais forte. Deste modo e para descrédito das suas regras, a democracia caminha pela estrada de um substancial totalitarismo. O Estado deixa de ser a " casa comum ", onde todos podem viver segundo princípios de substancial igualdade, e transforma-se num Estado tirano, que presume de poder dispor da vida dos mais débeis e indefesos, desde a criança ainda não nascida até ao idoso, em nome de uma utilidade pública que, na realidade, não é senão o interesse de alguns.
Tudo parece acontecer no mais firme respeito da legalidade, pelo menos quando as leis, que permitem o aborto e a eutanásia, são votadas segundo as chamadas regras democráticas. Na verdade, porém, estamos perante uma mera e trágica aparência de legalidade, e o ideal democrático, que é verdadeiramente tal apenas quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana, é atraiçoado nas suas próprias bases: " Como é possível falar ainda de dignidade de toda a pessoa humana, quando se permite matar a mais débil e a mais inocente? Em nome de qual justiça se realiza a mais injusta das discriminações entre as pessoas, declarando algumas dignas de ser defendidas, enquanto a outras esta dignidade é negada? ".16 Quando se verificam tais condições, estão já desencadeados aqueles mecanismos que levam à dissolução da convivência humana autêntica e à desagregação da própria realidade estatal.
Reivindicar o direito ao aborto, ao infanticídio, à eutanásia, e reconhecê-lo legalmente, equivale a atribuir à liberdade humana um significado perverso e iníquo: o significado de um poder absoluto sobre os outros e contra os outros. Mas isto é a morte da verdadeira liberdade: " Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é escravo do pecado " (Jo 8, 34).
" Obrigado a ocultar-me longe da tua face " (Gn 4, 14): o eclipse do sentido de Deus e do homem
21. Quando se procuram as raízes mais profundas da luta entre a " cultura da vida " e a " cultura da morte ", não podemos deter-nos na noção perversa de liberdade acima referida. É necessário chegar ao coração do drama vivido pelo homem contemporâneo: o eclipse do sentido de Deus e do homem, típico de um contexto social e cultural dominado pelo secularismo que, com os seus tentáculos invasivos, não deixa às vezes de pôr à prova as próprias comunidades cristãs. Quem se deixa contagiar por esta atmosfera, entra facilmente na voragem de um terrível círculo vicioso: perdendo o sentido de Deus, tende-se a perder também o sentido do homem, da sua dignidade e da sua vida; por sua vez, a sistemática violação da lei moral, especialmente na grave matéria do respeito da vida humana e da sua dignidade, produz uma espécie de ofuscamento progressivo da capacidade de enxergar a presença vivificante e salvífica de Deus.
Podemos, mais uma vez, inspirar-nos na narração da morte de Abel provocada pelo seu irmão. Depois da maldição infligida por Deus a Caim, este dirige-se ao Senhor dizendo: " A minha culpa é grande demais para obter perdão. Expulsas-me hoje desta terra;obrigado a ocultar-me longe da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar-me matar-me-á " (Gn 4, 13-14).
Caim pensa que o seu pecado não poderá obter perdão do Senhor e que o seu destino inevitável será " ocultar-se longe " d'Ele. Se Caim chega a confessar que a sua culpa é " grande demais ", é por saber que se encontra diante de Deus e do seu justo juízo. Na realidade, só diante do Senhor é que o homem pode reconhecer o seu pecado e perceber toda a sua gravidade. Tal foi a experiência de David, que, depois " de ter feito o que é mal aos olhos do Senhor " e de ser repreendido pelo profeta Natã (cf. 2 Sam 11-12), exclama: " Eu reconheço os meus pecados, e as minhas culpas tenho-as sempre diante de mim. Pequei contra Vós, só contra Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos " (Sal 5150, 5-6).
22. Por isso, quando declina o sentido de Deus, também o sentido do homem fica ameaçado e adulterado, como afirma de maneira lapidar o Concílio Vaticano II: " Sem o Criador, a criatura não subsiste. (...) Antes, se se esquece Deus, a própria criatura se obscurece ".17 O homem deixa de conseguir sentir-se como " misteriosamente outro " face às diversas criaturas terrenas; considera-se apenas como um de tantos seres vivos, como um organismo que, no máximo, atingiu um estado muito elevado de perfeição. Fechado no estreito horizonte da sua dimensão física, reduz-se de certo modo a " uma coisa ", deixando de captar o carácter " transcendente " do seu " existir como homem ". Deixa de considerar a vida como um dom esplêndido de Deus, uma realidade " sagrada " confiada à sua responsabilidade e, consequentemente, à sua amorosa defesa, à sua " veneração ". A vida torna-se simplesmente " uma coisa ", que ele reivindica como sua exclusiva propriedade, que pode plenamente dominar e manipular.
Assim, diante da vida que nasce e da vida que morre, o homem já não é capaz de se deixar interrogar sobre o sentido mais autêntico da sua existência, assumindo com verdadeira liberdade estes momentos cruciais do próprio " ser ". Preocupa-se somente com o " fazer ", e, recorrendo a qualquer forma de tecnologia, moureja a programar, controlar e dominar o nascimento e a morte. Estes acontecimentos, em vez de experiências primordiais que requerem ser " vividas ", tornam-se coisas que se pretende simplesmente " possuir " ou " rejeitar ".
Aliás, uma vez excluída a referência a Deus, não surpreende que o sentido de todas as coisas resulte profundamente deformado, e a própria natureza, já não vista como mater 1, fique reduzida a " material " sujeito a todas as manipulações. A isto parece conduzir certa mentalidade técnico-científica, predominante na cultura contemporânea, que nega a ideia mesma de uma verdade própria da criação que se há-de reconhecer, ou de um desígnio de Deus sobre a vida que temos de respeitar. E isto não é menos verdade, quando a angústia pelos resultados de tal " liberdade sem lei " induz alguns à exigência oposta de uma " lei sem liberdade ", como sucede, por exemplo, em ideologias que contestam a legitimidade de qualquer forma de intervenção sobre a natureza, como que em nome de uma sua " divinização ", o que uma vez mais menospreza a sua dependência do desígnio do Criador.
Na realidade, vivendo " como se Deus não existisse ", o homem perde o sentido não só do mistério de Deus, mas também do mistério do mundo, e do mistério do seu próprio ser.
23. O eclipse do sentido de Deus e do homem conduz inevitavelmente ao materialismo prático, no qual prolifera o individualismo, o utilitarismo e o hedonismo. Também aqui se manifesta a validade perene daquilo que escreve o Apóstolo: " Como não procuraram ter de Deus conhecimento perfeito, entregou-os Deus a um sentimento pervertido, a fim de que fizessem o que não convinha (Rm 1, 28). Assim os valores do ser ficam substituídos pelos do ter.
O único fim que conta, é a busca do próprio bem-estar material. A chamada " qualidade de vida " é interpretada prevalente ou exclusivamente como eficiência económica, consumismo desenfreado, beleza e prazer da vida física, esquecendo as dimensões mais profundas da existência, como são as interpessoais, espirituais e religiosas.
Em tal contexto, o sofrimento - peso inevitável da existência humana mas também factor de possível crescimento pessoal -, é " deplorado ", rejeitado como inútil, ou mesmo combatido como mal a evitar sempre e por todos os modos. Quando não é possível superá-lo e a perspectiva de um bem-estar, pelo menos futuro, se desvanece, parece então que a vida perdeu todo o significado e cresce no homem a tentação de reivindicar o direito à sua eliminação.
Sempre no mesmo horizonte cultural, o corpo deixa de ser visto como realidade tipicamente pessoal, sinal e lugar da relação com os outros, com Deus e com o mundo. Fica reduzido à dimensão puramente material: é um simples complexo de órgãos, funções e energias, que há-de ser usado segundo critérios de mero prazer e eficiência. Consequentemente, também a sexualidade fica despersonalizada e instrumentalizada: em lugar de ser sinal, lugar e linguagem do amor, ou seja, do dom de si e do acolhimento do outro na riqueza global da pessoa, torna-se cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos. Deste modo se deforma e falsifica o conteúdo original da sexualidade humana, e os seus dois significados - unitivo e procriativo -, inerentes à própria natureza do acto conjugal, acabam artificialmente separados: assim a união é atraiçoada e a fecundidade fica sujeita ao arbítrio do homem e da mulher. A geração torna-se, então, o " inimigo " a evitar no exercício da sexualidade: se aceite, é-o apenas porque exprime o próprio desejo ou mesmo a determinação de ter o filho " a todo o custo ", e não já porque significa total acolhimento do outro e, por conseguinte, abertura à riqueza de vida que o filho é portador.
Na perspectiva materialista até aqui descrita, as relações interpessoais experimentam um grave empobrecimento. E os primeiros a sofrerem os danos são a mulher, a criança, o enfermo ou atribulado, o idoso. O critério próprio da dignidade pessoal - isto é, o do respeito, do altruísmo e do serviço - é substituído pelo critério da eficiência, do funcional e da utilidade: o outro é apreciado não por aquilo que " é ", mas por aquilo que " tem, faz e rende ". É a supremacia do mais forte sobre o mais fraco.
24. É no íntimo da consciência moral que se consuma o eclipse do sentido de Deus e do homem, com todas as suas múltiplas e funestas consequências sobre a vida. Em questão está, antes de mais, a consciência de cada pessoa, onde esta, na sua unicidade e irrepetibilidade, se encontra a sós com Deus.18 Mas, em certo sentido, é posta em questão também a " consciência moral " da sociedade: esta é, de algum modo, responsável, não só porque tolera ou favorece comportamentos contrários à vida, mas também porque alimenta a " cultura da morte ", chegando a criar e consolidar verdadeiras e próprias " estruturas de pecado " contra a vida. A consciência moral, tanto do indivíduo como da sociedade, está hoje - devido também à influência invasora de muitos meios de comunicação social -, exposta a um perigo gravíssimo e mortal: o perigo da confusão entre o bem e o mal, precisamente no que se refere ao fundamental direito à vida. Uma parte significativa da sociedade actual revela-se tristemente semelhante àquela humanidade que Paulo descreve na Carta aos Romanos. É feita " de homens que sufocam a verdade na injustiça " (1, 18): tendo renegado Deus e julgando poder construir a cidade terrena sem Ele, " desvaneceram nos seus pensamentos ", pelo que " se obscureceu o seu insensato coração " (1, 21); " considerando-se sábios, tornaram-se néscios " (1, 22), fizeram-se autores de obras dignas de morte, e " não só as cometem, como também aprovam os que as praticam " (1, 32). Quando a consciência, esse luminoso olhar da alma (cf. Mt 6, 22-23), chama " bem ao mal e mal ao bem " (Is 5, 20), está já no caminho da sua degeneração mais preocupante e da mais tenebrosa cegueira moral.
Mas todos esses condicionalismos e tentativas de impor silêncio não conseguem sufocar a voz do Senhor, que ressoa na consciência de cada homem: é sempre deste sacrário íntimo da consciência que pode recomeçar um novo caminho de amor, de acolhimento e de serviço à vida humana.
" Aproximaste-vos do sangue de aspersão " (cf. Heb 12, 22.24): sinais de esperança e convite ao compromisso
25. " A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim! " (Gn 4, 10). Não é só a voz do sangue de Abel, o primeiro inocente morto, a gritar por Deus, fonte e defensor da vida. Também o sangue de todos os outros homens, assassinados depois de Abel, é voz que brada ao Senhor. De uma forma absolutamente única, porém, grita a Deus a voz do sangue de Cristo, de quem Abel, na sua inocência, é figura profética, como nos recorda o autor da Carta aos Hebreus: " Vós, porém, aproximaste-vos do monte de Sião, da cidade do Deus vivo, (...) de Jesus, o Mediador da Nova Aliança, e de um sangue de aspersão que fala melhor do que o de Abel " (12, 22.24).
É o sangue de aspersão. Símbolo e sinal prefigurador dele fora o sangue dos sacrifícios da Antiga Aliança, com os quais Deus exprimia a vontade de comunicar a sua vida aos homens, purificando-os e consagrando-os (cf. Ex 24, 8; Lv 17, 11). Agora em Cristo, tudo isso se cumpre e realiza: o d'Ele é o sangue de aspersão que redime, purifica e salva; é o sangue do Mediador da Nova Aliança, " derramado por muitos, em remissão dos pecados " (Mt 26, 28). Este sangue, que brota do peito trespassado de Cristo na Cruz (cf. Jo 19, 34), " fala melhor " do que o sangue de Abel; aquele, com efeito, exprime e exige uma " justiça " mais profunda, mas sobretudo implora misericórdia,19 torna-se junto do Pai intercessão pelos irmãos (cf. Heb 7, 25), é fonte de perfeita redenção e dom de vida nova.
O sangue de Cristo, ao mesmo tempo que revela a grandeza do amor do Pai, manifesta também como o homem é precioso aos olhos de Deus e quão inestimável seja o valor da sua vida. Isto mesmo nos recorda o apóstolo Pedro: " Sabei que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver, recebida por tradição dos vossos pais, não a preço de coisas corruptíveis, prata ou ouro, mas pelo sangue precioso de Cristo, como de um cordeiro imaculado e sem defeito algum " (1 Ped 1, 18-19). Contemplando precisamente o sangue precioso de Cristo, sinal da sua doação de amor (cf. Jo 13, 1), o crente aprende a reconhecer e a apreciar a dignidade quase divina de cada homem, e pode exclamar com incessante e agradecida admiração: " Que grande valor deve ter o homem aos olhos do Criador, se "mereceu tão grande Redentor" (Precónio Pascal), se "Deus deu o seu Filho", para que ele, o homem, "não pereça, mas tenha a vida eterna" (cf. Jo 3, 16) "! 20
Além disso, o sangue de Cristo revela ao homem que a sua grandeza e, consequentemente, a sua vocação consiste no dom sincero de si. Precisamente porque é derramado como dom de vida, o sangue de Jesus já não é sinal de morte, de separação definitiva dos irmãos, mas instrumento de uma comunhão que é riqueza de vida para todos. Quem, no sacramento da Eucaristia, bebe este sangue e permanece em Jesus (cf. Jo 6, 56), vê-se associado ao mesmo dinamismo de amor e doação de vida d'Ele, para levar à plenitude a primordial vocação ao amor que é própria de cada homem (cf. Gn 1, 27; 2, 18-24).
É, enfim, do sangue de Cristo que todos os homens recebem a força para se empenharem a favor da vida. Precisamente esse sangue é o motivo mais forte de esperança, melhor é o fundamento da certeza absoluta de que, segundo o desí- gnio de Deus, a vitória será da vida. " Nunca mais haverá morte " - exclama a voz poderosa que sai do trono de Deus na Jerusalém celeste (Ap 21, 4). E S. Paulo assegura-nos que a vitória actual sobre o pecado é sinal e antecipação da vitória definitiva sobre a morte, quando " se cumprirá o que está escrito: "A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?" " (1 Cor 15, 54-55).
26. Na realidade, não faltam prenúncios desta vitória nas nossas sociedade e culturas, apesar de marcadas tão fortemente pela " cultura da morte ". Dar-se-ia, por conseguinte, uma imagem unilateral que poderia induzir a um estéril desânimo, se a denúncia das ameaças contra a vida não fosse acompanhada pela apresentação dos sinais positivos, operantes na actual situação da humanidade.
Infelizmente, estes sinais positivos têm com frequência dificuldade em manifestar-se e ser reconhecidos, talvez também porque não recebem adequada atenção dos meios de comunicação social. Mas quantas iniciativas de ajuda e amparo às pessoas mais débeis e indefesas surgiram - e continuam a surgir - na comunidade cristã e na sociedade, a nível local, nacional e internacional, por obra de indivíduos, grupos, movimentos e organizações de vário género!
Muitos são ainda os esposos que, com generosa responsabilidade, sabem acolher os filhos como " o maior dom do matrimónio ".21 E não faltam famílias que, para além do seu serviço quotidiano à vida, sabem também abrir-se ao acolhimento de crianças abandonadas, de adolescentes e jovens em dificuldade, de pessoas inválidas, de idosos que vivem na solidão. Numerosos são os centros de ajuda à vida ou instituições análogas, dinamizadas por pessoas e grupos que, com admirável dedicação e sacrifício, oferecem apoio moral e material às mães em dificuldade, tentadas a recorrer ao aborto. Surgem e multiplicam-se ainda os grupos de voluntários, empenhados em dar hospitalidade a quem não tem família, encontra-se em condições de particular dificuldade ou precisa de reencontrar um ambiente educativo que o ajude a superar hábitos destrutivos e recuperar o sentido da vida.
A medicina, promovida com grande empenho por investigadores e profissionais, prossegue no seu esforço por encontrar remédios cada vez mais eficazes: resultados, antes totalmente impensáveis e capazes de abrir promissoras perspectivas, são hoje obtidos em favor da vida nascente, das pessoas que sofrem e dos doentes em fase grave ou terminal. Várias entidades e organizações se mobilizam para levar aos países mais atingidos pela miséria e por doenças crónicas, tais benefícios da medicina mais avançada. Do mesmo modo, associações nacionais e internacionais de médicos movem-se rapidamente, para prestar socorro às populações provadas por calamidades naturais, epidemias ou guerras. Apesar de estar ainda longe da sua plena consecução uma verdadeira justiça internacional na partilha dos recursos médicos, como não reconhecer, nos passos até agora dados, o sinal de crescente solidariedade entre os povos, de apreciável sensibilidade humana e moral, e de maior respeito pela vida?
27. Face a legislações que permitiram o aborto e a tentativas, aqui e além concretizadas, de legalizar a eutanásia, surgiram em todo o mundo movimentos e iniciativas de sensibilização social a favor da vida. Quando estes movimentos, de acordo com a sua inspiração autêntica, agem com determinada firmeza mas sem recorrer à violência, então eles favorecem uma tomada de consciência mais ampla e profunda do valor da vida, fazem apelo e realizam um empenho mais decisivo em sua defesa.
Como não recordar, além disso, todos aqueles gestos diários de acolhimento, de sacrifício, de cuidado desinteressado, que um número incalculável de pessoas realiza com amor nas famílias, nos hospitais, nos orfanatos, nos lares da terceira idade, e noutros centros ou comunidades em defesa da vida? A Igreja, deixando-se guiar pelo exemplo de Jesus, " bom samaritano " (cf. Lc 10, 29-37), e sustentada pela sua força, sempre esteve em primeira fila nestes confins da caridade: muitos dos seus filhos e filhas, especialmente religiosas e religiosos, em formas antigas e novas, consagraram e continuam a consagrar a sua vida a Deus, dando-a por amor do próximo mais débil e necessitado.
Estes gestos constroem em profundidade aquela " civilização do amor e da vida ", sem a qual a existência das pessoas e da sociedade perde o seu significado humano mais autêntico. Ainda que ninguém os notasse, e ficassem escondidos aos olhos dos outros, a fé assegura que o Pai, " que vê no segredo " (Mt 6, 4), saberá não só recompensá-los, mas também torná-los desde já fecundos de frutos duradouros para todos.
Entre os sinais de esperança, há que incluir ainda o crescimento, em muitos estratos da opinião pública, de uma nova sensibilidade cada vez mais contrária à guerra como instrumento de solução dos conflitos entre os povos, e sempre mais inclinada à busca de instrumentos eficazes, mas " não violentos ", para bloquear o agressor armado. No mesmo horizonte, se coloca igualmente a aversão cada vez mais difusa na opinião pública à pena de morte - mesmo vista só como instrumento de " legítima defesa " social -, tendo em consideração as possibilidades que uma sociedade moderna dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma que, enquanto torna inofensivo aquele que o cometeu, não lhe tira definitivamente a possibilidade de se redimir.
Também ocorre saudar favoravelmente a atenção crescente à qualidade de vida e à ecologia, que se regista sobretudo nas sociedades mais avançadas, nas quais os anseios das pessoas já não estão concentrados tanto sobre os problemas da sobrevivência como sobretudo na procura de um melhoramento global das condições de vida. Particularmente significativo é o despertar da reflexão ética acerca da vida: a aparição e o desenvolvimento cada vez maior da bioética favoreceu a reflexão e o diálogo - entre crentes e não crentes, como também entre crentes de diversas religiões - sobre problemas éticos, mesmo fundamentais, que dizem respeito à vida do homem.
28. Este horizonte de luzes e sombras deve tornar-nos, a todos, plenamente conscientes de que nos encontramos perante um combate gigantesco e dramático entre o mal e o bem, a morte e a vida, a " cultura da morte " e a " cultura da vida ". Encontramo-nos não só " diante ", mas necessariamente " no meio " de tal conflito: todos estamos implicados e tomamos parte nele, com a responsabilidade iniludível de decidir incondicionalmente a favor da vida.
Também para nós, ressoa claro e forte o convite de Moisés: " Vê, ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o bem; do outro, a morte e o mal. (...) Coloco diante de ti a vida e a morte, a felicidade e a maldição. Escolhe a vida, e então viverás com toda a tua posteridade " (Dt 30, 15.19). É um convite muito apropriado para nós, chamados cada dia a ter de escolher entre a " cultura da vida " e a " cultura da morte ". Mas o apelo do Deuteronómio é ainda mais profundo, porque nos chama a uma opção especificamente religiosa e moral. Trata-se de dar à própria existência uma orientação fundamental, vivendo com fidelidade e coerência a Lei do Senhor: " Recomendo-te hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis e seus decretos. (...) Escolhe a vida, e então viverás com toda a tua posteridade. Ama o Senhor, teu Deus, escuta a sua voz e permanece-Lhe fiel, porque é Ele a tua vida e a longevidade dos teus dias " (30, 16.19-20).
A decisão incondicional a favor da vida atinge em plenitude o seu significado religioso e moral, quando brota, é plasmada e alimentada pela fé em Cristo. Nada ajuda tanto a enfrentar positivamente o conflito entre a morte e a vida, no qual estamos imersos, como a fé no Filho de Deus que Se fez homem e veio habitar entre os homens, " para que tenham vida, e a tenham em abundância " (Jo 10, 10): é a fé no Ressuscitado, que venceu a morte; é a fé no sangue de Cristo " que fala melhor do que o de Abel " (Heb 12, 24).
Assim, com a luz e a força desta fé, perante os desafios da situação actual, a Igreja toma consciência mais viva da graça e da responsabilidade, que lhe vêm do seu Senhor, de anunciar, celebrar e servir o Evangelho da vida.
CAPÍTULO II - VIM PARA QUE TENHAM VIDA
A MENSAGEM CRISTÃ SOBRE A VIDA
29. Frente às inumeráveis e graves ameaças contra a vida, presentes no mundo contemporâneo, poder-se-ia ficar como que dominado por um sentido de impotência insuperável: jamais o bem poderá ter força para vencer o mal!
Este é o momento em que o Povo de Deus, e nele cada um dos crentes, é chamado a professar, com humildade e coragem, a própria fé em Jesus Cristo, " o Verbo da vida " (1 Jo 1, 1). O Evangelho da vida não é uma simples reflexão, mesmo se original e profunda, sobre a vida humana; nem é apenas um preceito destinado a sensibilizar a consciência e provocar mudanças significativas na sociedade; tampouco é a ilusória promessa de um futuro melhor. O Evangelho da vida é uma realidade concreta e pessoal, porque consiste no anúncio da própria pessoa de Jesus. Ao apóstolo Tomé, e nele a cada homem, Jesus apresenta-Se com estas palavras: " Eu sou o caminho, a verdade e a vida " (Jo 14, 6). A mesma identidade foi referida a Marta, irmã de Lázaro: " Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em Mim, não morrerá jamais " (Jo 11, 25-26). Jesus é o Filho que, desde toda a eternidade, recebe a vida do Pai (cf. Jo 5, 26) e veio estar com os homens, para os tornar participantes deste dom: " Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância " (Jo 10, 10).
Deste modo, a possibilidade de " conhecer " a verdade plena sobre o valor da vida humana é oferecida ao homem pela palavra, a acção e a própria pessoa de Jesus; e desta " fonte ", vem-lhe, de forma especial, a capacidade de " praticar " perfeitamente tal verdade (cf. Jo 3, 21), ou seja, a capacidade de assumir e realizar em plenitude a responsabilidade de amar e servir, de defender e promover a vida humana.
Em Cristo, de facto, é anunciado definitivamente e concedido plenamente aquele Evangelho da vida, que, oferecido já na Revelação do Antigo Testamento e, antes ainda, de algum modo escrito no próprio coração de cada homem e mulher, ressoa em toda a consciência " desde o princípio ", ou seja, desde a própria criação, de tal modo que, não obstante os condicionalismos negativos do pecado, pode também ser conhecido nos seus traços essenciais pela razão humana. Como escreve o Concílio Vaticano II, Cristo " com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do Espírito da verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação, a saber, que Deus está connosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna ".22
30. É, pois, com o olhar fixo no Senhor Jesus que desejamos novamente escutar d'Ele " as palavras de Deus " (Jo 3, 34) e meditar o Evangelho da vida. O sentido mais profundo e original desta meditação sobre a mensagem revelada relativa à vida humana foi recolhido pelo apóstolo João, quando escreve, no início da sua Primeira Carta: " O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida, - porque a vida manifestou-se, nós vimo-la, damos testemunho dela e vos anunciamos esta vida eterna que estava no Pai e que nos foi manifestada - o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco " (1, 1-3).
Então, a vida divina e eterna é anunciada e comunicada em Jesus, " Verbo da vida ". Graças a este anúncio e a este dom, a vida física e espiritual do homem, mesmo na sua fase terrena, adquire plenitude de valor e significado: com efeito, a vida divina e eterna é o fim, para o qual está orientado e chamado o homem que vive neste mundo. Assim, o Evangelho da vida encerra tudo aquilo que a própria experiência e a razão humana dizem acerca do valor da vida humana: acolhe-o, eleva-o e condu-lo à sua plena realização.
" O Senhor é a minha força e a minha glória, foi Ele quem me salvou " (Ex 15, 2): a vida é sempre um bem
31. Na verdade, a plenitude evangélica do anúncio sobre a vida fora preparada já no Antigo Testamento. É sobretudo nos acontecimentos do Êxodo, fulcro da experiência de fé do Antigo Testamento, que Israel descobre quão preciosa é aos olhos de Deus a sua vida. Quando já parece votado ao extermínio, dado que sobre todos os seus recém-nascidos do sexo masculino grava a ameaça de morte (cf. Ex 1, 15-22), o Senhor revela-Se-lhes como salvador, capaz de assegurar um futuro a quem vive sem esperança. Nasce, assim, em Israel uma certeza bem precisa: a sua vida não se acha à mercê de um faraó que a pode usar com despótico arbítrio; mas, ao contrário, é objecto de um terno e intenso amor da parte de Deus.
A libertação da escravidão é o dom de uma identidade, o reconhecimento de uma dignidade indelével e o início de uma história nova, na qual caminham lado a lado a descoberta de Deus e a descoberta de si próprio. A experiência do Êxodo é constitutiva e paradigmática. Lá Israel compreendeu que, todas as vezes que estiver ameaçado na sua existência, terá apenas de recorrer a Deus com renovada confiança para encontrar n'Ele eficaz assistência: " Formei-te, tu és meu servo; Israel, não te posso esquecer " (Is 44, 21).
Assim, enquanto reconhece o valor da própria existência como povo, Israel avança também na percepção do sentido e valor da vida como tal. É uma reflexão que se desenvolve particularmente nos Livros Sapienciais, partindo da experiência quotidiana da precariedade da vida e da consciência das ameaças que a tramam. Diante das contradições da existência, a fé é chamada a dar uma resposta.
É sobretudo o problema da dor, o que mais pressiona a fé e a põe à prova. Como não identificar o gemido universal do homem na meditação do Livro de Job? O inocente esmagado pelo sofrimento é compreensivelmente levado a interrogar-se: " Por que razão foi concedida a luz ao infeliz, e a vida àquele cuja alma está desconsolada, os quais esperam a morte sem que ela venha e a procuram com mais ardor que um tesouro? " (3, 20-21). Mas, mesmo na escuridão mais densa, a fé encaminha para o reconhecimento confiante e adorador do " mistério ": " Sei que podes tudo e que nada Te é impossível " (Job 42, 2).
Progressivamente a Revelação faz ver, com uma clareza cada vez maior, o germe de vida imortal posto pelo Criador no coração dos homens: " Todas as coisas que Deus fez são boas no seu tempo. Além disso, pôs no coração 1 a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro " (Ecl 3, 11). Este germe de totalidade e plenitude anseia por se manifestar no amor e realizar-se, por dom gratuito de Deus, na participação da sua vida eterna.
" Pela fé no nome de Jesus, este homem recobrou as forças " (Act 3, 16): na precariedade da existência humana, Jesus realiza plenamente o sentido da vida
32. A experiência do povo da Aliança renova-se em todos os " pobres " que encontram Jesus de Nazaré. Como Deus, " amante da vida " (Sab 11, 26), já tinha tranquilizado Israel no meio dos perigos, assim agora o Filho de Deus anuncia a quantos se sentem ameaçados e limitados na própria existência, que a sua vida é um bem, ao qual o amor do Pai dá sentido e valor.
" Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a boa nova é anunciada aos pobres " (Lc 7, 22). Com estas palavras do profeta Isaías (35, 5-6; 61, 1), Jesus apresenta o significado da sua própria missão: deste modo, aqueles que sofrem por causa de uma existência de qualquer modo " limitada " ouvem d'Ele a boa nova do interesse que Deus nutre por eles e têm a confirmação de que também a sua vida é um dom zelosamente guardado nas mãos do Pai (cf. Mt 6, 25-34).
Quem se sente particularmente interpelado pela pregação e acção de Jesus, são os " pobres ". As multidões de doentes e marginalizados, que O seguem e procuram (cf. Mt 4, 23-25), encontram na sua palavra e nos seus gestos a revelação do valor imenso da vida deles e de quão fundados sejam os seus anseios de salvação.
Acontece o mesmo na missão da Igreja, já desde as suas origens. Ao anunciar Jesus como Aquele que " andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele " (Act 10, 38), ela sabe que é portadora de uma mensagem de salvação que ressoa, com toda a sua novidade, precisamente nas situações de miséria e pobreza da vida humana. Assim faz Pedro, ao curar o paralítico que estava colocado diariamente junto da porta " Formosa " do templo de Jerusalém a pedir esmola: " Não tenho ouro nem prata, mas vou dar-te o que tenho: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda! " (Act 3, 6). Pela fé em Jesus, " Príncipe da vida " (Act 3, 15), a vida que ali jaz abandonada e suplicante, reencontra a consciência de si mesma e a sua plena dignidade.
A palavra e os gestos de Jesus e da sua Igreja não dizem respeito apenas a quem está enfermo, aflito pela provação, ou é vítima das diversas formas de marginalização social. Vão mais fundo, tocando o próprio sentido da vida de cada homem nas suas dimensões morais e espirituais. Só quem reconhece que a própria vida está tocada pelas mazelas do pecado, pode reencontrar a verdade e a autenticidade da própria existência junto de Jesus Salvador, segundo as suas próprias palavras: " Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos, mas os pecadores, que Eu vim chamar ao arrependimento " (Lc 5, 31-32).
Pelo contrário, aquele que à semelhança do rico agricultor da parábola evangélica julga poder assegurar a própria vida com a posse de simples bens materiais, na realidade engana-se. A vida está-lhe escapando, e bem depressa ficará privado dela sem ter chegado a perceber o seu verdadeiro significado: " Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma; e o que acumulaste para quem será? " (Lc 12, 20).
33. Na vida de Jesus, desde o início até ao fim, encontra-se esta " dialéctica " singular entre a experiência da contingência da vida humana e a afirmação do seu valor. De facto, a precariedade caracteriza a vida de Jesus, desde o seu nascimento. Ele depara certamente com o acolhimento dos justos, que se unem ao " sim " pronto e feliz de Maria (cf. Lc 1, 38). Mas logo aparece também a rejeição por parte de um mundo que se torna hostil e procura o Menino " para O matar " (Mt 2, 13), ou então fica indiferente e alheio ao cumprimento do mistério desta vida que entra no mundo: " não havia para eles lugar na hospedaria " (Lc 2, 7). Exactamente por este contraste - as ameaças e inseguranças, por um lado, e o poder do dom de Deus, pelo outro - resplandece com maior força a glória que irradia da casa de Nazaré e da manjedoura de Belém: esta vida que nasce é salvação para a humanidade inteira (cf. Lc 2, 10-11).
As contradições e riscos da vida são assumidos plenamente por Jesus: " sendo rico, fez-Se pobre por vós, a fim de vos enriquecer pela pobreza " (2 Cor 8, 9). Esta pobreza, de que fala Paulo, não é apenas despojamento dos privilégios divinos, mas também partilha das condições mais humildes e precárias da vida humana (cf. Fil 2, 6-7). Jesus vive esta pobreza ao longo de toda a sua vida até ao momento culminante da cruz: " Humilhou-Se a Si mesmo, feito obediente até à morte e morte de cruz. Por isso é que Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todo o nome " (Fil 2, 8-9). É precisamente na sua morte que Jesus revela toda a grandeza e valor da vida, enquanto a sua doação na cruz se torna fonte de vida nova para todos os homens (cf. Jo 12, 32). Neste peregrinar por entre as contradições e a própria perda da vida, Jesus é guiado pela certeza de que ela está nas mãos do Pai. Por isso, na cruz pode dizer-Lhe: " Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito " (Lc 23, 46), isto é, a minha vida. Verdadeiramente grande é o valor da vida humana, se o Filho de Deus a assumiu e fez dela o lugar onde se realiza a salvação para a humanidade inteira!
" Chamados (...) a ser conformes à imagem do Seu Filho " (Rm 8, 28-29): a glória de Deus resplandece no rosto do homem
34. A vida é sempre um bem. Esta é uma intuição ou até um dado de experiência, cuja razão profunda o homem é chamado a compreender.
Por que motivo a vida é um bem? Esta pergunta percorre a Bíblia inteira, encontrando já nas primeiras páginas uma resposta eficaz e admirável. A vida que Deus dá ao homem é diversa e original, se comparada com a de qualquer outra criatura viva, dado que ele, apesar de emparentado com o pó da terra (cf. Gn 2, 7; 3, 19; Job 34, 15; Sal 103102, 14; 104103, 29), é, no mundo, manifestação de Deus, sinal da sua presença, vestígio da sua glória (cf. Gn 1, 26-27; Sal 8, 6). Isto mesmo quis sublinhar Santo Ireneu de Lião, com a célebre definição: " A glória de Deus é o homem vivo ".23 Ao homem foi dada uma dignidade sublime, que tem as suas raízes na ligação íntima que o une ao seu Criador: no homem, brilha um reflexo da própria realidade de Deus.
Afirma-o o Livro do Génesis, na primeira narração das origens, ao colocar o homem no vértice da actividade criadora de Deus, como seu coroamento, no termo de um processo que vai do caos indefinido até à criatura mais perfeita. Na criação, tudo está ordenado para o homem e tudo lhe fica submetido: " Enchei e dominai a terra. Dominai (...) sobre todos os animais que se movem na terra " (1, 28) - ordena Deus ao homem e à mulher. Mensagem semelhante aparece também no outro relato das origens: " O Senhor levou o homem e colocou-o no jardim do Éden para o cultivar e, também, para o guardar " (Gn 2, 15). Confirma- -se assim o primado do homem sobre as coisas: estas estão ordenadas ao homem e entregues à sua responsabilidade, enquanto por nenhuma razão pode o homem ser subjugado pelos seus semelhantes e como que reduzido ao estatuto de coisa.
Na narração bíblica, a distinção entre o homem e as demais criaturas é evidenciada sobretudo pelo facto de apenas a sua criação ser apresentada como fruto de uma especial decisão da parte de Deus, de uma deliberação que consiste em estabelecer uma ligação particular e específica com o Criador: " Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança " (Gn 1, 26). A vida que Deus oferece ao homem, é um dom, pelo qual Deus participa algo de Si mesmo à sua criatura.
Israel interrogar-se-á longamente acerca do sentido desta ligação particular e específica do homem com Deus. O Livro de Ben-Sirá reconhece que Deus, ao criar os homens, " revestiu-os da força conveniente e fê-los à própria imagem " (17, 3). E a isso subordina o autor sagrado, não só o domínio sobre o mundo, mas também as faculdades espirituais mais específicas do homem, como a razão, o discernimento do bem e do mal, a vontade livre: " Encheu-os de saber e inteligência, e mostrou-lhes o bem e o mal " (Sir 17, 7). A capacidade de alcançar a verdade e a liberdade são prerrogativas do homem enquanto criatura feita à imagem do seu Criador, o Deus verdadeiro e justo (cf. Dt 32, 4). Dentre todas as criaturas visíveis, apenas o homem é " capaz de conhecer e amar o seu Criador ".24 A vida que Deus dá ao homem, é muito mais do que uma existência no tempo. É tensão para uma plenitude de vida; é germe de uma existência que ultrapassa os próprios limites do tempo: " Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e fê-lo à imagem da sua própria natureza " (Sab 2, 23).
35. Também o relato jahvista das origens exprime a mesma convicção. Esta antiga narração fala de um sopro divino que éinsuflado no homem, para que este dê entrada na vida: " O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo " (Gn 2, 7).
A origem divina deste espírito de vida explica a perene insatisfação que acompanha o homem, ao longo dos seus dias. Obra plasmada pelo Senhor e trazendo em si mesmo um traço indelével de Deus, o homem tende naturalmente para Ele. Quando escuta o anseio profundo do coração, não pode deixar de fazer sua esta afirmação de Santo Agostinho: " Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós ".25
Como é eloquente aquela insatisfação que se apodera da vida do homem no Éden, quando lhe resta como única referência o mundo vegetal e animal (cf. Gn 2, 20)! Somente a aparição da mulher, isto é, de um ser que é carne da sua carne e osso dos seus ossos (cf. Gn 2, 23) e no qual vive igualmente o espírito de Deus Criador, pode satisfazer a exigência de diálogo interpessoal, tão vital para a existência humana. No outro, homem ou mulher, reflecte-Se o próprio Deus, abrigo definitivo e plenamente feliz de toda a pessoa.
" Que é o homem para Vos lembrardes dele, o filho do homem para dele cuidardes? " - interroga-se o Salmista (Sal 8, 5). Diante da imensidão do universo, coisa bem pequena é o homem; mas é precisamente este contraste que faz sobressair a sua grandeza: " Pouco lhe falta para que seja um ser divino; de glória e de honra o coroastes " (Sal 8, 6). A glória de Deus resplandece no rosto do homem. Nele, o Criador encontra o seu repouso, como comenta, maravilhado e comovido, Santo Ambrósio: " Terminou o sexto dia, ficando concluída a criação do mundo com a formação daquela obra-prima, o homem, que exerce o domínio sobre todos os seres vivos e é como que o ápice do universo e a suprema beleza de todo o ser criado. Verdadeiramente deveremos manter um silêncio reverente, já que o Senhor Se repousou de toda a obra do mundo. Repousou-Se no íntimo do homem, repousou-Se na sua mente e no seu pensamento; de facto, tinha criado o homem dotado de razão, capaz de O imitar, émulo das suas virtudes, desejoso das graças celestes. Nestes seus dotes, repousa Deus que disse: "Sobre quem repousarei senão naquele que é humilde, pacífico e teme as minhas palavras?" (Is 66, 1-2). Agradeço ao Senhor nosso Deus que criou uma obra tão maravilhosa que nela encontra o seu repouso ".26
36. Infelizmente, este projecto maravilhoso de Deus ficou ofuscado pela irrupção do pecado na história. Com o pecado, o homem revolta-se contra o Criador, acabando por idolatrar as criaturas: " Veneraram a criatura e prestaram-lhe culto de preferência ao Criador " (Rm 1, 25). Deste modo, o ser humano não só deturpa a imagem de Deus em si mesmo, mas é tentado a ofendê-la também nos outros, substituindo as relações de comunhão por atitudes de desconfiança, indiferença, inimizade, até chegar ao ódio homicida. Quando não se reconhece Deus como tal, atraiçoa-se o sentido profundo do homem e prejudica-se a comunhão entre os homens.
Na vida do homem, a imagem de Deus volta a resplandecer e manifesta-se em toda a sua plenitude com a vinda do Filho de Deus em carne humana: " Ele é a imagem do Deus invisível " (Col 1, 15), " o resplendor da sua glória e a imagem da sua substância " (Heb 1, 3). Ele é a imagem perfeita do Pai.
O projecto de vida confiado ao primeiro Adão encontra finalmente em Cristo a sua realização. Enquanto a desobediência de Adão arruína e deturpa o desígnio de Deus sobre a vida do homem e introduz a morte no mundo, a obediência redentora de Cristo é fonte de graça que se derrama sobre os homens, abrindo a todos, de par em par, as portas do reino da vida (cf. Rm 5, 12-21). Afirma o apóstolo Paulo: " O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão é um espírito vivificante " (1 Cor 15, 45).
A todos aqueles que aceitam seguir Cristo, é-lhes dada a plenitude da vida: neles, a imagem divina é restaurada, renovada e levada à perfeição. Este é o desígnio de Deus para os seres humanos: tornarem-se " conformes à imagem do seu Filho " (Rm 8, 29). Só assim, no esplendor desta imagem, é que o homem pode ser liberto da escravidão da idolatria, pode reconstruir a fraternidade perdida e reencontrar a sua identidade.
" Quem crê em Mim, ainda que esteja morto viverá " (Jo 11, 26): o dom da vida eterna
37. A vida que o Filho de Deus veio dar aos homens, não se reduz meramente à existência no tempo. A vida, que desde sempre está " n'Ele " e constitui " a luz dos homens " (Jo 1, 4), consiste em ser gerados por Deus e participar na plenitude do seu amor: " A todos os que O receberam, aos que crêem n'Ele, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus; eles que não nasceram do sangue, nem de vontade carnal, nem de vontade do homem, mas sim de Deus " (Jo 1, 12-13).
Umas vezes, Jesus designa esta vida, que Ele veio dar, simplesmente como " a vida "; e apresenta o ser gerado por Deus como condição necessária para poder alcançar o fim para o qual o homem foi criado: " Quem não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus " (Jo 3, 3). O dom desta vida constitui o objecto próprio da missão de Jesus; Ele " é Aquele que desce do Céu e dá a vida ao mundo " (Jo 6, 33), de tal modo que pode afirmar com toda a verdade: " Quem Me segue (...) terá a luz da vida " (Jo 8, 12).
Outras vezes, Jesus fala de " vida eterna ", sem querer com o adjectivo aludir apenas a uma perspectiva supratemporal. " Eterna " é a vida que Jesus promete e dá, porque é plenitude de participação na vida do " Eterno ". Todo aquele que crê em Jesus e vive em comunhão com Ele tem a vida eterna (cf. Jo 3, 15; 6, 40), porque d'Ele escuta as únicas palavras que revelam e infundem plenitude de vida à sua existência; são as " palavras de vida eterna ", que Pedro reconhece na sua confissão de fé: " Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna; e nós acreditamos e sabemos que és o Santo de Deus " (Jo 6, 68-69). O que seja essa vida eterna, declara-o Jesus quando se dirigiu ao Pai na grande oração sacerdotal: " A vida eterna consiste nisto: que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste " (Jo 17, 3). Conhecer a Deus e ao seu Filho é acolher o mistério da comunhão de amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo, na própria vida que se abre, já desde agora, à vida eterna pela participação na vida divina.
38. Por conseguinte, a vida eterna é a própria vida de Deus e simultaneamente a vida dos filhos de Deus. Um assombro incessante e uma gratidão sem limites não podem deixar de se apoderar do crente diante desta inesperada e inefável verdade que nos vem de Deus em Cristo. O crente faz suas as palavras do apóstolo João: " Vede com que amor nos amou o Pai, ao querer que fôssemos chamados filhos de Deus. E somo-lo de facto! (...) Caríssimos, agora somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que havemos de ser. Sabemos, porém, que, quando Ele Se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é " (1 Jo 3, 1-2).
Assim, chega ao seu auge a verdade cristã acerca da vida. A dignidade desta não está ligada apenas às suas origens, à sua proveniência de Deus, mas também ao seu fim, ao seu destino de comunhão com Deus no conhecimento e no amor d'Ele. É à luz desta verdade que Santo Ireneu especifica e completa a sua exaltação do homem: " glória de Deus " é, sim, " o homem vivo ", mas " a vida do homem consiste na visão de Deus ".27
Daqui resultam consequências imediatas para a vida humana em sua própria condição terrena, na qual já germinou e está a crescer a vida eterna. Se o homem ama instintivamente a vida porque é um bem, tal amor encontra ulterior motivação e força, nova amplitude e profundidade nas dimensões divinas desse bem. Em semelhante perspectiva, o amor que cada ser humano tem pela vida não se reduz à simples busca de um espaço onde poder exprimir-se a si mesmo e entrar em relação com os outros, mas evolui até à certeza feliz de poder fazer da própria existência o " lugar " da manifestação de Deus, do encontro e comunhão com Ele. A vida que Jesus nos dá, não desvaloriza a nossa existência no tempo, mas assume-a e condu-la ao seu último destino: " Eu sou a ressurreição e a vida; (...) todo aquele que vive e crê em Mim não morrerá jamais " (Jo 11, 25.26).
" A cada um, pedirei contas do seu irmão " (cf. Gn 9, 5): veneração e amor pela vida dos outros
39. A vida do homem provém de Deus, é dom seu, é imagem e figura d'Ele, participação do seu sopro vital. Desta vida, portanto, Deus é o único senhor: o homem não pode dispor dela. Deus mesmo o confirma a Noé, depois do dilúvio: " Ao homem, pedirei contas da vida do homem, seu irmão " (Gn 9, 5). E o texto bíblico preocupa-se em sublinhar como a sacralidade da vida tem o seu fundamento em Deus e na sua acção criadora: " Porque Deus fez o homem à sua imagem " (Gn 9, 6).
Portanto, a vida e a morte do homem estão nas mãos de Deus, em seu poder: " Deus tem nas suas mãos a alma de todo o ser vivente, e o sopro de vida de todos os homens " - exclama Job (12, 10). " O Senhor é que dá a morte e a vida, leva à habitação dos mortos e retira de lá " (1 Sam 2, 6). Apenas Ele pode afirmar: " Só Eu é que dou a vida e dou a morte " (Dt 32, 39).
Mas Deus não exerce esse poder como arbítrio ameaçador, mas, sim, como cuidado e solicitude amorosa pelas suas criaturas. Se é verdade que a vida do homem está nas mãos de Deus, não o é menos que estas são mãos amorosas como as de uma mãe que acolhe, nutre e toma conta do seu filho: " Fico sossegado e tranquilo como criança deitada nos braços de sua mãe, como um menino deitado é a minha alma " (Sal 131130, 2; cf. Is 49, 15; 66, 12-13; Os 11, 4). Assim nas vicissitudes dos povos e na sorte dos indivíduos, Israel não vê o fruto de pura casualidade ou de um destino cego, mas o resultado de um desígnio de amor, pelo qual Deus resguarda todas as potencialidades da vida e se contrapõe às forças de morte que nascem do pecado: " Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência " (Sab 1, 13-14).
40. Da sacralidade da vida dimana a sua inviolabilidade, inscrita desde as origens no coração do homem, na sua consciência. A pergunta " que fizeste? " (Gn 4, 10), dirigida por Deus a Caim depois de ter assassinado o irmão Abel, traduz a experiência de cada homem: no fundo da sua consciência, ele sente incessantemente o apelo à inviolabilidade da vida - a própria e a alheia -, como realidade que não lhe pertence, pois é propriedade e dom de Deus Criador e Pai.
O preceito relativo à inviolabilidade da vida humana ocupa o centro dos " dez mandamentos " na aliança do Sinai (cf. Ex 34, 28). Nele se proíbe, antes de mais, o homicídio: " Não matarás " (Ex 20, 13), " não causarás a morte do inocente e do justo " (Ex 23, 7); mas proíbe também - como se explicita na legislação posterior de Israel - qualquer lesão infligida a outrem (cf. Ex 21, 12-27). Tem-se de reconhecer que esta sensibilidade pelo valor da vida no Antigo Testamento, apesar de já tão notável, não alcança ainda a perfeição do Sermão da Montanha, como resulta de alguns aspectos da legislação penal então vigente, que previa castigos corporais pesados e até mesmo a pena de morte. Mas globalmente esta mensagem, que o Novo Testamento levará à perfeição, é já um forte apelo ao respeito pela inviolabilidade da vida física e da integridade pessoal, e tem o seu ápice no mandamento positivo que obriga a cuidar do próximo como de si mesmo: " Amarás o teu próximo como a ti mesmo " (Lv 19, 18).
41. O mandamento " não matarás ", contido e aprofundado no mandamento positivo do amor do próximo, é confirmado em toda a sua validade pelo Senhor Jesus. Ao jovem rico que Lhe pede " Mestre, que hei-de fazer de bom para alcançar a vida eterna? ", responde: " Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos " (Mt 19, 16.17). E, logo em primeiro lugar, cita " não matarás " (19, 18). No Sermão da Montanha, Jesus exige dos discípulos uma justiça superior à dos escribas e fariseus, no campo do respeito pela vida: " Ouvistes que foi dito aos antigos: "Não matarás; aquele que matar está sujeito a ser condenado". Eu, porém, digo-vos: quem se irritar contra o seu irmão será réu perante o tribunal " (Mt 5, 21-22).
Com a sua palavra e os seus gestos, Jesus explicita ulteriormente as exigências positivas do mandamento referente à inviolabilidade da vida. Estavam já presentes no Antigo Testamento, onde a legislação se preocupava em garantir e salvaguardar as situações de vida débil e ameaçada: o estrangeiro, a viúva, o órfão, o enfermo, o pobre em geral, a própria vida antes de nascer (cf. Ex 21, 22; 22, 20-26). Mas com Jesus, essas exigências positivas adquirem novo vigor e ímpeto, manifestando-se em toda a sua amplitude e profundidade: vão desde o velar pela vida do irmão (familiar, membro do mesmo povo, estrangeiro que habita na terra de Israel), passam pelo cuidar do desconhecido, para chegarem até ao amor do inimigo.
O desconhecido deixa de ser tal para quem deve fazer-se próximo de todo aquele que se encontra necessitado, até assumir a responsabilidade da sua vida, como ensina, de modo eloquente e incisivo, a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37). Também o inimigo cessa de o ser para quem é obrigado a amá-lo (cf. Mt 5, 38-48; Lc 6, 27-35) e " fazer-lhe bem " (cf. Lc 6, 27.33.35), levando remédio às carências da sua vida, com prontidão e sem esperar recompensa (cf. Lc 6, 34-35). No vértice deste amor, está a oração pelo inimigo, pela qual nos colocamos em sintonia com o amor providente de Deus: " Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está nos Céus; pois Ele faz que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores " (Mt 5, 44-45; cf. Lc 6, 28.35).
Assim, o mandamento de Deus, orientado para a defesa da vida do homem, tem a sua dimensão mais profunda na exigência de veneração e amor por toda a pessoa e sua vida. Este é o ensinamento que o apóstolo Paulo, dando eco às palavras de Jesus (cf. Mt 19, 17-18), dirige aos cristãos de Roma: " Com efeito: "Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás" e qualquer dos outros mandamentos resumem-se nestas palavras: "Amarás ao próximo como a ti mesmo". A caridade não faz mal ao próximo. A caridade é, pois, o pleno cumprimento da lei " (Rm 13, 9-10).
" Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra " (Gn 1, 28): as responsabilidades do homem pela vida
42. Defender e promover, venerar e amar a vida é tarefa que Deus confia a cada homem, ao chamá-lo enquanto sua imagem viva a participar no domínio que Ele tem sobre o mundo: " Abençoando-os, Deus disse: "Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra" " (Gn 1, 28).
O texto bíblico manifesta claramente a amplitude e profundidade do domínio que Deus concede ao homem. Trata-se, antes de mais, de domínio sobre a terra e sobre todo o ser vivo, como recorda o Livro da Sabedoria: " Deus dos nossos pais e Senhor de misericórdia, (...) formastes o homem pela vossa sabedoria, para dominar sobre as criaturas a quem destes a vida, para governar o mundo com santidade e justiça " (9, 1.2-3). Também o Salmista exalta o domínio do homem como sinal da glória e honra recebidas do Criador: " Destes-lhe domínio sobre as obras das vossas mãos. Tudo submetestes debaixo dos seus pés; os rebanhos e os gados sem excepção, até mesmo os animais selvagens; as aves do céu e os peixes do mar, tudo o que se move nos oceanos " (Sal 8, 7-9).
Chamado a cultivar e guardar o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15), o homem detém uma responsabilidade específica sobre o ambiente de vida, ou seja, sobre a criação que Deus pôs ao serviço da sua dignidade pessoal, da sua vida: e isto não só em relação ao presente, mas também às gerações futuras. É a questão ecológica - desde a preservação do " habitat " natural das diversas espécies animais e das várias formas de vida, até à " ecologia humana " propriamente dita 28 - que, no texto bíblico, encontra luminosa e forte indicação ética para uma solução respeitosa do grande bem da vida, de toda a vida. Na realidade, " o domínio conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de "usar e abusar", ou de dispor das coisas como melhor agrade. A limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e expressa simbolicamente com a proibição de "comer o fruto da árvore" (cf. Gn 2, 16-17), mostra com suficiente clareza que, nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem impunemente ser transgredidas ".29
43. Uma certa participação do homem no domínio de Deus manifesta-se também na específica responsabilidade que lhe está confiada no referente à vida propriamente humana. Essa responsabilidade atinge o auge na doação da vida, através da geração por obra do homem e da mulher no matrimónio, como nos recorda o Concílio Vaticano II: " O mesmo Deus que disse "não é bom que o homem esteja só" (Gn 2, 18) e que "desde a origem fez o ser humano varão e mulher" (Mt 19, 4), querendo comunicar uma participação especial na sua obra criadora, abençoou o homem e a mulher dizendo: "crescei e multiplicai-vos" (Gn 1, 28) ".30
Ao falar de " uma participação especial " do homem e da mulher na " obra criadora " de Deus, o Concílio pretende pôr em relevo como a geração do filho é um facto não só profundamente humano mas também altamente religioso, enquanto implica os cônjuges, que formam " uma só carne " (Gn 2, 24), e simultaneamente o próprio Deus que Se faz presente. Como escrevi na Carta às Famílias, " quando da união conjugal dos dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa. Ao afirmarmos que os cônjuges, enquanto pais, são colaboradores de Deus Criador na concepção e geração de um novo ser humano, não nos referimos apenas às leis da biologia; pretendemos sobretudo sublinhar que, na paternidade e maternidade humana, o próprio Deus está presente de um modo diverso do que se verifica em qualquer outra geração "sobre a terra". Efectivamente, só de Deus pode provir aquela "imagem e semelhança" que é própria do ser humano, tal como aconteceu na criação. A geração é a continuação da criação ".31
Isto mesmo ensina, com linguagem clara e eloquente, o texto sagrado ao mencionar o grito jubiloso da primeira mulher, a " mãe de todos os viventes " (Gn 3, 20); consciente da intervenção de Deus, Eva exclama: " Gerei um homem com o auxílio do Senhor " (Gn 4, 1). Assim, na geração, através da comunicação da vida dos pais ao filho transmite-se, graças à criação da alma imortal,32 a imagem e semelhança do próprio Deus. Neste sentido, se exprime o início do " livro da genealogia de Adão ": " Quando Deus criou o homem, fê-lo à semelhança de Deus. Criou-os varão e mulher, e abençoou-os. Deu-lhes o nome de Homem no dia em que os criou. Com cento e trinta anos, Adão gerou um filho à sua imagem e semelhança, e pôs-lhe o nome de Set " (Gn 5, 1-3). Precisamente neste papel de colaboradores de Deus, que transmite a sua imagem à nova criatura, está a grandeza dos cônjuges, dispostos " a colaborar com o amor do Criador e Salvador, que por meio deles aumenta cada dia mais e enriquece a sua família ".33 À luz disto, o bispo Anfilóquio exaltava o " matrimónio santo, eleito e elevado acima de todos os dons terrenos ", porque " gerador da humanidade, artífice de imagens de Deus ".34
Assim o homem e a mulher, unidos pelo matrimónio, estão associados a uma obra divina: por meio do acto da geração, o dom de Deus é acolhido, e uma nova vida se abre ao futuro.
Mas, uma vez realçada a missão específica dos pais, há que acrescentar: a obrigação de acolher e servir a vida compete a todos e deve manifestar-se sobretudo a favor da vida em condições de maior fragilidade. É o próprio Cristo quem no-lo recorda, ao pedir para ser amado e servido nos irmãos provados por qualquer tipo de sofrimento: famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes, encarcerados... Aquilo que for feito a cada um deles, é feito ao próprio Cristo (cf. Mt 25, 31-46).
" Vós é que plasmastes o meu interior " (Sal 139138, 13): a dignidade da criança ainda não nascida
44. A vida humana atravessa situações de grande fragilidade, quer ao entrar no mundo, quer quando sai do tempo para ir ancorar-se na eternidade. Na Palavra de Deus, encontramos numerosos apelos ao cuidado e respeito pela vida, sobretudo quando esta aparece ameaçada pela doença e pela velhice. Se faltam apelos directos e explícitos para salvaguardar a vida humana nas suas origens, especialmente a vida ainda não nascida, ou então a vida próxima do seu termo, isso explica-se facilmente pelo facto de que a mera possibilidade de ofender, agredir ou mesmo negar a vida em tais condições estava fora do horizonte religioso e cultural do Povo de Deus.
No Antigo Testamento, a esterilidade era temida como uma maldição, enquanto se considerava uma bênção a prole numerosa: " Os filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um mimo do Senhor " (Sal 127126, 3; cf. Sal 128127, 3-4). Para esta convicção, concorre certamente a consciência que Israel tem de ser o povo da Aliança, chamado a multiplicar-se segundo a promessa feita a Abraão: " Ergue os olhos para os céus e conta as estrelas, se fores capaz de as contar (...) será assim a tua descendência " (Gn 15, 5). Mas influi sobretudo a certeza de que a vida transmitida pelos pais tem a sua origem em Deus, como o atestam tantas páginas bíblicas que, com respeito e amor, falam da concepção, da moldagem da vida no ventre materno, do nascimento e da ligação íntima entre o momento inicial da existência e a acção de Deus Criador.
" Antes que fosses formado no ventre de tua mãe, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei " (Jr 1, 5): a existência de cada indivíduo, desde as suas origens, obedece ao desígnio de Deus. Job, na profundidade da sua dor, detém-se a contemplar a obra de Deus na miraculosa formação do seu corpo no ventre da mãe, retirando daí motivo de confiança e exprimindo a certeza da existência de um projecto divino para a sua vida: " As tuas mãos formaram-me e fizeram-me e, de repente, vais aniquilar-me? Lembra-Te que me formaste com o barro; far-me-ás, agora, voltar ao pó? Não me espremeste como o leite e coalhaste como o queijo? De pele e de carne me revestiste, de ossos e de nervos me consolidaste. Deste-me a vida e favoreceste-me; a tua providência conservou o meu espírito " (10, 8-12). Modulações cheias de enlevo adorador pela intervenção de Deus na vida em formação no ventre materno ressoam também nos Salmos.35
Como pensar que este maravilhoso processo de germinação da vida possa subtrair-se, por um só momento, à obra sapiente e amorosa do Criador para ficar abandonado ao arbítrio do homem? Não o pensa, seguramente, a mãe dos sete irmãos que professa a sua fé em Deus, princípio e garantia da vida desde a concepção e ao mesmo tempo fundamento da esperança da nova vida para além da morte: " Não sei como aparecestes nas minhas entranhas, porque não fui eu quem vos deu a alma nem a vida e nem fui eu quem ajuntou os vossos membros. Mas o Criador do mundo, autor do nascimento do homem e criador de todas as coisas, restituir-vos-á, na sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora fizerdes pouco caso de vós mesmos por amor das suas leis " (2 Mac 7, 22-23).
45. A revelação do Novo Testamento confirma o reconhecimento indiscutível do valor da vida desde os seus inícios. A exaltação da fecundidade e o trepidante anseio da vida ressoam nas palavras com que Isabel rejubila pela sua gravidez: ao Senhor " aprouve retirar a minha ignomínia " (Lc 1, 25). Mas o valor da pessoa, desde a sua concepção, é celebrado ainda melhor no encontro da Virgem Maria e Isabel e entre as duas crianças, que trazem no seio. São precisamente eles, os meninos, a revelarem a chegada da era messiânica: no seu encontro, começa a agir a força redentora da presença do Filho de Deus no meio dos homens. " Depressa se manifestam - escreve Santo Ambrósio - os benefícios da chegada de Maria e da presença do Senhor. (...) Isabel foi a primeira a escutar a voz, mas João foi o primeiro a pressentir a graça. Aquela escutou segundo a ordem da natureza; este exultou em virtude do mistério. Ela apreendeu a chegada de Maria; este, a do Senhor. A mulher ouviu a voz da mulher; o menino sentiu a presença do Filho. Aquelas proclamam a graça de Deus, estes realizam-na interiormente, iniciando no seio de suas mães o mistério de piedade; e, por um duplo milagre, as mães profetizam sob a inspiração de seus filhos. O filho exultou de alegria; a mãe ficou cheia do Espírito Santo. A mãe não se antecipou ao filho; foi este que, uma vez cheio do Espírito Santo, o comunicou a sua mãe ".36
" Confiei mesmo quando disse: "Sou um homem de todo infeliz" " (Sal 116115, 10): a vida na velhice e no sofrimento
46. Também no que se refere aos últimos dias da existência, seria anacrónico esperar da revelação bíblica uma referência expressa à problemática actual do respeito pelas pessoas idosas e doentes, ou uma explícita condenação das tentativas de lhes antecipar violentamente o fim: encontramo-nos, de facto, perante um contexto cultural e religioso que não está pervertido por tais tentações, mas antes reconhece na sabedoria e experiência do ancião uma riqueza insubstituível para a família e a sociedade.
A velhice goza de prestígio e é circundada de veneração (cf. 2 Mac 6, 23). O justo não pede para ser privado da velhice nem do seu peso; antes pelo contrário: " Vós sois a minha esperança, a minha confiança, Senhor, desde a minha juventude. (...) Agora, na velhice e na decrepitude, não me abandoneis, ó Deus; para que narre às gerações a força do vosso braço, o vosso poder a todos os que hão-de vir " (Sal 7170, 5.18). O ideal do tempo messiânico é apresentado como aquele em que " não mais haverá (...) um velho que não complete os seus dias " (Is 65, 20).
Mas, como enfrentar o declínio inevitável da vida, na velhice?Como comportar-se frente à morte? O crente sabe que a sua vida está nas mãos de Deus: " Senhor, nas tuas mãos está a minha vida " (cf. Sal 1615, 5); e d'Ele aceite também a morte: " Este é o juízo do Senhor sobre toda a humanidade; e porque quererias reprovar a lei do Altíssimo? " (Sir 41, 4). O homem não é senhor nem da vida nem da morte; tanto numa como noutra, deve abandonar-se totalmente à " vontade do Altíssimo ", ao seu desígnio de amor.
Também no momento da doença, o homem é chamado a viver a mesma entrega ao Senhor e a renovar a sua confiança fundamental n'Aquele que " sara todas as enfermidades " (cf. Sal 103102, 3). Quando toda e qualquer esperança de saúde parece fechar-se para o homem - a ponto de o levar a gritar: " Os meus dias são como a sombra que declina, e vou-me secando como o feno " (Sal 102101, 12) - , mesmo então o crente está animado pela fé inabalável no poder vivificador de Deus. A doença não o leva ao desespero nem ao desejo da morte, mas a uma invocação cheia de esperança: " Confiei mesmo quando disse: "Sou um homem de todo infeliz" " (Sal 116115, 10); " Senhor, meu Deus, a vós clamei e fui curado. Senhor, livrastes a minha alma da mansão dos mortos; destes-me a vida quando já descia ao túmulo " (Sal 3029, 3-4).
47. A missão de Jesus, com as numerosas curas realizadas, indica quanto Deus tem a peito também a vida corporal do homem. " Médico do corpo e do espírito ",37 Jesus foi mandado pelo Pai para anunciar a boa nova aos pobres e para curar os de coração despedaçado (cf. Lc 4, 18; Is 61, 1). Depois, ao enviar os seus discípulos pelo mundo, confia-lhes uma missão na qual a cura dos doentes acompanha o anúncio do Evangelho: " Pelo caminho, proclamai que o reino dos Céus está perto. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demónios " (Mt 10, 7-8; cf. Mc 6, 13; 16, 18).
Certamente, a vida do corpo na sua condição terrena não é um absoluto para o crente, de tal modo que lhe pode ser pedido para a abandonar por um bem superior; como diz Jesus, " quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por Mim e pelo Evangelho, salvá-la-á " (Mc 8, 35). A este propósito, o Novo Testamento oferece diversos testemunhos. Jesus não hesita em sacrificar-Se a Si próprio e, livremente, faz da sua vida uma oferta ao Pai (cf. Jo 10, 17) e aos seus (cf. Jo 10, 15). Também a morte de João Baptista, precursor do Salvador, atesta que a existência terrena não é o bem absoluto: é mais importante a fidelidade à palavra do Senhor, ainda que esta possa pôr em jogo a vida (cf. Mc 6, 17-29). E Estêvão, ao ser privado da vida temporal porque testemunha fiel da ressurreição do Senhor, segue os passos do Mestre e vai ao encontro dos seus lapidadores com as palavras do perdão (cf. Act 7, 59-60), abrindo a estrada do exército inumerável dos mártires, venerados pela Igreja desde o princípio.
Todavia, ninguém pode escolher arbitrariamente viver ou morrer; efectivamente, senhor absoluto de tal decisão é apenas o Criador, Aquele em quem " vivemos, nos movemos e existimos " (Act 17, 28).
" Todos os que a seguirem alcançarão a vida " (Bar 4, 1): da Lei do Sinai ao dom do Espírito
48. A vida traz indelevelmente inscrita nela uma verdade sua. O homem, ao acolher o dom de Deus, deve comprometer-se a manter a vida nesta verdade, que lhe é essencial. Desviar-se dela, equivale a condenar-se a si próprio à insignificância e à infelicidade, com a consequência de poder tornar-se também uma ameaça para a existência dos outros, já que foram rompidos os diques que garantiam o respeito e a defesa da vida, em qualquer situação.
A verdade da vida é revelada pelo mandamento de Deus. A palavra do Senhor indica concretamente a direcção que a vida deve seguir, para poder respeitar a própria verdade e salvaguardar a sua dignidade. Não é apenas o mandamento específico - " não matarás " (Ex 20, 13; Dt 5, 17) - a garantir a protecção da vida; mas a Lei do Senhor em toda a sua extensão está ao serviço dessa protecção, porque revela aquela verdade na qual a vida encontra o seu pleno significado.
Não admira, pois, que a Aliança de Deus com o seu povo esteja tão intensamente ligada à perspectiva da vida, mesmo na sua dimensão corpórea. Naquela, o mandamento é dado como caminho da vida: " Vê, ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o bem; de outro, a morte e o mal. Recomendo-te hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis e seus decretos. Se assim fizeres, viverás, engrandecer-te-ás e serás abençoado pelo Senhor, teu Deus, na terra em que vais entrar para a possuir " (Dt 30, 15-16). Não está em questão apenas a terra de Canaã e a existência do povo de Israel, mas também o mundo de hoje e do futuro e a existência de toda a humanidade. De facto, não é possível, absolutamente, a vida permanecer autêntica e plena, quando se afasta do bem; e o bem, por sua vez, está essencialmente ligado aos mandamentos do Senhor, isto é, à " lei da vida " (Sir 17, 11). O bem que se tem de realizar, não é imposto à vida como um fardo que pesa sobre ela, porque a própria razão da vida é precisamente o bem, e a vida é construída apenas mediante o cumprimento do bem.
Portanto, é a Lei no seu todo que salvaguarda plenamente a vida do homem. Isto explica como é difícil manter-se fiel ao preceito " não matarás ", quando não são observadas as demais " palavras de vida " (Act 7, 38), às quais ele está ligado. Fora deste horizonte, o mandamento acaba por se tornar uma mera obrigação extrínseca, da qual bem depressa desejar-se-ão ver os limites e procurar-se-ão as atenuantes ou as excepções. Só se nos abrirmos à plenitude da verdade acerca de Deus, do homem e da história, é que o preceito " não matarás " voltará a resplandecer como o melhor para o homem em todas as suas dimensões e relações. Nesta perspectiva, podemos atingir a plenitude da verdade contida na passagem do Livro do Deuteronómio, retomada por Jesus na resposta à primeira tentação: " O homem não vive somente de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor " (8, 3; cf. Mt 4, 4).
É escutando a palavra do Senhor que o homem pode viver com dignidade e justiça; é observando a lei de Deus que o homem pode produzir frutos de vida e de felicidade: " Todos os que a seguirem alcançarão a vida, e os que a abandonarem cairão na morte " (Bar 4, 1).
49. A história de Israel mostra como é difícil permanecer fiel à lei da vida, que Deus inscreveu no coração dos homens e entregou no Sinai ao povo da Aliança. Contra a busca de projectos de vida alternativos ao plano de Deus, levantam-se de modo particular os Profetas, recordando insistentemente que só o Senhor é a autêntica fonte da vida. Assim escreve Jeremias: " O meu povo cometeu um duplo crime: abandonou-Me a Mim, fonte de águas vivas, para cavar cisternas, cisternas rotas, que não podem reter as águas " (2, 13). Os Profetas apontam o dedo acusador contra aqueles que desprezam a vida e violam os direitos das pessoas: " Esmagam como o pó da terra a cabeça do pobre " (Am 2, 7); " mancharam este lugar com o sangue de inocentes " (Jr 19, 4). E a estes, vem juntar-se o profeta Ezequiel que mais de uma vez verbera a cidade de Jerusalém, designando-a como " a cidade sanguinária " (22, 2; 24, 6.9), a " cidade que derramou o sangue no seu seio " (22, 3).
Mas, ao mesmo tempo que denunciam as ofensas contra a vida, os Profetas preocupam-se sobretudo por suscitar a esperança de um novo princípio de vida, capaz de fundar um renovado relacionamento com Deus e com os irmãos, entreabrindo possibilidades inéditas e extraordinárias para compreender e actuar todas as exigências contidas no Evangelho da vida. Isso será possível unicamente mediante um dom de Deus, que purifique e renove: " Derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados; Eu vos purificarei de todas as manchas e de todos os pecados. Dar-vos-ei um coração novo e infundirei em vós um espírito novo " (Ez 36, 25-26; cf. Jr 31, 31-34). Graças a este " coração novo ", pode-se compreender e realizar o sentido mais verdadeiro e profundo da vida: ser um dom que se consuma no dar-se. É a mensagem luminosa sobre o valor da vida que nos vem da figura do Servo do Senhor: " Oferecendo a sua vida em sacrifício expiatório, terá uma posteridade duradoura e viverá longos dias. (...) Livrada a sua alma dos tormentos, verá a luz " (Is 53, 10.11).
Na existência de Jesus de Nazaré, a Lei teve pleno cumprimento, ao ser dado o coração novo por meio do seu Espírito. Com efeito, Cristo não revoga a Lei, mas leva-a ao seu pleno cumprimento (cf.Mt 5, 17): a Lei e os Profetas resumem-se na regra-áurea do amor recíproco (cf. Mt 7, 12). N'Ele, a Lei torna-se definitivamente " evangelho ", feliz notícia do domínio de Deus sobre o mundo, que reconduz toda a existência às suas raízes e perspectivas originais. É a Nova Lei, " a lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus " (Rm 8, 2), cuja expressão fundamental, a exemplo do Senhor que dá a vida pelos próprios amigos (cf. Jo 15, 13), é o dom de si no amor aos irmãos: " Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos " (1 Jo 3, 14). É lei de liberdade, alegria e felicidade.
" Hão-de olhar para Aquele que trespassaram " (Jo 19, 37): na árvore da Cruz, cumpre-se o Evangelho da Vida
50. No final deste capítulo, em que meditámos a mensagem cristã sobre a vida, quereria deter-me com cada um de vós a contemplar Aquele que trespassaram e que atrai todos a Si (cf. Jo 19, 37; 12, 32). Levantando os olhos para " o espectáculo " da cruz (cf. Lc 23, 48), poderemos descobrir, nesta árvore gloriosa, o cumprimento e a plena revelação de todo o Evangelho da vida.
Nas primeiras horas da tarde de Sexta-feira Santa, " as trevas cobriram toda a terra (...) por o sol se haver eclipsado. O véu do Templo rasgou-se ao meio " (Lc 23, 44.45). É o símbolo de uma grande perturbação cósmica e de uma luta atroz das forças do bem contra as do mal, da vida contra a morte. Também hoje nos encontramos no meio de uma luta dramática entre a " cultura da morte " e a " cultura da vida ". Mas o esplendor da Cruz não fica submerso pelas trevas; pelo contrário, aquela desenha-se ainda mais clara e luminosa, revelando-se como o centro, o sentido e o fim da história inteira e de toda a vida humana.
Jesus é pregado na cruz e levantado da terra. Vive o momento da sua máxima " impotência ", e a sua vida parece totalmente abandonada aos insultos dos seus adversários e às mãos dos seus carrascos: é humilhado, escarnecido, ultrajado (cf. Mc 15, 24-36). E contudo, precisamente diante de tudo isso e " ao vê-Lo expirar daquela maneira ", o centurião romano exclama: " Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus! " (Mc 15, 39). Revela-se assim, no momento da sua extrema debilidade, a identidade do Filho de Deus: na Cruz, manifesta-se a sua glória!
Com a sua morte, Jesus ilumina o sentido da vida e da morte de todo o ser humano. Antes de morrer, Jesus reza ao Pai, pedindo o perdão para os seus perseguidores (cf. Lc 23, 34), e ao malfeitor, que Lhe pede para Se recordar dele no seu reino, responde: " Em verdade te digo: hoje estarás Comigo no Paraíso " (Lc 23, 43). Depois da sua morte, " abriram-se os túmulos e muitos corpos de santos que estavam mortos, ressuscitaram " (Mt 27, 52). A salvação, operada por Jesus, é doação de vida e de ressurreição. Ao longo da sua existência, Jesus tinha concedido a salvação, curando e fazendo o bem a todos (cf. Act 10, 38). Mas os milagres, as curas e as próprias ressurreições eram sinal de outra salvação que consiste no perdão dos pecados, ou seja, na libertação do homem do mal mais profundo, e na sua elevação à própria vida de Deus.
Na Cruz, renova-se e realiza-se, em sua perfeição plena e definitiva, o prodígio da serpente erguida por Moisés no deserto (cf. Jo 3, 14-15; Nm 21, 8-9). Também hoje, voltando o olhar para Aquele que foi trespassado, cada homem com a sua existência ameaçada recobra a esperança segura de encontrar libertação e redenção.
51. Mas há ainda outro acontecimento específico que atrai o meu olhar e merece compenetrada meditação. " Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: "Tudo está consumado". E inclinando a cabeça, entregou o espírito " (Jo 19, 30). E o soldado romano " perfurou-Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água " (Jo 19, 34).
Tudo chegou já ao seu pleno cumprimento. O " entregar o espírito " exprime certamente a morte de Jesus, semelhante à de qualquer outro ser humano, mas parece aludir também ao " dom do Espírito ", com que Ele nos resgata da morte e desperta para uma vida nova.
A própria vida de Deus é participada ao homem. Mediante os sacramentos da Igreja - cujo símbolo são o sangue e a água, que brotam do lado de Cristo -, aquela vida é incessantemente comunicada aos filhos de Deus, constituídos como povo da nova aliança. Da Cruz, fonte de vida, nasce e se propaga o " povo da vida ".
Deste modo, a contemplação da Cruz leva-nos às raízes mais profundas daquilo que sucedeu. Jesus que, ao entrar no mundo, tinha dito: " Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade " (cf. Heb 10, 9), fez-Se em tudo obediente ao Pai, e tendo " amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim " (Jo 13, 1), entregando-Se inteiramente por eles.
Ele que não " veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos " (Mc 10, 45), chega ao vértice do amor na Cruz: " Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos " (Jo 15, 13). E Ele morreu por nós, quando éramos ainda pecadores (cf. Rm 5, 8).
Deste modo, Cristo proclama que a vida atinge o seu centro, sentido e plenitude quando é doada.
Chegada a este ponto, a meditação faz-se louvor e agradecimento e, ao mesmo tempo, estimula-nos a imitar Jesus e a seguir os seus passos (cf. 1 Ped 2, 21).
Também nós somos chamados a dar a nossa vida pelos irmãos, realizando assim, na sua verdade mais plena, o sentido e o destino da nossa existência.
Podê-lo-emos fazer porque Vós, Senhor, nos destes o exemplo e comunicastes a força do Espírito. Podê-lo-emos fazer se cada dia, Convosco e como Vós, formos obedientes ao Pai e fizermos a sua vontade.
Concedei-nos, pois, ouvir com coração dócil e generoso toda a palavra que sai da boca de Deus: aprenderemos assim não apenas a " não matar " a vida do homem, mas também a sabê-la venerar, amar e promover.
CAPÍTULO III - NÃO MATARÁS
A LEI SANTA DE DEUS
" Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos " (Mt 19, 17): Evangelho e mandamento
52. " Aproximou-se d'Ele um jovem e disse- -Lhe: "Que hei-de fazer de bom para alcançar a vida eterna?" " (Mt 19, 16). Jesus respondeu: " Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos " (Mt 19, 17). O Mestre fala da vida eterna, isto é, da participação na própria vida de Deus. A esta vida, chega-se através da observância dos mandamentos, incluindo naturalmente aquele que diz " não matarás ". Este é precisamente o primeiro preceito do Decálogo que Jesus recorda ao jovem, quando este Lhe solicita os mandamentos que terá de cumprir: " Retorquiu Jesus: "Não matarás; não cometerás adultério; não roubarás..." " (Mt 19, 18).
O mandamento de Deus nunca está separado do seu amor: é sempre um dom para o crescimento e a alegria do homem. Como tal, constitui um aspecto essencial e um elemento inalienável do Evangelho, mais, o próprio mandamento se configura como " evangelho ", ou seja, uma boa e feliz notícia. Também o Evangelho da vida é um grande dom de Deus e simultaneamente uma exigente tarefa para o homem. Aquele suscita assombro e gratidão na pessoa livre e pede para ser acolhido, guardado e valorizado com vivo sentimento de responsabilidade: dando-lhe a vida, Deus exige do homem que a ame, respeite e promova. Deste modo, o dom faz-se mandamento, e o mandamento é em si mesmo um dom.
Imagem viva de Deus, o homem foi querido pelo seu Criador como rei e senhor. " Deus fez o homem - escreve S. Gregório de Nissa - de forma tal que pudesse desempenhar a sua função de rei da terra. (...) O homem foi criado à imagem d'Aquele que governa o universo. Tudo indica que, desde o princípio, a sua natureza está marcada pela realeza. (...) Assim a natureza humana, criada para ser senhora das outras criaturas, à semelhança do Soberano do universo, foi estabelecida como sua imagem viva, participante da dignidade do divino Arquétipo ".38 Chamado para ser fecundo e multiplicar-se, sujeitar a terra e dominar sobre os seres que lhe são inferiores (cf. Gn 1, 28), o homem é rei e senhor não apenas das coisas, mas também e primariamente de si mesmo 39 e, em certo sentido, da vida que lhe é dada e que ele pode transmitir por meio da geração cumprida no amor e no respeito do desígnio de Deus. No entanto, o seu domínio não é absoluto, mas ministerial: é reflexo concreto do domínio único e infinito de Deus. Por isso, o homem deve vivê-lo com sabedoria e amor, participando da sabedoria e do amor incomensurável de Deus. E isto verifica-se pela obediência à sua Lei santa: uma obediência livre e alegre (cf. Sal 119118) que nasce e se alimenta da certeza de que os preceitos do Senhor são dons de graça, confiados ao homem sempre e só para o seu bem, para a defesa da sua dignidade pessoal e para a prossecução da sua felicidade.
Aquilo que foi dito no referente às coisas, vale ainda mais agora no contexto da vida: o homem não é senhor absoluto e árbitro incontestável, mas - e nisso está a sua grandeza incomparável - é " ministro do desígnio de Deus ".40
A vida é confiada ao homem como um tesouro que não pode malbaratar, como um talento que há-de pôr a render. Dela terá de prestar contas ao seu Senhor (cf. Mt 25, 14-30; Lc 19, 12-27).
" Ao homem, pedirei contas da vida do homem " (Gn 9, 5): a vida humana é sagrada e inviolável
53. " A vida humana é sagrada, porque, desde a sua origem, supõe "a acção criadora de Deus" e mantém-se para sempre numa relação especial com o Criador, seu único fim. Só Deus é senhor da vida, desde o princípio até ao fim: ninguém, em circunstância alguma, pode reivindicar o direito de destruir directamente um ser humano inocente ".41 Com estas palavras, a Instrução Donum vitae expõe o conteúdo central da revelação de Deus sobre a sacralidade e inviolabilidade da vida humana.
De facto, a Sagrada Escritura apresenta ao homem o preceito " não matarás " (Ex 20, 13; Dt 5, 17) como mandamento divino. Como já sublinhei, encontra-se no Decálogo, no coração da Aliança, que o Senhor concluiu com o povo eleito; mas estava já contido na aliança primordial de Deus com a humanidade, após o castigo purificador do dilúvio, que fora provocado pelo incremento do pecado e da violência (cf. Gn 9, 5-6).
Deus proclama-Se Senhor absoluto da vida do homem, formado à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26-28). A vida humana possui, portanto, um carácter sagrado e inviolável, no qual se reflecte a própria inviolabilidade do Criador. Por isso mesmo, será Deus que Se fará juiz severo de qualquer violação do mandamento " não matarás ", colocado na base de toda a convivência social. Deus é o go'el, ou seja, o defensor do inocente (cf. Gn 4, 9-15; Is 41, 14; Jr 50, 34; Sal 1918, 15). Deus comprova, assim também, que não Se alegra com a perdição dos vivos (cf. Sab 1, 13). Com esta, apenas Satanás se pode alegrar: foi pela sua inveja que a morte entrou no mundo (cf. Sab 2, 24). " Assassino desde o princípio ", o diabo é também " mentiroso e pai da mentira " (Jo 8, 44): enganando o homem, levou-o para metas de pecado e de morte, apresentadas como objectivos e frutos de vida.
54. O preceito " não matarás ", explicitamente, tem um forte conteúdo negativo: indica o limite extremo que nunca poderá ser transposto. Implicitamente, porém, induz a uma atitude positiva de respeito absoluto pela vida, levando a promovê-la e a crescer seguindo a estrada do amor que se dá, acolhe e serve. Também o povo da Aliança, ainda que lentamente e não sem contradições, experimentou um amadurecimento progressivo nessa direcção, preparando-se assim para a grande proclamação de Jesus: o amor do próximo é um mandamento semelhante ao do amor de Deus; " destes dois mandamentos depende toda a Lei e os Profetas " (Mt 22, 36-40). " Com efeito, (...) não matarás (...) e qualquer dos outros mandamentos - sublinha S. Paulo - resumem-se nestas palavras: "Amarás ao próximo como a ti mesmo" " (Rm 13, 9; cf. Gal 5, 14). Assumido e levado à perfeição na Nova Lei, o preceito " não matarás " permanece como condição indispensável para poder " entrar na vida " (cf. Mt 19, 16-19). E, nesta mesma perspectiva, aponta decisivamente a palavra do apóstolo João: " Todo aquele que odeia o seu irmão é homicida e sabeis que nenhum homicida tem a vida eterna permanentemente em si " (1 Jo 3, 15).
Desde os seus primórdios, a Tradição viva da Igreja - como testemunha a Didaké, o escrito cristão extra-bíblico mais antigo - reafirmou de modo categórico o mandamento " não matarás ": " Há dois caminhos, um da vida e o outro da morte; mas entre os dois existe uma grande diferença. (...) Segundo o preceito da doutrina: não matarás; (...) não matarás o embrião por meio do aborto, nem farás que morra o recém-nascido. (...) Este é o caminho da morte: (...) não têm compaixão do pobre, não sofrem com o enfermo, nem reconhecem o seu Criador; assassinam os seus filhos e pelo aborto fazem perecer criaturas de Deus; desprezam o necessitado, oprimem o atribulado, são defensores dos ricos e juízes injustos dos pobres; estão cheios de todo o pecado. Possais, filhos, permanecer sempre longe de todas estas culpas! ".42
Ao longo dos tempos, a Tradição da Igreja ensinou sempre e unanimamente o valor absoluto e permanente do mandamento " não matarás ". É sabido que, nos primeiros séculos, o homicídio se contava entre os três pecados mais graves - juntamente com a apostasia e o adultério -, e exigia-se uma penitência pública particularmente onerosa e demorada, antes de ser concedido ao homicida arrependido o perdão e a readmissão na comunidade eclesial.
55. Não há de que se maravilhar! Matar o ser humano, no qual está presente a imagem de Deus, é pecado de particular gravidade.Só Deus é dono da vida! No entanto, frente aos múltiplos casos, frequentemente dramáticos, que a vida individual e social apresenta, a reflexão dos crentes procurou sempre alcançar um conhecimento mais completo e profundo daquilo que o mandamento de Deus proíbe e prescreve.43 Com efeito, há situações onde os valores propostos pela Lei de Deus parecem formar um verdadeiro paradoxo. É o caso, por exemplo, da legítima defesa, onde o direito de proteger a própria vida e o dever de não lesar a alheia se revelam, na prática, dificilmente conciliáveis. Sem dúvida que o valor intrínseco da vida e o dever de dedicar um amor a si mesmo não menor que aos outros, fundam um verdadeiro direito à própria defesa. O próprio preceito que manda amar os outros, enunciado no Antigo Testamento e confirmado por Jesus, supõe o amor a si mesmo como termo de comparação: " Amarás o teu próximo como a ti mesmo " (Mc 12, 31). Portanto, ninguém poderia renunciar ao direito de se defender por carência de amor à vida ou a si mesmo, mas apenas em virtude de um amor heróico que, na linha do espírito das bem-aventuranças evangélicas (cf. Mt 5, 38- 48), aprofunde o amor a si mesmo, transfigurando-o naquela oblação radical cujo exemplo mais sublime é o próprio Senhor Jesus.
Por outro lado, " a legítima defesa pode ser, não somente um direito, mas um dever grave, para aquele que é responsável pela vida de outrem, do bem comum da família ou da sociedade ".44 Acontece, infelizmente, que a necessidade de colocar o agressor em condições de não molestar implique, às vezes, a sua eliminação. Nesta hipótese, o desfecho mortal há-de ser atribuído ao próprio agressor que a tal se expôs com a sua acção, inclusive no caso em que ele não fosse moralmente responsável por falta do uso da razão.45
56. Nesta linha, coloca-se o problema da pena de morte, à volta do qual se regista, tanto na Igreja como na sociedade, a tendência crescente para pedir uma aplicação muito limitada, ou melhor, a total abolição da mesma. O problema há-de ser enquadrado na perspectiva de uma justiça penal, que seja cada vez mais conforme com a dignidade do homem e portanto, em última análise, com o desígnio de Deus para o homem e a sociedade. Na verdade, a pena, que a sociedade inflige, tem " como primeiro efeito o de compensar a desordem introduzida pela falta ".46 A autoridade pública deve fazer justiça pela violação dos direitos pessoais e sociais, impondo ao réu uma adequada expiação do crime como condição para ser readmitido no exercício da própria liberdade. Deste modo, a autoridade há-de procurar alcançar o objectivo de defender a ordem pública e a segurança das pessoas, não deixando, contudo, de oferecer estímulo e ajuda ao próprio réu para se corrigir e redimir.47
Claro está que, para bem conseguir todos estes fins, a medida e a qualidade da pena hão-de ser atentamente ponderadas e decididas, não se devendo chegar à medida extrema da execução do réu senão em casos de absoluta necessidade, ou seja, quando a defesa da sociedade não fosse possível de outro modo. Mas, hoje, graças à organização cada vez mais adequada da instituição penal, esses casos são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes.
Em todo o caso, permanece válido o princípio indicado pelo novo Catecismo da Igreja Católica: " na medida em que outros processos, que não a pena de morte e as operações militares, bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a paz pública, tais processos não sangrentos devem preferir-se, por serem proporcionados e mais conformes com o fim em vista e a dignidade humana ".48
57. Se se deve mostrar uma atenção assim tão grande por qualquer vida, mesmo pela do réu e a do injusto agressor, o mandamento " não matarás " tem valor absoluto quando se refere à pessoa inocente. E mais ainda, quando se trata de um ser frágil e inerme que encontra a sua defesa radical do arbítrio e da prepotência alheia, unicamente na força absoluta do mandamento de Deus.
De facto, a inviolabilidade absoluta da vida humana inocente é uma verdade moral explicitamente ensinada na Sagrada Escritura, constantemente mantida na Tradição da Igreja e unanimamente proposta pelo seu Magistério. Tal unanimidade é fruto evidente daquele " sentido sobrenatural da fé " que, suscitado e apoiado pelo Espírito Santo, preserva do erro o Povo de Deus, quando " manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes ".49
Face ao progressivo enfraquecimento, nas consciências e na sociedade, da percepção da absoluta e grave ilicitude moral da eliminação directa de qualquer vida humana inocente, sobretudo no seu início e no seu termo, o Magistério da Igreja intensificou as suas intervenções em defesa da sacralidade e inviolabilidade da vida humana. Ao Magistério pontifício, particularmente insistente, sempre se uniu o Magistério episcopal, com numerosos e amplos documentos doutrinais e pastorais emanados quer pelas Conferências Episcopais, quer pelos Bispos individualmente. Não faltou sequer, forte e incisiva na sua brevidade, a intervenção do Concílio Vaticano II.50
Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos da Igreja Católica,confirmo que a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral. Esta doutrina, fundada naquela lei não-escrita que todo o homem, pela luz da razão, encontra no próprio coração (cf. Rm 2, 14-15), é confirmada pela Sagrada Escritura, transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magisterio ordinário e universal.51
A decisão deliberada de privar um ser humano inocente da sua vida é sempre má do ponto de vista moral, e nunca pode ser lícita nem como fim, nem como meio para um fim bom. É, de facto, uma grave desobediência à lei moral, antes ao próprio Deus, autor e garante desta; contradiz as virtudes fundamentais da justiça e da caridade. " Nada e ninguém pode autorizar que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante. E também a ninguém é permitido requerer este gesto homicida para si ou para outrem confiado à sua responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou implicitamente. Não há autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir ".52
No referente ao direito à vida, cada ser humano inocente é absolutamente igual a todos os demais. Esta igualdade é a base de todo o relacionamento social autêntico, o qual, para o ser verdadeiramente, não pode deixar de se fundar sobre a verdade e a justiça, reconhecendo e tutelando cada homem e cada mulher como pessoa, e não como coisa de que se possa dispor. Diante da norma moral que proíbe a eliminação directa de um ser humano inocente, " não existem privilégios, nem excepções para ninguém. Ser o dono do mundo ou o último "miserável" sobre a face da terra, não faz diferença alguma: perante as exigências morais, todos somos absolutamente iguais ".53
" Vossos olhos contemplaram-me ainda em embrião " (Sal 139138, 16): o crime abominável do aborto
58. Dentre todos os crimes que o homem pode realizar contra a vida, o aborto provocado apresenta características que o tornam particularmente grave e abjurável. O Concílio Vaticano II define-o, juntamente com o infanticídio, " crime abominável ".54
Mas hoje, a percepção da sua gravidade vai-se obscurecendo progressivamente em muitas consciências. A aceitação do aborto na mentalidade, nos costumes e na própria lei, é sinal eloquente de uma perigosíssima crise do sentido moral que se torna cada vez mais incapaz de distinguir o bem do mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida. Diante de tão grave situação, impõe-se mais que nunca a coragem de olhar frontalmente a verdade e chamar as coisas pelo seu nome, sem ceder a compromissos com o que nos é mais cómodo, nem à tentação de auto-engano. A propósito disto, ressoa categórica a censura do Profeta: " Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas " (Is 5, 20). Precisamente no caso do aborto, verifica-se a difusão de uma terminologia ambígua, como " interrupção da gravidez ", que tende a esconder a verdadeira natureza dele e a atenuar a sua gravidade na opinião pública. Talvez este fenómeno linguístico seja já, em si mesmo, sintoma de um mal-estar das consciências. Mas nenhuma palavra basta para alterar a realidade das coisas: o aborto provocado é a morte deliberada e directa, independentemente da forma como venha realizada, de um ser humano na fase inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento.
A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio e, particularmente, quando se consideram as circunstâncias específicas que o qualificam. A pessoa eliminada é um ser humano que começa a desabrochar para a vida, isto é, o que de mais inocente, em absoluto, se possa imaginar: nunca poderia ser considerado um agressor, menos ainda um injusto agressor! É frágil, inerme, e numa medida tal que o deixa privado inclusive daquela forma mínima de defesa constituída pela força suplicante dos gemidos e do choro do recém-nascido. Está totalmente entregue à protecção e aos cuidados daquela que o traz no seio. E todavia, às vezes, é precisamente ela, a mãe, quem decide e pede a sua eliminação, ou até a provoca.
É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a mãe um carácter dramático e doloroso: a decisão de se desfazer do fruto concebido não é tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou um nível de vida digno para os outros membros da família. Às vezes, temem-se para o nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente.
59. A decidirem a morte da criança ainda não nascida, a par da mãe, aparecem, com frequência, outras pessoas. Antes de mais, culpado pode ser o pai da criança, não apenas quando claramente constringe a mulher ao aborto, mas também quando favorece indirectamente tal decisão ao deixá-la sozinha com os problemas de uma gravidez: 55 desse modo, a família fica mortalmente ferida e profanada na sua natureza de comunidade de amor e na sua vocação para ser " santuário da vida ". Nem se podem calar as solicitações que, às vezes, provêm do âmbito familiar mais alargado e dos amigos. A mulher, não raro, é sujeita a pressões tão fortes que se sente psicologicamente constrangida a ceder ao aborto: não há dúvida que, neste caso, a responsabilidade moral pesa particularmente sobre aqueles que directa ou indirectamente a forçaram a abortar. Responsáveis são também os médicos e restantes profissionais da saúde, sempre que põem ao serviço da morte a competência adquirida para promover a vida.
Mas a responsabilidade cai ainda sobre os legisladores que promoveram e aprovaram leis abortistas, e sobre os administradores das estruturas clínicas onde se praticam os abortos, na medida em que a sua execução deles dependa. Uma responsabilidade geral, mas não menos grave, cabe a todos aqueles que favoreceram a difusão de uma mentalidade de permissivismo sexual e de menosprezo pela maternidade, como também àqueles que deveriam ter assegurado - e não o fizeram - válidas políticas familiares e sociais de apoio às famílias, especialmente às mais numerosas ou com particulares dificuldades económicas e educativas. Não se pode subestimar, enfim, a vasta rede de cumplicidades, nela incluindo instituições internacionais, fundações e associações, que se batem sistematicamente pela legalização e difusão do aborto no mundo. Neste sentido, o aborto ultrapassa a responsabilidade dos indivíduos e o dano que lhes é causado, para assumir uma dimensão fortemente social: é uma ferida gravíssima infligida à sociedade e à sua cultura por aqueles que deveriam ser os seus construtores e defensores. Como escrevi na Carta às Famílias, " encontramo-nos defronte a uma enorme ameaça contra a vida, não apenas dos simples indivíduos, mas também de toda a civilização ".56 Achamo-nos perante algo que bem se pode definir uma " estrutura de pecado " contra a vida humana ainda não nascida.
60. Alguns tentam justificar o aborto, defendendo que o fruto da concepção, pelo menos até um certo número de dias, não pode ainda ser considerado uma vida humana pessoal. Na realidade, porém, " a partir do momento em que o óvulo é fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é a do pai nem a da mãe, mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por conta própria. Nunca mais se tornaria humana, se não o fosse já desde então. A esta evidência de sempre (...) a ciência genética moderna fornece preciosas confirmações. Demonstrou que, desde o primeiro instante, se encontra fixado o programa daquilo que será este ser vivo: uma pessoa, esta pessoa individual, com as suas notas características já bem determinadas. Desde a fecundação, tem início a aventura de uma vida humana, cujas grandes capacidades, já presentes cada uma delas, apenas exigem tempo para se organizar e encontrar prontas a agir ".57 Não podendo a presença de uma alma espiritual ser assinalada através da observação de qualquer dado experimental, são as próprias conclusões da ciência sobre o embrião humano a fornecer " uma indicação valiosa para discernir racionalmente uma presença pessoal já a partir desta primeira aparição de uma vida humana: como poderia um indivíduo humano não ser uma pessoa humana? ".58
Aliás, o valor em jogo é tal que, sob o perfil moral, bastaria a simples probabilidade de encontrar-se em presença de uma pessoa para se justificar a mais categórica proibição de qualquer intervenção tendente a eliminar o embrião humano. Por isso mesmo, independentemente dos debates científicos e mesmo das afirmações filosóficas com os quais o Magistério não se empenhou expressamente, a Igreja sempre ensinou - e ensina - que tem de ser garantido ao fruto da geração humana, desde o primeiro instante da sua existência, o respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade e unidade corporal e espiritual: " O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida ".59
61. Os textos da Sagrada Escritura, que nunca falam do aborto voluntário e, por conseguinte, também não apresentam condenações directas e específicas do mesmo, mostram pelo ser humano no seio materno uma consideração tal que exige, como lógica consequência, que se estenda também a ele o mandamento de Deus: " não matarás ".
A vida humana é sagrada e inviolável em cada momento da sua existência, inclusive na fase inicial que precede o nascimento. Desde o seio materno, o homem pertence a Deus que tudo perscruta e conhece, que o forma e plasma com suas mãos, que o vê quando ainda é um pequeno embrião informe, e que nele entrevê o adulto de amanhã, cujos dias estão todos contados e cuja vocação está já escrita no " livro da vida " (cf. Sal 139138, 1.13-16). Quando está ainda no seio materno - como testemunham numerosos textos bíblicos 60 - já o homem é objecto muito pessoal da amorosa e paterna providência de Deus.
A Tradição cristã - como justamente se realça na Declaração sobre esta matéria, emanada pela Congregação para a Doutrina da Fé 61 - é clara e unânime, desde as suas origens até aos nossos dias, em classificar o aborto como desordem moral particularmente grave. A comunidade cristã, desde o seu primeiro confronto com o mundo greco-romano onde se praticava amplamente o aborto e o infanticídio, opôs-se radicalmente, com a sua doutrina e a sua praxe, aos costumes generalizados naquela sociedade, como o demonstra a já citada Didaké.62 Entre os escritores eclesiásticos da área linguística grega, Atenágoras recorda que os cristãos consideram homicidas as mulheres que recorrem a produtos abortivos, porque os filhos, apesar de estarem ainda no seio da mãe, " são já objecto dos cuidados da Providência divina ".63 Entre os latinos, Tertuliano afirma: " É um homicídio premeditado impedir de nascer; pouco importa que se suprima a alma já nascida ou que se faça desaparecer durante o tempo até ao nascer. É já um homem aquele que o será ".64
Ao longo da sua história já bimilenária, esta mesma doutrina foi constantemente ensinada pelos Padres da Igreja, pelos seus Pastores e Doutores. Mesmo as discussões de carácter científico e filosófico acerca do momento preciso da infusão da alma espiritual não incluíram nunca a mínima hesitação quanto à condenação moral do aborto.
62. O Magistério pontifício mais recente reafirmou, com grande vigor, esta doutrina comum. Em particular Pio XI, na encíclicaCasti connubii rejeitou as alegadas justificações do aborto; 65 Pio XII excluiu todo o aborto directo, isto é, qualquer acto que vise directamente destruir a vida humana ainda não nascida, " quer tal destruição seja pretendida como fim ou apenas como meio para o fim "; 66 João XXIII corroborou que a vida humana é sagrada, porque " desde o seu despontar empenha directamente a acção criadora de Deus ".67 O Concílio Vaticano II, como já foi recordado, condenou o aborto com grande severidade: " A vida deve, pois, ser salvaguardada com extrema solicitude, desde o primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis ".68
A disciplina canónica da Igreja, desde os primeiros séculos, puniu com sanções penais aqueles que se manchavam com a culpa do aborto, e tal praxe, com penas mais ou menos graves, foi confirmada nos sucessivos períodos históricos. O Código de Direito Canónico de 1917, para o aborto, prescrevia a pena de excomunhão.69 Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que " quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae ",70 isto é, automática. A excomunhão recai sobre todos aqueles que cometem este crime com conhecimento da pena, incluindo também cúmplices sem cujo contributo o aborto não se teria realizado.
71 com uma sanção assim reiterada, a Igreja aponta este crime como um dos mais graves e perigosos, incitando, deste modo, quem o comete a ingressar diligentemente pela estrada da conversão. Na Igreja, de facto, a finalidade da pena de excomunhão é tornar plenamente consciente da gravidade de um determinado pecado e, consequentemente, favorecer a adequada conversão e penitência.
Frente a semelhante unanimidade na tradição doutrinal e disciplinar da Igreja, Paulo VI pôde declarar que tal ensinamento não conheceu mudança e é imutável.72 Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos - que de várias e repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina - declaro que o aborto directo, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.73
Nenhuma circunstância, nenhum fim, nenhuma lei no mundo poderá jamais tornar lícito um acto que é intrinsecamente ilícito, porque contrário à Lei de Deus, inscrita no coração de cada homem, reconhecível pela própria razão, e proclamada pela Igreja.
63. A avaliação moral do aborto deve aplicar-se também às recentes formas de intervenção sobre embriões humanos, que, não obstante visarem objectivos em si legítimos, implicam inevitavelmente a sua morte. É o caso da experimentação sobre embriões, em crescente expansão no campo da pesquisa biomédica e legalmente admitida em alguns países. Se " devem ser consideradas lícitas as intervenções no embrião humano, sob a condição de que respeitem a vida e a integridade do embrião, não comportem para ele riscos desproporcionados, e sejam orientadas para a sua cura, para a melhoria das suas condições de saúde ou para a sua sobrevivência individual ",74 impõe-se, pelo contrário, afirmar que o uso de embriões ou de fetos humanos como objecto de experimentação constitui um crime contra a sua dignidade de seres humanos, que têm direito ao mesmo respeito devido à criança já nascida e a qualquer pessoa.75
A mesma condenação moral vale para o sistema que desfruta os embriões e os fetos humanos ainda vivos - às vezes " produzidos " propositadamente para este fim através da fecundação in vitro - seja como " material biológico " à disposição, seja como fornecedores de órgãos ou de tecidos para transplante no tratamento de algumas doenças. Na realidade, o assassínio de criaturas humanas inocentes, ainda que com vantagem para outras, constitui um acto absolutamente inaceitável.
Especial atenção há-de ser reservada à avaliação moral das técnicas de diagnose pré-natal, que permitem individuar precocemente eventuais anomalias do nascituro. Com efeito, devido à complexidade dessas técnicas, a avaliação em causa deve fazer-se mais cuidadosa e articuladamente. Quando estão isentas de riscos desproporcionados para a criança e para a mãe, e se destinam a tornar possível uma terapia precoce ou ainda a favorecer uma serena e consciente aceitação do nascituro, estas técnicas são moralmente lícitas. Mas, dado que as possibilidade de cura antes do nascimento são hoje ainda reduzidas, acontece bastantes vezes que essas técnicas são postas ao serviço de uma mentalidade eugenista que aceita o aborto selectivo, para impedir o nascimento de crianças afectadas por tipos vários de anomalias. Semelhante mentalidade é ignominiosa e absolutamente reprovável, porque pretende medir o valor de uma vida humana apenas segundo parâmetros de " normalidade " e de bem-estar físico, abrindo assim a estrada à legitimação do infanticídio e da eutanásia.
Na realidade, porém, a própria coragem e serenidade com que muitos irmãos nossos, afectados por graves deficiências, conduzem a sua existência quando são aceites e amados por nós, constituem um testemunho particularmente eficaz dos valores autênticos que qualificam a vida e a tornam, mesmo em condições difíceis, preciosa para o próprio e para os outros. A Igreja sente-se solidária com os cônjuges que, com grande ansiedade e sofrimento, aceitam acolher os seus filhos gravemente deficientes, tal como se sente grata a todas as famílias que, pela adopção, acolhem os que são abandonados pelos seus pais por causa de limitações ou doenças.
" Só Eu é que dou a vida e dou a morte " (Dt 32, 39): o drama da eutanásia
64. No outro topo da existência, o homem encontra-se diante do mistério da morte. Hoje, na sequência dos progressos da medicina e num contexto cultural frequentemente fechado à transcendência, a experiência do morrer apresenta-se com algumas características novas. Com efeito, quando prevalece a tendência para apreciar a vida só na medida em que proporciona prazer e bem-estar, o sofrimento aparece como um contratempo insuportável, de que é preciso libertar-se a todo o custo. A morte, considerada como " absurda " quando interrompe inesperadamente uma vida ainda aberta para um futuro rico de possíveis experiências interessantes, torna-se, pelo contrário, uma " libertação reivindicada ", quando a existência é tida como já privada de sentido porque mergulhada na dor e inexoravelmente votada a um sofrimento sempre mais intenso.
Além disso, recusando ou esquecendo o seu relacionamento fundamental com Deus, o homem pensa que é critério e norma de si mesmo e julga que tem inclusive o direito de pedir à sociedade que lhe garanta possibilidades e modos de decidir da própria vida com plena e total autonomia. Em particular, o homem que vive nos países desenvolvidos é que assim se comporta: a tal se sente impelido, entre outras coisas, pelos contínuos progressos da medicina e das suas técnicas cada vez mais avançadas. Por meio de sistemas e aparelhagens extremamente sofisticadas, hoje a ciência e a prática médica são capazes de resolver casos anteriormente insolúveis e de aliviar ou eliminar a dor, como também de sustentar e prolongar a vida até em situações de debilidade extrema, de reanimar artificialmente pessoas cujas funções biológicas elementares sofreram danos imprevistos, de intervir para tornar disponíveis órgãos para transplante.
Num tal contexto, torna-se cada vez mais forte a tentação daeutanásia, isto é, de apoderar-se da morte, provocando-a antes do tempo e, deste modo, pondo fim " docemente " à vida própria ou alheia. Na realidade, aquilo que poderia parecer lógico e humano, quando visto em profundidade, apresenta-se absurdo e desumano. Estamos aqui perante um dos sintomas mais alarmantes da " cultura de morte " que avança sobretudo nas sociedades do bem-estar, caracterizadas por uma mentalidade eficientista que faz aparecer demasiadamente gravoso e insuportável o número crescente das pessoas idosas e debilitadas. Com muita frequência, estas acabam por ser isoladas da família e da sociedade, organizada quase exclusivamente sobre a base de critérios de eficiência produtiva, segundo os quais uma vida irremediavelmente incapaz não tem mais qualquer valor.
65. Para um correcto juízo moral da eutanásia, é preciso, antes de mais, defini-la claramente. Por eutanásia, em sentido verdadeiro e próprio, deve-se entender uma acção ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de eliminar o sofrimento. " A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das intenções e ao nível dos métodos empregues ".76
Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado " excesso terapêutico ", ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência " renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes ".77 Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há-de medir-se segundo as situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à disposição são objectivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à morte.78
Na medicina actual, têm adquirido particular importância os denominados " cuidados paliativos ", destinados a tornar o sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao mesmo tempo ao paciente um adequado acompanhamento humano. Neste contexto, entre outros problemas, levanta-se o da licitude do recurso aos diversos tipos de analgésicos e sedativos para aliviar o doente da dor, quando isso comporta o risco de lhe abreviar a vida. Ora, se pode realmente ser considerado digno de louvor quem voluntariamente aceita sofrer renunciando aos meios lenitivos da dor, para conservar a plena lucidez e, se crente, participar, de maneira consciente, na Paixão do Senhor, tal comportamento " heróico " não pode ser considerado obrigatório para todos. Já Pio XII afirmara que é lícito suprimir a dor por meio de narcóticos, mesmo com a consequência de limitar a consciência e abreviar a vida, " se não existem outros meios e se, naquelas circunstâncias, isso em nada impede o cumprimento de outros deveres religiosos e morais ".79 É que, neste caso, a morte não é querida ou procurada, embora por motivos razoáveis se corra o risco dela: pretende- -se simplesmente aliviar a dor de maneira eficaz, recorrendo aos analgésicos postos à disposição pela medicina. Contudo, " não se deve privar o moribundo da consciência de si mesmo, sem motivo grave ": 80 quando se aproxima a morte, as pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas obrigações morais e familiares, e devem sobretudo poder-se preparar com plena consciência para o encontro definitivo com Deus.
Feitas estas distinções, em conformidade com o Magistério dos meus Predecessores 81 e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.82
A eutanásia comporta, segundo as circunstâncias, a malícia própria do suicídio ou do homicídio.
66. Ora, o suicídio é sempre moralmente inaceitável, tal como o homicídio. A tradição da Igreja sempre o recusou, como opção gravemente má.83 Embora certos condicionalismos psicológicos, culturais e sociais possam levar a realizar um gesto que tão radicalmente contradiz a inclinação natural de cada um à vida, atenuando ou anulando a responsabilidade subjectiva, o suicídio, sob o perfil objectivo, é um acto gravemente imoral, porque comporta a recusa do amor por si mesmo e a renúncia aos deveres de justiça e caridade para com o próximo, com as várias comunidades de que se faz parte, e com a sociedade no seu conjunto.84 No seu núcleo mais profundo, o suicídio constitui uma rejeição da soberania absoluta de Deus sobre a vida e sobre a morte, deste modo proclamada na oração do antigo Sábio de Israel: " Vós, Senhor, tendes o poder da vida e da morte, e conduzis os fortes à porta do Hades e de lá os tirais " (Sab 16, 13; cf. Tob 13, 2).
Compartilhar a intenção suicida de outrem e ajudar a realizá-la mediante o chamado " suicídio assistido ", significa fazer-se colaborador e, por vezes, autor em primeira pessoa de uma injustiça que nunca pode ser justificada, nem sequer quando requerida. " Nunca é lícito - escreve com admirável actualidade Santo Agostinho - matar o outro: ainda que ele o quisesse, mesmo se ele o pedisse, porque, suspenso entre a vida e a morte, suplica ser ajudado a libertar a alma que luta contra os laços do corpo e deseja desprender-se; nem é lícito sequer quando o doente já não estivesse em condições de sobreviver ".85 Mesmo quando não é motivada pela recusa egoísta de cuidar da vida de quem sofre, a eutanásia deve designar-se uma falsa compaixão, antes uma preocupante " perversão " da mesma: a verdadeira " compaixão ", de facto, torna solidário com a dor alheia, não suprime aquele de quem não se pode suportar o sofrimento. E mais perverso ainda se manifesta o gesto da eutanásia, quando é realizado por aqueles que - como os parentes - deveriam assistir com paciência e amor o seu familiar, ou por quantos - como os médicos -, pela sua específica profissão, deveriam tratar o doente, inclusive nas condições terminais mais penosas.
A decisão da eutanásia torna-se mais grave, quando se configura como um homicídio, que os outros praticam sobre uma pessoa que não a pediu de modo algum nem deu nunca qualquer consentimento para a mesma. Atinge-se, enfim, o cúmulo do arbítrio e da injustiça, quando alguns, médicos ou legisladores, se arrogam o poder de decidir quem deve viver e quem deve morrer. Aparece assim reproposta a tentação do Éden: tornar-se como Deus " conhecendo o bem e o mal " (cf. Gn 3, 5). Mas, Deus é o único que tem o poder de fazer morrer e de fazer viver: " Só Eu é que dou a vida e dou a morte " (Dt 32, 39; cf. 2 Re 5, 7; 1 Sam 2, 6). Ele exerce o seu poder sempre e apenas segundo um desígnio de sabedoria e amor. Quando o homem usurpa tal poder, subjugado por uma lógica insensata e egoísta, usa-o inevitavelmente para a injustiça e a morte. Assim, a vida do mais fraco é abandonada às mãos do mais forte; na sociedade, perde-se o sentido da justiça e fica minada pela raiz a confiança mútua, fundamento de qualquer relação autêntica entre as pessoas.
67. Bem diverso, ao contrário, é o caminho do amor e da verdadeira compaixão, que nos é imposto pela nossa comum humanidade e que a fé em Cristo Redentor, morto e ressuscitado, ilumina com novas razões. A súplica que brota do coração do homem no confronto supremo com o sofrimento e a morte, especialmente quando é tentado a fechar-se no desespero e como que a aniquilar-se nele, é sobretudo uma petição de companhia, solidariedade e apoio na prova. É um pedido de ajuda para continuar a esperar, quando falham todas as esperanças humanas. Como nos recordou o Concílio Vaticano II, " é em face da morte que o enigma da condição humana mais se adensa " para o homem; e, todavia, " a intuição do próprio coração fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de eternidade que nele existe, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte ".86
Esta repugnância natural da morte e este germe de esperança na imortalidade são iluminadas e levadas à plenitude pela fé cristã, que promete e oferece a participação na vitória de Cristo Ressuscitado: é a vitória d'Aquele que, pela sua morte redentora, libertou o homem da morte, " salário do pecado " (Rm 6, 23), e lhe deu o Espírito, penhor de ressurreição e de vida (cf. Rm 8, 11). A certeza da imortalidade futura e a esperança na ressurreição prometida projectam uma luz nova sobre o mistério do sofrimento e da morte e infundem no crente uma força extraordinária para se abandonar ao desígnio de Deus.
O apóstolo Paulo exprimiu esta novidade em termos de pertença total ao Senhor que abraça qualquer condição humana: " Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor " (Rm 14, 7-8). Morrer para o Senhor significa viver a própria morte como acto supremo de obediência ao Pai (cf. Fil 2, 8), aceitando encontrá-la na " hora " querida e escolhida por Ele (cf. Jo 13, 1), o único que pode dizer quando está cumprido o caminho terreno. Viver para o Senhor significa também reconhecer que o sofrimento, embora permaneça em si mesmo um mal e uma prova, sempre se pode tornar fonte de bem. E torna-se tal se é vivido por amor e com amor, na participação, por dom gratuito de Deus e por livre opção pessoal, no próprio sofrimento de Cristo crucificado. Deste modo, quem vive o seu sofrimento no Senhor fica mais plenamente configurado com Ele (cf. Fil 3, 10; 1 Ped 2, 21) e intimamente associado à sua obra redentora a favor da Igreja e da huma-
nidade.87 É esta experiência do Apóstolo, que toda a pessoa que sofre é chamada a viver: " Alegro-me nos sofrimentos suportados por vossa causa e completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja " (Col 1, 24).
" Importa mais obedecer a Deus do que aos homens " (Act 5, 29): a lei civil e a lei moral
68. Uma das características dos actuais atentados à vida humana - como já se disse várias vezes - é a tendência para exigir a sua legitimação jurídica, como se fossem direitos que o Estado deveria, pelo menos em certas condições, reconhecer aos cidadãos e, consequentemente, a pretensão da execução dos mesmos com a assistência segura e gratuita dos médicos e restantes profissionais da saúde.
Considera-se, não raro, que a vida daquele que ainda não nasceu ou está gravemente debilitado, seria um bem simplesmente relativo: teria de ser confrontada e ponderada com outros bens, segundo uma lógica proporcionalista ou de puro cálculo. Igualmente pensa-se que só quem se encontra na situação concreta e nela está pessoalmente implicado é que poderia realizar uma justa ponderação dos bens em jogo: por conseguinte, unicamente essa pessoa poderia decidir sobre a moralidade da sua escolha. Por isso, e no interesse da convivência civil e da harmonia social, o Estado deveria respeitar essa escolha, chegando mesmo a admitir o aborto e a eutanásia.
Outras vezes, julga-se que a lei civil não poderia exigir que todos os cidadãos vivessem segundo um grau de moralidade mais elevado do que aquele que eles mesmos reconhecem e condividem. Por isso, a lei deveria exprimir sempre a opinião e a vontade da maioria dos cidadãos e reconhecer-lhes também, pelo menos em certos casos extremos, o direito ao aborto e à eutanásia. Nesses casos, aliás, a proibição e a punição dos referidos actos conduziria inevitavelmente - assim o dizem - a um aumento de práticas clandestinas: e estas escapariam ao necessário controlo social e seriam realizadas sem a devida segurança médica. E interrogam-se, além disso, se o apoiar uma lei que não é concretamente aplicável não significaria, em última análise, minar também a autoridade de qualquer outra lei.
Nas opiniões mais radicais, chega-se mesmo a defender que, numa sociedade moderna e pluralista, deveria ser reconhecida a cada pessoa total autonomia para dispor da própria vida e da vida de quem ainda não nasceu: não seria competência da lei fazer a escolha entre as diversas opiniões morais, e menos ainda poderia ela pretender impor uma opinião particular em detrimento das outras.
69. Certo é que, na cultura democrática do nosso tempo, se acha amplamente generalizada a opinião, segundo a qual o ordenamento jurídico de uma sociedade haveria de limitar-se a registar e acolher as convicções da maioria e, consequentemente, dever-se-ia construir apenas sobre aquilo que a própria maioria reconhece e vive como moral. Se, depois, se chega a pensar que uma verdade comum e objectiva seria realmente inacessível, então o respeito pela liberdade dos cidadãos - que, num regime democrático, são considerados os verdadeiros soberanos - exigiria que, a nível legislativo, se reconhecesse a autonomia da consciência de cada um e, por conseguinte, ao estabelecer aquelas normas que são absolutamente necessárias à convivência social, se adequassem exclusivamente à vontade da maioria, fosse ela qual fosse. Desta maneira, todo o político deveria separar claramente, no seu agir, o âmbito da consciência privada e o do comportamento público.
Em consequência disto, registam-se duas tendências que na aparência são diametralmente opostas. Por um lado, os indivíduos reivindicam para si a mais completa autonomia moral de decisão, e pedem que o Estado não assuma nem imponha qualquer concepção ética, mas se limite a garantir o espaço mais amplo possível à liberdade de cada um, tendo como único limite externo não lesar o espaço de autonomia a que cada um dos outros cidadãos também tem direito. Mas por outro lado, pensa-se que, no desempenho das funções públicas e profissionais, o respeito pela liberdade alheia de escolha obrigaria cada qual a prescindir das próprias convicções para se colocar ao serviço de qualquer petição dos cidadãos, que as leis reconhecem e tutelam, aceitando como único critério moral no exercício das próprias funções aquilo que está estabelecido pelas mesmas leis. Deste modo, a responsabilidade da pessoa é delegada na lei civil com a abdicação da própria consciência moral, pelo menos no âmbito da acção pública.
70. Raiz comum de todas estas tendências é o relativismo ético, que caracteriza grande parte da cultura contemporânea. Não falta quem pense que tal relativismo seja uma condição da democracia, visto que só ele garantiria tolerância, respeito recíproco entre as pessoas e adesão às decisões da maioria, enquanto as normas morais, consideradas objectivas e vinculantes, conduziriam ao autoritarismo e à intolerância.
Mas é exactamente a problemática conexa com o respeito da vida que mostra os equívocos e contradições, com terríveis resultados práticos, que se escondem nesta posição.
É verdade que a história regista casos de crimes cometidos em nome da " verdade ". Mas crimes não menos graves e negações radicais da liberdade foram também cometidos e cometem-se em nome do " relativismo ético ". Quando uma maioria parlamentar ou social decreta a legitimidade da eliminação, mesmo sob certas condições, da vida humana ainda não nascida, porventura não assume uma decisão " tirânica " contra o ser humano mais débil e indefeso? Justamente reage a consciência universal diante dos crimes contra a humanidade, de que o nosso século viveu tão tristes experiências. Porventura deixariam de ser crimes, se, em vez de terem sido cometidos por tiranos sem escrúpulos, fossem legitimados por consenso popular?
Não se pode mitificar a democracia até fazer dela o substituto da moralidade ou a panaceia da imoralidade. Fundamentalmente, é um " ordenamento " e, como tal, um instrumento, não um fim. O seu carácter " moral " não é automático, mas depende da conformidade com a lei moral, à qual se deve submeter como qualquer outro comportamento humano: por outras palavras, depende da moralidade dos fins que persegue e dos meios que usa. Regista-se hoje um consenso quase universal sobre o valor da democracia, o que há-de ser considerado um positivo " sinal dos tempos ", como o Magistério da Igreja já várias vezes assinalou.88 Mas, o valor da democracia vive ou morre nos valores que ela encarna e promove: fundamentais e imprescindíveis são certamente a dignidade de toda a pessoa humana, o respeito dos seus direitos intangíveis e inalienáveis, e bem assim a assunção do " bem comum " como fim e critério regulador da vida política.
Na base destes valores, não podem estar " maiorias " de opinião provisórias e mutáveis, mas só o reconhecimento de uma lei moral objectiva que, enquanto " lei natural " inscrita no coração do homem, seja ponto normativo de referência para a própria lei civil. Quando, por um trágico obscurecimento da consciência colectiva, o cepticismo chegasse a pôr em dúvida mesmo os princípios fundamentais da lei moral, então o próprio ordenamento democrático seria abalado nos seus fundamentos, ficando reduzido a puro mecanismo de regulação empírica dos diversos e contrapostos interesses.89
Alguém poderia pensar que, na falta de melhor, já esta função reguladora fosse de apreciar em vista da paz social. Mesmo reconhecendo qualquer ponto de verdade em tal avaliação, é difícil não ver que, sem um ancoradouro moral objectivo, a democracia não pode assegurar uma paz estável, até porque é ilusória a paz não fundada sobre os valores da dignidade de cada homem e da solidariedade entre todos os homens. Nos próprios regimes de democracia representativa, de facto, a regulação dos interesses é frequentemente feita a favor dos mais fortes, sendo estes os mais competentes para manobrar não apenas as rédeas do poder, mas também a formação dos consensos. Em tal situação, facilmente a democracia se torna uma palavra vazia.
71. Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma sã democracia, urge, pois, redescobrir a existência de valores humanos e morais essenciais e congénitos, que derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado poderá jamais criar, modificar ou destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar e promover.
Importa retomar, neste sentido, os elementos fundamentais da visão das relações entre lei civil e lei moral, tal como os propõe a Igreja, mas que fazem parte também do património das grandes tradições jurídicas da humanidade.
Certamente, a função da lei civil é diversa e de âmbito mais limitado que a da lei moral. De facto, " em nenhum âmbito da vida, pode a lei civil substituir-se à consciência, nem pode ditar normas naquilo que ultrapassa a sua competência ",90 que é assegurar o bem comum das pessoas, mediante o reconhecimento e defesa dos seus direitos fundamentais, a promoção da paz e da moralidade pública.91 Com efeito, a função da lei civil consiste em garantir uma convivência social na ordem e justiça verdadeira, para que todos " tenhamos vida tranquila e sossegada, com toda a piedade e honestidade " (1 Tm 2, 2). Por isso mesmo, a lei civil deve assegurar a todos os membros da sociedade o respeito de alguns direitos fundamentais, que pertencem por natureza à pessoa e que qualquer lei positiva tem de reconhecer e garantir. Primeiro e fundamental entre eles é o inviolável direito à vida de todo o ser humano inocente. Se a autoridade pública pode, às vezes, renunciar a reprimir algo que, se proibido, provocaria um dano maior,92 ela não poderá nunca aceitar como direito dos indivíduos - ainda que estes sejam a maioria dos membros da sociedade -, a ofensa infligida a outras pessoas através do menosprezo de um direito tão fundamental como o da vida. A tolerância legal do aborto ou da eutanásia não pode, de modo algum, fazer apelo ao respeito pela consciência dos outros, precisamente porque a sociedade tem o direito e o dever de se defender contra os abusos que se possam verificar em nome da consciência e com o pretexto da liberdade.93
A este propósito, João XXIII recordara na Encíclica Pacem in terris: " Hoje em dia crê-se que o bem comum consiste sobretudo no respeito dos direitos e deveres da pessoa. Oriente-se, pois, o empenho dos poderes públicos sobretudo no sentido que esses direitos sejam reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos, tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres. "A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres". Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas disposições estão privadas de qualquer valor jurídico ".94
72. Também está em continuidade com toda a Tradição da Igreja, a doutrina da necessidade da lei civil se conformar com a lei moral, como se vê na citada encíclica de João XXIII: " A autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus. Por isso, se os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência dos cidadãos. (...) Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder ".95 O mesmo ensinamento aparece claramente em S. Tomás de Aquino, que escreve: " A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a recta razão: derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor, mas é um acto de violência ".96 E ainda: " Toda a lei constituída pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei natural. Se, ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei natural, então não é lei mas sim corrupção da lei ".97
Ora, a primeira e mais imediata aplicação desta doutrina diz respeito à lei humana que menospreza o direito fundamental e primordial à vida, direito próprio de cada homem. Assim, as leis que legitimam a eliminação directa de seres humanos inocentes, por meio do aborto e da eutanásia, estão em contradição total e insanável com o direito inviolável à vida, próprio de todos os homens, e negam a igualdade de todos perante a lei. Poder-se-ia objectar que é diverso o caso da eutanásia, quando pedida em plena consciência pelo sujeito interessado. Mas um Estado que legitimasse tal pedido, autorizando a sua realização, estaria a legalizar um caso de suicídio-homicídio, contra os princípios fundamentais da não- -disponibilidade da vida e da tutela de cada vida inocente. Deste modo, favorece-se a diminuição do respeito pela vida e abre-se a estrada a comportamentos demolidores da confiança nas relações sociais.
As leis que autorizam e favorecem o aborto e a eutanásia colocam-se, pois, radicalmente não só contra o bem do indivíduo, mas também contra o bem comum e, por conseguinte, carecem totalmente de autêntica validade jurídica. De facto, o menosprezo do direito à vida, exactamente porque leva a eliminar a pessoa, ao serviço da qual a sociedade tem a sua razão de existir, é aquilo que se contrapõe mais frontal e irreparavelmente à possibilidade de realizar o bem comum. Segue-se daí que, quando uma lei civil legitima o aborto ou a eutanásia, deixa, por isso mesmo, de ser uma verdadeira lei civil, moralmente obrigatória.
73. O aborto e a eutanásia são, portanto, crimes que nenhuma lei humana pode pretender legitimar. Leis deste tipo não só não criam obrigação alguma para a consciência, como, ao contrário, geram uma grave e precisa obrigação de opor-se a elas através da objecção de consciência. Desde os princípios da Igreja, a pregação apostólica inculcou nos cristãos o dever de obedecer às autoridades públicas legitimamente constituídas (cf. Rm 13, 1-7; 1 Ped 2, 13-14), mas, ao mesmo tempo, advertiu firmemente que " importa mais obedecer a Deus do que aos homens " (Act 5, 29). Já no Antigo Testamento e a propósito de ameaças contra a vida, encontramos um significativo exemplo de resistência à ordem injusta da autoridade. As parteiras dos hebreus opuseram-se ao Faraó, que lhes tinha dado a ordem de matarem todos os rapazes por ocasião do parto. " Não cumpriram a ordem do rei do Egipto, e deixaram viver os rapazes " (Ex 1, 17). Mas há que salientar o motivo profundo deste seu comportamento: " As parteiras temiam a Deus " (Ex 1, 17). É precisamente da obediência a Deus - o único a Quem se deve aquele temor que significa reconhecimento da sua soberania absoluta - que nascem a força e a coragem de resistir às leis injustas dos homens. É a força e a coragem de quem está disposto mesmo a ir para a prisão ou a ser morto à espada, na certeza de que nisto " está a paciência e a fé dos Santos " (Ap 13, 10).
Portanto, no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito conformar-se com ela, " nem participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem dar-lhe a aprovação com o próprio voto ".98
Um particular problema de consciência poder-se-ia pôr nos casos em que o voto parlamentar fosse determinante para favorecer uma lei mais restritiva, isto é, tendente a restringir o número dos abortos autorizados, como alternativa a uma lei mais permissiva já em vigor ou posta a votação. Não são raros tais casos. Sucede, com efeito, que, enquanto, nalgumas partes do mundo, continuam as campanhas para a introdução de leis favoráveis ao aborto, tantas vezes apoiadas por organismos internacionais poderosos, noutras nações, pelo contrário - particularmente naquelas que já fizeram a amarga experiência de tais legislações permissivas -, vão-se manifestando sinais de reconsideração. No caso hipotizado, quando não fosse possível esconjurar ou abrogar completamente uma lei abortista, um deputado, cuja absoluta oposição pessoal ao aborto fosse clara e conhecida de todos, poderia licitamente oferecer o próprio apoio a propostas que visassem limitar os danos de uma tal lei e diminuir os seus efeitos negativos no âmbito da cultura e da moralidade pública. Ao proceder assim, de facto, não se realiza a colaboração ilícita numa lei injusta; mas cumpre-se, antes, uma tentativa legítima e necessária para limitar os seus aspectos iníquos.
74. A introdução de legislações injustas põe frequentemente os homens moralmente rectos frente a difíceis problemas de consciência em matéria de colaboração, por causa da imperiosa afirmação do próprio direito de não ser obrigado a participar em acções moralmente más. Às vezes, as opções que se impõem tomar, são dolorosas e podem requerer o sacrifício de posições profissionais consolidadas ou a renúncia a legítimas perspectivas de promoção na carreira. Noutros casos, pode acontecer que o cumprimento de algumas acções, em si mesmas indiferentes ou mesmo até positivas, previstas no articulado de legislações globalmente injustas, consinta a salvaguarda de vidas humanas ameaçadas. Mas, por outro lado, pode-se justamente temer que a disponibilidade a realizar tais acções não só provoque um escândalo e favoreça o enfraquecimento da oposição necessária aos atentados contra a vida, como insensivelmente induza também a conformar-se cada vez mais com uma lógica permissiva.
Para iluminar esta difícil questão moral, é preciso recorrer aos princípios gerais referentes à cooperação em acções moralmente más. Os cristãos, como todos os homens de boa vontade, são chamados, sob grave dever de consciência, a não prestar a sua colaboração formal em acções que, apesar de admitidas pela legislação civil, estão em contraste com a lei de Deus. Na verdade, do ponto de vista moral, nunca é lícito cooperar formalmente no mal. E essa cooperação verifica-se quando a acção realizada, pela sua própria natureza ou pela configuração que tem assumido num contexto concreto, se qualifica como participação directa num acto contra a vida humana inocente ou como aprovação da intenção moral do agente principal. Tal cooperação nunca pode ser justificada invocando o respeito da liberdade alheia, nem apoiando-se no facto de que a lei civil a prevê e requer: com efeito, nos actos cumpridos pessoalmente por cada um, existe uma responsabilidade moral, à qual ninguém poderá jamais subtrair-se e sobre a qual cada um será julgado pelo próprio Deus (cf. Rm 2, 6; 14, 12).
Recusar a própria participação para cometer uma injustiça é não só um dever moral, mas também um direito humano basilar. Se assim não fosse, a pessoa seria constrangida a cumprir uma acção intrinsecamente incompatível com a sua dignidade e, desse modo, ficaria radicalmente comprometida a sua própria liberdade, cujo autêntico sentido e fim reside na orientação para a verdade e o bem. Trata-se, pois, de um direito essencial que, precisamente como tal, deveria estar previsto e protegido pela própria lei civil. Nesse sentido, a possibilidade de se recusar a participar na fase consultiva, preparatória e executiva de semelhantes actos contra a vida, deveria ser assegurada aos médicos, aos outros profissionais da saúde e aos responsáveis pelos hospitais, clínicas e casas de saúde. Quem recorre à objecção de consciência deve ser salvaguardado não apenas de sanções penais, mas ainda de qualquer dano no plano legal, disciplinar, económico e profissional.
" Amarás ao teu próximo como a ti mesmo " (Lc 10, 27): " promove " a vida
75. Os mandamentos de Deus ensinam-nos o caminho da vida. Os preceitos morais negativos, isto é, aqueles que declaram moralmente inaceitável a escolha de uma determinada acção, têm um valor absoluto para a liberdade humana: valem sempre e em todas as circunstâncias, sem excepção. Indicam que a escolha de determinado comportamento é radicalmente incompatível com o amor a Deus e com a dignidade da pessoa, criada à sua imagem: por isso, tal escolha não pode ser resgatada pela bondade de qualquer intenção ou consequência, está em contraste insanável com a comunhão entre as pessoas, contradiz a decisão fundamental de orientar a própria vida para Deus.99
Já neste sentido, os preceitos morais negativos têm uma função positiva importantíssima: o "não" que exigem incondicionalmente, aponta o limite intransponível abaixo do qual o homem livre não pode descer, e simultaneamente indica o mínimo que ele deve respeitar e do qual deve partir para pronunciar inumeráveis " sins ", capazes de cobrir progressivamente todo o horizonte do bem (cf. Mt 5, 48), em cada um dos seus âmbitos. Os mandamentos, de modo particular os preceitos morais negativos, são o início e a primeira etapa necessária do caminho da liberdade: " A primeira liberdade - escreve Santo Agostinho - consiste em estar isento de crimes (...), como seja o homicídio, o adultério, a fornicação, o roubo, a fraude, o sacrilégio, e assim por diante. Quando alguém começa a não ter estes crimes (e nenhum cristão os deve ter), começa a levantar a cabeça para a liberdade, mas isto é apenas o início da liberdade, não a liberdade perfeita ".100
76. O mandamento " não matarás " estabelece, pois, o ponto de partida de um caminho de verdadeira liberdade, que nos leva a promover activamente a vida e a desenvolver determinadas atitudes e comportamentos ao seu serviço: procedendo assim, exercemos a nossa responsabilidade para com as pessoas que nos estão confiadas, e manifestamos, em obras e verdade, o nosso reconhecimento a Deus pelo grande dom da vida (cf. Sal 139138, 13-14).
O Criador confiou a vida do homem à sua solicitude responsável, não para que disponha arbitrariamente dela mas a guarde com sabedoria e administre com amorosa fidelidade. O Deus da Aliança confiou a vida de cada homem ao homem, seu irmão, segundo a lei da reciprocidade no dar e no receber, no dom de si e no acolhimento do outro. Na plenitude dos tempos, o Filho de Deus, encarnando e dando a sua vida pelo homem, mostrou a altura e profundidade a que pode chegar esta lei da reciprocidade. Com o dom do seu Espírito, Cristo dá conteúdos e significados novos à lei da reciprocidade, à entrega do homem ao homem. O Espírito, que é artífice de comunhão no amor, cria entre os homens uma nova fraternidade e solidariedade, verdadeiro reflexo do mistério de recíproca doação e acolhimento próprios da Santíssima Trindade. O próprio Espírito torna-Se a lei nova, que dá força aos crentes e apela à sua responsabilidade para viverem reciprocamente o dom de si e o acolhimento do outro, participando no próprio amor de Jesus Cristo e segundo a sua medida.
77. Animado e plasmado por esta lei nova está também o mandamento que diz " não matarás ". Para o cristão, isto implica, em última análise, o imperativo de respeitar, amar e promover a vida de cada irmão, segundo as exigências e as dimensões do amor de Deus em Jesus Cristo. " Ele deu a Sua vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos " (1 Jo 3, 16).
O mandamento " não matarás ", inclusive nos seus conteúdos mais positivos de respeito, amor e promoção da vida humana, vincula todo o homem. De facto, ressoa na consciência moral de cada um como um eco irreprimível da aliança primordial de Deus criador com o homem; todos o podem conhecer pela luz da razão e observar pela obra misteriosa do Espírito que, soprando onde quer (cf. Jo 3, 8), alcança e inspira todo o homem que vive neste mundo.
Constitui, portanto, um serviço de amor, aquele que todos estamos empenhados em assegurar ao nosso próximo, para que a sua vida seja defendida e promovida sempre, mas sobretudo quando é mais débil ou ameaçada. É uma solicitude pessoal mas também social, que todos devemos cultivar, pondo o respeito incondicional da vida humana como fundamento de uma sociedade renovada.
É-nos pedido que amemos e honremos a vida de cada homem e de cada mulher, e que trabalhemos, com constância e coragem, para que, no nosso tempo atravessado por demasiados sinais de morte, se instaure finalmente uma nova cultura da vida, fruto da cultura da verdade e do amor.
CAPÍTULO IV - A MIM O FIZESTES
POR UMA NOVA CULTURA DA VIDA HUMANA
" Vós sois o povo adquirido por Deus, para proclamardes as suas obras maravilhosas " (1 Ped 2, 9): o povo da vida e pela vida
78. A Igreja recebeu o Evangelho, como anúncio e fonte de alegria e de salvação. Recebeu-o em dom de Jesus, que foi enviado pelo Pai " para anunciar a Boa Nova aos pobres " (Lc 4, 18). Recebeu-o através dos Apóstolos, que o Mestre enviou pelo mundo inteiro (cf. Mc 16, 15; Mt 28, 19-20). Nascida desta acção missionária, a Igreja ouve ressoar em si mesma todos os dias aquela palavra de incitamento apostólico: " Ai de mim se não evangelizar! " (1 Cor 9, 16). " Evangelizar - como escrevia Paulo VI - constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar ".101
A evangelização é uma acção global e dinâmica que envolve a Igreja na sua participação da missão profética, sacerdotal e real do Senhor Jesus. Por isso, a evangelização compreende indivisivelmente as dimensões do anúncio, da celebração e do serviço da caridade. É um acto profundamente eclesial, que compromete todos os operários do Evangelho, cada um segundo os seus carismas e o próprio ministério.
O mesmo acontece quando se trata de anunciar o Evangelho da vida, parte integrante do Evangelho que é Jesus Cristo. Nós estamos ao serviço deste Evangelho, amparados na certeza de o termos recebido em dom e de sermos enviados a proclamá-lo a toda a humanidade, " até aos confins do mundo " (Act 1, 8). Por isso, grata e humildemente conservamos a consciência de ser o povo da vida e pela vida e assim nos apresentamos diante de todos.
79. Somos o povo da vida, porque Deus, no seu amor generoso, deu-nos o Evangelho da vida e, por este mesmo Evangelho, fomos transformados e salvos. Fomos reconquistados pelo " Príncipe da vida " (Act 3, 15), com o preço do seu sangue precioso (cf. 1 Cor 6, 20; 7, 23; 1 Ped 1, 19), e, pelo banho baptismal, fomos enxertados n'Ele (cf. Rm 6, 4-5; Col 2, 12) como ramos que recebem seiva e fecundidade da única árvore (cf. Jo 15, 5). Interiormente renovados pela graça do Espírito, " Senhor que dá a vida ", tornámo-nos um povo pela vida, e como tal somos chamados a comportar-nos.
Somos enviados: estar ao serviço da vida não é para nós um título de glória, mas um dever que nasce da consciência de sermos " o povo adquirido por Deus para proclamar as suas obras maravilhosas " (cf. 1 Ped 2, 9). No nosso caminho, guia-nos e anima-nos a lei do amor: um amor, cuja fonte e modelo é o Filho de Deus feito homem que " pela sua morte deu a vida ao mundo ".102
Somos enviados como povo. O compromisso de servir a vida incumbe sobre todos e cada um. É uma responsabilidade tipicamente " eclesial ", que exige a acção concertada e generosa de todos os membros e estruturas da comunidade cristã. Mas a sua característica de dever comunitário não elimina nem diminui a responsabilidade de cada pessoa, a quem é dirigido o mandamento do Senhor de " fazer-se próximo " de todo o homem: " Vai e faz tu também do mesmo modo " (Lc 10, 37).
Todos juntos sentimos o dever de anunciar o Evangelho da vida, de o celebrar na liturgia e na existência inteira, de o servir com as diversas iniciativas e estruturas de apoio e promoção.
" O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos " (1 Jo 1, 3): anunciar o Evangelho da vida
80. " O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida (...) isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco " (1 Jo 1, 1.3). Jesus é o único Evangelho: Ele é tudo o que temos para dizer e testemunhar.
O próprio anúncio de Jesus é anúncio da vida. Ele, de facto, é o " Verbo da vida " (1 Jo 1, 1). N'Ele, " a vida manifestou-se " (1 Jo 1, 2); melhor, Ele mesmo é a " vida eterna que estava no Pai e que nos foi manifestada " (1 Jo 1, 2). Esta mesma vida, graças ao dom do Espírito, foi comunicada ao homem. Orientada para a vida em plenitude - a " vida eterna " -, também a vida terrena de cada um adquire o seu sentido pleno.
Iluminados pelo Evangelho da vida, sentimos a necessidade de o proclamar e testemunhar pela surpreendente novidade que o caracteriza: identificando-se com o próprio Jesus, portador de toda a novidade 103 e vencedor daquele " envelhecimento " que provém do pecado e conduz à morte,104 este Evangelho supera toda a expectativa do homem e revela a grandeza excelsa, a que a dignidade da pessoa é elevada pela graça. Assim a contempla S. Gregório de Nissa: " Quando comparado com os outros seres, o homem nada vale, é pó, erva, ilusão; mas, uma vez adoptado como filho pelo Deus do universo, é feito familiar deste Ser, cuja excelência e grandeza ninguém pode ver, ouvir nem compreender. Com que palavra, pensamento ou arroubo de espírito poderemos celebrar a superabundância desta graça? O homem supera a sua natureza: de mortal passa a imortal, de perecível a imperecível, de efémero a eterno, de homem torna-se deus ".105
A gratidão e a alegria por esta dignidade incomensurável do homem incitam-nos a tornar os demais participantes desta mensagem: " O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco " (1 Jo 1, 3). É necessário fazer chegar o Evangelho da vida ao coração de todo o homem e mulher, e inseri-lo nas pregas mais íntimas do tecido da sociedade inteira.
81. Trata-se em primeiro lugar de anunciar o núcleo deste Evangelho: é o anúncio de um Deus vivo e solidário, que nos chama a uma profunda comunhão Consigo e nos abre à esperança segura da vida eterna; é a afirmação do laço indivisível que existe entre a pessoa, a sua vida e a própria corporeidade; é a apresentação da vida humana como vida de relação, dom de Deus, fruto e sinal do seu amor; é a proclamação da extraordinária relação de Jesus com todo o homem, que permite reconhecer o rosto de Cristo em cada rosto humano; é a indicação do " dom sincero de si " como tarefa e lugar de plena realização da própria liberdade.
Importa, depois, mostrar todas as consequências deste mesmo Evangelho, que se podem resumir assim: a vida humana, dom precioso de Deus, é sagrada e inviolável, e, por isso mesmo, o aborto provocado e a eutanásia são absolutamente inaceitáveis; a vida do homem não apenas não deve ser eliminada, mas há-de ser protegida com toda a atenção e carinho; a vida encontra o seu sentido no amor recebido e dado, em cujo horizonte haurem plena verdade a sexualidade e a procriação humana; nesse amor, até mesmo o sofrimento e a morte têm um sentido, podendo tornar-se acontecimentos de salvação, não obstante perdurar o mistério que os envolve; o respeito pela vida exige que a ciência e a técnica estejam sempre orientadas para o homem e para o seu desenvolvimento integral; a sociedade inteira deve respeitar, defender e promover a dignidade de toda a pessoa humana, em cada momento e condição da sua vida.
82. Para sermos verdadeiramente um povo ao serviço da vida, temos de propor, com constância e coragem, estes conteúdos, desde o primeiro anúncio do Evangelho, e, depois, na catequese e nas diversas formas de pregação, no diálogo pessoal e em toda a acção educativa. Aos educadores, professores, catequistas e teólogos, incumbe o dever de pôr em destaque as razões antropológicas que fundamentam e apoiam o respeito de cada vida humana. Desta forma, ao mesmo tempo que faremos resplandecer a original novidade do Evangelho da vida, poderemos ajudar os demais a descobrirem, inclusive à luz da razão e da experiência, como a mensagem cristã ilumina plenamente o homem e o significado do seu ser e existir; encontraremos valiosos pontos de encontro e diálogo também com os não crentes, empenhados todos juntos a fazer despertar uma nova cultura da vida.
Cercados pelas vozes mais constrastantes, enquanto muitos rejeitam a sã doutrina sobre a vida do homem, sentimos dirigida a nós a recomendação de Paulo a Timóteo: " Prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, censura e exorta com bondade e doutrina " (2 Tm 4, 2). Com particular vigor, há-de ressoar esta exortação no coração de quantos na Igreja, mais directamente e a diverso título, participam da sua missão de " mestra " da verdade. Ressoe, antes de mais, em nós, Bispos, que somos os primeiros a quem é pedido tornar-se incansável anunciador do Evangelho da vida; está-nos confiado também o dever de vigiar sobre a transmissão íntegra e fiel do ensinamento proposto nesta Encíclica, e de recorrer às medidas mais oportunas para que os fiéis sejam preservados de toda a doutrina contrária ao mesmo. Havemos de dedicar especial atenção às Faculdades Teológicas, aos Seminários e às diversas Instituições Católicas, para que aí seja comunicado, ilustrado e aprofundado o conhecimento da sã doutrina.106 A exortação de Paulo seja também ouvida por todos os teólogos, pastores e quantos desempenham tarefas de ensino, catequese e formação das consciências: cientes do papel que lhes cabe, não assumam nunca a grave responsabilidade de atraiçoar a verdade e a própria missão, expondo ideias pessoais contrárias ao Evangelho da vida, que o Magistério fielmente propõe e interpreta.
Quando anunciarmos este Evangelho, não devemos temer a oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambiguidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo (cf. Rm 12, 2). Com a força recebida de Cristo, que venceu o mundo pela sua morte e ressurreição (cf. Jo 16, 33), devemos estar no mundo, mas não ser do mundo (cf. Jo 15, 19; 17, 16).
" Eu Vos louvo porque me fizestes como um prodígio " (Sal 139138, 14): celebrar o Evangelho da vida
83. Enviados ao mundo como " povo pela vida ", o nosso anúncio deve tornar-se também uma verdadeira e própria celebração do Evangelho da vida. É precisamente esta celebração, com toda a força evocativa dos seus gestos, símbolos e ritos, que se torna o lugar mais precioso e significativo para transmitir a beleza e a grandeza desse Evangelho.
Para isso, urge, antes de mais, cultivar, em nós e nos outros, um olhar contemplativo.107 Este nasce da fé no Deus da vida, que criou cada homem fazendo dele um prodígio (cf. Sal 139138, 14). É o olhar de quem observa a vida em toda a sua profundidade, reconhecendo nela as dimensões de generosidade, beleza, apelo à liberdade e à responsabilidade. É o olhar de quem não pretende apoderar-se da realidade, mas a acolhe como um dom, descobrindo em todas as coisas o reflexo do Criador e em cada pessoa a sua imagem viva (cf. Gn 1, 27; Sal 8, 6). Este olhar não se deixa cair em desânimo à vista daquele que se encontra enfermo, atribulado, marginalizado, ou às portas da morte; mas deixa-se interpelar por todas estas situações procurando nelas um sentido, sendo, precisamente em tais circunstâncias, que se apresenta disponível para ler de novo no rosto de cada pessoa um apelo ao entendimento, ao diálogo, à solidariedade.
É tempo de todos assumirem este olhar, tornando-se novamente capazes de venerar e honrar cada homem, com ânimo repleto de religioso assombro, como nos convidava a fazer Paulo VI numa das suas mensagens natalícias.108 Animado por este olhar contemplativo, o povo novo dos redimidos não pode deixar de prorromper em hinos de alegria, louvor e gratidão pelo dom inestimável da vida, pelo mistério do chamamento de todo o homem a participar, em Cristo, na vida da graça e numa existência de comunhão sem fim com Deus Criador e Pai.
84. Celebrar o Evangelho da vida significa celebrar o Deus da vida, o Deus que dá a vida: " Nós devemos celebrar a Vida eterna, da qual procede qualquer outra vida. Dela recebe a vida, na proporção das respectivas capacidades, todo o ser que, de algum modo, participa da vida. Essa Vida divina, que está acima de qualquer vida, vivifica e conserva a vida. Toda a vida e qualquer movimento vital procedem desta Vida que transcende cada vida e cada princípio de vida. A Ela devem as almas a sua incorruptibilidade, como também vivem, graças a Ela, todos os animais e todas as plantas que recebem da vida um eco mais débil. Aos homens, seres compostos de espírito e matéria, a Vida dá a vida. Se depois nos acontece abandoná-la, então a Vida, pelo transbordar do seu amor pelo homem, converte-nos e chama-nos a Si. E mais... Promete também conduzir-nos - alma e corpo - à vida perfeita, à imortalidade. É demasiado pouco dizer que esta Vida é viva: Ela é Princípio de vida, Causa e Fonte única de vida. Todo o vivente deve contemplá-la e louvá-la: é Vida que transborda de vida ".109
Como o Salmista, também nós, na oração diária individual e comunitária, louvamos e bendizemos a Deus nosso Pai que nos plasmou no seio materno, viu-nos e amou-nos quando estávamos ainda em embrião (cf. Sal 139138, 13.15-16), e exclamamos, com alegria irreprimível: " Eu Vos louvo porque me fizestes como um prodígio; as vossas obras são admiráveis, conheceis a sério a minha alma " (Sal 139138, 14). Sim, " esta vida mortal, não obstante as suas aflições, os seus mistérios obscuros, os seus sofrimentos, a sua fatal caducidade, é um facto belíssimo, um prodígio sempre original e enternecedor, um acontecimento digno de ser cantado com júbilo e glória ".110 Mais, o homem e a sua vida não se revelam apenas como um dos prodígios mais altos da criação: Deus conferiu ao homem uma dignidade quase divina (cf. Sal 8, 6-7). Em cada criança que nasce e em cada homem que vive ou morre, reconhecemos a imagem da glória de Deus: nós celebramos esta glória em cada homem, sinal do Deus vivo, ícone de Jesus Cristo.
Somos chamados a exprimir assombro e gratidão pela vida recebida em dom e a acolher, saborear e comunicar o Evangelho da vida, não só através da oração pessoal e comunitária, mas sobretudo com as celebrações do ano litúrgico. No mesmo contexto, há que recordar, de modo particular, os Sacramentos, sinais eficazes da presença e acção salvadora do Senhor Jesus na existência cristã: tornam os homens participantes da vida divina, assegurando-lhes a energia espiritual necessária para realizarem plenamente o verdadeiro significado do viver, do sofrer e do morrer. Graças a uma genuína descoberta do sentido dos ritos e à sua adequada valorização, as celebrações litúrgicas, sobretudo as sacramentais, serão capazes de exprimir cada vez melhor a verdade plena acerca do nascimento, da vida, do sofrimento e da morte, ajudando a viver estas realidades como participação no mistério pascal de Cristo morto e ressuscitado.
85. Na celebração do Evangelho da vida, é preciso saber apreciar e valorizar também os gestos e os símbolos, de que são ricas as diversas tradições e costumes culturais dos povos. Trata-se de momentos e formas de encontro, pelos quais, nos diversos países e culturas, se manifesta a alegria pela vida que nasce, o respeito e defesa de cada existência humana, o cuidado por quem sofre ou passa necessidade, a solidariedade com o idoso ou o moribundo, a partilha da tristeza de quem está de luto, a esperança e o desejo da imortalidade.
Nesta perspectiva e acolhendo a sugestão feita pelos Cardeais no Consistório de 1991, proponho que se celebre anualmente um Dia em defesa da Vida, nas diversas Nações, à semelhança do que já se verifica por iniciativa de algumas Conferências Episcopais. É necessário que essa ocorrência seja preparada e celebrada com a activa participação de todas as componentes da Igreja local. O seu objectivo principal é suscitar nas consciências, nas famílias, na Igreja e na sociedade, o reconhecimento do sentido e valor da vida humana em todos os seus momentos e condições, concentrando a atenção de modo especial na gravidade do aborto e da eutanásia, sem contudo transcurar os outros momentos e aspectos da vida que merecem ser, de vez em quando, tomados em atenta consideração, conforme a evolução da situação histórica sugerir.
86. Em coerência com o culto espiritual agradável a Deus (cf.Rm 12, 1), a celebração do Evangelho da vida requer a sua concretização sobretudo na existência quotidiana, vivida no amor pelos outros e na doação de si próprio. Assim, toda a nossa existência tornar-se-á acolhimento autêntico e responsável do dom da vida e louvor sincero e agradecido a Deus que nos fez esse dom. É o que sucede já com tantos e tantos gestos de doação, frequentemente humilde e escondida, cumpridos por homens e mulheres, crianças e adultos, jovens e idosos, sãos e doentes.
É neste contexto, rico de humanidade e amor, que nascem também os gestos heróicos. Estes são a celebração mais solene do Evangelho da vida, porque o proclamam com o dom total de si; são a manifestação refulgente do mais elevado grau de amor, que é dar a vida pela pessoa amada (cf. Jo 15, 13); são a participação no mistério da Cruz, na qual Jesus revela quão grande valor tem para Ele a vida de cada homem e como esta se realiza em plenitude no dom sincero de si. Além dos factos clamorosos, existe o heroísmo do quotidiano, feito de pequenos ou grandes gestos de partilha que alimentam uma autêntica cultura da vida. Entre estes gestos, merece particular apreço a doação de órgãos feita, segundo formas eticamente aceitáveis, para oferecer uma possibilidade de saúde e até de vida a doentes, por vezes já sem esperança.
A tal heroísmo do quotidiano, pertence o testemunho silencioso, mas tão fecundo e eloquente, de " todas as mães corajosas, que se dedicam sem reservas à própria família, que sofrem ao dar à luz os próprios filhos, e depois estão prontas a abraçar qualquer fadiga e a enfrentar todos os sacrifícios, para lhes transmitir quanto de melhor elas conservam em si ".111 No cumprimento da sua missão, " nem sempre estas mães heróicas encontram apoio no seu ambiente. Antes, os modelos de civilização, com frequência promovidos e propagados pelos meios de comunicação, não favorecem a maternidade. Em nome do progresso e da modernidade, são apresentados como já superados os valores da fidelidade, da castidade e do sacrifício, nos quais se distinguiram e continuam a distinguir-se multidões de esposas e de mães cristãs. (...) Nós vos agradecemos, mães heróicas, o vosso amor invencível! Nós vos agradecemos a intrépida confiança em Deus e no seu amor. Nós vos agradecemos o sacrifício da vossa vida. (...) Cristo, no Mistério Pascal, restituiu-vos o dom que Lhe fizestes. Ele, de facto, tem o poder de vos restituir a vida, que Lhe levastes em oferenda ".112
" De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé se não tiver obras? " (Tg 2, 14): servir o Evangelho da vida
87. Em virtude da participação na missão real de Cristo, o apoio e a promoção da vida humana devem actuar-se através do serviço da caridade, que se exprime no testemunho pessoal, nas diversas formas de voluntariado, na animação social e no compromisso político. Trata-se de uma exigência sobremaneira premente na hora actual, em que a " cultura da morte " se contrapõe à " cultura da vida ", de forma tão forte que muitas vezes parece levar a melhor. Antes ainda, porém, trata-se de uma exigência que nasce da " fé que actua pela caridade " (Gal 5, 6), como nos adverte a Carta de S. Tiago: " De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé se não tiver obras? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhe disser: "Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos", sem lhes dar o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, é morta em si mesma " (2, 14-17).
No serviço da caridade, há uma atitude que nos há-de animar e caracterizar: devemos cuidar do outro enquanto pessoa confiada por Deus à nossa responsabilidade. Como discípulos de Jesus, somos chamados a fazermo-nos próximo de cada homem (cf. Lc 10, 29-37), reservando uma preferência especial a quem vive mais pobre, sozinho e necessitado. É precisamente através da ajuda prestada ao faminto, ao sedento, ao estrangeiro, ao nu, ao doente, ao encarcerado - como também à criança ainda não nascida, ao idoso que está doente ou perto da morte -, que temos a possibilidade de servir Jesus, como Ele mesmo declarou: " Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes " (Mt 25, 40). Por isso, não podemos deixar de nos sentir interpelados e julgados por esta página sempre actual de S. João Crisóstomo: " Queres honrar o corpo de Cristo? Não O transcures quando se encontrar nu! Não vale prestares honras aqui no templo com tecidos de seda, e depois transcurá-Lo lá fora, onde sofre frio e nudez ".113
O serviço da caridade a favor da vida deve ser profundamente unitário: não pode tolerar unilateralismos e discriminações, já que a vida humana é sagrada e inviolável em todas as suas fases e situações; é um bem indivisível. Trata-se de "cuidar " da vida toda e da vida de todos. Ou melhor ainda e mais profundamente, trata-se de ir até às próprias raízes da vida e do amor.
Partindo exactamente deste amor profundo por todo o homem e mulher, foi-se desenvolvendo, ao longo dos séculos, uma extraordinária história de caridade, que introduziu, na vida eclesial e civil, numerosas estruturas de serviço à vida, que suscitam a admiração até do observador menos prevenido. É uma história que cada comunidade cristã deve, com renovado sentido de responsabilidade, continuar a escrever graças a uma múltipla acção pastoral e social. Neste sentido, é preciso criar formas discretas mas eficazes de acompanhamento da vida nascente, prestando uma especial solidariedade àquelas mães que, mesmo privadas do apoio do pai, não temem trazer ao mundo o seu filho e educá-lo. Cuidado análogo deve ser reservado à vida provada pela marginalização ou pelo sofrimento, de forma particular nas suas etapas finais.
88. Tudo isto comporta uma obra educativa paciente e corajosa, que estimule todos e cada um a carregar os fardos dos outros (cf. Gal 6, 2); requer uma contínua promoção das vocações ao serviço, particularmente entre os jovens; implica a realização de projectos e iniciativas concretas, sólidas e inspiradas evangelicamente.
Múltiplos são os instrumentos a valorizar por um empenho competente e sério. Relativamente às fontes da vida, sejam promovidos os centros com os métodos naturais de regulação da fertilidade, como válida ajuda à paternidade e maternidade responsável, na qual cada pessoa, a começar do filho, é reconhecida e respeitada por si mesma, e cada decisão é animada e guiada pelo critério do dom sincero de si. Também os consultórios matrimoniais e familiares, através da sua acção específica de consulta e prevenção, desenvolvida à luz de uma antropologia coerente com a visão cristã da pessoa, do casal e da sexualidade, constituem um precioso serviço para descobrir o sentido do amor e da vida, e para apoiar e assistir cada família na sua missão de " santuário da vida ". Ao serviço da vida nascente, estão ainda os centros de ajuda à vida e os lares de acolhimento da vida. Graças à sua acção, tantas mães-solteiras e casais em dificuldade readquirem razões e convicções, e encontram assistência e apoio para superar contrariedades e medos no acolhimento de uma vida nascitura ou que acaba de vir à luz.
Diante da vida condicionada por dificuldades, extravio, doença ou marginalização, outros instrumentos - como as comunidades para a recuperação dos toxicodependentes, os lares para abrigo de menores ou dos doentes mentais, os centros para acolhimento e tratamento dos doentes da SIDA, as Cooperativas de solidariedade sobretudo para inválidos - são expressões eloquentes daquilo que a caridade sabe inventar para dar novas razões de esperança e possibilidades concretas de vida a cada um.
Quando, depois, a existência terrena se encaminha para o seu termo, é ainda a caridade que encontra as modalidades mais oportunas para os idosos, sobretudo se não-autosuficientes, e os chamados doentes terminais poderem gozar de uma assistência verdadeiramente humana e receber respostas adequadas às suas exigências, especialmente à sua angústia e solidão. Nestes casos, é insubstituível o papel das famílias; mas estas podem encontrar grande ajuda nas estruturas sociais de assistência e, quando necessário, no recurso aos cuidados paliativos, valendo-se para o efeito dos idóneos serviços clínicos e sociais, sejam os existentes nos edifícios públicos de internamento e tratamento, sejam os disponíveis para apoio no domicílio.
Em particular, ocorre reconsiderar o papel dos hospitais, das clínicas e das casas de saúde: a sua verdadeira identidade não é a de serem apenas estruturas onde se cuida dos enfermos e doentes terminais, mas e primariamente ambientes nos quais o sofrimento, a dor e a morte sejam reconhecidos e interpretados no seu significado humano e especificamente cristão. De modo especial, tal identidade deve manifestar-se clara e eficientemente nas instituições dependentes de religiosos ou, de alguma maneira, ligadas à Igreja.
89. Estas estruturas e lugares de serviço à vida, e todas as demais iniciativas de apoio e solidariedade, que as diversas situações poderão sugerir em cada ocasião, precisam de ser animados por pessoas generosamente disponíveis e profundamente conscientes de quão decisivo seja o Evangelho da vida para o bem do indivíduo humano e da sociedade.
Peculiar é a responsabilidade confiada aos profissionais da saúde - médicos, farmacêuticos, enfermeiros, capelães, religiosos e religiosas, administradores e voluntários: a sua profissão pede-lhes que sejam guardiães e servidores da vida humana. No actual contexto cultural e social, em que a ciência e a arte médica correm o risco de extraviar-se da sua dimensão ética originária, podem ser às vezes fortemente tentados a transformarem-se em fautores de manipulação da vida, ou mesmo até em agentes de morte. Perante tal tentação, a sua responsabilidade é hoje muito maior e encontra a sua inspiração mais profunda e o apoio mais forte precisamente na intrínseca e imprescindível dimensão ética da profissão clínica, como já reconhecia o antigo e sempre actual juramento de Hipócrates, segundo o qual é pedido a cada médico que se comprometa no respeito absoluto da vida humana e da sua sacralidade.
O respeito absoluto de cada vida humana inocente exige inclusivamente o exercício da objecção de consciência frente ao aborto provocado e à eutanásia. O " fazer morrer " nunca pode ser considerado um cuidado médico, nem mesmo quando a intenção fosse apenas a de secundar um pedido do paciente: pelo contrário, é a própria negação da profissão médica, que se define como um apaixonado e vigoroso " sim " à vida. Também a pesquisa biomédica, campo fascinante e promissor de novos e grandes benefícios para a humanidade, deve sempre rejeitar experiências, investigações ou aplicações que, menosprezando a dignidade inviolável do ser humano, deixam de estar ao serviço dos homens para se transformarem em realidades que, parecendo socorrê-los, efectivamente os oprimem.
90. Um papel específico são chamadas a desempenhar as pessoas empenhadas no voluntariado: oferecem um contributo precioso ao serviço da vida, quando sabem conjugar capacidade profissional com um amor generoso e gratuito. O Evangelho da vida impele-as a elevarem os sentimentos de simples filantropia até à altura da caridade de Cristo; a reavivarem diariamente, por entre fadigas e cansaços, a consciência da dignidade de cada homem; a irem à procura das carências das pessoas, iniciando - se necessário - novos caminhos em lugares onde a necessidade é mais urgente, e a atenção e o apoio menos consistentes.
O realismo pertinaz da caridade exige que o Evangelho da vida seja servido ainda por meio de formas de animação social e de empenho político, que defendam e proponham o valor da vida nas nossas sociedades cada vez mais complexas e pluralistas. Indivíduos, famílias, grupos, entidades associativas têm a sua responsabilidade, mesmo se a título e com método diverso, na animação social e na elaboração de projectos culturais, económicos, políticos e legislativos que, no respeito de todos e segundo a lógica da convivência democrática, contribuam para edificar uma sociedade, onde a dignidade de cada pessoa seja reconhecida e tutelada, e a vida de todos fique tutelada e promovida.
Semelhante tarefa incumbe, de modo particular, sobre os responsáveis da vida pública. Chamados a servir o homem e o bem comum, têm o dever de realizar opções corajosas a favor da vida, primeiro que tudo, no âmbito das disposições legislativas. Num regime democrático, onde as leis e as decisões se estabelecem sobre a base do consenso de muitos, pode atenuar-se na consciência dos indivíduos investidos de autoridade o sentido da responsabilidade pessoal. Mas ninguém pode jamais abdicar desta responsabilidade, sobretudo quando tem um mandato legislativo ou poder decisório que o chama a responder perante Deus, a própria consciência e a sociedade inteira de opções eventualmente contrárias ao verdadeiro bem comum. Se as leis não são o único instrumento para defender a vida humana, desempenham, contudo, um papel muito importante, por vezes determinante, na promoção de uma mentalidade e dos costumes. Afirmo, uma vez mais, que uma norma que viola o direito natural de um inocente à vida, é injusta e, como tal, não pode ter valor de lei. Por isso, renovo o meu veemente apelo a todos os políticos para não promulgarem leis que, ao menosprezarem a dignidade da pessoa, minam pela raiz a própria convivência social.
A Igreja sabe que é difícil actuar uma defesa legal eficaz da vida no contexto das democracias pluralistas, por causa da presença de fortes correntes culturais de matriz diversa. Todavia, movida pela certeza de que a verdade moral não pode deixar de ter eco no íntimo de cada consciência, ela encoraja os políticos - a começar pelos que são cristãos - a não se renderem, mas tomarem aquelas decisões que, tendo em conta as possibilidades concretas, levem a restabelecer uma ordem justa na afirmação e promoção do valor da vida. Nesta perspectiva, convém sublinhar que não basta eliminar as leis iníquas. Mas terão de ser removidas as causas que favorecem os atentados contra a vida, sobretudo garantindo o devido apoio à família e à maternidade: a política familiar deve constituir o ponto fulcral e o motor de todas as políticas sociais. Para isso, é necessário activar iniciativas sociais e legislativas, capazes de garantir condições de autêntica liberdade de escolha em ordem à paternidade e à maternidade; impõe-se, além disso, reordenar as políticas do emprego, de urbanização, da habitação, dos serviços sociais, para se conseguir conciliar entre si os tempos do trabalho e da família, tornando possível um efectivo cuidado das crianças e dos idosos.
91. Um capítulo importante da política em favor da vida é constituído hoje pela problemática demográfica. As autoridades públicas têm certamente a responsabilidade de intervir com válidas iniciativas " para orientar a demografia da população "; 114 mas tais iniciativas devem pressupor e respeitar sempre a responsabilidade primária e inalienável dos esposos e das famílias, e não podem recorrer a métodos desrespeitadores da pessoa e dos seus direitos fundamentais, a começar pelo direito à vida de todo o ser humano inocente. Por isso, é moralmente inaceitável que, para regular a natalidade, se encoraje ou até imponha o uso de meios como a contracepção, a esterilização e o aborto.
Bem diferentes são os caminhos para resolver o problema demográfico: os Governos e as várias instituições internacionais devem, antes de tudo, visar a criação de condições económicas, sociais, médico-sanitárias e culturais que permitam aos esposos realizarem as suas opções procriadoras, com plena liberdade e verdadeira responsabilidade; devem esforçar-se, depois, por " aumentar os meios e distribuir com maior justiça a riqueza, para que todos possam participar equitativamente dos bens da criação. São necessárias soluções a nível mundial, que instaurem uma verdadeira economia de comunhão e participação de bens, tanto na ordem internacional como nacional ".115 Esta é a única estrada que respeita a dignidade das pessoas e das famílias, como também o autêntico património cultural dos povos.
Vasto e complexo é, portanto, o serviço ao Evangelho da vida. Ele manifesta-se cada vez mais como âmbito precioso e favorável para uma efectiva colaboração com os irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, na linha daquele ecumenismo das obras que o Concílio Vaticano II, com autoridade, encorajou.116 Além disso, o referido serviço apresenta-se como espaço providencial para o diálogo e colaboração com os sequazes de outras religiões e com todos os homens de boa vontade: a defesa e a promoção da vida não são monopólio de ninguém, mas tarefa e responsabilidade de todos. O desafio que temos pela frente, na vigília do terceiro milénio, é árduo: somente a cooperação concorde de todos aqueles que acreditam no valor da vida, poderá evitar uma derrota da civilização com consequências imprevisíveis.
" Os filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um mimo do Senhor " (Sal 127126, 3): a família " santuário da vida "
92. No seio do " povo da vida e pela vida ", resulta decisiva a responsabilidade da família: é uma responsabilidade que brota da própria natureza dela - uma comunidade de vida e de amor, fundada sobre o matrimónio - e da sua missão que é " guardar, revelar e comunicar o amor ".117 Em causa está o próprio amor de Deus, do qual os pais são constituídos colaboradores e como que intérpretes na transmissão da vida e na educação da mesma segundo o seu projecto de Pai.118 É, por conseguinte, o amor que se faz generosidade, acolhimento, doação: na família, cada um é reconhecido, respeitado e honrado porque pessoa, e se alguém está mais necessitado, maior e mais diligente é o cuidado por ele.
A família tem a ver com os seus membros durante toda a existência de cada um, desde o nascimento até à morte. Ela é verdadeiramente " o santuário da vida (...), o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico ".119 Por isso, o papel da família é determinante e insubstituível na construção da cultura da vida.
Como igreja doméstica, a família é chamada a anunciar, celebrar e servir o Evangelho da vida. Esta tríplice função compete primariamente aos cônjuges, chamados a serem transmissores da vida, apoiados numa consciência sempre renovada do sentido da geração, enquanto acontecimento onde, de modo privilegiado, se manifesta que a vida humana é um dom recebido a fim de, por sua vez, ser dado. Na geração de uma nova vida, eles tomam consciência de que o filho " se é fruto da recíproca doação de amor dos pais, é, por sua vez, um dom para ambos: um dom que promana do dom ".120
A família cumpre a sua missão de anunciar o Evangelho da vida, principalmente através da educação dos filhos. Pela palavra e pelo exemplo, no relacionamento mútuo e nas opções quotidianas, e mediante gestos e sinais concretos, os pais iniciam os seus filhos na liberdade autêntica, que se realiza no dom sincero de si, e cultivam neles o respeito do outro, o sentido da justiça, o acolhimento cordial, o diálogo, o serviço generoso, a solidariedade e os demais valores que ajudam a viver a existência como um dom. A obra educadora dos pais cristãos deve constituir um serviço à fé dos filhos e prestar uma ajuda para eles cumprirem a vocação recebida de Deus. Entra na missão educadora dos pais ensinar e testemunhar aos filhos o verdadeiro sentido do sofrimento e da morte: podê-lo-ão fazer se souberem estar atentos a todo o sofrimento existente ao seu redor e, antes ainda, se souberem desenvolver atitudes de solidariedade, assistência e partilha com doentes e idosos no âmbito familiar.
93. Além disso, a família celebra o Evangelho da vida com a oração diária, individual e familiar: nela, agradece e louva o Senhor pelo dom da vida e invoca luz e força para enfrentar os momentos de dificuldade e sofrimento, sem nunca perder a esperança. Mas a celebração que dá significado a qualquer outra forma de oração e de culto é a que se exprime na existência quotidiana da família, quando esta é uma existência feita de amor e doação.
A celebração transforma-se assim num serviço ao Evangelho da vida, que se exprime através da solidariedade, vivida no seio e ao redor da família como atenção carinhosa, vigilante e cordial nas acções pequenas e humildes de cada dia. Uma expressão particularmente significativa de solidariedade entre as famílias é a disponibilidade para a adopção ou para o acolhimento das crianças abandonadas pelos seus pais ou, de qualquer modo, em situação de grave dificuldade. O verdadeiro amor paterno e materno sabe ir além dos laços da carne e do sangue para acolher também crianças de outras famílias, oferecendo-lhes quanto seja necessário para a sua vida e o seu pleno desenvolvimento. Entre as formas de adopção, merece ser assinalada a adopção à distância, que se há-de preferir sempre que o abandono tenha por único motivo as condições de grave pobreza da família. Na realidade, com esta espécie de adopção é oferecida aos pais a ajuda necessária para manter e educar os próprios filhos, sem ter de os desarraigar do seu ambiente natural.
Concebida como " determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum ",121 a solidariedade requer ser também concretizada mediante formas de participação social e política. Consequentemente, servir o Evangelho da vida implica que as famílias, nomeadamente tomando parte em apropriadas associações, se empenhem por que as leis e as instituições do Estado não lesem de modo algum o direito à vida, desde a sua concepção até à morte natural, mas o defendam e promovam.
94. Um lugar especial há-de ser reconhecido aos idosos. Enquanto, nalgumas culturas, a pessoa de mais idade permanece inserida na família com um papel activo importante, noutras, ao contrário, quem chegou à velhice é sentido como um peso inútil e fica abandonado a si mesmo: em tal contexto, pode mais facilmente surgir a tentação de recorrer à eutanásia.
A marginalização ou mesmo a rejeição dos idosos é intolerável. A sua presença na família ou, pelo menos, a estreita solidariedade desta com eles quando, pelo reduzido espaço da habitação ou outros motivos, essa presença não fosse possível, é de importância fundamental para criar um clima de intercâmbio recíproco e de comunicação enriquecedora entre as várias idades da vida. Por isso, é importante que se conserve, ou se restabeleça onde tal se perdeu, uma espécie de " pacto " entre as gerações, de modo que os pais idosos, chegados ao termo da sua caminhada, possam encontrar nos filhos aquele acolhimento e solidariedade que lhes tinham oferecido quando estes estavam a desabrochar para a vida: exige-o a obediência ao mandamento divino que ordena honrar o pai e a mãe (cf. Ex 20, 12; Lv 19, 3). Mas há mais... O idoso não há-de ser considerado apenas objecto de atenção, solidariedade e serviço. Também ele tem um valioso contributo a prestar ao Evangelho da vida. Graças ao rico património de experiência adquirido ao longo dos anos, o idoso pode e deve ser transmissor de sabedoria, testemunha de esperança e de caridade.
Se é verdade que " o futuro da humanidade passa pela família ",122 tem-se de reconhecer que as actuais condições sociais, económicas e culturais frequentemente tornam mais árdua e penosa a tarefa da família ao serviço da vida. Para poder realizar a sua vocação de " santuário da vida ", enquanto célula de uma sociedade que ama e acolhe a vida, é necessário e urgente que a família como tal seja ajudada e apoiada. As sociedades e os Estados devem assegurar todo o apoio necessário, mesmo económico, para que as famílias possam responder de forma mais humana aos próprios problemas. Por seu lado, a Igreja deve promover incansavelmente uma pastoral familiar capaz de ajudar cada família a redescobrir, com alegria e coragem, a sua missão no que diz respeito ao Evangelho da vida.
" Comportai-vos como filhos da luz " (Ef 5, 8): para realizar uma viragem cultural
95. " Comportai-vos como filhos da luz. (...) Procurai o que é agradável ao Senhor, e não participeis das obras infrutuosas das trevas " (Ef 5, 8.10-11). No contexto social de hoje, marcado por uma luta dramática entre a " cultura da vida " e a " cultura da morte ", importa maturar um forte sentido crítico, capaz de discernir os verdadeiros valores e as autênticas exigências.
Urge uma mobilização geral das consciências e um esforço ético comum, para se actuar uma grande estratégia a favor da vida. Todos juntos devemos construir uma nova cultura da vida: nova, porque em condições de enfrentar e resolver os problemas inéditos de hoje acerca da vida do homem; nova, porque assumida com convicção mais firme e laboriosa por todos os cristãos; nova, porque capaz de suscitar um sério e corajoso confronto cultural com todos. A urgência desta viragem cultural está ligada à situação histórica que estamos a atravessar, mas radica-se sobretudo na própria missão evangelizadora confiada à Igreja. De facto, o Evangelho visa " transformar a partir de dentro e fazer nova a própria humanidade "; 123 é como o fermento que leveda toda a massa (cf. Mt 13, 33) e, como tal, é destinado a permear todas as culturas e a animá-las a partir de dentro,124 para que exprimam a verdade integral sobre o homem e sua vida.
Tem-se de começar por renovar a cultura da vida no seio das próprias comunidades cristãs. Muitas vezes os crentes, mesmo até os que participam activamente na vida eclesial, caiem numa espécie de dissociação entre a fé cristã e as suas exigências éticas a propósito da vida, chegando assim ao subjectivismo moral e a certos comportamentos inaceitáveis. Devemos, pois, interrogar-nos, com grande lucidez e coragem, acerca da cultura da vida que reina hoje entre os indivíduos cristãos, as famílias, os grupos e as comunidades das nossas Dioceses. Com igual clareza e decisão, teremos de individuar os passos que somos chamados a dar para servir a vida na plenitude da sua verdade. Ao mesmo tempo, devemos promover um confronto sério e profundo com todos, inclusive com os não crentes, sobre os problemas fundamentais da vida humana, tanto nos lugares da elaboração do pensamento, como nos diversos âmbitos profissionais e nas situações onde se desenrola diariamente a existência de cada um.
96. O primeiro e fundamental passo para realizar esta viragem cultural consiste na formação da consciência moral acerca do valor incomensurável e inviolável de cada vida humana. Suma importância tem aqui a descoberta do nexo indivisível entre vida e liberdade. São bens inseparáveis: quando um é violado, o outro acaba por o ser também. Não há liberdade verdadeira, onde a vida não é acolhida nem amada; nem há vida plena senão na liberdade. Ambas as realidades têm, ainda, um peculiar e natural ponto de referência que as une indissoluvelmente: a vocação ao amor. Este, enquanto sincero dom de si,125 é o sentido mais verdadeiro da vida e da liberdade da pessoa.
Na formação da consciência, igualmente decisiva é a descoberta do laço constitutivo que une a liberdade à verdade. Como disse já várias vezes, o desarraigar a liberdade da verdade objectiva torna impossível fundar os direitos da pessoa sobre uma base racional sólida, e cria as premissas para se afirmar, na sociedade, o arbítrio desenfreado dos indivíduos ou o totalitarismo repressivo do poder público.126
Então é essencial que o homem reconheça a evidência primordial da sua condição de criatura que recebe de Deus o ser e a vida como dom e tarefa: só admitindo esta inata dependência no seu ser, pode o homem realizar em plenitude a vida e a liberdade própria e, simultaneamente, respeitar em toda a sua profundidade a vida e a liberdade alheia. É sobretudo aqui que se manifesta como, " no centro de cada cultura, está o comportamento que o homem assume diante do mistério maior: o mistério de Deus ".127 Quando se nega Deus e se vive como se Ele não existisse ou de qualquer modo não se tem em conta os seus mandamentos, então facilmente se acaba por negar ou comprometer também a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade da sua vida.
97. À formação da consciência está estritamente ligada a obra educativa, que ajuda o homem a ser cada vez mais homem, introdu-lo sempre mais profundamente na verdade, orienta-o para um crescente respeito da vida, forma-o nas justas relações entre as pessoas.
De modo particular, é necessário educar para o valor da vida,a começar das suas próprias raízes. É uma ilusão pensar que se pode construir uma verdadeira cultura da vida humana, se não se ajudam os jovens a compreender e a viver a sexualidade, o amor e a existência inteira no seu significado verdadeiro e na sua íntima correlação. A sexualidade, riqueza da pessoa toda, " manifesta o seu significado íntimo ao levar a pessoa ao dom de si no amor ".128 A banalização da sexualidade conta-se entre os principais factores que estão na origem do desprezo pela vida nascente: só um amor verdadeiro sabe defender a vida. Não é possível, pois, eximir-nos de oferecer, sobretudo aos adolescentes e aos jovens, uma autêntica educação da sexualidade e do amor, educação essa que requer a formação para a castidade, como virtude que favorece a maturidade da pessoa e a torna capaz de respeitar o significado " esponsal " do corpo.
A obra de educação para a vida comporta a formação dos cônjuges sobre a procriação responsável. No seu verdadeiro significado, esta exige que os esposos sejam dóceis ao chamamento do Senhor e vivam como fiéis intérpretes do seu desígnio: este cumpre-se com a generosa abertura da família a novas vidas, permanecendo em atitude de acolhimento e de serviço à vida, mesmo quando os cônjuges, por sérios motivos e no respeito da lei moral, decidem evitar, com ou sem limites de tempo, um novo nascimento. A lei moral obriga-os, em qualquer caso, a dominar as tendências do instinto e das paixões e a respeitar as leis biológicas inscritas na pessoa de ambos. É precisamente este respeito que torna legítimo, ao serviço da procriação responsável, o recurso aos métodos naturais de regulação da fertilidade: estes têm-se aperfeiçoado progressivamente sob o ponto de vista científico e oferecem possibilidades concretas para decisões de harmonia com os valores morais. Uma honesta ponderação dos resultados conseguidos deveria fazer ruir preconceitos ainda demasiado difusos e convencer os cônjuges, bem como os profissionais da saúde e da assistência social, sobre a importância de uma adequada formação a tal respeito. A Igreja está agradecida àqueles que, com sacrifício pessoal e dedicação frequentemente ignorada, se empenham na pesquisa e na difusão de tais métodos, promovendo ao mesmo tempo uma educação dos valores morais que o seu uso supõe.
A obra educativa não pode deixar de tomar em consideração, ainda, o sofrimento e a morte. Na realidade, ambos fazem parte da experiência humana, e é vão, para além de ilusório, procurá-los reprimir ou ignorar. Ao contrário, cada um deve ser ajudado a compreender, na concreta e dura realidade, o seu mistério profundo. Também a dor e o sofrimento têm um sentido e um valor, quando são vividos em estreita ligação com o amor recebido e dado. Nesta perspectiva, quis que se celebrasse anualmente o Dia Mundial do Doente, fazendo ressaltar " a índole salvífica da oferta do sofrimento, que, vivido em comunhão com Cristo, pertence à essência mesma da redenção ".129 Até a morte, aliás, não é de forma alguma aventura sem esperança: é a porta da existência que se abre de par em par à eternidade e, para aqueles que a vivem em Cristo, é experiência de participação no mistério da sua morte e ressurreição.
98. Em resumo, podemos dizer que a viragem cultural, aqui desejada, exige de todos a coragem de assumir um novo estilo de vida que se exprime colocando, no fundamento das decisões concretas - a nível pessoal, familiar, social e internacional -, uma justa escala dos valores: o primado do ser sobre o ter,130 da pessoa sobre as coisas.131 Este novo estilo de vida implica também a passagem da indiferença ao interesse pelo outro, a passagem da recusa ao seu acolhimento: os outros não são concorrentes de quem temos de nos defender, mas irmãos e irmãs de quem devemos ser solidários; hão-de ser amados por si mesmos; enriquecem-nos pela sua própria presença.
Na mobilização por um nova cultura da vida, que ninguém se sinta excluído: todos têm um papel importante a desempenhar. Ao lado da tarefa das famílias, é particularmente valiosa a missão dos professores e dos educadores. Deles está em larga medida dependente a possibilidade de os jovens, formados para uma autêntica liberdade, saberem preservar dentro de si e espalhar ao seu redor ideais autênticos de vida, e saberem crescer no respeito e ao serviço de cada pessoa, em família e na sociedade.
Também os intelectuais muito podem fazer para construir uma nova cultura da vida humana. Responsabilidade particular cabe aos intelectuais católicos, chamados a estarem activamente presentes nas sedes privilegiadas da elaboração cultural, ou seja, no mundo da escola e das universidades, nos ambientes da investigação científica e técnica, nos lugares da criação artística e da reflexão humanista. Alimentando o seu génio e acção na seiva límpida do Evangelho, devem comprometer-se ao serviço de uma nova cultura da vida, através da produção de contributos sérios, documentados e capazes de se imporem pelos seus méritos ao respeito e interesse de todos. Precisamente nesta perspectiva, instituí a Pontifícia Academia para a Vida, com a missão de " estudar, informar e formar acerca dos principais problemas de biomedicina e de direito, relativos à promoção e à defesa da vida, sobretudo na relação directa que eles têm com a moral cristã e as directrizes do Magistério da Igreja ".132 Um contributo específico há-de vir das Universidades, em particular católicas, e dos Centros, Institutos e Comissões de bioética.
Grande e grave é a responsabilidade dos profissionais dos mass-media, chamados a pugnarem por que as mensagens, transmitidas com tamanha eficácia, sejam um verdadeiro contributo para a cultura da vida. Importa, por isso, apresentar exemplos altos e nobres de vida e dar espaço aos testemunhos positivos e por vezes heróicos de amor pelo homem; propor, com grande respeito, os valores da sexualidade e do amor, sem contemporizar com nada daquilo que deturpa e degrada a dignidade do homem. Na leitura da realidade, hão-de recusar-se a pôr em destaque tudo o que possa inspirar ou fazer crescer sentimentos ou atitudes de indiferença, desprezo ou rejeição da vida. Na escrupulosa fidelidade à verdade dos factos, eles são chamados a conjugar num todo a liberdade de informação, o respeito por cada pessoa e um profundo sentido de humanidade.
99. Nessa viragem cultural a favor da vida, as mulheres têm um espaço de pensamento e acção singular e talvez determinante: compete a elas fazerem-se promotoras de um " novo feminismo " que, sem cair na tentação de seguir modelos " masculinizados ", saiba reconhecer e exprimir o verdadeiro génio feminino em todas as manifestações da convivência civil, trabalhando pela superação de toda a forma de discriminação, violência e exploração.
Retomando as palavras da mensagem conclusiva do Concílio Vaticano II, também eu dirijo às mulheres este premente convite: " Reconciliai os homens com a vida ".133 Vós sois chamadas atestemunhar o sentido do amor autêntico, daquele dom de si e acolhimento do outro, que se realizam de modo específico na relação conjugal, mas devem ser também a alma de qualquer outra relação interpessoal. A experiência da maternidade proporciona-vos uma viva sensibilidade pela outra pessoa e confere-vos, ao mesmo tempo, uma missão particular: " A maternidade comporta uma comunhão especial com o mistério da vida, que amadurece no seio da mulher. (...) Este modo único de contacto com o novo homem que se está formando, cria, por sua vez, uma atitude tal para com o homem - não só para com o próprio filho, mas para com o homem em geral - que caracteriza profundamente toda a personalidade da mulher ".134 Com efeito, a mãe acolhe e leva dentro de si um outro, proporciona-lhe forma de crescer no seu seio, dá-lhe espaço, respeitando-o na sua diferença. Deste modo, a mulher percebe e ensina que as relações humanas são autênticas quando se abrem ao acolhimento da outra pessoa, reconhecida e amada pela dignidade que lhe advém do facto mesmo de ser pessoa e não de outros factores, como a utilidade, a força, a inteligência, a beleza, a saúde. Este é o contributo fundamental que a Igreja e a humanidade esperam das mulheres. E é premissa insubstituível para uma autêntica viragem cultural.
Um pensamento especial quereria reservá-lo para vós, mulheres, que recorrestes ao aborto. A Igreja está a par dos numerosos condicionalismos que poderiam ter influído sobre a vossa decisão, e não duvida que, em muitos casos, se tratou de uma decisão difícil, talvez dramática. Provavelmente a ferida no vosso espírito ainda não está sarada. Na realidade, aquilo que aconteceu, foi e permanece profundamente injusto. Mas não vos deixeis cair no desânimo, nem percais a esperança. Sabei, antes, compreender o que se verificou e interpretai-o em toda a sua verdade. Se não o fizestes ainda, abri-vos com humildade e confiança ao arrependimento: o Pai de toda a misericórdia espera-vos para vos oferecer o seu perdão e a sua paz no sacramento da Reconciliação. Dar-vos-eis conta de que nada está perdido, e podereis pedir perdão também ao vosso filho que agora vive no Senhor. Ajudadas pelo conselho e pela solidariedade de pessoas amigas e competentes, podereis contar-vos, com o vosso doloroso testemunho, entre os mais eloquentes defensores do direito de todos à vida. Através do vosso compromisso a favor da vida, coroado eventualmente com o nascimento de novos filhos e exercido através do acolhimento e atenção a quem está mais carecido de solidariedade, sereis artífices de um novo modo de olhar a vida do homem.
100. Neste grande esforço por uma nova cultura da vida, somossustentados e fortalecidos pela confiança de quem sabe que oEvangelho da vida, como o Reino de Deus, cresce e dá frutos abundantes (cf. Mc 4, 26-29). Certamente é enorme a desproporção existente entre os meios numerosos e potentes, de que estão dotadas as forças propulsoras da " cultura da morte ", e os meios de que dispõem os promotores de uma " cultura da vida e do amor ". Mas nós sabemos que podemos confiar na ajuda de Deus, para Quem nada é impossível (cf. Mt 19, 26).
Com esta certeza no coração e movido de pungente solicitude pela sorte de cada homem e mulher, repito hoje a todos aquilo que disse às famílias, empenhadas em suas difíceis tarefas por entre as ciladas que as ameaçam: 135 é urgente uma grande oração pela vida, que atravesse o mundo inteiro. Com iniciativas extraordinárias e na oração habitual, de cada comunidade cristã, de cada grupo ou associação, de cada família e do coração de cada crente eleve-se uma súplica veemente a Deus, Criador e amante da vida. O próprio Jesus nos mostrou com o seu exemplo que a oração e o jejum são as armas principais e mais eficazes contra as forças do mal (cf. Mt 4, 1-11), e ensinou aos seus discípulos que alguns demónios só desse modo se expulsam (cf. Mc 9, 29). Então, encontremos novamente a humildade e a coragem de orar e jejuar, para conseguir que a força que vem do Alto faça ruir os muros de enganos e mentiras que escondem, aos olhos de muitos dos nossos irmãos e irmãs, a natureza perversa de comportamentos e de leis contrárias à vida, e abra os seus corações a propósitos e desígnios inspirados na civilização da vida e do amor.
" Escrevemo-vos estas coisas para que a vossa alegria seja completa " (1 Jo 1, 4): o Evangelho da vida é para bem da cidade dos homens
101. " Escrevemo-vos estas coisas, para que a vossa alegria seja completa " (1 Jo 1, 4). A revelação do Evangelho da vida foi-nos confiada como um bem que há-de ser comunicado a todos: para que todos os homens estejam em comunhão connosco e com a Santíssima Trindade (cf. 1 Jo 1, 3). Nem nós poderíamos viver em alegria plena, se não comunicássemos este Evangelho aos outros, mas o guardássemos apenas para nós.
O Evangelho da vida não é exclusivamente para os crentes: destina-se a todos. A questão da vida e da sua defesa e promoção não é prerrogativa unicamente dos cristãos. Mesmo se recebe uma luz e força extraordinária da fé, aquela pertence a cada consciência humana que aspira pela verdade e vive atenta e apreensiva pela sorte da humanidade. Na vida, existe seguramente um valor sagrado e religioso, mas de modo algum este interpela apenas os crentes: trata-se, com efeito, de um valor que todo o ser humano pode enxergar, mesmo com a luz da razão, e, por isso, diz necessariamente respeito a todos.
Por isso, a nossa acção de " povo da vida e pela vida " pede para ser interpretada de modo justo e acolhida com simpatia. Quando a Igreja declara que o respeito incondicional do direito à vida de toda a pessoa inocente - desde a sua concepção até à morte natural - é um dos pilares sobre o qual assenta toda a sociedade, ela " quer simplesmente promover um Estado humano. Um Estado que reconheça como seu dever primário a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente da mais débil ".136
O Evangelho da vida é para bem da cidade dos homens. Actuar em favor da vida é contribuir para o renovamento da sociedade, através da edificação do bem comum. De facto, não é possível construir o bem comum sem reconhecer e tutelar o direito à vida, sobre o qual se fundamentam e desenvolvem todos os restantes direitos inalienáveis do ser humano. Nem pode ter sólidas bases uma sociedade que se contradiz radicalmente, já que por um lado afirma valores como a dignidade da pessoa, a justiça e a paz, mas por outro aceita ou tolera as mais diversas formas de desprezo e violação da vida humana, sobretudo se débil e marginalizada. Só o respeito da vida pode fundar e garantir bens tão preciosos e necessários à sociedade como a democracia e a paz.
De facto, não pode haver verdadeira democracia, se não é reconhecida a dignidade de cada pessoa e não se respeitam os seus direitos.
Nem pode haver verdadeira paz, se não se defende e promove a vida, como recordava Paulo VI: " Todo o crime contra a vida é um atentado contra a paz, especialmente se ele viola os costumes do povo (...), enquanto nos lugares onde os direitos do homem são realmente professados e publicamente reconhecidos e defendidos, a paz torna-se a atmosfera feliz e geradora de convivência social ".137
O " povo da vida " alegra-se de poder partilhar o seu empenho com muitos outros, de modo que seja cada vez mais numeroso o " povo pela vida ", e a nova cultura do amor e da solidariedade possa crescer para o verdadeiro bem da cidade dos homens.
CONCLUSÃO
102. Chegados ao termo desta Encíclica, espontaneamente o olhar volta a fixar-se no Senhor Jesus, o " Menino nascido para nós " (cf. Is 9, 5), a fim de n'Ele contemplar " a Vida " que " se manifestou " (1 Jo 1, 2). No mistério deste nascimento, realiza-se o encontro de Deus com o homem e tem início o caminho do Filho de Deus sobre a terra, caminho esse que culminará com o dom da vida na Cruz: com a sua morte, Ele vencerá a morte e tornar-Se-á para a humanidade princípio de vida nova.
Quem esteve a acolher " a vida " em nome e proveito de todos, foi Maria, a Virgem Mãe, a qual, por isso mesmo, mantém laços pessoais estreitíssimos com o Evangelho da vida. O consentimento de Maria, na Anunciação, e a sua maternidade situam-se na própria fonte do mistério daquela vida, que Cristo veio dar aos homens (cf. Jo 10, 10). Através do acolhimento e carinho que Ela prestou à vida do Verbo feito carne, a vida do homem foi salva da condenação à morte definitiva e eterna.
Por isso, " como a Igreja, de que é figura, Maria é a Mãe de todos os que renascem para a vida. Ela é verdadeiramente a Mãe da Vida que faz viver todos os homens; ao gerar a Vida, gerou de certo modo todos aqueles que haviam de viver dessa Vida ".138
Ao contemplar a maternidade de Maria, a Igreja descobre o sentido da própria maternidade e o modo como é chamada a exprimi-la. Ao mesmo tempo, a experiência materna da Igreja entreabre uma perspectiva mais profunda para compreender a experiência de Maria, qual modelo incomparável de acolhimento e cuidado da vida.
" Apareceu um grande sinal no Céu: uma mulher revestida de Sol " (Ap 12, 1): a maternidade de Maria e da Igreja
103. A relação recíproca entre Maria e o mistério da Igreja manifesta-se claramente no " grande sinal " descrito no Apocalipse: " Apareceu um grande sinal no céu: uma mulher revestida de Sol, tendo a Lua debaixo dos seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça " (12, 1). Neste sinal, a Igreja reconhece uma imagem do próprio mistério: apesar de imersa na história, ela está consciente de a transcender, porquanto constitui na terra " o germe e o princípio " do Reino de Deus.139 Tal mistério, a Igreja vê-o realizado, de modo pleno e exemplar, em Maria. É Ela a mulher gloriosa, na qual o desígnio de Deus se pôde actuar com a máxima perfeição.
Aquela " mulher revestida de Sol " - assinala o Livro do Apocalipse - " estava grávida " (12, 2). A Igreja está plenamente consciente de trazer em si o Salvador do mundo, Cristo Senhor, e de ser chamada a dá-Lo ao mundo, regenerando os homens para a própria vida de Deus. Mas não pode esquecer que esta sua missão tornou-se possível pela maternidade de Maria, que concebeu e deu à luz Aquele que é " Deus de Deus ", " Deus verdadeiro de Deus verdadeiro ". Maria é verdadeiramente a Mãe de Deus, a Theotokos, em cuja maternidade é exaltada, até ao grau supremo, a vocação à maternidade inscrita por Deus em cada mulher. Assim Maria apresenta-se como modelo para a Igreja, chamada a ser a " nova Eva ", mãe dos crentes, mãe dos " viventes " (cf. Gn 3, 20).
A maternidade espiritual da Igreja só se realiza - também disto está ciente a Igreja - no meio das ânsias e " dores de parto " (Ap 12, 2), isto é, em perene tensão com as forças do mal, que continuam a sulcar o mundo e a dominar o coração dos homens, que opõem resistência a Cristo: " N'Ele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens; a luz resplandece nas trevas, mas as trevas não a acolheram " (Jo 1, 4-5).
À semelhança da Igreja, também Maria teve de viver a sua maternidade sob o signo do sofrimento: " Este Menino está aqui (...) para ser sinal de contradição; uma espada trespassará a tua alma, a fim de se revelarem os pensamentos de muitos corações " (Lc 2, 34-35). Nas palavras que Simeão dirige a Maria, já no alvorecer da existência do Salvador, está sinteticamente representada aquela rejeição de Jesus - e com Ele a rejeição de Maria -, que culmina no Calvário. " Junto da cruz de Jesus " (Jo 19, 25), Maria participa no dom que o Filho faz de Si mesmo: oferece Jesus, dá-O, gera-O definitivamente para nós. O " sim " do dia da Anunciação amadurece plenamente no dia da Cruz, quando chega para Maria o tempo de acolher e gerar como filho cada homem feito discípulo, derramando sobre ele o amor redentor do Filho: " Então Jesus, ao ver sua mãe e junto dela, o discípulo que Ele amava, Jesus disse a sua mãe: "Mulher, eis aí o teu filho" " (Jo 19, 26).
" O dragão deteve-se diante da mulher (...) para lhe devorar o filho que estava para nascer " (Ap 12, 4): a vida ameaçada pelas forças do mal
104. No Livro do Apocalipse, o " grande sinal " da " mulher " (12, 1) é acompanhado por " outro sinal no céu ": " um grande dragão vermelho " (12, 3), que representa Satanás, potência pessoal maléfica, e conjuntamente todas as forças do mal que agem na história e contrariam a missão da Igreja.
Também nisto, Maria ilumina a Comunidade dos Crentes: de facto, a hostilidade das forças do mal é uma obstinada oposição que, antes de tocar os discípulos de Jesus, se dirige contra a sua Mãe. Para salvar a vida do Filho daqueles que O temem como se fosse uma perigosa ameaça, Maria tem de fugir com José e o Menino para o Egipto (cf. Mt 2, 13-15).
Assim, Maria ajuda a Igreja a tomar consciência de que a vida está sempre no centro de uma grande luta entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. O dragão queria devorar " o filho que estava para nascer " (Ap 12, 4), figura de Cristo, que Maria gera na " plenitude dos tempos " (Gal 4, 4) e que a Igreja deve continuamente oferecer aos homens nas sucessivas épocas da história. Mas é também, de algum modo, figura de cada homem, de cada criança, sobretudo de cada criatura débil e ameaçada, porque - como recorda o Concílio - " pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ".140 Precisamente na " carne " de cada homem, Cristo continua a revelar-Se e a entrar em comunhão connosco, pelo que a rejeição da vida do homem, nas suas diversas formas, é realmente rejeição de Cristo. Esta é a verdade fascinante mas exigente, que Cristo nos manifesta e que a sua Igreja incansavelmente propõe: " Quem receber um menino como este, em meu nome, é a Mim que recebe " (Mt 18, 5); " Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes " (Mt 25, 40).
" Não mais haverá morte " (Ap 21, 4): o esplendor da ressurreição
105. A anunciação do anjo a Maria está inserida no meio destas expressões tranquilizadoras: " Não tenhas receio, Maria " e " Nada é impossível a Deus " (Lc 1, 30.37). Na verdade, toda a existência da Virgem Mãe está envolvida pela certeza de que Deus está com Ela e A acompanha com a sua benevolência providente. O mesmo se passa também com a existência da Igreja que encontra " um refúgio " (cf. Ap 12, 6) no deserto, lugar da provação mas também da manifestação do amor de Deus pelo seu povo (cf. Os 2, 16). Maria é uma mensagem de viva consolação para a Igreja na sua luta contra a morte. Ao mostrar-nos o seu Filho, assegura-nos que n'Ele as forças da morte já foram vencidas: " Morte e vida combateram, mas o Príncipe da vida reina vivo após a morte ".141
O Cordeiro imolado vive com os sinais da paixão, no esplendor da ressurreição. Só Ele domina todos os acontecimentos da história: abre os seus " selos " (cf. Ap 5, 1-10) e consolida, no tempo e para além dele, o poder da vida sobre a morte. Na " nova Jerusalém ", ou seja, no mundo novo para o qual tende a história dos homens, " não mais haverá morte, nem pranto, nem gritos, nem dor, por que as primeiras coisas passaram " (Ap 21, 4).
Como povo peregrino, povo da vida e pela vida, enquanto caminhamos confiantes para " um novo céu e uma nova terra " (Ap 21, 1), voltamos o olhar para Aquela que é para nós " sinal de esperança segura e consolação ".142
Ó Maria,
aurora do mundo novo,
Mãe dos viventes,
confiamo-Vos a causa da vida:
olhai, Mãe,
para o número sem fim
de crianças a quem é impedido nascer,
de pobres para quem se torna difícil viver,
de homens e mulheres
vítimas de inumana violência,
de idosos e doentes assassinados
pela indiferença
ou por uma presunta compaixão.
Fazei com que todos aqueles que crêem
no vosso Filho
saibam anunciar com desassombro e amor
aos homens do nosso tempo
o Evangelho da vida.
Alcançai-lhes a graça de o acolher
como um dom sempre novo,
a alegria de o celebrar com gratidão
em toda a sua existência,
e a coragem para o testemunhar
com laboriosa tenacidade,
para construírem,
juntamente com todos os homens
de boa vontade,
a civilização da verdade e do amor,
para louvor e glória de Deus Criador
e amante da vida.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 25 de Março, solenidade da Anunciação do Senhor, do ano 1995, décimo sétimo de Pontificado.
Fides et Ratio
CARTA ENCÍCLICA FIDES ET RATIO DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II AOS BISPOS DA IGREJA CATÓLICA SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE FÉ E RAZÃO
Venerados Irmãos no Episcopado,
saúde e Bênção Apostólica!
A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio (cf. Ex 33, 18; Sal 2726, 8-9; 6362, 2-3; Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).
INTRODUÇÃO - "CONHECE-TE A TI MESMO "
1. Tanto no Oriente como no Ocidente, é possível entrever um caminho que, ao longo dos séculos, levou a humanidade a encontrar-se progressivamente com a verdade e a confrontar-se com ela. É um caminho que se realizou - nem podia ser de outro modo - no âmbito da autoconsciência pessoal: quanto mais o homem conhece a realidade e o mundo, tanto mais se conhece a si mesmo na sua unicidade, ao mesmo tempo que nele se torna cada vez mais premente a questão do sentido das coisas e da sua própria existência. O que chega a ser objecto do nosso conhecimento, torna-se por isso mesmo parte da nossa vida. A recomendação conhece-te a ti mesmo estava esculpida no dintel do templo de Delfos, para testemunhar uma verdade basilar que deve ser assumida como regra mínima de todo o homem que deseje distinguir-se, no meio da criação inteira, pela sua qualificação de " homem ", ou seja, enquanto "conhecedor de si mesmo ".
Aliás, basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas diferentes, as questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência humana: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta vida? Estas perguntas encontram-se nos escritos sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá; achamo-las tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tze, como na pregação de Tirtankara e de Buda; e assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípides e Sófocles, quer nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem: da resposta a tais perguntas depende efectivamente a orientação que se imprime à existência.
2. A Igreja não é alheia, nem pode sê-lo, a este caminho de pesquisa. Desde que recebeu, no Mistério Pascal, o dom da verdade última sobre a vida do homem, ela fez-se peregrina pelas estradas do mundo, para anunciar que Jesus Cristo é " o caminho, a verdade e a vida " (Jo 14, 6). De entre os vários serviços que ela deve oferecer à humanidade, há um cuja responsabilidade lhe cabe de modo absolutamente peculiar: é a diaconia da verdade. (1) Por um lado, esta missão torna a comunidade crente participante do esforço comum que a humanidade realiza para alcançar a verdade, (2) e, por outro, obriga-a a empenhar-se no anúncio das certezas adquiridas, ciente todavia de que cada verdade alcançada é apenas mais uma etapa rumo àquela verdade plena que se há--de manifestar na última revelação de Deus: " Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa, mas então veremos face a face. Hoje conheço de maneira imperfeita, então conhecerei exactamente " (1 Cor 13, 12).
3. Variados são os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento da verdade, tornando assim cada vez mais humana a sua existência. De entre eles sobressai a filosofia, cujo contributo específico é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta: constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da humanidade. O termo filosofia significa, segundo a etimologia grega, " amor à sabedoria ". Efectivamente a filosofia nasceu e começou a desenvolver-se quando o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê das coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade pertence à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma propriedade natural da sua razão, embora as respostas, que esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que evidencia a complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.
A grande incidência que a filosofia teve na formação e desenvolvimento das culturas do Ocidente não deve fazer-nos esquecer a influência que a mesma exerceu também nos modos de conceber a existência presentes no Oriente. Na realidade, cada povo possui a sua própria sabedoria natural, que tende, como autêntica riqueza das culturas, a exprimir-se e a maturar em formas propriamente filosóficas. Prova da verdade de tudo isto é a existência duma forma basilar de conhecimento filosófico, que perdura até aos nossos dias e que se pode constatar nos próprios postulados em que as várias legislações nacionais e internacionais se inspiram para regular a vida social.
4. Deve-se assinalar, porém, que, por detrás dum único termo, se escondem significados diferentes. Por isso, é necessária uma explicitação preliminar. Impelido pelo desejo de descobrir a verdade última da existência, o homem procura adquirir aqueles conhecimentos universais que lhe permitam uma melhor compreensão de si mesmo e progredir na sua realização. Os conhecimentos fundamentais nascem da maravilha que nele suscita a contemplação da criação: o ser humano enche-se de encanto ao descobrir-se incluído no mundo e relacionado com outros seres semelhantes, com quem partilha o destino. Parte daqui o caminho que o levará, depois, à descoberta de horizontes de conhecimentos sempre novos. Sem tal assombro, o homem tornar-se-ia repetitivo e, pouco a pouco, incapaz de uma existência verdadeiramente pessoal.
A capacidade reflexiva própria do intelecto humano permite elaborar, através da actividade filosófica, uma forma de pensamento rigoroso, e assim construir, com coerência lógica entre as afirmações e coesão orgânica dos conteúdos, um conhecimento sistemático. Graças a tal processo, alcançaram-se, em contextos culturais diversos e em diferentes épocas históricas, resultados que levaram à elaboração de verdadeiros sistemas de pensamento. Historicamente isto gerou muitas vezes a tentação de identificar uma única corrente com o pensamento filosófico inteiro. Mas, nestes casos, é claro que entra em jogo uma certa "soberba filosófica ", que pretende arvorar em leitura universal a própria perspectiva e visão imperfeita. Na realidade, cada sistema filosófico, sempre no respeito da sua integridade e livre de qualquer instrumentalização, deve reconhecer a prioridade do pensar filosófico de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.
Neste sentido, é possível, não obstante a mudança dos tempos e os progressos do saber, reconhecer um núcleo de conhecimentos filosóficos, cuja presença é constante na história do pensamento. Pense-se, só como exemplo, nos princípios de não-contradição, finalidade, causalidade, e ainda na concepção da pessoa como sujeito livre e inteligente, e na sua capacidade de conhecer Deus, a verdade, o bem; pense-se, além disso, em algumas normas morais fundamentais que geralmente são aceites por todos. Estes e outros temas indicam que, para além das correntes de pensamento, existe um conjunto de conhecimentos, nos quais é possível ver uma espécie de património espiritual da humanidade. É como se nos encontrássemos perante uma filosofia implícita, em virtude da qual cada um sente que possui estes princípios, embora de forma genérica e não reflectida. Estes conhecimentos, precisamente porque partilhados em certa medida por todos, deveriam constituir uma espécie de ponto de referência para as diversas escolas filosóficas. Quando a razão consegue intuir e formular os princípios primeiros e universais do ser, e deles deduzir correcta e coerentemente conclusões de ordem lógica e deontológica, então pode-se considerar uma razão recta, ou, como era chamada pelos antigos, orthòs logos, recta ratio.
5. A Igreja, por sua vez, não pode deixar de apreciar o esforço da razão na consecução de objectivos que tornem cada vez mais digna a existência pessoal. Na verdade, ela vê, na filosofia, o caminho para conhecer verdades fundamentais relativas à existência do homem. Ao mesmo tempo, considera a filosofia uma ajuda indispensável para aprofundar a compreensão da fé e comunicar a verdade do Evangelho a quantos não a conhecem ainda.
Na sequência de iniciativas análogas dos meus Predecessores, desejo também eu debruçar-me sobre esta actividade peculiar da razão. Faço-o movido pela constatação, sobretudo em nossos dias, de que a busca da verdade última aparece muitas vezes ofuscada. A filosofia moderna possui, sem dúvida, o grande mérito de ter concentrado a sua atenção sobre o homem. Partindo daí, uma razão cheia de interrogativos levou por diante o seu desejo de conhecer sempre mais ampla e profundamente. Desta forma, foram construídos sistemas de pensamento complexos, que deram os seus frutos nos diversos âmbitos do conhecimento, favorecendo o progresso da cultura e da história. A antropologia, a lógica, as ciências da natureza, a história, a linguística, de algum modo todo o universo do saber foi abarcado. Todavia, os resultados positivos alcançados não devem levar a transcurar o facto de que essa mesma razão, porque ocupada a investigar de maneira unilateral o homem como objecto, parece ter-se esquecido de que este é sempre chamado a voltar-se também para uma realidade que o transcende. Sem referência a esta, cada um fica ao sabor do livre arbítrio, e a sua condição de pessoa acaba por ser avaliada com critérios pragmáticos baseados essencialmente sobre o dado experimental, na errada convicção de que tudo deve ser dominado pela técnica. Foi assim que a razão, sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tensão para a verdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação sobre o conhecimento humano. Em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos.
Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças dum cepticismo geral. E, mais recentemente, ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado. A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto actual, de desconfiança na verdade. E esta ressalva vale também para certas concepções de vida originárias do Oriente: é que negam à verdade o seu carácter exclusivo, ao partirem do pressuposto de que ela se manifesta de modo igual em doutrinas diversas ou mesmo contraditórias entre si. Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião. Dá a impressão de um movimento ondulatório: enquanto, por um lado, a razão filosófica conseguiu avançar pela estrada que a torna cada vez mais atenta à existência humana e às suas formas de expressão, por outro tende a desenvolver considerações existenciais, hermenêuticas ou linguísticas, que prescindem da questão radical relativa à verdade da vida pessoal, do ser e de Deus. Como consequência, despontaram, não só em alguns filósofos mas no homem contemporâneo em geral, atitudes de desconfiança generalizada quanto aos grandes recursos cognoscitivos do ser humano. Com falsa modéstia, contentam-se de verdades parciais e provisórias, deixando de tentar pôr as perguntas radicais sobre o sentido e o fundamento último da vida humana, pessoal e social. Em suma, esmoreceu a esperança de se poder receber da filosofia respostas definitivas a tais questões.
6. Credenciada pelo facto de ser depositária da revelação de Jesus Cristo, a Igreja deseja reafirmar a necessidade da reflexão sobre a verdade. Foi por este motivo que decidi dirigir-me a vós, venerados Irmãos no Episcopado, com quem partilho a missão de anunciar " abertamente a verdade " (2 Cor 4, 2), e dirigir-me também aos teólogos e filósofos a quem compete o dever de investigar os diversos aspectos da verdade, e ainda a quantos andam à procura duma resposta, para comunicar algumas reflexões sobre o caminho que conduz à verdadeira sabedoria, a fim de que todo aquele que tiver no coração o amor por ela possa tomar a estrada certa para a alcançar, e nela encontrar repouso para a sua fadiga e também satisfação espiritual.
Tomo esta iniciativa impelido, antes de mais, pela certeza de que os Bispos, como assinala o Concílio Vaticano II, são " testemunhas da verdade divina e católica " (3). Por isso, testemunhar a verdade é um encargo que nos foi confiado a nós, os Bispos; não podemos renunciar a ele, sem faltar ao ministério que recebemos. Reafirmando a verdade da fé, podemos restituir ao homem de hoje uma genuína confiança nas suas capacidades cognoscitivas e oferecer à filosofia um estímulo para poder recuperar e promover a sua plena dignidade.
Há um segundo motivo que me induz a escrever estas reflexões Na carta encíclica Veritatis splendor, chamei a atenção para " algumas verdades fundamentais da doutrina católica que, no contexto actual, correm o risco de serem deformadas ou negadas ". (4) Com este novo documento, desejo continuar aquela reflexão, concentrando a atenção precisamente sobre o tema da verdade e sobre o seu fundamento em relação com a fé. De facto, não se pode negar que este período, de mudanças rápidas e complexas, deixa sobretudo os jovens, a quem pertence e de quem depende o futuro, na sensação de estarem privados de pontos de referência autênticos. A necessidade de um alicerce sobre o qual construir a existência pessoal e social faz-se sentir de maneira premente, principalmente quando se é obrigado a constatar o carácter fragmentário de propostas que elevam o efémero ao nível de valor, iludindo assim a possibilidade de se alcançar o verdadeiro sentido da existência. Deste modo, muitos arrastam a sua vida quase até à borda do precipício, sem saber o que os espera. Isto depende também do facto de, às vezes, quem era chamado por vocação a exprimir em formas culturais o fruto da sua reflexão, ter desviado o olhar da verdade, preferindo o sucesso imediato ao esforço duma paciente investigação sobre aquilo que merece ser vivido. A filosofia, que tem a grande responsabilidade de formar o pensamento e a cultura através do apelo perene à busca da verdade, deve recuperar vigorosamente a sua vocação originária. É por isso que senti a necessidade e o dever de intervir sobre este tema, para que, no limiar do terceiro milénio da era cristã, a humanidade tome consciência mais clara dos grandes recursos que lhe foram concedidos, e se empenhe com renovada coragem no cumprimento do plano de salvação, no qual está inserida a sua história.
CAPÍTULO I - A REVELAÇÃO DA SABEDORIA DE DEUS
1. Jesus, revelador do Pai
7. Na base de toda a reflexão feita pela Igreja, está a consciência de ser depositária duma mensagem, que tem a sua origem no próprio Deus (cf. 2 Cor 4, 1-2). O conhecimento que ela propõe ao homem, não provém de uma reflexão sua, nem sequer da mais alta, mas de ter acolhido na fé a palavra de Deus (cf. 1 Tes 2, 13). Na origem do nosso ser crentes existe um encontro, único no seu género, que assinala a abertura de um mistério escondido durante tantos séculos (cf. 1 Cor 2, 7; Rom 16, 25-26), mas agora revelado: " Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-Se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cf. Ef 1, 9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina ". (5) Trata-se de uma iniciativa completamente gratuita, que parte de Deus e vem ao encontro da humanidade para a salvar. Enquanto fonte de amor, Deus deseja dar-Se a conhecer, e o conhecimento que o homem adquire d'Ele leva à plenitude qualquer outro conhecimento verdadeiro que a sua mente seja capaz de alcançar sobre o sentido da própria existência.
8. Retomando quase literalmente a doutrina presente na constituição Dei Filius do Concílio Vaticano I e tendo em conta os princípios propostos pelo Concílio de Trento, a constituição Dei Verbum do Vaticano II continuou aquele caminho plurissecular de compreensão da fé, reflectindo sobre a Revelação à luz da doutrina bíblica e de toda a tradição patrística. No primeiro Concílio do Vaticano, os Padres tinham sublinhado o carácter sobrenatural da revelação de Deus. A crítica racionalista que então se fazia sentir contra a fé, baseada em teses erradas mas muito difusas, insistia sobre a negação de qualquer conhecimento que não fosse fruto das capacidades naturais da razão. Isto obrigara o Concílio a reafirmar vigorosamente que, além do conhecimento da razão humana, por sua natureza, capaz de chegar ao Criador, existe um conhecimento que é peculiar da fé. Este conhecimento exprime uma verdade que se funda precisamente no facto de Deus que Se revela, e é uma verdade certíssima porque Deus não Se engana nem quer enganar. (6)
9. Por isso, o Concílio Vaticano I ensina que a verdade alcançada pela via da reflexão filosófica e a verdade da Revelação não se confundem, nem uma torna a outra supérflua: " Existem duas ordens de conhecimento, diversas não apenas pelo seu princípio, mas também pelo objecto. Pelo seu princípio, porque, se num conhecemos pela razão natural, no outro fazêmo-lo por meio da fé divina; pelo objecto, porque, além das verdades que a razão natural pode compreender, é-nos proposto ver os mistérios escondidos em Deus, que só podem ser conhecidos se nos forem revelados do Alto ". (7) A fé, que se fundamenta no testemunho de Deus e conta com a ajuda sobrenatural da graça, pertence efectivamente a uma ordem de conhecimento diversa da do conhecimento filosófico. De facto, este assenta sobre a percepção dos sentidos, sobre a experiência, e move-se apenas com a luz do intelecto. A filosofia e as ciências situam-se na ordem da razão natural, enquanto a fé, iluminada e guiada pelo Espírito, reconhece na mensagem da salvação a " plenitude de graça e de verdade " (cf. Jo 1, 14) que Deus quis revelar na história, de maneira definitiva, por meio do seu Filho Jesus Cristo (cf. 1 Jo 5, 9; Jo 5, 31-32).
10. No Concílio Vaticano II, os Padres, fixando a atenção sobre Jesus revelador, ilustraram o carácter salvífico da revelação de Deus na história e exprimiram a sua natureza do seguinte modo: " Em virtude desta revelação, Deus invisível (cf. Col 1, 15; 1 Tim 1, 17), na riqueza do seu amor, fala aos homens como amigos (cf. Ex 33, 11; Jo 15, 14-15) e convive com eles (cf. Bar 3, 38), para os convidar e admitir à comunhão com Ele. Esta economia da Revelação realiza-se por meio de acções e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens manifesta-se-nos, por esta Revelação, em Cristo, que é simultaneamente o mediador e a plenitude de toda a revelação ". (8)
11. Assim, a revelação de Deus entrou no tempo e na história. Mais, a encarnação de Jesus Cristo realiza-se na " plenitude dos tempos " (Gal 4, 4). À distância de dois mil anos deste acontecimento, sinto o dever de reafirmar intensamente que, " no cristianismo, o tempo tem uma importância fundamental ". (9) Com efeito, é nele que tem lugar toda a obra da criação e da salvação, e sobretudo merece destaque o facto de que, com a encarnação do Filho de Deus, vivemos e antecipamos desde já aquilo que se seguirá ao fim dos tempos (cf. Heb 1, 2).
A verdade que Deus confiou ao homem a respeito de Si mesmo e da sua vida insere-se, portanto, no tempo e na história. Sem dúvida, aquela foi pronunciada uma vez por todas no mistério de Jesus de Nazaré. Afirma-o, com palavras muito expressivas, a constituição Dei Verbum: " Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que são os últimos, através de seu Filho (Heb 1, 1-2). Com efeito, enviou o seu Filho, isto é, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes a vida íntima de Deus (cf. Jo 1, 1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado como homem para os homens, "fala, portanto, as palavras de Deus" (Jo 3, 34) e consuma a obra de salvação que o Pai Lhe mandou realizar (cf. Jo 5, 36; 17, 4). Por isso, Ele - vê-l'O a Ele é ver o Pai (cf. Jo 14, 9) -, com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, e enfim, com o envio do Espírito de verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a Revelação ". (10)
Assim, a história constitui um caminho que o Povo de Deus há-de percorrer inteiramente, de tal modo que a verdade revelada possa exprimir em plenitude os seus conteúdos, graças à acção incessante do Espírito Santo (cf. Jo 16, 13). Ensina-o também a constituição Dei Verbum, quando afirma que " a Igreja, no decurso dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus ". (11)
12. A história torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a acção de Deus em favor da humanidade. Ele vem ter connosco, servindo-Se daquilo que nos é mais familiar e mais fácil de verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do qual não conseguiríamos entender-nos.
A encarnação do Filho de Deus permite ver realizada uma síntese definitiva que a mente humana, por si mesma, nem sequer poderia imaginar: o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no fragmento, Deus assume o rosto do homem. Deste modo, a verdade expressa na revelação de Cristo deixou de estar circunscrita a um restrito âmbito territorial e cultural, abrindo-se a todo o homem e mulher que a queira acolher como palavra definitivamente válida para dar sentido à existência. Agora todos têm acesso ao Pai, em Cristo; de facto, com a sua morte e ressurreição, Ele concedeu-nos a vida divina que o primeiro Adão tinha rejeitado (cf. Rom 5, 12-15). Com esta Revelação, é oferecida ao homem a verdade última a respeito da própria vida e do destino da história: " Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente ", afirma a constituição Gaudium et spes. (12) Fora desta perspectiva, o mistério da existência pessoal permanece um enigma insolúvel. Onde poderia o homem procurar resposta para questões tão dramáticas como a dor, o sofrimento do inocente e a morte, a não ser na luz que dimana do mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo?
2. A razão perante o mistério
13. Entretanto, não se pode esquecer que a Revelação permanece envolvida no mistério. Jesus, com toda a sua vida, revela seguramente o rosto do Pai, porque Ele veio para manifestar os segredos de Deus; (13) e contudo, o conhecimento que possuímos daquele rosto, está marcado sempre pelo carácter parcial e limitado da nossa compreensão. Somente a fé permite entrar dentro do mistério, proporcionando uma sua compreensão coerente.
O Concílio ensina que, " a Deus que revela, é devida a obediência da fé ". (14) Com esta breve mas densa afirmação, é indicada uma verdade fundamental do cristianismo. Diz-se, em primeiro lugar, que a fé é uma resposta de obediência a Deus. Isto implica que Ele seja reconhecido na sua divindade, transcendência e liberdade suprema. Deus que Se dá a conhecer na autoridade da sua transcendência absoluta, traz consigo também a credibilidade dos conteúdos que revela. Pela fé, o homem presta assentimento a esse testemunho divino. Isto significa que reconhece plena e integralmente a verdade de tudo o que foi revelado, porque é o próprio Deus que o garante. Esta verdade, oferecida ao homem sem que ele a possa exigir, insere-se no horizonte da comunicação interpessoal e impele a razão a abrir-se a esta e a acolher o seu sentido profundo. É por isso que o acto pelo qual nos entregamos a Deus, sempre foi considerado pela Igreja como um momento de opção fundamental, que envolve a pessoa inteira. Inteligência e vontade põem em acção o melhor da sua natureza espiritual, para consentir que o sujeito realize um acto no pleno exercício da sua liberdade pessoal. (15) Na fé, portanto, não basta a liberdade estar presente, exige-se que entre em acção. Mais, é a fé que permite a cada um exprimir, do melhor modo, a sua própria liberdade. Por outras palavras, a liberdade não se realiza nas opções contra Deus. Na verdade, como poderia ser considerado um uso autêntico da liberdade, a recusa de se abrir àquilo que permite a realização de si mesmo? No acreditar é que a pessoa realiza o acto mais significativo da sua existência; de facto, nele a liberdade alcança a certeza da verdade e decide viver nela.
Em auxílio da razão, que procura a compreensão do mistério, vêm também os sinais presentes na Revelação. Estes servem para conduzir mais longe a busca da verdade e permitir que a mente possa autonomamente investigar inclusive dentro do mistério. De qualquer modo, se, por um lado, esses sinais dão maior força à razão, porque lhe permitem pesquisar dentro do mistério com os seus próprios meios, de que ela justamente se sente ciosa, por outro lado, impelem-na a transcender a sua realidade de sinais para apreender o significado ulterior de que eles são portadores. Portanto, já há neles uma verdade escondida, para a qual encaminham a mente e da qual esta não pode prescindir sem destruir o próprio sinal que lhe foi proposto.
Chega-se, assim, ao horizonte sacramental da Revelação e de forma particular ao sinal eucarístico, onde a união indivisível entre a realidade e o respectivo significado permite identificar a profundidade do mistério. Na Eucaristia, Cristo está verdadeiramente presente e vivo, actua pelo seu Espírito, mas, como justamente diz S. Tomás, " nada vês nem compreendes, mas t'o afirma a fé mais viva, para além das leis da Terra. Sob espécies diferentes, que não passam de sinais, é que está o dom de Deus ". (16) Temos um eco disto mesmo nas seguintes palavras do filósofo Pascal: " Como Jesus Cristo passou despercebido no meio dos homens, assim a sua verdade permanece, entre as opiniões comuns, sem diferença exterior. O mesmo se dá com a Eucaristia relativamente ao pão comum ".(17)
Em resumo, o conhecimento da fé não anula o mistério; torna-o apenas mais evidente e apresenta-o como um facto essencial para a vida do homem: Cristo Senhor, " na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime ", (18) que é participar no mistério da vida trinitária de Deus. (19)
14. A doutrina do primeiro e segundo Concílio do Vaticano abre um horizonte verdadeiramente novo também ao saber filosófico. A Revelação coloca dentro da história um ponto de referência de que o homem não pode prescindir, se quiser chegar a compreender o mistério da sua existência; mas, por outro lado, este conhecimento apela constantemente para o mistério de Deus que a mente não consegue abarcar, mas apenas receber e acolher na fé. Entre estes dois momentos, a razão possui o seu espaço peculiar que lhe permite investigar e compreender, sem ser limitada por nada mais que a sua finitude ante o mistério infinito de Deus.
A Revelação introduz, portanto, na nossa história uma verdade universal e última que leva a mente do homem a nunca mais se deter; antes, impele-a a ampliar continuamente os espaços do próprio conhecimento até sentir que realizou tudo o que estava ao seu alcance, sem nada descurar. Ajuda-nos, nesta reflexão, uma das inteligências mais fecundas e significativas da história da humanidade, à qual obrigatoriamente fazem referência a filosofia e a teologia: Santo Anselmo. Na sua obra, Proslogion, o Arcebispo de Cantuária exprime-se assim: " Detendo-me com frequência e atenção a pensar neste problema, sucedia umas vezes que me parecia estar para agarrar o que buscava, outras vezes, pelo contrário, furtava-se completamente ao meu pensamento; até que finalmente, desesperado de o poder achar, decidi deixar de procurar algo que me era impossível encontrar. Mas, quando quis afastar de mim tal pensamento para que a sua ocupação da minha mente não me alheasse de outros problemas de que podia tirar algum proveito, foi então que começou a apresentar-se cada vez mais teimoso. (...) Mas, pobre de mim, um dos pobres filhos de Eva, longe de Deus, o que é que comecei a fazer e o que é que consegui? O que é que visava e a que ponto cheguei? A que é que aspirava e por que é que suspiro? (...) Ó Senhor, Vós não sois apenas algo acerca do qual não se pode pensar nada de maior (non solum es quo maius cogitari nequit), mas sois maior de tudo o que se possa pensar (quiddam maius quam cogitari possit) (...). Se não fôsseis o que sois, poder-se-ia pensar algo maior do que Vós, mas isso é impossível ". (20)
15. A verdade da revelação cristã, que se encontra em Jesus de Nazaré, permite a quemquer que seja perceber o " mistério " da própria vida. Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo que respeita a autonomia da criatura e a sua liberdade, obriga-a a abrir-se à transcendência. Aqui, a relação entre liberdade e verdade atinge o seu máximo grau, podendo-se compreender plenamente esta palavra do Senhor: " Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á " (Jo 8, 32).
A revelação cristã é a verdadeira estrela de orientação para o homem, que avança por entre os condicionalismos da mentalidade imanentista e os reducionismos duma lógica tecnocrática; é a última possibilidade oferecida por Deus, para reencontrar em plenitude aquele projecto primordial de amor que teve início com a criação. Ao homem ansioso de conhecer a verdade - se ainda é capaz de ver para além de si mesmo e levantar os olhos acima dos seus próprios projectos - é-lhe concedida a possibilidade de recuperar a genuína relação com a sua vida, seguindo a estrada da verdade. Podem-se aplicar a esta situação as seguintes palavras do Deuteronómio: " A lei que hoje te imponho não está acima das tuas forças nem fora do teu alcance. Não está no céu, para que digas: "Quem subirá por nós ao céu e no-la irá buscar?" Não está tão pouco do outro lado do mar, para que digas: "Quem atravessará o mar para no-la buscar e no-la fazer ouvir para que a observemos?" Não, ela está muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração; e tu podes cumpri-la " (30, 11-14). Temos um eco deste texto no famoso pensamento do filósofo e teólogo Santo Agostinho: " Noli foras ire, in te ipsum redi. In interiore homine habitat veritas ". (21)
À luz destas considerações, impõe-se uma primeira conclusão: a verdade que a Revelação nos dá a conhecer não é o fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razão. Pelo contrário, aquela apresenta-se com a característica da gratuidade, obriga a pensá-la, e pede para ser acolhida, como expressão de amor. Esta verdade revelada é a presença antecipada na nossa história daquela visão última e definitiva de Deus, que está reservada para quantos acreditam n'Ele ou O procuram de coração sincero. Assim, o fim último da existência pessoal é objecto de estudo quer da filosofia, quer da teologia. Embora com meios e conteúdos diversos, ambas apontam para aquele " caminho da vida " (Sal 1615, 11) que, segundo nos diz a fé, tem o seu termo último de chegada na alegria plena e duradoura da contemplação de Deus Uno e Trino.
CAPÍTULO II - CREDO UT INTELLEGAM
1. " A sabedoria sabe e compreende todas as coisas" (Sab9, 11)
16. Quão profunda seja a ligação entre o conhecimento da fé e o da razão, já a Sagrada Escritura no-lo indica com elementos de uma clareza surpreendente. Comprovam-no sobretudo os Livros Sapienciais. O que impressiona na leitura, feita sem preconceitos, dessas páginas da Sagrada Escritura é o facto de estes textos conterem não apenas a fé de Israel, mas também o tesouro de civilizações e culturas já desaparecidas. Como se de um desígnio particular se tratasse, o Egipto e a Mesopotâmia fazem ouvir novamente a sua voz, e alguns traços comuns das culturas do Antigo Oriente ressurgem nestas páginas ricas de intuições singularmente profundas.
Não é por acaso que o autor sagrado, ao querer descrever o homem sábio, o apresenta como aquele que ama e busca a verdade: " Feliz o homem que é constante na sabedoria, e que discorre com a sua inteligência; que repassa no seu coração os caminhos da sabedoria, e que penetra no conhecimento dos seus segredos; vai atrás dela como quem lhe segue o rasto, e permanece nos seus caminhos; olha pelas suas janelas, e escuta às suas portas; repousa junto da sua morada, e fixa um pilar nas suas paredes; levanta a sua tenda junto dela, e estabelece ali agradável morada; coloca os seus filhos debaixo da sua protecção, e ele mesmo morará debaixo dos seus ramos; à sua sombra estará defendido do calor, e repousará na sua glória " (Sir 14, 20-27).
Para o autor inspirado, como se vê, o desejo de conhecer é uma característica comum a todos os homens. Graças à inteligência, é dada a todos, crentes e descrentes, a possibilidade de " saciarem-se nas águas profundas " do conhecimento (cf. Prov 20, 5). Seguramente, no Antigo Israel, o conhecimento do mundo e dos seus fenómenos não se realizava pela via da abstracção, como já o fazia o filósofo jónico ou o sábio egípcio. E menos ainda podia o bom israelita conceber o conhecimento nos parâmetros próprios da época moderna, mais propensa à subdivisão do saber. Apesar disso, o mundo bíblico fez confluir, para o grande mar da teoria do conhecimento, o seu contributo original.
Qual? O carácter peculiar do texto bíblico reside na convicção de que existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão e o da fé. O mundo e o que nele acontece, assim como a história e as diversas vicissitudes da nação são realidades observadas, analisadas e julgadas com os meios próprios da razão, mas sem deixar a fé alheia a este processo. Esta não intervém para humilhar a autonomia da razão, nem para reduzir o seu espaço de acção, mas apenas para fazer compreender ao homem que, em tais acontecimentos, Se torna visível e actua o Deus de Israel. Assim, não é possível conhecer profundamente o mundo e os factos da história, sem ao mesmo tempo professar a fé em Deus que neles actua. A fé aperfeiçoa o olhar interior, abrindo a mente para descobrir, no curso dos acontecimentos, a presença operante da Providência. A tal propósito, é significativa uma expressão do livro dos Provérbios: " A mente do homem dispõe o seu caminho, mas é o Senhor quem dirige os seus passos " (16, 9). É como se dissesse que o homem, pela luz da razão, pode reconhecer a sua estrada, mas percorrê-la de maneira decidida, sem obstáculos e até ao fim, ele só o consegue se, de ânimo recto, integrar a sua pesquisa no horizonte da fé. Por isso, a razão e a fé não podem ser separadas, sem fazer com que o homem perca a possibilidade de conhecer de modo adequado a si mesmo, o mundo e Deus.
17. Não há motivo para existir concorrência entre a razão e a fé: uma implica a outra, e cada qual tem o seu espaço próprio de realização. Aponta nesta direcção o livro dos Provérbios, quando exclama: " A glória de Deus é encobrir as coisas, e a glória dos reis é investigá-las " (25, 2). Deus e o homem estão colocados, em seu respectivo mundo, numa relação única. Em Deus reside a origem de tudo, n'Ele se encerra a plenitude do mistério, e isto constitui a sua glória; ao homem, pelo contrário, compete o dever de investigar a verdade com a razão, e nisto está a sua nobreza. Um novo ladrilho é colocado neste mosaico pelo Salmista, quando diz: " Quão insondáveis para mim, ó Deus, vossos pensamentos! Quão imenso o seu número! Quisera contá-los, são mais que as areias; se pudesse chegar ao fim, estaria ainda convosco " (139/ 138, 17-18). O desejo de conhecer é tão grande e comporta tal dinamismo que o coração do homem, ao tocar o limite intransponível, suspira pela riqueza infinita que se encontra para além deste, por intuir que nela está contida a resposta cabal para toda a questão ainda sem resposta.
18. Podemos, pois, dizer que Israel, com a sua reflexão, soube abrir à razão o caminho para o mistério. Na revelação de Deus, pôde sondar em profundidade aquilo que a razão estava procurando alcançar sem o conseguir. A partir desta forma mais profunda de conhecimento, o Povo Eleito compreendeu que a razão deve respeitar algumas regras fundamentais, para manifestar do melhor modo possível a própria natureza. A primeira regra é ter em conta que o conhecimento do homem é um caminho que não permite descanso; a segunda nasce da consciência de que não se pode percorrer tal caminho com o orgulho de quem pensa que tudo seja fruto de conquista pessoal; a terceira regra funda-se no " temor de Deus ", de quem a razão deve reconhecer tanto a transcendência soberana como o amor solícito no governo do mundo.
Quando o homem se afasta destas regras, corre o risco de falimento e acaba por encontrar-se na condição do " insensato ". Segundo a Bíblia, nesta insensatez encerra-se uma ameaça à vida. É que o insensato ilude-se pensando que conhece muitas coisas, mas, de facto, não é capaz de fixar o olhar nas realidades essenciais. E isto impede-lhe de pôr ordem na sua mente (cf. Prov 1, 7) e de assumir uma atitude correcta para consigo mesmo e o ambiente circundante. Quando, depois, chega a afirmar que " Deus não existe " (cf. Sal 1413, 1), isso revela, com absoluta clareza, quanto seja deficiente o seu conhecimento e quão distante esteja ele da verdade plena a respeito das coisas, da sua origem e do seu destino.
19. Encontramos, no livro da Sabedoria, alguns textos importantes, que iluminam ainda melhor este assunto. Lá, o autor sagrado fala de Deus que Se dá a conhecer também através da natureza. Para os antigos, o estudo das ciências naturais coincidia, em grande parte, com o saber filosófico. Depois de ter afirmado que o homem, com a sua inteligência, é capaz de " conhecer a constituição do universo e a força dos elementos (...), o ciclo dos anos e a posição dos astros, a natureza dos animais mansos e os instintos dos animais ferozes " (Sab 7, 17.19-20), por outras palavras, que o homem é capaz de filosofar, o texto sagrado dá um passo em frente muito significativo. Retomando o pensamento da filosofia grega, à qual parece referir-se neste contexto, o autor afirma que, raciocinando precisamente sobre a natureza, pode-se chegar ao Criador: " Pela grandeza e beleza das criaturas, pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor " (Sab 13, 5). Reconhece-se, assim, um primeiro nível da revelação divina, constituído pelo maravilhoso " livro da natureza "; lendo-o com os meios próprios da razão humana, pode-se chegar ao conhecimento do Criador. Se o homem, com a sua inteligência, não chega a reconhecer Deus como criador de tudo, isso fica-se a dever não tanto à falta de um meio adequado, como sobretudo ao obstáculo interposto pela sua vontade livre e pelo seu pecado.
20. Nesta perspectiva, a razão é valorizada, mas não superexaltada. O que ela alcança pode ser verdade, mas só adquire pleno significado se o seu conteúdo for situado num horizonte mais amplo, o da fé: " O Senhor é quem dirige os passos do homem; como poderá o homem compreender o seu próprio destino? " (Prov 20, 24). A fé, segundo o Antigo Testamento, liberta a razão, na medida em que lhe permite alcançar coerentemente o seu objecto de conhecimento e situá-lo naquela ordem suprema onde tudo adquire sentido. Em resumo, pela razão o homem alcança a verdade, porque, iluminado pela fé, descobre o sentido profundo de tudo e, particularmente, da própria existência. Justamente, pois, o autor sagrado coloca o início do verdadeiro conhecimento no temor de Deus: " O temor do Senhor é o princípio da sabedoria " (Prov 1, 7; cf. Sir 1, 14).
2. " Adquire a sabedoria, adquire a inteligência " (Prov 4, 5)
21. Segundo o Antigo Testamento, o conhecimento não se baseia apenas numa atenta observação do homem, do mundo e da história, mas supõe como indispensável também uma relação com a fé e os conteúdos da Revelação. Aqui se concentram os desafios que o Povo Eleito teve de enfrentar e a que deu resposta. Ao reflectir sobre esta sua condição, o homem bíblico descobriu que não se podia compreender senão como " ser em relação ": relação consigo mesmo, com o povo, com o mundo e com Deus. Esta abertura ao mistério, que provinha da Revelação, acabou por ser, para ele, a fonte dum verdadeiro conhecimento, que permitiu à sua razão aventurar-se em espaços infinitos, recebendo inesperadas possibilidades de compreensão.
Segundo o autor sagrado, o esforço da investigação não estava isento da fadiga causada pelo embate nas limitações da razão. Sente-se isso mesmo, por exemplo, nas palavras com que o livro dos Provérbios denuncia o cansaço provado ao tentar compreender os misteriosos desígnios de Deus (cf. 30, 1-6). Todavia, apesar da fadiga, o crente não desiste. E a força para continuar o seu caminho rumo à verdade provém da certeza de que Deus o criou como um " explorador " (cf. Coel 1, 13), cuja missão é não deixar nada sem tentar, não obstante a contínua chantagem da dúvida. Apoiando-se em Deus, o crente permanece, em todo o lado e sempre, inclinado para o que é belo, bom e verdadeiro.
22. S. Paulo, no primeiro capítulo da carta aos Romanos, ajuda-nos a avaliar melhor quanto seja incisiva a reflexão dos Livros Sapienciais. Desenvolvendo com linguagem popular uma argumentação filosófica, o Apóstolo exprime uma verdade profunda: através da criação, os " olhos da mente " podem chegar ao conhecimento de Deus. Efectivamente, através das criaturas, Ele faz intuir à razão o seu " poder " e a sua " divindade " (cf. Rom 1, 20). Deste modo, é atribuída à razão humana uma capacidade tal que parece quase superar os seus próprios limites naturais: não só ultrapassa o âmbito do conhecimento sensorial, visto que lhe é possível reflectir criticamente sobre o mesmo, mas, raciocinando a partir dos dados dos sentidos, pode chegar também à causa que está na origem de toda a realidade sensível. Em terminologia filosófica, podemos dizer que, neste significativo texto paulino, está afirmada a capacidade metafísica do homem.
Segundo o Apóstolo, no projecto originário da criação estava prevista a capacidade de a razão ultrapassar comodamente o dado sensível para alcançar a origem mesma de tudo: o Criador. Como resultado da desobediência com que o homem escolheu colocar-se em plena e absoluta autonomia relativamente Àquele que o tinha criado, perdeu tal facilidade de acesso a Deus criador.
O livro do Génesis descreve de maneira figurada esta condição do homem, quando narra que Deus o colocou no jardim do Éden, tendo no centro " a árvore da ciência do bem e do mal " (2, 17). O símbolo é claro: o homem não era capaz de discernir e decidir, por si só, aquilo que era bem e o que era mal, mas devia apelar-se a um princípio superior. A cegueira do orgulho iludiu os nossos primeiros pais de que eram soberanos e autónomos, podendo prescindir do conhecimento vindo de Deus. Nesta desobediência original, eles implicaram todo o homem e mulher, causando à razão traumas sérios que haveriam de dificultar-lhe, daí em diante, o caminho para a verdade plena. Agora a capacidade humana de conhecer a verdade aparece ofuscada pela aversão contra Aquele que é fonte e origem da verdade. O próprio apóstolo S. Paulo nos revela como, por causa do pecado, os pensamentos dos homens se tornaram " vãos " e os seus arrazoados tortuosos e falsos (cf. Rom 1, 21-22). Os olhos da mente deixaram de ser capazes de ver claramente: a razão foi progressivamente ficando prisioneira de si mesma. A vinda de Cristo foi o acontecimento de salvação que redimiu a razão da sua fraqueza, libertando-a dos grilhões onde ela mesma se tinha algemado.
23. Deste modo, a relação do cristão com a filosofia requer um discernimento radical. No Novo Testamento, especialmente nas cartas de S. Paulo, aparece claramente este dado: a contraposição entre " a sabedoria deste mundo " e a sabedoria de Deus revelada em Jesus Cristo. A profundidade da sabedoria revelada rompe o círculo dos nossos esquemas de reflexão habituais, que não são minimamente capazes de exprimi-la de forma adequada.
O início da primeira carta aos Coríntios apresenta radicalmente este dilema. O Filho de Deus crucificado é o acontecimento histórico contra o qual se desfaz toda a tentativa da mente para construir, sobre razões puramente humanas, uma justificação suficiente do sentido da existência. O verdadeiro ponto nodal, que desafia qualquer filosofia, é a morte de Jesus Cristo na cruz. Aqui, de facto, qualquer tentativa de reduzir o plano salvífico do Pai a mera lógica humana está destinada à falência. " Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde está o investigador deste século? Porventura, Deus não considerou louca a sabedoria deste mundo? " (1 Cor 1, 20) - interroga-se enfaticamente o Apóstolo. Para aquilo que Deus quer realizar, não basta a simples sabedoria do homem sábio, requer-se um passo decisivo que leve ao acolhimento duma novidade radical: " O que é louco segundo o mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios (...). O que é vil e desprezível no mundo, é que Deus escolheu, como também aquelas coisas que nada são, para destruir as que são " (1 Cor 1, 27-28). A sabedoria do homem recusa ver na própria fragilidade o pressuposto da sua força; mas S. Paulo não hesita em afirmar: " Quando me sinto fraco, então é que sou forte " (2 Cor 12, 10). O homem não consegue compreender como possa a morte ser fonte de vida e de amor, mas Deus, para revelar o mistério do seu desígnio salvador, escolheu precisamente o que a razão considera " loucura " e " escândalo ". Usando a linguagem dos filósofos do seu tempo, Paulo chega ao clímax da sua doutrina e do paradoxo que quer exprimir: " Deus escolheu, no mundo, aquelas coisas que nada são, para destruir as que são " (cf. 1 Cor 1, 28). Para exprimir o carácter gratuito do amor revelado na cruz de Cristo, o Apóstolo não tem medo de usar a linguagem mais radical que os filósofos empregavam nas suas reflexões a respeito de Deus. A razão não pode esgotar o mistério de amor que a Cruz representa, mas a Cruz pode dar à razão a resposta última que esta procura. S. Paulo coloca, não a sabedoria das palavras, mas a Palavra da Sabedoria como critério, simultaneamente, de verdade e de salvação.
Por conseguinte, a sabedoria da Cruz supera qualquer limite cultural que se lhe queira impor, obrigando a abrir-se à universalidade da verdade de que é portadora. Como é grande o desafio lançado à nossa razão e como são enormes as vantagens que terá, se ela se render! A filosofia, que por si mesma já é capaz de reconhecer a necessidade do homem se transcender continuamente na busca da verdade, pode, ajudada pela fé, abrir-se para, na " loucura " da Cruz, acolher como genuína a crítica a quantos se iludem de possuir a verdade, encalhando-a nas sirtes dum sistema próprio. A relação entre a fé e a filosofia encontra, na pregação de Cristo crucificado e ressuscitado, o escolho contra o qual pode naufragar, mas também para além do qual pode desembocar no oceano ilimitado da verdade. Aqui é evidente a fronteira entre a razão e a fé, mas torna-se claro também o espaço onde as duas se podem encontrar.
CAPÍTULO III - INTELLEGO UT CREDAM
1. Caminhar à procura da verdade
24. Nos Actos dos Apóstolos, o evangelista Lucas narra a chegada de Paulo a Atenas, numa das suas viagens missionárias. A cidade dos filósofos estava cheia de estátuas, que representavam vários ídolos; e chamou-lhe a atenção um altar, que Paulo prontamente aproveitou como motivo e base comum para iniciar o anúncio do querigma: " Atenienses - disse ele -, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: "Ao Deus desconhecido". Pois bem! O que venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio " (Act 17, 22-23). Partindo daqui, S. Paulo fala-lhes de Deus enquanto criador, como Aquele que tudo transcende e a tudo dá vida. Depois continua o seu discurso, dizendo: " Fez a partir de um só homem, todo o género humano, para habitar em toda a face da Terra; e fixou a sequência dos tempos e os limites para a sua habitação, a fim de que os homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-Lo, mesmo tacteando, embora não Se encontre longe de cada um de nós " (Act 17, 26-27).
O Apóstolo põe em destaque uma verdade que a Igreja sempre guardou no seu tesouro: no mais fundo do coração do homem, foi semeado o desejo e a nostalgia de Deus. Recorda-o a liturgia de Sexta-feira Santa, quando, convidando a rezar pelos que não crêem, diz: " Deus eterno e omnipotente, criastes os homens para que Vos procurem, de modo que só em Vós descansa o seu coração ". (22) Existe, portanto, um caminho que o homem, se quiser, pode percorrer; o seu ponto de partida está na capacidade de a razão superar o contingente para se estender até ao infinito.
De vários modos e em tempos diversos, o homem demonstrou que conseguia dar voz a este seu desejo íntimo. A literatura, a música, a pintura, a escultura, a arquitectura e outras realizações da sua inteligência criadora tornaram-se canais de que ele se serviu para exprimir esta sua ansiosa procura. Mas foi sobretudo a filosofia que, de modo peculiar, recolheu este movimento, exprimindo, com os meios e segundo as modalidades científicas que lhe são próprias, este desejo universal do homem.
25. " Todos os homens desejam saber ", (23) e o objecto próprio deste desejo é a verdade. A própria vida quotidiana demonstra o interesse que tem cada um em descobrir, para além do que ouve, a realidade das coisas. Em toda a criação visível, o homem é o único ser que é capaz não só de saber, mas também de saber que sabe, e por isso se interessa pela verdade real daquilo que vê. Ninguém pode sinceramente ficar indiferente quanto à verdade do seu saber. Se descobre que é falso, rejeita-o; se, pelo contrário, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito. É a lição que nos dá Santo Agostinho, quando escreve: " Encontrei muitos com desejos de enganar outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado ". (24) Considera-se, justamente, que uma pessoa alcançou a idade adulta, quando consegue discernir, por seus próprios meios, entre aquilo que é verdadeiro e o que é falso, formando um juízo pessoal sobre a realidade objectiva das coisas. Está aqui o motivo de muitas pesquisas, particularmente no campo das ciências, que levaram, nos últimos séculos, a resultados tão significativos, favorecendo realmente o progresso da humanidade inteira.
E a pesquisa é tão importante no campo teórico, como no âmbito prático: ao referir-me a este, desejo aludir à procura da verdade a respeito do bem que se deve realizar. Com efeito, graças precisamente ao agir ético, a pessoa, se actuar segundo a sua livre e recta vontade, entra pela estrada da felicidade e encaminha-se para a perfeição. Também neste caso, está em questão a verdade. Reafirmei esta convicção na carta encíclica Veritatis splendor: " Não há moral sem liberdade (...). Se existe o direito de ser respeitado no próprio caminho em busca da verdade, há ainda antes a obrigação moral grave para cada um de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez conhecida ". (25)
Por isso, é necessário que os valores escolhidos e procurados na vida sejam verdadeiros, porque só estes é que podem aperfeiçoar a pessoa, realizando a sua natureza. Não é fechando-se em si mesmo que o homem encontra esta verdade dos valores, mas abrindo-se para a receber mesmo de dimensões que o transcendem. Esta é uma condição necessária para que cada um se torne ele mesmo e cresça como pessoa adulta e madura.
26. Ao princípio, a verdade apresenta-se ao homem sob forma interrogativa: A vida tem um sentido? Para onde se dirige? À primeira vista, a existência pessoal poderia aparecer radicalmente sem sentido. Não é preciso recorrer aos filósofos do absurdo, nem às perguntas provocatórias que se encontram no livro de Job para duvidar do sentido da vida. A experiência quotidiana do sofrimento, pessoal e alheio, e a observação de muitos factos, que à luz da razão se revelam inexplicáveis, bastam para tornar iniludível um problema tão dramático como é a questão do sentido da vida. (26) A isto se deve acrescentar que a primeira verdade absolutamente certa da nossa existência, para além do facto de existirmos, é a inevitabilidade da morte. Perante um dado tão desconcertante como este, impõe-se a busca de uma resposta exaustiva. Cada um quer, e deve, conhecer a verdade sobre o seu fim. Quer saber se a morte será o termo definitivo da sua existência, ou se algo permanece para além da morte; se pode esperar uma vida posterior, ou não. É significativo que o pensamento filosófico tenha recebido, da morte de Sócrates, uma orientação decisiva que o marcou durante mais de dois milénios. Certamente não é por acaso que os filósofos, perante a realidade da morte, sempre voltam a pôr-se este problema, associado à questão do sentido da vida e da imortalidade.
27. A tais questões, não pode esquivar-se ninguém - nem o filósofo, nem o homem comum. E, da resposta que se lhes der, deriva uma orientação decisiva da investigação: a possibilidade, ou não, de alcançar uma verdade universal. Por si mesma qualquer verdade, mesmo parcial, se realmente é verdade, apresenta-se como universal e absoluta. Aquilo que é verdadeiro deve ser verdadeiro sempre e para todos. Contudo, para além desta universalidade, o homem procura um absoluto que seja capaz de dar resposta e sentido a toda a sua pesquisa: algo de definitivo, que sirva de fundamento a tudo o mais. Por outras palavras, procura uma explicação definitiva, um valor supremo, para além do qual não existam, nem possam existir, ulteriores perguntas ou apelos. As hipóteses podem seduzir, mas não saciam. Para todos, chega o momento em que, admitam-no ou não, há necessidade de ancorar a existência a uma verdade reconhecida como definitiva, que forneça uma certeza livre de qualquer dúvida.
Os filósofos procuraram, ao longo dos séculos, descobrir e exprimir tal verdade, criando um sistema ou uma escola de pensamento. Mas, para além dos sistemas filosóficos, existem outras expressões nas quais o homem procura formular a sua " filosofia ": trata-se de convicções ou experiências pessoais, tradições familiares e culturais, ou itinerários existenciais vividos sob a autoridade de um mestre. A cada uma destas manifestações, subjaz sempre vivo o desejo de alcançar a certeza da verdade e do seu valor absoluto.
2. Os diferentes rostos da verdade do homem
28. Há que reconhecer que a busca da verdade nem sempre se desenrola com a referida transparência e coerência de raciocínio. Muitas vezes, as limitações naturais da razão e a inconstância do coração ofuscam e desviam a pesquisa pessoal. Outros interesses de vária ordem podem sobrepor-se à verdade. Acontece também que o próprio homem a evite, quando começa a entrevê-la, porque teme as suas exigências. Apesar disto, mesmo quando a evita, é sempre a verdade que preside à sua existência. Com efeito, nunca poderia fundar a sua vida sobre a dúvida, a incerteza ou a mentira; tal existência estaria constantemente ameaçada pelo medo e a angústia. Assim, pode-se definir o homem como aquele que procura a verdade.
29. É impensável que uma busca, tão profundamente radicada na natureza humana, possa ser completamente inútil e vã. A própria capacidade de procurar a verdade e fazer perguntas implica já uma primeira resposta. O homem não começaria a procurar uma coisa que ignorasse totalmente ou considerasse absolutamente inatingível. Só a previsão de poder chegar a uma resposta é que consegue induzi-lo a dar o primeiro passo. De facto, assim sucede normalmente na pesquisa científica. Quando o cientista, depois de ter uma intuição, se lança à procura da explicação lógica e empírica dum certo fenómeno, fá-lo porque tem a esperança, desde o início, de encontrar uma resposta, e não se dá por vencido com os insucessos. Nem considera inútil a intuição inicial, só porque não alcançou o seu objectivo; dirá antes, e justamente, que não encontrou ainda a resposta adequada.
O mesmo deve valer também para a busca da verdade no âmbito das questões últimas. A sede de verdade está tão radicada no coração do homem que, se tivesse de prescindir dela, a sua existência ficaria comprometida. Basta observar a vida de todos os dias para constatar como dentro de cada um de nós se sente o tormento de algumas questões essenciais e, ao mesmo tempo, se guarda na alma, pelo menos, o esboço das respectivas respostas. São respostas de cuja verdade estamos convencidos, até porque notamos que não diferem substancialmente das respostas a que muitos outros chegaram. Por certo, nem toda a verdade adquirida possui o mesmo valor; todavia, o conjunto dos resultados alcançados confirma a capacidade que o ser humano, em princípio, tem de chegar à verdade.
30. Convém, agora, fazer uma rápida menção das diversas formas de verdade. As mais numerosas são as verdades que assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação da experiência: esta é a ordem própria da vida quotidiana e da pesquisa científica. Nível diverso ocupam as verdades de carácter filosófico, que o homem alcança através da capacidade especulativa do seu intelecto. Por último, existem as verdades religiosas, que de algum modo têm as suas raízes também na filosofia; estão contidas nas respostas que as diversas religiões oferecem, nas suas tradições, às questões últimas. (27)
Quanto às verdades filosóficas, é necessário especificar que não se limitam só às doutrinas, por vezes efémeras, dos filósofos profissionais. Como já disse, todo o homem é, de certa forma, um filósofo e possui as suas próprias concepções filosóficas, pelas quais orienta a sua vida. De diversos modos, consegue formar uma visão global e uma resposta sobre o sentido da própria existência: e, à luz disso, interpreta a própria vida pessoal e regula o seu comportamento. É aqui que deveria colocar-se a questão da relação entre as verdades filosófico-religiosas e a verdade revelada em Jesus Cristo. Antes de responder a tal questão, é preciso ter em conta outro dado da filosofia.
31. O homem não foi criado para viver sozinho. Nasce e cresce numa família, para depois se inserir, pelo seu trabalho, na sociedade. Assim a pessoa aparece integrada, desde o seu nascimento, em várias tradições; delas recebe não apenas a linguagem e a formação cultural, mas também muitas verdades nas quais acredita quase instintivamente. Entretanto, o crescimento e a maturação pessoal implicam que tais verdades possam ser postas em dúvida e avaliadas através da actividade crítica própria do pensamento. Isto não impede que, uma vez passada esta fase, aquelas mesmas verdades sejam " recuperadas " com base na experiência feita ou em virtude de sucessiva ponderação. Apesar disso, na vida duma pessoa, são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que aquelas adquiridas por verificação pessoal. Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente os inumeráveis resultados das ciências, sobre os quais se fundamenta a vida moderna? Quem poderia, por conta própria, controlar o fluxo de informações, recebidas diariamente de todas as partes do mundo e que, por princípio, são aceites como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrer novamente todos os caminhos de experiência e pensamento, pelos quais se foram acumulando os tesouros de sabedoria e religiosidade da humanidade? Portanto, o homem, ser que busca a verdade, é também aquele que vive de crenças.
32. Cada um, quando crê, confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas. Neste acto, pode-se individuar uma significativa tensão: por um lado, o conhecimento por crença apresenta-se como uma forma imperfeita de conhecimento, que precisa de se aperfeiçoar progressivamente por meio da evidência alcançada pela própria pessoa; por outro lado, a crença é muitas vezes mais rica, humanamente, do que a simples evidência, porque inclui a relação interpessoal, pondo em jogo não apenas as capacidades cognoscitivas do próprio sujeito, mas também a sua capacidade mais radical de confiar noutras pessoas, iniciando com elas um relacionamento mais estável e íntimo.
Importa sublinhar que as verdades procuradas nesta relação interpessoal não são primariamente de ordem empírica ou de ordem filosófica. O que se busca é sobretudo a verdade da própria pessoa: aquilo que ela é e o que manifesta do seu próprio íntimo. De facto, a perfeição do homem não se reduz apenas à aquisição do conhecimento abstracto da verdade, mas consiste também numa relação viva de doação e fidelidade ao outro. Nesta fidelidade que leva à doação, o homem encontra plena certeza e segurança. Ao mesmo tempo, porém, o conhecimento por crença, que se fundamenta na confiança interpessoal, tem a ver também com a verdade: de facto, acreditando, o homem confia na verdade que o outro lhe manifesta.
Quantos exemplos se poderiam aduzir para ilustrar este dado! O primeiro que me vem ao pensamento é o testemunho dos mártires. Com efeito, o mártir é a testemunha mais genuína da verdade da existência. Ele sabe que, no seu encontro com Jesus Cristo, alcançou a verdade a respeito da sua vida, e nada nem ninguém poderá jamais arrancar-lhe esta certeza. Nem o sofrimento, nem a morte violenta poderão fazê-lo retroceder da adesão à verdade que descobriu no encontro com Cristo. Por isso mesmo é que, até agora, o testemunho dos mártires atrai, gera consenso, é escutado e seguido. Esta é a razão pela qual se tem confiança na sua palavra: descobre-se neles a evidência dum amor que não precisa de longas demonstrações para ser convincente, porque fala daquilo que cada um, no mais fundo de si mesmo, já sente como verdadeiro e que há tanto tempo procurava. Em resumo, o mártir provoca em nós uma profunda confiança, porque diz aquilo que já sentimos e torna evidente aquilo que nós mesmos queríamos ter a força de dizer.
33. Deste modo, foi possível completar progressivamente os dados do problema. O homem, por sua natureza, procura a verdade. Esta busca não se destina apenas à conquista de verdades parciais, físicas ou científicas; não busca só o verdadeiro bem em cada um das suas decisões. Mas a sua pesquisa aponta para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se, por conseguinte, de algo que não pode desembocar senão no absoluto. (28) Graças às capacidades de que está dotado o seu pensamento, o homem pode encontrar e reconhecer uma tal verdade. Sendo esta vital e essencial para a sua existência, chega-se a ela não só por via racional, mas também através de um abandono fiducial a outras pessoas que possam garantir a certeza e autenticidade da verdade. A capacidade e a decisão de confiar o próprio ser e existência a outra pessoa constituem, sem dúvida, um dos actos antropologicamente mais significativos e expressivos.
É bom não esquecer que também a razão, na sua busca, tem necessidade de ser apoiada por um diálogo confiante e uma amizade sincera. O clima de suspeita e desconfiança, que por vezes envolve a pesquisa especulativa, ignora o ensinamento dos filósofos antigos, que punham a amizade como um dos contextos mais adequados para o recto filosofar.
Do que ficou dito conclui-se que o homem se encontra num caminho de busca, humanamente infindável: busca da verdade e busca duma pessoa em quem poder confiar. A fé cristã vem em sua ajuda, dando-lhe a possibilidade concreta de ver realizado o objectivo dessa busca. De facto, superando o nível da simples crença, ela introduz o homem naquela ordem da graça que lhe consente participar no mistério de Cristo, onde lhe é oferecido o conhecimento verdadeiro e coerente de Deus Uno e Trino. Deste modo, em Jesus Cristo, que é a Verdade, a fé reconhece o apelo último dirigido à humanidade, para que possa tornar realidade o que experimenta como desejo e nostalgia.
34. Esta verdade, que Deus nos revela em Jesus Cristo, não está em contraste com as verdades que se alcançam filosofando. Pelo contrário, as duas ordens de conhecimento conduzem à verdade na sua plenitude. A unidade da verdade já é um postulado fundamental da razão humana, expresso no princípio de não-contradição. A Revelação dá a certeza desta unidade, ao mostrar que Deus criador é também o Deus da história da salvação. Deus que fundamenta e garante o carácter inteligível e racional da ordem natural das coisas, sobre o qual os cientistas se apoiam confiadamente, (29) é o mesmo que Se revela como Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Esta unidade da verdade, natural e revelada, encontra a sua identificação viva e pessoal em Cristo, como recorda o apóstolo Paulo: " A verdade que existe em Jesus " (Ef 4, 21; cf. Col 1, 15-20). Ele é a Palavra eterna, na qual tudo foi criado, e ao mesmo tempo é a Palavra encarnada que, com toda a sua pessoa,30 revela o Pai (cf. Jo 1, 14.18). Aquilo que a razão humana procura " sem o conhecer " (cf. Act 17, 23), só pode ser encontrado por meio de Cristo: de facto, o que n'Ele se revela é a " verdade plena " (cf. Jo 1, 14-16) de todo o ser que, n'Ele e por Ele, foi criado e, por isso mesmo, n'Ele encontra a sua realização (cf. Col 1, 17).
35. Tendo estas considerações gerais como pano de fundo, é necessário agora examinar, de maneira mais directa, a relação entre a verdade revelada e a filosofia. Tal relação requer uma dupla consideração, visto que a verdade que nos vem da Revelação tem de ser, simultaneamente, compreendida pela luz da razão. Só nesta dupla acepção é que será possível especificar a justa relação da verdade revelada com o saber filosófico. Por isso, vamos considerar, em primeiro lugar, as relações entre a fé e a filosofia ao longo da história, donde será possível individuar alguns princípios, que constituem os pontos de referência aos quais recorrer para estabelecer a correcta relação entre as duas ordens de conhecimento.
CARTA ENCÍCLICA CENTESIMUS ANNUS DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS NO EPISCOPADO,
AO CLERO, ÀS FAMÍLIAS RELIGIOSAS,
AOS FIÉIS DA IGREJA CATÓLICA
E A TODOS OS HOMENS DE BOA VONTADE
NO CENTENÁRIO DA ENCÍCLICA "RERUM NOVARUM"
Veneráveis Irmãos,
caríssimos Filhos e Filhas:
Saúde e Bênção Apostólica!
Introdução
1. O centenário da promulgação da Encíclica do meu predecessor Leão XIII de veneranda memória, que inicia com as palavras Rerum novarum (1), assinala uma data de importância relevante na história presente da Igreja e também no meu pontificado. De facto, aquela teve o singular privilégio de ser comemorada por Documentos solenes dos Sumos Pontífices, desde o seu quadragésimo aniversário até ao nonagésimo. Podemos assim dizer que o seu trajecto histórico foi ritmado por outros escritos, que simultâneamente a reevocavam e actualizavam (2).
Ao propor-me fazer o mesmo no seu centenário, solicitado por numerosos Bispos, instituições eclesiais, centros de estudos, empresários e trabalhadores, tanto a título individual como na qualidade de membros de diversas associações, desejo antes de mais satisfazer o débito de gratidão que a Igreja inteira tem para com o grande Papa Leão XIII e o seu "imortal Documento" (3). Quero também mostrar que a seiva abundante, que sobe daquela raiz, não secou com o passar dos anos, pelo contrário tornou-se mais fecunda. Disso mesmo são testemunho as iniciativas de vário género que precederam, acompanham e seguirão esta celebração, iniciativas promovidas pelas Conferências episcopais, por Organismos internacionais, por Universidades e Institutos académicos, por Associações profissionais e por outras instituições e pessoas, em muitas partes do mundo.
2. A presente Encíclica participa nestas celebrações, para agradecer a Deus, do Qual "provém toda a boa dádiva e todo o dom perfeito" (Tg 1, 17), que quis servir-Se de um documento emanado há cem anos da Cátedra de Pedro, para operar na Igreja e no mundo imenso bem e difundir tanta luz. A comemoração, aqui feita, refere-se à Encíclica leonina, mas engloba depois também as Encíclicas e outros escritos dos meus predecessores, que contribuíram para a tornar presente e operante ao longo do tempo, constituindo aquela que seria chamada "doutrina social", "ensino social", ou ainda "Magistério social" da Igreja.
À validade de tal ensinamento se referem já duas Encíclicas que publiquei nos anos do meu pontificado: a Laborem exercens acerca do trabalho humano, e a Sollicitudo rei socialis sobre os actuais problemas do desenvolvimento dos homens e dos povos (4).
3. Desejo agora propor uma "releitura" da Encíclica leonina, convidando a "olhar para trás", ao próprio texto, para descobrir de novo a riqueza dos princípios fundamentais, nela formulados, sobre a solução da questão operária. Mas convido também a "olhar ao redor", às "coisas novas", que nos circundam e em que nos encontramos como que imersos, frequentemente muito diversas das "coisas novas" que caracterizaram o último decénio do século passado. Enfim, convido a "olhar ao futuro", quando já se entrevê o terceiro Milénio da era cristã, carregado de incógnitas, mas também de promessas. Incógnitas e promessas que apelam à nossa imaginação e criatividade, estimulando também a nossa responsabilidade, como discípulos do "único Mestre", Cristo (cf. Mt 23, 8), de indicar o "caminho", proclamar a "verdade" e comunicar "a vida" que é Ele próprio (cf. Jo 14, 6).
Procedendo deste modo, será confirmado não só o valor permanente do seu ensinamento, mas manifestar-se-á também overdadeiro sentido da Tradição da Igreja, que, sempre viva e vivificante, constrói sobre o fundamento posto pelos nossos pais na fé e, designadamente, sobre o que "os Apóstolos transmitiram à Igreja" (5) em nome de Jesus Cristo, o fundamento "que ninguém pode substituir" (1 Cor 3, 11).
Foi movido pela consciência da sua missão de sucessor de Pedro que Leão XIII se propôs falar, e a mesma consciência anima hoje o seu sucessor. Como ele, e os Pontífices anteriores e posteriores, me inspiro na imagem evangélica do "escriba instruído nas coisas do Reino dos Céus", do qual o Senhor diz que "é semelhante a um pai de família, que do seu tesouro tira coisas novas e antigas" (Mt 13, 52). O tesouro é a grande corrente da Tradição da Igreja, que contém as "coisas antigas", desde sempre recebidas e transmitidas, e que permite ler as "coisas novas", no meio das quais transcorre a vida da Igreja e do mundo.
Entre essas coisas que, incorporando-se na Tradição, se tornam antigas e oferecem ocasião e material para o seu enriquecimento e para uma maior valorização da vida de fé, conta-se também a actividade fecunda de milhões e milhões de homens que, estimulados pelo ensinamento do Magistério social, procuraram inspirar-se nele para o próprio compromisso no mundo. Actuando individualmente ou inseridos em grupos, associações e organizações, constituíram como que um grande movimento empenhado na defesa da pessoa humana e na tutela da sua dignidade, o que tem contribuído para construir, nas diversas vicissitudes da história, uma sociedade mais justa, ou pelo menos a colocar barreiras e limites à injustiça.
A presente Encíclica visa pôr em evidência a fecundidade dos princípios expressos por Leão XIII, que pertencem ao património doutrinal da Igreja, e, como tais, empenham a autoridade do seu Magistério. Mas a solicitude pastoral levou-me também a propor a análise de alguns acontecimentos da história recente. É supérfluo dizer que a atenta consideração do evoluir dos acontecimentos, para discernir as novas exigências da evangelização, faz parte da tarefa dos pastores. Tal exame, no entanto, não pretende dar juízos definitivos, não fazendo parte, por si, do âmbito específico do Magistério.
I - Traços característicos da "Rerum Novarum"
4. No final do século passado, a Igreja encontrou- -se diante de um processo histórico, em movimento já há algum tempo, mas que então atingia um ponto nevrálgico. Factor determinante desse processo foi um conjunto de mudanças radicais verificadas no campo político, económico e social, no âmbito científico e técnico, além da influência multiforme das ideologias predominantes. Resultado destas alterações foi, no campo político, uma nova concepção da sociedade e do Estado e, consequentemente, da autoridade. Uma sociedade tradicional se dissolvia, e começava-se a formar uma outra, cheia da esperança de novas liberdades, mas também dos perigos de novas formas de injustiça e escravidão.
No campo económico, para onde confluíam as descobertas e as aplicações das ciências, chegara-se progressivamente a novas estruturas na produção dos bens de consumo. Surgira uma nova forma de propriedade, o capital, e uma nova forma de trabalho, o assalariado, caracterizado por pesados ritmos de produção, sem horário nem qualquer atenção ao sexo, idade ou situação familiar, mas determinado apenas pela eficiência, na perspectiva do incremento do lucro.
O trabalho tornava-se assim uma mercadoria, que podia ser livremente comprada e vendida no mercado, e cujo preço era determinado pela lei da procura e da oferta, sem olhar ao mínimo necessário para o sustento vital da pessoa e sua família. E a maior parte das vezes o trabalhador nem sequer estava seguro de conseguir vender desse modo a "própria mercadoria", vendo-se continuamente ameaçado pelo desemprego, o que significava, na ausência de qualquer forma de previdência social, o espectro da morte pela fome.
Consequência desta transformação era "a divisão da sociedade em duas classes, separadas por um abismo profundo" (6): esta situação estava entrelaçada com uma acentuada alteração de ordem política. De facto, a teoria política então predominante procurava promover, com leis apropriadas ou, pelo contrário, com voluntária abstenção de qualquer intervenção, a total liberdade económica. Ao mesmo tempo, começava a surgir, de forma organizada e tantas vezes violenta, uma outra concepção da propriedade e da vida económica, que implicava uma nova organização política e social.
No momento culminante desta contraposição, quando aparecia já em plena luz a gravíssima injustiça da realidade social, presente em muitas situações, e o perigo de uma revolução alimentada pelas concepções então denominadas "socialistas", Leão XIII intervém com um Documento, que afrontava de maneira orgânica a "questão operária". A Encíclica fora precedida por algumas, mais dedicadas a ensinamentos de carácter político, e outras a seguirão mais tarde (7). Neste contexto, deve-se lembrar particularmente a Encíclica Libertas praestantissimum, onde Leão XIII fazia ressaltar o vínculo constitutivo da liberdade humana com a verdade, de tal modo que uma liberdade que por si própria recusasse vincular-se à verdade, degeneraria em arbítrio e acabaria por submeter-se às paixões mais vis, e por se autodestruir. Com efeito, de que derivam todos os males contra os quais a Rerum novarum quis reagir, senão de uma liberdade que, no campo da actividade económica e social, se separa inteiramente da verdade do homem?
O Pontífice inspirava-se, além disso, no ensino dos predecessores, bem como nos muitos Documentos episcopais, nos estudos científicos de leigos, na acção de movimentos e associações católicas e em tantas iniciativas realizadas no campo social, que marcaram a vida da Igreja, na segunda metade do século XIX.
5. As "coisas novas" a que o Papa se referia, estavam longe de ser positivas. O primeiro parágrafo da Encíclica descreve as "coisas novas", que lhe deram o nome, com traços fortes: "Dado que uma ânsia ardente de coisas novas já há tempos agitava os Estados, seguir-se-lhe-ia como consequência que os desejos de mudança acabariam por se transferir do campo político para o sector conexo da economia. De facto, os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos abertos ao emprego, as diversas relações entre patrões e operários; o acumular da riqueza nas mãos de poucos, ao lado da miséria de muitos; a maior consciência que os trabalhadores adquiriram de si mesmos e, por conseguinte, uma maior união entre eles, e além disso a decadência dos costumes, todas estas coisas fizeram deflagrar um conflito" (8).
O Papa, e com ele a Igreja, bem como a comunidade civil, encontram-se frente a uma sociedade dividida por um conflito, tanto mais duro e desumano por não conhecer regra nem directriz. Foi precisamente sobre o conflito entre o capital e o trabalho, ou - como o chamava a Encíclica - a questão operária, nos termos gravíssimos que então se revelava, que o Papa não hesitou em dizer a sua palavra.
Aparece aqui a primeira reflexão, que a Encíclica sugere para o tempo presente. Em face de um conflito que opunha, quase como "lobos", o homem ao próprio homem, exactamente no plano da sobrevivência vital de uns e da opulência dos outros, o Papa não duvidou ser seu dever intervir, em virtude do seu "ministério apostólico" (9), ou seja, da missão recebida do próprio Jesus Cristo de "apascentar os cordeiros e as ovelhas" (cf. Jo 21, 15-17) e de "ligar e desligar na terra" para o Reino dos Céus (cf. Mt 16, 19). A sua intenção era com certeza restabelecer a paz, e o leitor contemporâneo não pode deixar de notar a severa condenação da luta de classes, que ele proferia sem meios termos (10). Porém, estava bem consciente do facto de que a paz se edifica sobre o fundamento da justiça: o conteúdo essencial da Encíclica foi precisamente a proclamação das condições fundamentais da justiça na conjuntura económica e social de então (11).
Deste modo Leão XIII, no rasto dos predecessores, estabelecia um paradigma permanente para a Igreja. Esta, com efeito, tem a sua palavra a dizer perante determinadas situações humanas, individuais e comunitárias, nacionais e internacionais, para as quais formula uma verdadeira doutrina, um corpus, que lhe permite analisar as realidades sociais, pronunciar-se sobre elas e indicar directrizes para a justa solução dos problemas que daí derivam.
No tempo de Leão XIII, semelhante concepção do direito-dever da Igreja estava muito longe de ser comummente aceite. Prevalecia, de facto, uma dupla tendência: uma orientada para este mundo e esta vida, à qual a fé devia permanecer estranha; e outra dedicada a uma salvação puramente ultraterrena, que todavia não iluminava nem orientava a presença sobre a terra. A própria atitude do Papa de publicar a Rerum novarum conferiu à Igreja quase um "estatuto de cidadania" no meio das variáveis realidades da vida pública, e isto confirmar-se-ia ainda mais em seguida. Efectivamente, para a Igreja, ensinar e difundir a doutrina social pertence à sua missão evangelizadora e faz parte essencial da mensagem cristã, porque essa doutrina propõe as suas consequências directas na vida da sociedade e enquadra o trabalho diário e as lutas pela justiça no testemunho de Cristo Salvador. Ela constitui, além disso, uma fonte de unidade e de paz, em face dos conflitos que inevitavelmente se levantam no sector económico-social. Torna-se possível desse modo viver as novas situações sem envilecer a dignidade transcendente da pessoa humana, nem em si próprio nem nos adversários, e encaminhá-las para uma recta solução.
Ora, a validade de tal orientação oferece-me, à distância de cem anos, a oportunidade de dar um contributo para a elaboração da "doutrina social cristã". A "nova evangelização", da qual o mundo moderno tem urgente necessidade, e sobre a qual várias vezes insisti, deve incluir entre as suas componentes essenciais o anúncio da doutrina social da Igreja, tão idónea hoje como no tempo de Leão XIII para indicar o recto caminho de resposta aos grandes desafios da idade contemporânea, enquanto cresce o descrédito das ideologias. Como então, é preciso repetir que não existe verdadeira solução para a "questão social" fora do Evangelho e que, por outro lado, as "coisas novas" podem encontrar neste o seu espaço de verdade e a devida avaliação moral.
6. Propondo-se projectar luz sobre o conflito que se estava a adensar entre capital e trabalho, Leão XIII afirmava os direitos fundamentais dos trabalhadores. Por isso, a chave de leitura do texto leonino é a dignidade do trabalhador em quanto tal e, por isso mesmo, a dignidade do trabalho, que aparece definido como "a actividade humana destinada a prover às necessidades da vida, e especialmente à sua conservação" (12). O Pontífice qualifica o trabalho como "pessoal", já que "a força activa é inerente à pessoa, totalmente pertencente a quem a exercita, e foi-lhe dada para seu proveito" (13). O trabalho pertence assim à vocação de cada pessoa; mais, o homem exprime-se e realiza-se na sua actividade laborativa. Simultaneamente o trabalho tem uma dimensão social, pela sua íntima relação quer com a família, quer com o bem comum, "porque pode-se afirmar de verdade que o trabalho dos operários é o que produz as riquezas dos Estados" (14). Isto mesmo retomei e desenvolvi na Encíclica Laborem exercens (15).
Um outro princípio relevante, é, sem dúvida, o do direito à "propriedade privada" (16). O próprio espaço, que lhe dedica a Encíclica, revela a importância que lhe atribui. O Papa está bem consciente do facto de que a propriedade privada não é um valor absoluto, nem deixa de proclamar os princípios complementares, como o do destino universal dos bens da terra (17).
Por outro lado, é certo também que o tipo de propriedade privada, que ele principalmente considera, é o da posse da terra (18). Todavia isso não impede que as razões aduzidas para tutelar a propriedade privada, ou seja, para afirmar o direito a possuir as coisas necessárias para o desenvolvimento pessoal e da própria família - nas diversas formas concretas que este direito possa assumir - conservem hoje o seu valor. Isto deve ser novamente afirmado quer perante as mudanças, de que hoje somos testemunhas, verificadas nos sistemas onde imperava a propriedade colectiva dos meios de produção, quer defronte aos crescentes fenómenos de pobreza ou, mais exactamente, às privações da propriedade privada, que se apresentam aos nossos olhos em muitas partes do mundo, inclusive naquelas onde predominam os sistemas cujo fulcro é precisamente a afirmação do direito de propriedade privada. Na sequência dessas alterações e da persistência da pobreza, torna-se necessária uma análise mais profunda do problema, que será desenvolvida mais adiante.
7. Em estreita relação com o tema do direito de propriedade a Encíclica de Leão XIII afirma de igual modo outros direitos, como próprios e inalienáveis da pessoa humana. Entre eles, é proeminente, pelo espaço que lhe dedica e a importância que lhe atribui, o "direito natural do homem" a formar associações privadas; o que, significa primariamente o direito de criar associações profissionais de empresários e operários, ou apenas de operários (19). Daqui a razão pela qual a Igreja defende e aprova a criação daquilo que agora designamos por sindicatos, não certamente por preconceitos ideológicos nem por cedência a uma mentalidade de classe, mas porque o associar-se é um "direito natural" do ser humano e, portanto, anterior à sua integração na sociedade política. De facto, "o Estado não pode proibir a sua formação", porque ele "deve tutelar os direitos naturais, não destruí-los. Impedindo tais associações, ele contradiz-se a si mesmo" (20).
Em conjunto com este direito, que o Papa - é justo sublinhá-lo - reconhece explicitamente aos operários, ou, segundo a sua linguagem, aos "proletários", são afirmados com igual clareza os direitos à "limitação das horas de trabalho", ao legítimo repouso, e a um tratamento diverso aos menores e às mulheres (21) no que se refere ao tipo e duração do trabalho.
Se se tem presente o que a história diz acerca dos processos consentidos, ou pelo menos não excluidos legalmente, em ordem à contratação, sem qualquer garantia quanto às horas de trabalho, nem quanto às condições higiénicas do ambiente, e ainda sem atender à idade e ao sexo dos candidatos ao emprego, é bem compreensível a severa afirmação do Papa. "Não é justo nem humano - escreve ele - exigir do homem um trabalho tal que, devido à exagerada fadiga, lhe faça brutalizar a mente e debilitar o corpo". E pormenorizando no que se refere ao contrato, que devia fazer entrar em vigor tais "relações de trabalho", afirma: "em toda a convenção estipulada entre patrões e operários, exista sempre a condição expressa ou subentendida" que preveja convenientemente o repouso proporcional "à soma das energias despendidas no trabalho"; depois conclui: "um pacto contrário seria imoral" (22).
8. Imediatamente a seguir o Papa enuncia um outro direito do operário como pessoa. Trata-se do direito ao "justo salário", que não pode ser deixado "ao livre acordo das partes: de modo que o dador de trabalho, uma vez paga a mercadoria, fez a sua parte, sem de nada mais ser devedor" (23). O Estado, não tem poder - dizia-se naquele tempo - para intervir na determinação destes contratos, mas apenas para garantir o cumprimento de quanto fora explicitamente estipulado. Semelhante concepção das relações entre patrões e operários, puramente pragmática e inspirada num rígido individualismo, é severamente reprovada na Encíclica, enquanto contrária à dupla natureza do trabalho, como facto pessoal e necessário. Com efeito, se o trabalho, na sua dimensão pessoal, pertence à disponibilidade de que cada um goza das próprias faculdades e energias, todavia enquanto necessário, é regulado pela obrigação grave que pende sobre cada um de "conservar a vida"; "daqui nasce por necessária consequência - conclui o Papa - o direito de procurar os meios de sustento, que, para a gente pobre, se reduzem ao salário do próprio trabalho" (24).
O salário deve ser suficiente para manter o operário e a sua família. Se o trabalhador, "pressionado pela necessidade, ou pelo medo do pior, aceita contratos mais duros porque impostos pelo proprietário ou pelo empresário, e que, por vontade ou sem ela, devem ser aceites, é claro que sofre uma violência, contra a qual a justiça protesta" (25).
Queira Deus que estas palavras, escritas enquanto crescia o que foi chamado "capitalismo selvagem", não tenham hoje de ser repetidas com a mesma severidade. Infelizmente ainda hoje é frequente encontrar casos de contratos entre patrões e operários, nos quais se ignora a mais elementar justiça, em matéria de trabalho de menores ou feminino, dos horários de trabalho, do estado higiénico dos locais de trabalho, e da legítima retribuição. E isto não obstante as Declarações e Convenções internacionais sobre o assunto (26), e as próprias leis internas dos Estados. O Papa atribuía à "autoridade puíblica", o "estrito dever" de cuidar adequadamente do bem-estar dos trabalhadores, porque se o não fizesse, ofenderia a justiça; não hesitava mesmo em falar de "justiça distributiva" (27).
9. A tais direitos, Leão XIII junta outro, sempre a propósito da condição operária, que considero necessário recordar expressamente, devido à importância que tem: é o direito de cumprir livremente os deveres religiosos. O Papa quis proclamá-lo no mesmo contexto dos outros direitos e deveres dos operários, e isso não obstante o clima geral que, também no seu tempo, considerava certas questões como pertencentes exclusivamente ao âmbito individual. Ele afirma a necessidade do repouso festivo, a fim de que o homem seja levado ao pensamento dos bens celestes e ao culto devido à majestade divina (28). Deste direito, radicado num mandamento, ninguém pode privar o homem: "a ninguém é lícito violar impunemente a dignidade do homem, e o Estado deve assegurar ao operário o exercício dessa liberdade" (29).
Não se equivocaria quem visse, nesta clara afirmação, o gérmen do princípio do direito à liberdade religiosa, que foi depois objecto de muitas Declarações solenes e Convenções internacionais (30), bem como da nossa Declaração conciliar e do meu constante ensinamento (31). A propósito, devemos interrogar-nos se os dispositivos legais vigentes e a práxis das sociedades industrializadas asseguram hoje efectivamente o exercício do direito elementar ao repouso festivo.
10. Outra nota importante, rica de ensinamentos para os nossos dias, é a concepção das relações entre o Estado e os cidadãos. A Rerum novarum critica os dois sistemas sociais e económicos: o socialismo e o liberalismo. Ao primeiro, é dedicada a parte inicial, na qual se reafirma o direito à propriedade privada; ao segundo, não se dedica nenhuma secção especial, mas - facto merecedor de atenção - inserem-se as críticas, quando se aborda o tema dos deveres do Estado (32). Este não pode limitar-se a "providenciar a favor de uma parte dos cidadãos", isto é, a rica e próspera, nem pode "transcurar a outra", que representa sem dúvida a larga maioria do corpo social; caso contrário, ofende-se a justiça, que quer que se dê a cada um o que lhe pertence. "Todavia, na tutela destes direitos pessoais, tenha-se uma atenção especial com os débeis e os pobres. A classe dos ricos, forte por si mesma, tem menos necessidade de defesa pública; a classe proletária, carente de um apoio próprio, tem uma necessidade especial de o procurar na protecção do Estado. Por isso aos operários, que se contam no número dos débeis e necessitados, o Estado deve preferentemente dirigir os seus cuidados e as suas providências" (33).
Estes passos têm hoje valor sobretudo em face das novas formas de pobreza existentes no mundo, tanto mais que são afirmações que não dependem de uma determinada concepção do Estado nem de uma particular teoria política. O Papa reafirma um princípio elementar de qualquer sã organização política, ou seja, os indivíduos quanto mais indefesos aparecem numa sociedade, tanto mais necessitam da atenção e do cuidado dos outros e, particularmente da intervenção da autoridade pública.
Deste modo o princípio, que hoje designamos de solidariedade, e cuja validade, quer na ordem interna de cada Nação, quer na ordem internacional, sublinhei na Sollicitudo rei socialis (34), apresenta-se como um dos princípios basilares da concepção cristã da organização social e política. Várias vezes Leão XIII o enuncia, com o nome "amizade", que encontrámos já na filosofia grega; desde Pio XI é designado pela expressão mais significativa "caridade social", enquanto Paulo VI, ampliando o conceito na linha das múltiplas dimensões actuais da questão social, falava de "civilização do amor" (35).
11. A releitura da Encíclica à luz da realidade contemporânea, permite apreciar a constante preocupação e dedicação da Igreja a favor daquelas categorias de pessoas, que são objecto de predilecção por parte do Senhor Jesus. O próprio conteúdo do texto é um testemunho excelente da continuidade, na Igreja, daquela que agora se designa "opção preferencial pelos pobres", opção que defini como "uma forma especial de primado na prática da caridade cristã" (36). A Encíclica sobre a "questão operária" é, pois, um documento sobre os pobres, e sobre a terrível condição à qual o novo e não raramente violento processo de industrialização reduzira enormes multidões. Também hoje, numa grande parte do mundo, semelhantes processos de transformação económica, social e política produzem os mesmos males.
Se Leão XIII recorre ao Estado para dar o justo remédio à condição dos pobres, é porque reconhece oportunamente que o Estado tem o dever de promover o bem comum, e de procurar que os diversos âmbitos da vida social, sem excluir o económico, contribuam para realizar aquele, embora no respeito da legítima autonomia de cada um deles. Isto, contudo, não deve fazer pensar que, para o Papa Leão XIII, toda a solução da questão social se deverá esperar do Estado. Pelo contrário, ele insiste várias vezes sobre os necessários limites à intervenção do Estado e sobre o seu carácter instrumental, já que o indivíduo, a família e a sociedade lhe são anteriores, e ele existe para tutelar os direitos de um e de outras, e não para os sufocar (37).
A ninguém escapa a actualidade destas reflexões. Sobre o importante tema dos limites inerentes à natureza do Estado, convirá voltar mais adiante. De momento, os pontos sublinhados, não certamente os únicos da Encíclica, põem-se na continuidade do Magistério social da Igreja e à luz também de uma sã concepção da propriedade privada, do trabalho, do processo económico, da realidade do Estado e, acima de tudo, do próprio homem. Outros temas serão depois mencionados, ao examinar alguns aspectos da realidade contemporânea; mas será conveniente desde já ter presente que aquilo que serve de trama e, em certo sentido, de linha condutora à Encíclica, e a toda a doutrina social da Igreja, é a correcta concepção da pessoa humana e do seu valor único, enquanto "o homem (é) a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma". Nele gravou a Sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26), conferindo-lhe uma dignidade incomparável, sobre a qual a Encíclica retorna várias vezes. Com efeito, além dos direitos que cada homem adquire com o próprio trabalho, existem direitos que não são correlativos a qualquer obra por ele realizada, mas derivam da sua dignidade essencial de pessoa.
II - Rumo às "Coisas Novas" de hoje
12. A comemoração da Rerum novarum não seria adequada, se não olhasse também à situação de hoje. Já no seu conteúdo, o Documento se presta a uma tal consideração, porque o quadro histórico e as previsões, aí delineadas, se revelam, à luz de quanto aconteceu no período sucessivo, surpreendentemente exactas.
Isto foi confirmado de modo particular pelos acontecimentos dos últimos meses do ano de 1989 e dos primeiros de 1990. Estes e as consequentes transformações radicais só se explicam com base nas situações anteriores, que em certa medida tinham materializado e institucionalizado as previsões de Leão XIII e os sinais, cada vez mais inquietantes, observados pelos seus sucessores. Aquele Pontífice, com efeito, previa as consequências negativas, sobre todos os aspectos - político, social e económico - de uma organização da sociedade, tal como a propunha o "socialismo", que então estava ainda no estado de filosofia social e de movimento mais ou menos estruturado. Alguém poderia admirar-se do facto de que o Papa começasse pelo "socialismo", a crítica das soluções que se davam à "questão operária", quando ele ainda não se apresentava - como depois aconteceu - sob a forma de um Estado forte e poderoso, com todos os recursos à disposição. Todavia Leão XIII mediu bem o perigo que representava, para as massas, a apresentação atraente de uma solução tão simples quão radical da "questão operária". Isto torna-se tanto mais verdadeiro se se considera em função da pavorosa situação de injustiça em que jaziam as massas proletárias, nas Nações há pouco industrializadas.
Ocorre aqui sublinhar duas coisas: por um lado, a extraordinária lucidez na apreensão, em toda a sua crueza, da verdadeira condição dos proletários, homens, mulheres e crianças; por outro lado, a não menor clareza com que intuiu o mal de uma solução que, sob a aparência de uma inversão das posições de pobres e ricos, redundava de facto em detrimento daqueles mesmos que se propunha ajudar. O remédio revelar-se-ia pior que a doença. Individuando a natureza do socialismo de então, como sendo a supressão da propriedade privada, Leão XIII atingia o fundo da questão.
As suas palavras merecem ser relidas com atenção: "Para remediar este mal (a injusta distribuição das riquezas e a miséria dos proletários), os socialistas excitam, nos pobres, o ódio contra os ricos, e defendem que a propriedade privada deve ser abolida, e os bens de cada um tornarem-se comuns a todos (...), mas esta teoria, além de não resolver a questão, acaba por prejudicar os próprios operários, e é até injusta por muitos motivos, já que vai contra os direitos dos legítimos proprietários, falseia as funções do Estado, e subverte toda a ordem social" (39). Não se poderia indicar melhor os males derivados da instauração deste tipo de socialismo como sistema de Estado: aquele tomaria o nome de "socialismo real".
13. Aprofundando agora a reflexão delineada, e fazendo ainda referência ao que foi dito nas Encíclicas Laborem exercens e Sollicitudo rei socialis, é preciso acrescentar que o erro fundamental do socialismo é de carácter antropológico. De facto, ele considera cada homem simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente subordinado ao funcionamento do mecanismo económico-social, enquanto, por outro lado, defende que esse mesmo bem se pode realizar prescindindo da livre opção, da sua única e exclusiva decisão responsável em face do bem ou do mal. O homem é reduzido a uma série de relações sociais, e desaparece o conceito de pessoa como sujeito autónomo de decisão moral, que constrói, através dessa decisão, o ordenamento social. Desta errada concepção da pessoa, deriva a distorção do direito, que define o âmbito do exercício da liberdade, bem como a oposição à propriedade privada. O homem, de facto, privado de algo que possa "dizer seu" e da possibilidade de ganhar com que viver por sua iniciativa, acaba por depender da máquina social e daqueles que a controlam, o que lhe torna muito mais difícil reconhecer a sua dignidade de pessoa e impede o caminho para a constituição de uma autêntica comunidade humana.
Pelo contrário, da concepção cristã da pessoa segue-se necessariamente uma justa visão da sociedade. Segundo a Rerum novarum e toda a doutrina social da Igreja, a sociabilidade do homem não se esgota no Estado, mas realiza-se em diversos aglomerados intermédios, desde a família até aos grupos económicos, sociais, políticos e culturais, os quais, provenientes da própria natureza humana, estão dotados - subordinando-se sempre ao bem comum - da sua própria autonomia. É o que designei de "subjectividade" da sociedade, que foi anulada pelo "socialismo real" (40).
Se se questiona ulteriormente onde nasce aquela errada concepção da natureza da pessoa e da subjectividade da sociedade, é necessário responder que a sua causa primeira é o ateísmo. É na resposta ao apelo de Deus, contido no ser das coisas, que o homem toma consciência da sua dignidade transcendente. Cada homem deve dar esta resposta, na qual se encontra o clímax da sua humanidade, e nenhum mecanismo social ou sujeito colectivo o pode substituir. A negação de Deus priva a pessoa do seu fundamento e consequentemente induz a reorganizar a ordem social, prescindido da dignidade e responsabilidade da pessoa.
O referido ateísmo está, aliás, estritamente conexo com o racionalismo iluminístico, que concebe a realidade humana e social do homem, de maneira mecanicista. Nega-se deste modo a intuição última sobre a verdadeira grandeza do homem, a sua transcendência relativamente ao mundo das coisas, a contradição que percebe no seu coração entre o desejo de uma plenitude de bem e a própria incapacidade de o conseguir e, sobretudo, a necessidade da salvação que daí deriva.
14. Da mesma raiz ateísta, deriva ainda a escolha dos meios de acção, própria do socialismo, que é condenada na Rerum novarum. Trata-se da luta de classes. O Papa - entenda-se! - não pretende condenar toda e qualquer forma de conflitualidade social. A Igreja sabe bem que, ao longo da história, os conflitos de interesses entre diversos grupos sociais surgem inevitavelmente, e que, perante eles, o cristão deve muitas vezes tomar posição decidida e coerentemente. A Encíclica Laborem exercens, aliás, reconheceu claramente o papel positivo do conflito, quando ele se configura como "luta pela justiça social"; e na Quadragesimo anno escrevia-se: "com efeito, a luta de classes, quando se abstém dos actos de violência e do ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco numa honesta discussão, fundada na busca da justiça" (42).
O que se condena na luta de classes é principalmente a ideia de um conflito que não é limitado por considerações de carácter ético ou jurídico, que se recusa a respeitar a dignidade da pessoa no outro (e, por consequência, em si próprio), que exclui por isso um entendimento razoável, e visa não já a formulação do bem geral da sociedade inteira, mas sim o interesse de uma parte que se substitui ao bem comum e quer destruir o que se lhe opõe. Trata-se, numa palavra, da representação - no terreno do confronto interno entre os grupos sociais - da doutrina da "guerra total", que o militarismo e o imperialismo daquela época impunham no âmbito das relações internacionais. Tal doutrina substituía a procura do justo equilíbrio entre os interesses das diversas Nações, pela prevalência absoluta da posição da própria parte, mediante a destruição da resistência da parte contrária, destruição realizada com todos os meios, sem excluir o uso da mentira, o terror contra os civis, as armas de extermínio, que naqueles anos começavam a ser projetadas. Luta de classes em sentido marxista e militarismo têm, portanto, a mesma raiz: o ateísmo e o desprezo da pessoa humana, que fazem prevalecer o princípio da força sobre o da razão e do direito.
15. A Rerum novarum opõe-se à colectivização pelo Estado dos meios de produção, que reduziria cada cidadão a uma "peça" na engrenagem da máquina do Estado. Igualmente critica uma concepção do Estado que deixe totalmente a esfera da economia fora do seu campo de interesse e de acção. Existe com certeza uma legítima esfera de autonomia do agir económico, onde o Estado não deve entrar. Compete a este, porém, a tarefa de determinar o enquadramento jurídico dentro do qual se desenrolem os relacionamentos económicos, e de salvaguardar deste modo as condições primárias de uma livre economia, que pressupõe uma certa igualdade entre as partes, de modo que uma delas não seja de tal maneira mais poderosa que a outra que praticamente a possa reduzir à escravidão (43).
A este propósito, a Rerum novarum aponta o caminho de justas reformas, que restituam ao trabalho a sua dignidade de livre actividade do homem. Aquelas implicam uma tomada de posição responsável por parte da sociedade e do Estado, tendente sobretudo a defender o trabalhador contra o pesadelo do desemprego. Isto verificou-se historicamente de dois modos convergentes: ou com políticas económicas, visando assegurar o crescimento equilibrado e a condição de pleno emprego; ou com os seguros de desemprego e com políticas de requalificação profissional capazes de facilitar a passagem dos trabalhadores dos sectores em crise para outros em expansão.
Além disso, a sociedade e o Estado devem assegurar níveis salariais adequados ao sustento do trabalhador e da sua família, inclusive com uma certa margem de poupança. Isto exige esforços para dar aos trabalhadores conhecimentos e comportamentos melhores, capazes de tornar o seu trabalho mais qualificado e produtivo; mas requer também uma vigilância assídua e adequadas medidas legislativas para truncar fenómenos vergonhosos de desfrutamento, com prejuízo sobretudo dos trabalhadores mais débeis, imigrantes ou marginalizados. Decisiva, neste sector, é a função dos sindicatos, que ajustam os mínimos salariais e as condições de trabalho.
Por último, é necessário garantir o respeito de horários "humanos" de trabalho e de repouso, bem como o direito de exprimir a própria personalidade no lugar de trabalho, sem serem violados seja de que modo for na própria consciência ou dignidade. Faz-se apelo de novo aqui ao papel dos sindicatos não só como instrumentos de contratação, mas também como "lugares" de expressão da personalidade dos trabalhadores: aqueles servem para o desenvolvimento de uma autêntica cultura do trabalho e ajudam os trabalhadores a participarem de modo plenamente humano na vida da empresa (44).
Para a realização destes objectivos, o Estado deve concorrer tanto directa como indirectamente. Indirectamente e segundo o princípio de subsidiariedade, criando as condições favoráveis ao livre exercício da actividade económica, que leve a uma oferta abundante de postos de trabalho e de fontes de riqueza. Directamente e segundo o princípio de solidariedade, pondo, em defesa do mais débil, algumas limitações à autonomia das partes, que decidem as condições de trabalho, e assegurando em todo o caso um mínimo de condições de vida ao desempregado (45).
A Encíclica e o Magistério social, a ela conexo, tiveram uma múltipla influência naqueles anos entre os séculos XIX e XX. Essa influência é visível em numerosas reformas introduzidas nos sectores da previdência social, das pensões, dos seguros contra a doença, da prevenção de acidentes, no quadro de um maior respeito dos direitos dos trabalhadores (46).
16. Tais reformas foram, em parte, realizadas pelos Estados, mas, na luta para as obter, desempenhou um importante papel a acção do Movimento operário. Nascido como reacção da consciência moral contra situações de injustiça e de dano, ele desenvolveu um vasto campo de actividade sindical, reformista, distante das utopias da ideologia e mais próxima às carências quotidianas dos trabalhadores e, neste âmbito, os seus esforços juntaram-se muitas vezes aos dos cristãos para obter o melhoramento humano das condições de vida dos trabalhadores. Logo a seguir, tal Movimento foi, em certa medida, dominado por aquela mesma ideologia marxista, contra a qual se dirigia a Rerum novarum.
Essas mesmas reformas foram também o resultado de um processo livre de auto-organização da sociedade, com a criação de instrumentos eficazes de solidariedade, capazes de sustentar um crescimento económico mais respeitador dos valores da pessoa. Recorde-se aqui a multiforme actividade, com um notável contributo dos cristãos, na fundação de cooperativas de produção, de consumo e de crédito, na promoção da instrução popular e formação profissional, na experimentação de várias formas de participação na vida da empresa e, em geral, da sociedade.
Se, portanto, olhando ao passado, há motivo para agradecer a Deus porque a grande Encíclica não ficou privada de ressonância nos corações e impeliu a uma activa generosidade, todavia é preciso reconhecer o facto de que o anúncio profético, nela contido, não foi cabalmente acolhido pelos homens daquele tempo, e precisamente dessa atitude vieram desgraças muito graves.
17. Lendo a Encíclica, em conexão com todo o rico Magistério leonino (47), nota-se como ela indica fundamentalmente as consequências, no terreno económico-social, de um erro de muito mais vastas dimensões. O erro, como se disse, consiste numa concepção da liberdade humana que a desvincula da obediência à verdade e, por conseguinte, também do dever de respeitar os direitos dos outros. O conteúdo da liberdade reduz-se então ao amor de si próprio, até chegar ao desprezo de Deus e do próximo, amor que conduz à afirmação ilimitada do interesse próprio, sem se deixar conter por qualquer obrigação de justiça (48).
Este erro atingiu as suas consequências extremas no trágico ciclo das guerras que revolveram a Europa e o mundo entre 1914 e 1945. Foram guerras ditadas pelo militarismo e pelo nacionalismo exacerbado, e pelas formas de totalitarismo a esses ligadas, e guerras derivadas da luta de classes, guerras civis e ideológicas. Sem a terrível carga de ódio e rancor, acumulada por causa de tanta injustiça quer a nível internacional quer a nível da injustiça social interna de cada Estado, não seriam possíveis guerras de tamanha ferocidade em que foram investidas as energias de grandes Nações, em que não se hesitou em violar os direitos humanos mais sagrados, e foi planificado e executado o extermínio de povos e grupos sociais inteiros. Recorde-se aqui, em particular, o povo hebreu, cujo destino terrível se tornou um símbolo da aberração a que pode chegar o homem, quando se volta contra Deus.
Todavia o ódio e a injustiça só se apoderam de inteiras Nações e fazem-nas entrar em acção, quando são legitimados e organizados por ideologias que se fundamentam mais naqueles do que na verdade do homem (49). A Rerum novarum combatia as ideologias do ódio e indicava os caminhos para destruir a violência e o rancor, mediante a justiça. Possa a memória desses terríveis acontecimentos guiar as acções dos homens e, de modo particular, dos dirigentes dos povos no nosso tempo, em que outras injustiças alimentam novos ódios e se desenham no horizonte novas ideologias que exaltam a violência.
18. É verdade que, desde 1945, as armas silenciam no Continente europeu; mas a verdadeira paz - deve-se lembrar - nunca é o resultado da vitória militar, mas implica o superamento das causas da guerra e a autêntica reconciliação entre os povos. Durante muitos anos, de facto, houve, na Europa e no mundo, mais uma situação de não-guerra do que de paz verdadeira. Metade do Continente caiu sob o domínio da ditadura comunista, enquanto a outra metade se organizava para se defender contra tal perigo. Muitos povos perdem o poder de dispor de si próprios, vêem-se encerrados nos limites sufocantes de um império, enquanto se procura destruir a sua memória histórica e a raiz secular da sua cultura. Multidões enormes são forçadas a abandonar a sua terra e violentamente deportadas.
Uma corrida louca aos armamentos absorve os recursos necessários para um equilibrado progresso das economias internas e para auxílio às Nações mais desfavorecidas. O progresso científico e tecnológico, que deveria contribuir para o bem estar do homem, acaba transformado num instrumento de guerra: ciência e técnica são usadas para produzir armas cada vez mais aperfeiçoadas e destrutivas, enquanto a uma ideologia, que não passa de uma perversão da autêntica filosofia, se pede que forneça justificações doutrinais para a nova guerra. E esta não é apenas temida e preparada, mas é combatida, com enorme derramamento de sangue, em várias partes do mundo. A lógica dos blocos ou impérios, já denunciada nos diversos Documentos da Igreja, sendo o mais recente a Encíclica Sollicitudo rei socialis (50), faz com que todas as controvérsias e discórdias, que surgem nos Países do Terceiro Mundo, sejam sistematicamente incrementadas e aproveitadas para criar dificuldades ao adversário.
Os grupos extremistas, que procuram resolver tais controvérsias com as armas, encontram facilmente apoios políticos e militares, são armados e adestrados para a guerra, enquanto aqueles que se esforçam por encontrar soluções pacíficas e humanas, no respeito dos legítimos interesses de todas as partes, permanecem isolados e muitas vezes caiem vítimas dos seus adversários. Mesmo a militarização de tantos Países do "Terceiro Mundo" e as lutas fratricidas que os atormentaram, a difusão do terrorismo e de meios cada vez mais bárbaros de luta político-militar, encontram uma das suas causas primárias na paz precária que se seguiu à II Guerra Mundial. Sobre todo o mundo, enfim, grava a ameaça de uma guerra atómica, capaz de levar à extinção da humanidade. A ciência, usada para fins militares, pôs à disposição do ódio, incrementado pelas ideologias, o instrumento decisivo. Mas a guerra pode terminar sem vencedores nem vencidos num suicídio da humanidade, e então é necessário rejeitar a lógica que a ela conduz, ou seja, a ideia de que a luta pela destruição do adversário, a contradição e a própria guerra são factores de progresso e avanço da história (51). Quando se compreende a necessidade dessa rejeição, devem necessariamente entrar em crise quer a lógica da "guerra total" quer a da "luta de classes".
19. No fim da II Guerra Mundial, porém, um tal desenvolvimento está ainda em formação nas consciências, e o dado mais saliente é o estender-se do totalitarismo comunista sobre mais de metade da Europa e parte do mundo. A guerra, que deveria restituir a liberdade aos indivíduos e restaurar os direitos dos povos, terminou sem ter conseguido estes fins; pelo contrário, acabou de um modo que, para muitos povos, especialmente para aqueles que mais tinham sofrido, abertamente os contradiz. Pode-se dizer que a situação criada deu lugar a diversas respostas.
Em alguns Países, e sob alguns aspectos, assiste-se a um esforço positivo para reconstruir, depois das destruições da guerra, uma sociedade democrática e inspirada na justiça social, a qual priva o comunismo do potencial revolucionário, constituído por multidões exploradas e oprimidas. Estas tentativas procuram em geral preservar os mecanismos do livre mercado, assegurando através da estabilidade da moeda e da firmeza das relações sociais, as condições de um crescimento económico estável e sadio, no qual as pessoas, com o seu trabalho, podem construir um futuro melhor para si e para os próprios filhos. Simultaneamente, estes países procuram evitar que os mecanismos de mercado sejam o único termo de referência da vida associada e tendem a submetê-los a um controle público que faça valer o princípio do destino comum dos bens da terra. Uma certa abundância de ofertas de trabalho, um sólido sistema de segurança social e de acesso profissional, a liberdade de associação e a acção incisiva do sindicato, a previdência em caso de desemprego, os instrumentos de participação democrática na vida social, neste contexto, deveriam subtrair o trabalho da condição de "mercadoria" e garantir a possibilidade de realizá-lo com dignidade.
Existem, depois, outras forças sociais e movimentos de ideias que se opõem ao marxismo com a construção de sistemas de "segurança nacional", visando controlar de modo capilar toda a sociedade, para tornar impossível a infiltração marxista. Exaltando e aumentando o poder do Estado, elas pretendem preservar o seu povo do comunismo; mas, fazendo isso, correm o grave risco de destruir aquela liberdade e aqueles valores da pessoa, em nome dos quais é preciso opor-se àquele.
Outra forma de resposta prática, enfim, está representada pela sociedade do bem-estar, ou sociedade do consumo. Ela tende a derrotar o marxismo no terreno de um puro materialismo, mostrando como uma sociedade de livre mercado pode conseguir uma satisfação mais plena das necessidades materiais humanas que a defendida pelo comunismo, e excluindo igualmente os valores espirituais. Na verdade, se por um lado é certo que este modelo social mostra a falência do marxismo ao construir uma sociedade nova e melhor, por outro lado, negando a existência autónoma e o valor da moral, do direito, da cultura e da religião, coincide com ele na total redução do homem à esfera do económico e da satisfação das necessidades materiais.
20. No mesmo período, desenvolve-se um grandioso processo de "descolonização", pelo qual numerosos Países adquirem ou reconquistam a independência e o direito de disporem livremente de si. Com a aquisição formal da soberania estatal, porém, estes Países muitas vezes estão apenas no início do caminho para a construção de uma autêntica independência. De facto, sectores decisivos da economia permanecem ainda nas mãos de grandes empresas estrangeiras, que recusam ligar-se estavelmente ao progresso do País que as acolhe, e a própria vida política é controlada por forças estrangeiras, enquanto, dentro das fronteiras do Estado, convivem grupos tribais, ainda não amalgamados numa autêntica comunidade nacional. Falta, além disso, uma classe de profissionais competentes, capazes de fazer funcionar de modo honesto e normal o aparelho do Estado, e não existem também os quadros para uma eficiente e responsável gestão da economia.
Dada a situação, a muitos parece que o comunismo poderia oferecer como que um atalho para a edificação da Nação e do Estado, e nascem, por isso, diversas variantes do socialismo com um carácter nacional específico. Misturam-se assim, nas múltiplas ideologias que acabam por se formar, em proporções variáveis, exigências legítimas de salvação nacional, formas de nacionalismo e de militarismo, princípios vindos de antigas tradições populares, por vezes conformes à doutrina social cristã, e conceitos do marxismo-leninismo.
21. Recorde-se, enfim, como, depois da II Guerra Mundial e mesmo por reacção aos seus erros, se difundiu um sentimento mais vivo dos direitos humanos, que foi reconhecido em diversos Documentos internacionais (52), e na elaboração, poder-se-ia dizer, de um novo "direito dos povos", a que a Santa Sé deu constante contributo. Fulcro desta evolução foi a Organização das Nações Unidas. Cresceu não só a consciência do direito dos indivíduos, mas também a dos direitos das Nações, enquanto se adverte mais claramente a necessidade de actuar para sanar os graves desequilíbrios entre as diversas áreas do mundo, o que transferiu, em certo sentido, o centro da questão social do âmbito nacional para o nível internacional (53).
Ao registar, com satisfação, um tal processo, não se pode todavia silenciar o facto de que o balanço geral das diversas políticas de auxílio ao desenvolvimento não é sempre positivo. Além disso, as Nações Unidas ainda não conseguiram construir instrumentos eficazes, alternativos à guerra, na solução dos conflitos internacionais, e este parece ser o problema mais urgente que a comunidade internacional tem para resolver.
III - O Ano de 1989
22. Partindo da situação mundial que acabamos de descrever, e que aparece já exposta na Encíclica Sollicitudo rei socialis, é que se compreende bem o inesperado e promissor alcance dos factos dos últimos anos. O seu ponto mais alto é constituído pelos acontecimentos de 1989, nos Países da Europa central e oriental, mas eles abraçam um arco de tempo e um horizonte geográfico mais amplo. No decurso dos anos '80, caem progressivamente certos regimes ditatoriais e opressivos em alguns Países da América Latina, e também da África e da Ásia. Noutros casos, inicia-se um difícil, mas fecundo caminho de transição para formas políticas mais participativas e mais justas. Contributo importante, mesmo decisivo, veio do empenho da Igreja na defesa e promoção dos direitos do homem: em ambientes fortemente ideologizados, onde a filiação partidária ofuscava o sentimento da dignidade humana comum, a Igreja, com simplicidade e coragem afirmou que todo o homem, - sejam quais forem as suas convições pessoais - traz gravada em si a imagem de Deus e, por isso, merece respeito. Com esta afirmação, muitas vezes se identificou a grande maioria do povo, o que levou à procura de formas de luta e de soluções políticas mais respeitadoras da dignidade da pessoa.
Deste processo histórico, emergiram novas formas de democracia, que oferecem a esperança de uma alteração nas frágeis estruturas políticas e sociais, agravadas pela hipoteca de uma penosa série de injustiças e rancores, além de uma economia desastrosa e de duros conflitos sociais. Ao mesmo tempo que, com toda a Igreja, agradeço a Deus o testemunho, muitas vezes heróico, que tantos Pastores, comunidades cristãs, simples fiéis e outros homens de boa vontade deram nessas difíceis circunstâncias, suplico-Lhe que ampare os esforços para construir um futuro melhor. Este constitui uma responsabilidade não só dos cidadãos desses Países, mas de todos os cristãos e dos homens de boa vontade. Trata-se de mostrar que os complexos problemas de tais povos obtêm melhor resolução pelo método do diálogo e da solidariedade, do que pela luta até à destruição do adversário, e pela guerra.
23. De entre os numerosos factores que concorreram para a queda dos regimes opressivos, alguns merecem uma referência particular. O factor decisivo, que desencadeou as mudanças, é certamente a violação dos direitos do trabalho. Não se pode esquecer que a crise fundamental dos sistemas, que pretendem exprimir o governo ou, melhor, a ditadura do proletariado, inicia com os grandes movimentos verificados na Polónia, em nome da solidariedade. São as multidões dos trabalhadores a tornar ilegítima a ideologia, que presume falar em nome deles, a reencontrar e quase redescobrir expressões e princípios da doutrina social da Igreja, a partir da experiência difícil do trabalho e da opressão que viveram.
Merece, portanto, ser sublinhado o facto de, quase por todo o lado, se ter chegado à queda de semelhante "bloco" ou império, através de uma luta pacífica que lançou mão apenas das armas da verdade e da justiça. Enquanto o marxismo defendia que somente extremando as contradições sociais, através do embate violento, seria possível chegar à sua solução, as lutas que conduziram ao derrube do marxismo insistem com tenácia em tentar todas as vias da negociação, do diálogo, do testemunho da verdade, fazendo apelo à consciência do adversário e procurando despertar nele o sentido da dignidade humana comum.
Parecia que a configuração europeia, saída da segunda guerra mundial e consagrada no Tratado de Ialta, só poderia ser abalada por outra guerra. Pelo contrário, foi superada pelo empenho não violento de homens que sempre se recusaram a ceder ao poder da força, e ao mesmo tempo souberam encontrar aqui e ali formas eficazes para dar testemunho da verdade. Isto desarmou o adversário, porque a violência sempre tem necessidade de se legitimar com a mentira, ou seja, de assumir, mesmo se falsamente, o aspecto da defesa de um direito ou de resposta a uma ameaça de outrem (54). Agradeço a Deus ainda por ter sustentado o coração dos homens durante o tempo da difícil prova, e pedimos-Lhe que um tal exemplo possa valer em outros lugares e circunstâncias. Que os homens aprendam a lutar pela justiça sem violência, renunciando tanto à luta de classes nas controvérsias internas, como à guerra nas internacionais.
24. O segundo factor de crise é com certeza a ineficácia do sistema económico, que não deve ser considerada apenas como um problema técnico, mas sobretudo como consequência da violação dos direitos humanos à iniciativa, à propriedade e à liberdade no sector da economia. A este aspecto, está ainda associada a dimensão cultural e nacional: não é possível compreender o homem, partindo unilateralmente do sector da economia, nem ele pode ser definido simplesmente com base na sua inserção de classe. A compreensão do homem torna-se mais exaustiva, se o virmos enquadrado na esfera da cultura, através da linguagem, da história e das posições que ele adopta diante dos acontecimentos fundamentais da existência, tais como o nascimento, o amor, o trabalho, a morte. No centro de cada cultura, está o comportamento que o homem assume diante do mistério maior: o mistério de Deus. As culturas das diversas Nações constituem fundamentalmente modos diferentes de enfrentar a questão sobre o sentido da existência pessoal: quando esta questão é eliminada, corrompem-se a cultura e a vida moral das Nações. Por isso, a luta pela defesa do trabalho une-se espontaneamente a esta, a favor da cultura e dos direitos nacionais.
A verdadeira causa das mudanças, porém, está no vazio espiritual provocado pelo ateísmo, que deixou as jovens gerações privadas de orientação e induziu-as em diversos casos, devido à irreprimível busca da própria identidade e do sentido da vida, a redescobrir as raízes religiosas da cultura das suas Nações e a própria Pessoa de Cristo, como resposta existencialmente adequada ao desejo de bem, de verdade, e de vida que mora no coração de cada homem. Esta procura encontrou guia e apoio no testemunho de quantos, em circunstâncias difíceis e até na perseguição, permaneceram fiéis a Deus. O marxismo tinha prometido desenraizar do coração do homem a necessidade de Deus, mas os resultados demonstram que não é possível consegui-lo sem desordenar o coração.
25. Os factos de '89 oferecem o exemplo do sucesso da vontade de negociação e do espírito evangélico, contra um adversário decidido a não se deixar vincular por princípios morais: eles são uma advertência para quantos, em nome do realismo político, querem banir o direito e a moral da arena política. É certo que a luta, que levou às mudanças de '89, exigiu lucidez, moderação, sofrimentos e sacrifícios; em certo sentido, aquela nasceu da oração, e teria sido impensável sem uma confiança ilimitada em Deus, Senhor da história, que tem nas suas mãos o coração dos homens. Só unindo o próprio sofrimento pela verdade e pela liberdade ao de Cristo na Cruz, é que o homem pode realizar o milagre da paz e discernir a senda frequentemente estreita entre a cobardia que cede ao mal, e a violência que, na ilusão de o estar a combater, ainda o agrava mais.
Todavia não é possível ignorar os inumeráveis condicionalismos, em que a liberdade do indivíduo se exerce: esses influenciam mas não determinam a liberdade; tornam mais ou menos fácil o seu exercício, mas não a podem destruir. Não é lícito do ponto de vista ético nem praticável menosprezar a natureza do homem que está feito para a liberdade. Na sociedade onde a sua organização reduz arbitrariamente ou até suprime a esfera em que a liberdade legitimamente se exerce, o resultado é que a vida social progressivamente se desorganiza e definha.
Além disso, o homem, criado para a liberdade, leva em si a ferida do pecado original, que continuamente o atrai para o mal e o torna necessitado de redenção. Esta doutrina é não só parte integrante da Revelação cristã, mas tem também um grande valor hermenêutico, enquanto ajuda a compreender a realidade humana. O homem tende para o bem, mas é igualmente capaz do mal; pode transcender o seu interesse imediato, e contudo permanecer ligado a ele. A ordem social será tanto mais sólida, quanto mais tiver em conta este facto e não contrapuser o interesse pessoal ao da sociedade no seu todo, mas procurar modos para a sua coordenação frutuosa. Com efeito, onde o interesse individual é violentemente suprimido, acaba substituído por um pesado sistema de controle burocrático, que esteriliza as fontes da iniciativa e criatividade. Quando os homens julgam possuir o segredo de uma organização social perfeita que torne o mal impossível, consideram também poder usar todos os meios, inclusive a violência e a mentira, para a realizar. A política torna-se então uma "religião secular", que se ilude de poder construir o Paraíso neste mundo. Mas qualquer sociedade política, que possui a sua própria autonomia e as suas próprias leis (55), nunca poderá ser confundida com o Reino de Deus. A parábola evangélica da boa semente e do joio (cf. Mt 13, 24-30. 36-43) ensina que apenas a Deus compete separar os filhos do Reino e os filhos do Maligno, e que o julgamento terá lugar no fim dos tempos. Pretendendo antecipar o juízo para agora, o homem substitui-se a Deus e opõe-se à sua paciência.
Graças ao sacrifício de Cristo na Cruz, a vitória do Reino de Deus está garantida de uma vez para sempre; todavia, a condição cristã comporta a luta contra as tentações e as forças do mal. Somente no fim da história é que o Senhor voltará glorioso para o juízo final (cf. Mt 25, 31), com a instauração dos novos céus e da nova terra (cf. 2 Ped 3, 13; Ap 21, 1), mas, enquanto perdura o tempo, a luta entre o bem e o mal continua, mesmo no coração do homem.
O que a Sagrada Escritura nos ensina sobre os caminhos do Reino de Deus tem valor e incidência na vida das sociedades temporais, que - segundo quanto ficou dito - pertencem às realidades do tempo, com sua dimensão de imperfeito e provisório. O Reino de Deus presente no mundo sem ser do mundo, ilumina a ordem da sociedade humana, enquanto a força da graça a penetra e a vivifica. Assim notam-se melhor as exigências de uma sociedade digna do homem, são rectificados os desvios, é reforçada a coragem do agir em favor do bem. A esta tarefa de animação evangélica das realidades humanas estão chamados, juntamente com todos os homens de boa vontade, os cristãos, e de modo especial os leigos (56).
26. Os acontecimentos de '89 desenrolam-se prevalentemente nos Países da Europa oriental e central; têm todavia uma importância universal, já que deles provêm consequências positivas e negativas que interessam a toda a família humana. Tais consequências não se revestem de um carácter mecânico-fatalista, trata-se antes de ocasiões oferecidas à liberdade humana para colaborar com o desígnio misericordioso de Deus que actua na história.
A primeira consequência, em alguns Países, foi o encontro entre a Igreja e o Movimento operário, nascido de uma reacção de ordem ética e explicitamente cristã, contra uma geral situação de injustiça. O referido Movimento, durante um século aproximadamente, esteve em parte sob a hegemonia do marxismo, na convicção de que, para lutar eficazmente contra a opressão, os proletários deveriam apropriar-se das teorias materialistas e economicistas.
Na crise do marxismo, ressurgem as formas espontâneas da consciência operária, que exprimem um pedido de justiça e reconhecimento da dignidade do trabalho, segundo a doutrina social da Igreja (57). O Movimento operário insere-se numa movimentação mais geral dos homens do trabalho e dos homens de boa vontade a favor da libertação da pessoa humana e da afirmação dos seus direitos; aquele cresce hoje em muitos Países, e, longe de se contrapor à Igreja Católica, olha-a com esperança.
A crise do marxismo não elimina as situações de injustiça e de opressão no mundo, das quais o próprio marxismo, instrumentalizando-as, tirava alimento. Àqueles que hoje estão à procura de uma nova e autêntica teoria e práxis de libertação, a Igreja oferece não só a sua doutrina social e, de um modo geral, o seu ensinamento acerca da pessoa redimida em Cristo, mas também o seu empenhamento concreto no combate da marginalização e do sofrimento.
Em passado recente, o desejo sincero de se colocar da parte dos oprimidos e de não ser lançado fora do curso da história induziu muitos crentes a procurar de diversos modos um compromisso impossível entre marxismo e cristianismo. O tempo presente, enquanto supera tudo o que havia de caduco nessas tentativas, convida a reafirmar a positividade de uma autêntica teologia da libertação humana integral (58). Considerados sob este ponto de vista, os acontecimentos de 1989 revelam-se importantes também para os Países do "Terceiro Mundo", que estão à procura do caminho do seu desenvolvimento, num processo idêntico àqueles da Europa central e oriental.
27. A segunda consequência diz respeito aos povos da Europa. Muitas injustiças individuais e sociais, regionais e nacionais se cometeram nos anos em que dominava o comunismo, e mesmo antes; muitos ódios e rancores se acumularam. É real o perigo de que estes expludam de novo após a queda da ditadura, provocando graves conflitos e lutos, se diminuírem a tensão moral e a força consciente de prestar testemunho da verdade, que animaram os esforços do tempo passado. É de desejar que o ódio e a violência não triunfem nos corações, sobretudo daqueles que lutam pela justiça, e que cresça em todos o espírito de paz e de perdão.
São necessários, porém, passos concretos para criar ou consolidar estruturas internacionais, capazes de intervir numa arbitragem conveniente dos conflitos que se levantam entre as Nações, de modo que cada uma delas possa fazer valer os próprios direitos e alcançar um acordo justo e a pacífica composição com os direitos das outras. Tudo isto se mostra particularmente necessário nas Nações europeias, unidas intimamente entre si pelo vínculo da cultura comum e história milenária. Impõe-se um grande esforço para a reconstrução moral e económica dos Países que abandonaram o comunismo. Durante muito tempo, as relações económicas mais elementares foram distorcidas, e virtudes fundamentais ligadas ao sector da economia, tais como a veracidade, a confiança, a laboriosidade, foram descuradas. É precisa uma paciente renovação material e moral, enquanto os povos, esgotados por longas privações, pedem aos seus governantes resultados tangíveis e imediatos de bem-estar e satisfação adequada das suas legítimas aspirações.
A queda do marxismo teve naturalmente efeitos de grande alcance no referente à divisão da terra em mundos fechados e em ciosa concorrência entre si. Ela faz sobressair mais claramente a realidade da interdependência dos povos, bem como o facto de o trabalho humano, por sua natureza, estar destinado a unir os povos, e não a dividi-los. A paz e a prosperidade, de facto, são bens que pertencem, por natureza, a todo o género humano, de tal modo que não é possível gozar deles de forma correcta e duradoura, se forem obtidos e conservados em prejuízo de outros povos e Nações, violando os seus direitos, ou excluindo-os das fontes do bem-estar.
28. De certo modo, em alguns Países da Europa, tem início agora o verdadeiro pós-guerra. A reorganização radical das economias, até há pouco colectivizadas, comporta problemas e sacrifícios, que podem ser comparados àqueles que os Países ocidentais do Continente se impuseram para a sua reconstrução após o segundo conflito mundial. É justo que, nas dificuldades presentes, os Países ex-comunistas sejam sustentados pelo esforço solidário das outras Nações: obviamente aqueles devem ser os primeiros artífices do próprio progresso; mas deve-lhes ser dada uma razoável oportunidade de o realizar, o que só pode acontecer com a ajuda dos outros Países. De resto, a presente condição de dificuldades e de necessidade é consequência de um processo histórico do qual os países ex-comunistas foram frequentemente objecto, e não sujeito: encontram-se, por isso, em tal situação não por livre escolha ou por causa de erros cometidos, mas em consequência de trágicos eventos históricos, impostos pela violência, impedindo-os de prosseguir ao longo da estrada do desenvolvimento económico e civil.
O auxílio dos outros Países, em particular da Europa, que tomaram parte na mesma história e por ela respondem, equivale a um débito de justiça. Mas corresponde também ao interesse e ao bem geral da Europa, que não poderá viver em paz, se os mais diversos conflitos resultantes do passado se aguçarem ainda mais por uma situação de desordem económica, de insatisfação e desespero espiritual.
Esta exigência, porém, não deve levar a diminuir os esforços de apoio e ajuda aos Países do "Terceiro Mundo", que muitas vezes sofrem condições de carência e pobreza bastante mais graves (59). Será necessário um extraordinário esforço para mobilizar os recursos, de que o mundo no seu todo não está privado, em ordem a objectivos de crescimento económico e desenvolvimento comum, redefinindo as prioridades e as escalas de valores, que estão servindo de base para decidir as opções económicas e políticas. Imensos recursos podem tornar-se disponíveis, com a desarticulação dos enormes arsenais militares, construídos para o conflito entre o Leste e o Oeste. Aqueles poder-se-ão tornar ainda maiores, se se conseguir estabelecer processos seguros de alternativa à guerra para a solução dos conflitos, e difundir, portanto, o princípio do controle e da redução dos armamentos, mesmo nos Países do "Terceiro Mundo", adoptando oportunas medidas contra o seu comércio (60). Mas sobretudo será necessário abandonar uma mentalidade que considera os pobres - pessoas e povos - como um fardo e como importunos maçadores, que pretendem consumir tudo o que os outros produziram. Os pobres pedem o direito de participar no usufruto dos bens materiais e de fazer render a sua capacidade de trabalho, criando assim um mundo mais justo e mais próspero para todos. A elevação dos pobres é uma grande ocasião para o crescimento moral, cultural e até económico da humanidade inteira.
29. Enfim, o progresso não deve ser entendido de modo exclusivamente económico, mas num sentido integralmente humano (61). Não se trata apenas de elevar todos os povos ao nível que hoje gozam somente os Países mais ricos, mas de construir no trabalho solidário uma vida mais digna, fazer crescer efectivamente a dignidade e a criatividade de cada pessoa, a sua capacidade de corresponder à própria vocação e, portanto, ao apelo de Deus. No ponto máximo do desenvolvimento, está o exercício do direito-dever de procurar Deus, de O conhecer e viver segundo tal conhecimento (62). Nos regimes totalitários e autoritários, foi levado ao extremo o princípio do primado da força sobre a razão. O homem foi obrigado a suportar uma concepção da realidade imposta pela força, e não conseguida através do esforço da própria razão e do exercício da sua liberdade. É necessário abater aquele princípio e reconhecer integralmente os direitos da consciência humana, apenas ligada à verdade, seja natural ou revelada. No reconhecimento destes direitos, está o fundamento principal de toda a ordenação política autenticamente livre (63). É importante reafirmar este princípio, por vários motivos:
porque as antigas formas de totalitarismo e autoritarismo não foram ainda completamente debeladas, existindo mesmo o risco de ganharem de novo vigor: isto apela a um renovado esforço de colaboração e de solidariedade entre todos os Países;
porque nos Países desenvolvidos, às vezes é feita uma excessiva propaganda dos valores puramente utilitários, com uma solicitação desenfreada dos instintos e das tendências ao prazer imediato, o que torna difícil o reconhecimento e o respeito da hierarquia dos verdadeiros valores da existência humana;
porque, em alguns Países, emergem novas formas de fundamentalismo religioso que, velada ou até abertamente, negam, aos cidadãos de crenças diversas daquela da maioria, o pleno exercício dos seus direitos civis ou religiosos, impedem-nos de entrar no debate cultural, restringem à Igreja o direito de pregar o Evangelho e o direito dos ouvintes dessa pregação, de a acolher e de se converterem a Cristo. Não é possível qualquer progresso autêntico sem o respeito do direito natural e originário mais basilar: o de conhecer a verdade e viver nela. A este direito está ligado, como seu exercício e aprofundamento, o direito de descobrir e de escolher livremente Jesus Cristo, que é o verdadeiro bem do homem (64).
IV - A propriedade privada e o destino universal dos bens
30. Na Rerum novarum, Leão XIII, com diversos argumentos, insistia fortemente, contra o socialismo do seu tempo, no carácter natural do direito de propriedade privada (65). Este direito, fundamental para a autonomia e o desenvolvimento da pessoa, foi sempre defendido pela Igreja até aos nossos dias. De igual modo a Igreja ensina que a propriedade dos bens não é um direito absoluto, mas, na sua natureza de direito humano, traz inscritos os próprios limites.
O Pontífice ao proclamar o direito de propriedade privada, afirmava com igual clareza que o "uso" das coisas, confiado à liberdade, está subordinado ao seu originário destino comum de bens criados e ainda à vontade de Jesus Cristo manifestada no Evangelho. Com efeito, escrevia: "os abastados, portanto, são advertidos (...); os ricos devem tremer, pensando nas ameaças de Jesus Cristo (...); do uso dos seus bens deverão um dia prestar rigorosíssimas contas a Deus Juiz"; e, citando S. Tomás de Aquino, acrescentava: "Mas se se perguntar qual deve ser o uso desses bens, a Igreja (...) não hesita em responder que, a este propósito, o homem não deve possuir os bens externos como próprios, mas como comuns", porque "acima das leis e juízos dos homens está a lei, o juízo de Cristo" (66).
Os sucessores de Leão XIII repetiram a dupla afirmação: a necessidade e, por conseguinte, a liceidade da propriedade privada e conjuntamente os limites que pesam sobre ela (67). Também o Concílio Vaticano II repropôs a doutrina tradicional com palavras que merecem ser textualmente referidas: "o homem, usando destes bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que podem beneficiar não apenas a si, mas também aos outros". E pouco depois: "A propriedade privada ou um certo domínio sobre os bens externos asseguram a cada um a indispensável esfera de autonomia pessoal e familiar, e devem ser considerados como que uma extensão da liberdade humana (...). A própria propriedade privada é, por sua natureza, de índole social, fundada na lei do destino comum dos bens" (68). Retomei a mesma doutrina, primeiramente no discurso à III Conferência do Episcopado latino-americano, em Puebla, e depois nas Encíclicas Laborem exercens e Sollicitudo rei socialis (69).
31. Relendo esse ensinamento relativo ao direito de propriedade e ao destino comum dos bens, no horizonte do nosso tempo, pode-se colocar a questão acerca da origem dos bens que sustentam a vida do homem, satisfazem as suas carências e são objecto dos seus direitos.
A origem primeira de tudo o que é bem é o próprio acto de Deus que criou a terra e o homem, e ao homem deu a terra para que a domine com o seu tabalho e goze dos seus frutos (cf. Gen 1, 28-29). Deus deu a terra a todo o género humano, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar ninguém. Está aqui a raiz do destino universal dos bens da terra. Esta, pela sua própria fecundidade e capacidade de satisfazer as necessidades do homem, constitui o primeiro dom de Deus para o sustento da vida humana. Ora, a terra não dá os seus frutos, sem uma peculiar resposta do homem ao dom de Deus, isto é, sem o trabalho: é mediante o trabalho que o homem, usando da sua inteligência e liberdade, consegue dominá-la e estabelecer nela a sua digna morada. Deste modo, ele apropria-se de uma parte da terra, adquirida precisamente com o trabalho. Está aqui a origem da propriedade individual. Obviamente ele tem também a responsabilidade de não impedir que os outros homens tenham igualmente a sua parte no dom de Deus, pelo contrário, deve cooperar com eles para conjuntamente dominarem toda a terra.
Ao longo da história, sempre se encontram estes dois factores - o trabalho e a terra -, no princípio de cada sociedade humana; nem sempre, porém, guardam a mesma relação entre si. Outrora a fecundidade natural da terra revelava-se e, de facto, era o principal factor de riqueza, sendo o trabalho uma espécie de ajuda e apoio a tal fecundidade. No nosso tempo, torna-se cada vez mais relevante o papel do trabalho humano, como factor produtivo das riquezas espirituais e materiais; aparece, além disso, evidente como o trabalho de um homem se cruza naturalmente com o de outros homens. Hoje mais do que nunca, trabalhar é um trabalhar com os outros e um trabalhar para os outros: torna-se cada vez mais um fazer qualquer coisa para alguém. O trabalho é tanto mais fecundo e produtivo, quanto mais o homem é capaz de conhecer as potencialidades criativas da terra e de ler profundamente as necessidades do outro homem, para o qual é feito o trabalho.
32. Mas existe, em particular no nosso tempo, uma outra forma de propriedade, que reveste uma importância nada inferior à da terra: é a propriedade do conhecimento, da técnica e do saber. A riqueza das Nações industrializadas funda-se muito mais sobre este tipo de propriedade, do que sobre a dos recursos naturais.
Acenou-se pouco antes ao facto de que o homem trabalha com os outros homens, participando num "trabalho social" que engloba progressivamente círculos cada vez mais amplos. Quem produz um objecto, para além do uso pessoal, fá-lo em geral para que outros o possam usar também, depois de ter pago o preço justo, estabelecido de comum acordo, mediante uma livre negociação. Ora, precisamente a capacidade de conhecer a tempo as carências dos outros homens e as combinações dos factores produtivos mais idóneos para as satisfazer, é outra importante fonte de riqueza na sociedade moderna. Aliás, muitos bens não podem ser adequadamente produzidos através de um único indivíduo, mas requerem a colaboração de muitos para o mesmo fim. Organizar um tal esforço produtivo, planear a sua duração no tempo, procurar que corresponda positivamente às necessidades que deve satisfazer, assumindo os riscos necessários: também esta é uma fonte de riqueza na sociedade actual. Assim aparece cada vez mais evidente e determinante o papel do trabalho humano disciplinado e criativo e - enquanto parte essencial desse trabalho - das capacidades de iniciativa empresarial (70).
Um tal processo, que faz concretamente ressaltar uma verdade da pessoa, afirmada incessantemente pelo cristianismo, deve ser visto com atenção e favor. Efectivamente, a riqueza principal do homem é, em conjunto com a terra, o próprio homem. É a sua inteligência que o leva a descobrir as potencialidades produtivas da terra e as múltiplas modalidades através das quais podem ser satisfeitas as necessidades humanas. É o seu trabalho disciplinado, em colaboração solidária, que permite a criação de comunidades de trabalho cada vez mais amplas e eficientes para operar a transformação do ambiente natural e do próprio ambiente humano. Para este processo, concorrem importantes virtudes, tais como a diligência, a laboriosidade, a prudência em assumir riscos razoáveis, a confiança e fidelidade nas relações interpessoais, a coragem na execução de decisões difíceis e dolorosas, mas necessárias para o trabalho comum da empresa, e para enfrentar os eventuais reveses da vida.
A moderna economia de empresa comporta aspectos positivos, cuja raiz é a liberdade da pessoa, que se exprime no campo económico e em muitos outros campos. A economia, de facto, é apenas um sector da multiforme actividade humana, e nela, como em qualquer outro campo, vale o direito à liberdade, da mesma forma que o dever de a usar responsavelmente. Mas é importante notar a existência de diferenças específicas entre essas tendências da sociedade actual, e as do passado, mesmo se recente. Se outrora o factor decisivo da produção era a terra e mais tarde o capital, visto como o conjunto de maquinaria e de bens instrumentais, hoje o factor decisivo é cada vez mais o próprio homem, isto é, a sua capacidade de conhecimento que se revela no saber científico, a sua capacidade de organização solidária, a sua capacidade de intuir e satisfazer a necessidade do outro.
33. Contudo não se podem deixar de denunciar os riscos e os problemas conexos com este tipo de processo. De facto, hoje muitos homens, talvez a maioria, não dispõem de instrumentos que consintam entrar, de modo efectivo e humanamente digno, dentro de um sistema de empresa, no qual o trabalho ocupa uma posição verdadeiramente central. Não têm a possibilidade de adquirir os conhecimentos de base que permitam exprimir a sua criatividade e desenvolver as suas potencialidades, nem de penetrar na rede de conhecimentos e intercomunicações, que lhes consentiria ver apreciadas e utilizadas as suas qualidades. Em suma, eles, se não são propriamente explorados, vêem-se amplamente marginalizados, e o progresso económico desenvolve-se, por assim dizer, por cima das suas cabeças, quando não restringe ainda mais os espaços já estreitos das suas economias tradicionais de subsistência. Incapazes de resistir à concorrência de mercadorias produzidas em moldes novos e adequados às necessidades - que antes eles costumavam resolver através das formas organizativas tradicionais -, aliciados pelo esplendor de uma opulência ostensiva, mas para eles inacessível, e ao mesmo tempo constrangidos pela necessidade, estes homens aglomeram-se nas cidades do Terceiro Mundo, onde com frequência aparecem culturalmente desenraizados e encontram-se em situações de precariedade violenta, sem possibilidade de integração. Não se lhes reconhece, de facto, dignidade, e procura-se às vezes eliminá-los da história por meio de formas coercivas de controle demográfico, contrárias à dignidade humana.
Muitos outros, embora não estando totalmente marginalizados, vivem inseridos em ambientes onde a luta pelo necessário é absolutamente primária, e vigoram ainda as regras do capitalismo original, na "crueldade" de uma situação que nada fica a dever à dos momentos mais negros da primeira fase da industrialização. Noutros casos, a terra é ainda o elemento central do processo económico, e aqueles que a cultivam, excluídos da sua posse, estão reduzidos a condições de semi-escravatura (71). Nestas situações pode-se ainda hoje, como no tempo da Rerum novarum, falar de exploração desumana. Apesar das grandes mudanças verificadas nas sociedades mais avançadas, as carências humanas do capitalismo, com o consequente domínio das coisas sobre os homens, ainda não desapareceram; pelo contrário, para os pobres à carência dos bens materiais juntou-se a do conhecimento e da ciência, que lhes impede de sair do estado de humilhante subordinação.
Infelizmente a grande maioria dos habitantes do Terceiro Mundo vive ainda nestas condições. Seria errado, porém, imaginar este Mundo, num sentido somente geográfico. Em algumas regiões e em alguns sectores sociais, foram activados processos de desenvolvimento centrados na valorização não tanto dos recursos materiais, mas dos "recursos humanos".
Há relativamente poucos anos, afirmou-se que o desenvolvimento dos Países mais pobres dependeria do seu isolamento do mercado mundial, e da confiança apenas nas próprias forças. A recente experiência demonstrou que os Países que foram excluídos registaram estagnação e recessão, enquanto conheceram o desenvolvimento aqueles que conseguiram entrar na corrente geral de interligação das actividades económicas a nível internacional. O maior problema, portanto, parece ser a obtenção de um acesso equitativo ao mercado internacional, não fundado sobre o princípio unilateral do aproveitamento dos recursos naturais, mas sobre a valorização dos recursos humanos (72).
Aspectos típicos do Terceiro Mundo emergem também nos Países desenvolvidos, onde a transformação incessante das modalidades de produção e consumo desvaloriza certos conhecimentos já adquiridos e capacidades profissionais consolidadas, exigindo um esforço contínuo de requalificação e actualização. Aqueles que não conseguem acompanhar os tempos podem facilmente ser marginalizados; juntamente com eles são-no os anciãos, os jovens incapazes de se inserirem na vida social e, de um modo geral, os sujeitos mais débeis e o denominado Quarto Mundo. Nestas condições, também a situação da mulher se apresenta muito difícil.
34. Tanto a nível da cada Nação, como no das relações internacionais, o livre mercado parece ser o instrumento mais eficaz para dinamizar os recursos e corresponder eficazmente às necessidades. Isto, contudo, vale apenas para as necessidades "solvíveis", que gozam da possibilidade de aquisição, e para os recursos que são "comercializavéis", isto é, capazes de obter um preço adequado. Mas existem numerosas carências humanas, sem acesso ao mercado. É estrito dever de justiça e verdade impedir que as necessidades humanas fundamentais permaneçam insatisfeitas e que pereçam os homens por elas oprimidos. Além disso, é necessário que estes homens carenciados sejam ajudados a adquirir os conhecimentos, a entrar no círculo de relações, a desenvolver as suas aptidões, para melhor valorizar as suas capacidades e recursos. Ainda antes da lógica da comercialização dos valores equivalentes e das formas de justiça, que lhe são próprias, existe algo que é devido ao homem porque é homem, com base na sua eminente dignidade. Esse algo que é devido comporta inseparavelmente a possibilidade de sobreviver e de dar um contributo activo para o bem comum da humanidade.
No contexto do Terceiro Mundo, conservam a sua validade (em certos casos é ainda uma meta a ser alcançada), aqueles mesmos objectivos indicados pela Rerum novarum para evitar a redução do trabalho humano e do próprio homem ao nível de simples mercadoria: o salário suficiente para a vida da família, seguros sociais para a ancianidade e o desemprego, a tutela adequada das condições de trabalho.
35. Abre-se aqui um grande e fecundo campo de empenhamento e luta, em nome da justiça, para os sindicatos e outras organizações dos trabalhadores que defendem direitos e tutelam o indivíduo, realizando simultaneamente uma função essencial de carácter cultural, com a finalidade de os fazer participar de modo mais pleno e digno na vida da Nação, e de os ajudar ao longo do caminho do progresso.
Neste sentido, é correcto falar de luta contra um sistema económico, visto como método que assegura a prevalência absoluta do capital, da posse dos meios de produção e da terra, relativamente à livre subjectividade do trabalho do homem (73). Nesta luta contra um tal sistema, não se veja, como modelo alternativo, o sistema socialista, que, de facto, não passa de um capitalismo de estado, mas uma sociedade do trabalho livre, da empresa e da participação. Esta não se contrapõe ao livre mercado, mas requer que ele seja oportunamente controlado pelas forças sociais e estatais, de modo a garantir a satisfação das exigências fundamentais de toda a sociedade.
A Igreja reconhece a justa função do lucro, como indicador do bom funcionamento da empresa: quando esta dá lucro, isso significa que os factores produtivos foram adequadamente usados e as correlativas necessidades humanas devidamente satisfeitas. Todavia o lucro não é o único indicador das condições da empresa. Pode acontecer que a contabilidade esteja em ordem e simultaneamente os homens, que constituem o património mais precioso da empresa, sejam humilhados e ofendidos na sua dignidade. Além de ser moralmente inadmissível, isso não pode deixar de se reflectir futuramente de modo negativo na própria eficiência económica da empresa. Com efeito, o objectivo desta não é simplemente o lucro, mas sim a própria existência da empresa como comunidade de homens que, de diverso modo, procuram a satisfação das suas necessidades fundamentais e constituem um grupo especial ao serviço de toda a sociedade. O lucro é um regulador da vida da empresa, mas não o único; a ele se deve associar a consideração de outros factores humanos e morais que, a longo prazo, são igualmente essenciais para a vida da empresa.
Como vimos lá atrás, é inaceitável a afirmação de que a derrocada do denominado "socialismo real" deixe o capitalismo como único modelo de organização económica. Torna-se necessário quebrar as barreiras e os monopólios que deixam tantos povos à margem do progresso, e garantir, a todos os indivíduos e Nações, as condições basilares que lhes permitam participar no desenvolvimento. Tal objectivo requer esforços programados e responsáveis por parte de toda a comunidade internacional. É necessário que as Nações mais fortes saibam oferecer às mais débeis, ocasiões de inserção na vida internacional e que as mais débeis saibam aproveitar essas ocasiões, realizando os esforços e sacrifícios necessários, assegurando a estabilidade do quadro político e económico, a certeza de perspectivas para o futuro, o crescimento da capacidade dos próprios trabalhadores, a formação de empresários eficientes e conscientes das suas responsabilidades (74).
Actualmente, sobre os esforços positivos realizados com tal finalidade, pesa o problema, em grande medida ainda por resolver, da dívida externa dos Países mais pobres. Com certeza que é justo o princípio de que as dívidas devem ser pagas; não é lícito, porém, pedir ou pretender um pagamento, quando esse levaria de facto a impor opções políticas tais que condenariam à fome e ao desespero populações inteiras. Não se pode pretender que as dívidas contraídas sejam pagas com sacríficios insuportáveis. Nestes casos, é necessário - como, de resto, está sucedendo em certa medida - encontrar modalidades para mitigar, reescalonar ou até cancelar a dívida, compatíveis com o direito fundamental dos povos à subsistência e ao progresso.
36. Convém agora prestar atenção aos problemas específicos e às ameaças, que se levantam no interior das economias mais avançadas e que estão conexas com as suas características peculiares. Nas fases precedentes do desenvolvimento, o homem sempre viveu sob o peso da necessidade. As suas carências eram poucas, de algum modo já fixadas nas estruturas objectivas da sua constituição corpórea, e a actividade económica estava orientada à sua satisfação. Hoje é claro que o problema não é só oferecer-lhes uma quantidade suficiente de bens, mas de responder a uma exigência de qualidade: qualidade das mercadorias a produzir e a consumir, qualidade dos serviços a ser utilizados, qualidade do ambiente e da vida em geral.
O pedido de uma existência qualitativamente mais satisfatória e mais rica é, em si mesmo, legítimo; mas devemos sublinhar as novas responsabilidades e os perigos conexos com esta fase histórica. No mundo onde surgem e se definem as novas necessidades, está sempre subjacente uma concepção mais ou menos adequada do homem e do seu verdadeiro bem: através das opções de produção e de consumo, manifesta-se uma determinada cultura, como concepção global da vida. É aqui que surge o fenómeno do consumismo. Individuando novas necessidades e novas modalidades para a sua satisfação, é necessário deixar-se guiar por uma imagem integral do homem, que respeite todas as dimensões do seu ser e subordine as necessidades materiais e instintivas às interiores e espirituais. Caso contrário, explorando directamente os seus instintos e prescindindo, de diversos modos, da sua realidade pessoal consciente e livre, podem-se criar hábitos de consumo e estilos de vida objectivamente ilícitos, e frequentemente prejudiciais à sua saúde física e espiritual. O sistema económico, em si mesmo, não possui critérios que permitam distinguir correctamente as formas novas e mais elevadas de satisfação das necessidades humanas, das necessidades artificialmente criadas que se opõem à formação de uma personalidade madura. Torna-se por isso necessária e urgente, uma grande obra educativa e cultural, que abranja a educação dos consumidores para um uso responsável do seu poder de escolha, a formação de um alto sentido de responsabilidade nos produtores, e, sobretudo, nos profissionais dos mass-media, além da necessária intervenção das Autoridades públicas.
Um exemplo flagrante de consumo artificial, contrário à saúde e à dignidade do homem, certamente difícil de ser controlado, é o da droga. A sua difusão é índice de uma grave disfunção do sistema social, e subentende igualmente uma "leitura" materialista, em certo sentido, destrutiva das necessidades humanas. Deste modo a capacidade de inovação da livre economia termina actuando-se de modo unilateral e inadequado. A droga, como também a pornografia e outras formas de consumismo, explorando a fragilidade dos débeis, tentam preencher o vazio espiritual que se veio a criar.
Não é mal desejar uma vida melhor, mas é errado o estilo de vida que se presume ser melhor, quando ela é orientada ao ter e não ao ser, e deseja ter mais não para ser mais, mas para consumir a existência no prazer, visto como fim em si próprio (75). É necessário, por isso, esforçar-se por construir estilos de vida, nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom, e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento. A propósito disto, não posso limitar-me a recordar o dever da caridade, isto é, o dever de acorrer com o "supérfluo", e às vezes até com o "necessário" para garantir o indispensável à vida do pobre. Mas aludo também ao facto de que a opção de investir num lugar em vez de outro, neste sector produtivo e não naquele, é sempre uma escolha moral e cultural. Postas certas condições económicas e de estabilidade política absolutamente imprescindíveis, a decisão de investir, isto é, de oferecer a um povo a ocasião de valorizar o próprio trabalho, é determinada também por uma atitude de solidariedade e pela confiança na Providência divina, que revela a qualidade humana daquele que decide.
37. Igualmente preocupante, ao lado do problema do consumismo e com ele estritamente ligada, é a questão ecológica. O homem, tomado mais pelo desejo do ter e do prazer, do que pelo de ser e de crescer, consome de maneira excessiva e desordenada os recursos da terra e da sua própria vida. Na raiz da destruição insensata do ambiente natural, há um erro antropológico, infelizmente muito espalhado no nosso tempo. O homem, que descobre a sua capacidade de transformar e, de certo modo, criar o mundo com o próprio trabalho, esquece que este se desenrola sempre sobre a base da doação originária das coisas por parte de Deus. Pensa que pode dispor arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas à sua vontade, como se ela não possuísse uma forma própria e um destino anterior que Deus lhe deu, e que o homem pode, sim, desenvolver, mas não deve trair. Em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele (76).
Nota-se aqui, antes de mais, uma pobreza ou mesquinhez da visão humana, mais animada pelo desejo de possuir as coisas do que relacioná-las com a verdade, privado do comportamento desinteressado, gratuito, estético que brota do assombro diante do ser e da beleza, que leva a ler, nas coisas visíveis, a mensagem do Deus invisível que as criou. A respeito disso, a humanidade de hoje deve estar consciente dos seus deveres e tarefas, em vista das gerações futuras.
38. Além da destruição irracional do ambiente natural, é de recordar aqui outra ainda mais grave, qual é a do ambiente humano, a que se está ainda longe de prestar a necessária atenção. Enquanto justamente nos preocupamos, apesar de bem menos do que o necessário, em preservar o "habitat" natural das diversas espécies animais ameaçadas de extinção, porque nos damos conta da particular contribuição que cada uma delas dá ao equilíbrio geral da terra, empenhamo-nos demasiado pouco em salvaguardar as condições morais de uma autêntica "ecologia humana". Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral, de que foi dotado. Neste contexto, são de mencionar os graves problemas da moderna urbanização, a necessidade de um urbanismo preocupado com a vida das pessoas, bem como a devida atenção a uma "ecologia social" do trabalho.
O homem recebe de Deus a sua dignidade essencial e com ela a capacidade de transcender todo o regime da sociedade, rumo à verdade e ao bem. Contudo está fortemente condicionado também pela estrutura social em que vive, pela educação recebida e pelo ambiente. Estes elementos tanto podem facilitar como dificultar o seu viver conforme à verdade. As decisões, graças às quais se constitui um ambiente humano, podem criar estruturas específicas de pecado, impedindo a plena realização daqueles que vivem de diversos modos oprimidos por elas. Destruir tais estruturas, substituindo-as por formas de convivência mais autênticas é uma tarefa que exige coragem e paciência (77).
39. A primeira e fundamental estrutura a favor da "ecologia humana" é a família, no seio da qual o homem recebe as primeiras e determinantes noções acerca da verdade e do bem, aprende o que significa amar e ser amado e, consequentemente, o que quer dizer, em concreto, ser uma pessoa. Pensa-se aqui na família fundada sobre o matrimónio, onde a doação recíproca de si mesmo, por parte do homem e da mulher, cria um ambiente vital onde a criança pode nascer e desenvolver as suas potencialidades, tornar-se consciente da sua dignidade e preparar-se para enfrentar o seu único e irrepetível destino. Muitas vezes dá-se o inverso; o homem é desencorajado de realizar as autênticas condições da geração humana, e aliciado a considerar-se a si próprio e à sua vida mais como um conjunto de sensações a ser experimentadas do que como uma obra a realizar. Daqui nasce uma carência de liberdade que o leva a renunciar ao compromisso de se ligar estavelmente com outra pessoa e de gerar filhos, ou que o induz a considerar estes últimos como uma de tantas "coisas" que é possível ter ou não ter, segundo os próprios gostos, e que entram em concorrência com outras possibilidades.
É necessário voltar a considerar a família como o santuário da vida. De facto, ela é sagrada: é o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico. Contra a denominada cultura da morte, a família constitui a sede da cultura da vida.
O engenho humano parece orientar-se, nesse campo, mais para limitar, suprimir ou anular as fontes da vida, chegando até ao recurso do aborto, infelizmente tão espalhado pelo mundo, do que para defender e criar possibilidades à mesma vida. Na Encíclica Sollicitudo rei socialis, foram denunciadas as campanhas sistemáticas contra a natalidade, que, baseadas numa concepção distorcida do problema demográfico e num clima de "absoluta falta de respeito pela liberdade de decisão das pessoas interessadas", as submetem muitas vezes "a pressões intoleráveis (...) a fim de cederem a esta nova forma de opressão" (78). Trata-se de políticas que, com novas técnicas, estendem o seu raio de acção até ao ponto de chegarem, como numa "guerra química", a envenenar a vida de milhões de seres humanos indefesos.
Estas críticas, são dirigidas não tanto contra um sistema económico, quanto contra um sistema ético-cultural. De facto, a economia é apenas um aspecto e uma dimensão da complexa actividade humana. Se ela for absolutizada, se a produção e o consumo das coisas acabar por ocupar o centro da vida social, tornando-se o único valor verdadeiro da sociedade, não subordinado a nenhum outro, a causa terá de ser procurada não tanto no próprio sistema económico, quanto no facto de que todo o sistema socio-cultural, ignorando a dimensão ética e religiosa, ficou debilitado, limitando-se apenas à produção dos bens e dos serviços (79).
Tudo isto se pode resumir afirmando mais uma vez que a liberdade económica é apenas um elemento da liberdade humana. Quando aquela se torna autónoma, isto é, quando o homem é visto mais como um produtor ou um consumidor de bens do que como um sujeito que produz e consome para viver, então ela perde a sua necessária relação com a pessoa humana e acaba por a alienar e oprimir (80).
40. É tarefa do Estado prover à defesa e tutela de certos bens colectivos como o ambiente natural e o ambiente humano, cuja salvaguarda não pode ser garantida pos simples mecanismos de mercado. Como nos tempos do antigo capitalismo, o Estado tinha o dever de defender os direitos fundamentais do trabalho, assim diante do novo capitalismo, ele e toda sociedade têm a obrigação de defender os bens colectivos que, entre outras coisas, constituem o enquadramento dentro do qual cada um poderá conseguir legitimamente os seus fins individuais.
Acha-se aqui um novo limite do mercado: há necessidades colectivas e qualitativas, que não podem ser satisfeitas através dos seus mecanismos; existem exigências humanas importantes, que escapam à sua lógica; há bens que, devido à sua natureza, não se podem nem se devem vender e comprar. Certamente os mecanismos de mercado oferecem seguras vantagens: ajudam, entre outras coisas, a utilizar melhor os recursos, favorecem o intercâmbio dos produtos e, sobretudo, põem no centro a vontade e as preferências da pessoa que, no contrato, se encontram com as de outrem. Todavia eles comportam o risco de uma "idolatria" do mercado, que ignora a existência de bens que, pela sua natureza, não são nem podem ser simples mercadoria.
41. O marxismo criticou as sociedades burguesas capitalistas, censurando-as pela "coisificação" e alienação da existência humana. Certamente esta censura baseia-se numa concepção errada e inadequada da alienação, porque restringe a sua causa apenas à esfera das relações de produção e propriedade, isto é, atribuindo-lhe um fundamento materialista e, além disso, negando a legitimidade e a positividade das relações de mercado, inclusive no âmbito que lhes é próprio. Acaba assim por afirmar que a alienação só poderia ser eliminada numa sociedade de tipo colectivista. Ora a experiência história dos Países socialistas demonstrou tristemente que o colectivismo não suprime a alienação, antes a aumenta, enquanto a ela junta ainda a carência das coisas necessárias e a ineficácia económica.
A experiência histórica do Ocidente, por sua vez, demonstra que, embora sejam falsas a análise e a fundamentação marxista da alienação, todavia esta, com a perda do sentido autêntico da existência, é também uma experiência real nas sociedades ocidentais. Ela verifica-se no consumo, quando o homem se vê implicado numa rede de falsas e superficiais satisfações, em vez de ser ajudado a fazer a autêntica e concreta experiência da sua personalidade. A alienação verifica-se também no trabalho, quando é organizado de modo a "maximizar" apenas os seus frutos e rendimentos, não se preocupando de que o trabalhador, por meio de seu trabalho, se realize mais ou menos como homem, conforme cresça a sua participação numa autêntica comunidade humana solidária, ou então cresça o seu isolamento num complexo de relações de exacerbada competição e de recíproco alheamento, no qual ele aparece considerado apenas como um meio, e não como um fim.
É necessário reconduzir o conceito de alienação à perspectiva cristã, reconhecendo-a como a inversão dos meios pelos fins: quando o homem não reconhece o valor e a grandeza da pessoa em si próprio e no outro, de facto priva-se da possibilidade de usufruir da própria humanidade e de entrar na relação de solidariedade e de comunhão com os outros homens para a qual Deus o criou. Com efeito, é mediante o livre dom de si que o homem se torna autenticamente ele próprio (81), e este dom é possível graças à essencial "capacidade de transcendência" da pessoa humana. O homem não se pode doar a um projecto somente humano da realidade, nem a um ideal abstracto ou a falsas utopias. Ele, enquanto pessoa, consegue doar-se a uma outra pessoa ou outras pessoas e, enfim, a Deus, que é o autor do seu ser e o único que pode acolher plenamente o seu dom (82). Alienado é o homem que recusa transcender-se a si próprio e viver a experiência do dom de si e da formação de uma autêntica comunidade humana, orientada para o seu destino último, que é Deus. Alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana.
Na sociedade ocidental foi superada a exploração, pelo menos nas formas analisadas e descritas por Karl Marx. Pelo contrário, não foi superada a alienação nas várias formas de exploração quando os homens se instrumentalizam mutuamente e, na satisfação cada vez mais refinada das suas necessidades particulares e secundárias, se tornam surdos às suas carências verdadeiras e autênticas, que devem regular as modalidades de satisfação das outras necessidades (83). O homem que se preocupa só ou prevalentemente do ter e do prazer, incapaz já de dominar os seus instintos e paixões e de subordiná-los pela obediência à verdade, não pode ser livre: a obediência à verdade sobre Deus e o homem é a primeira condição da liberdade, permitindo-lhe ordenar as próprias necessidades, os próprios desejos e as modalidades da sua satisfação, segundo uma justa hierarquia, de modo que a posse das coisas seja para ele um meio de crescimento. Um obstáculo a tal crescimento pode vir da manipulação realizada por alguns meios de comunicação social que impõem, pela força de uma bem orquestrada insistência, modos e movimentos de opinião, sem ser possível submeter a um exame crítico as premissas sobre as quais se fundamentam.
42. Voltando agora à questão inicial, pode-se porventura dizer que, após a falência do comunismo, o sistema social vencedor é o capitalismo e que para ele se devem encaminhar os esforços dos Países que procuram reconstruir as suas economias e a sua sociedade? É, porventura, este o modelo que se deve propor aos Países do Terceiro Mundo, que procuram a estrada do verdadeiro progresso económico e civil?
A resposta apresenta-se obviamente complexa. Se por "capitalismo" se indica um sistema económico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no sector da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de "economia de empresa", ou de "economia de mercado", ou simplesmente de "economia livre". Mas se por "capitalismo" se entende um sistema onde a liberdade no sector da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa.
A solução marxista faliu, mas permanecem no mundo fenómenos de marginalização e de exploração, especialmente no Terceiro Mundo, e fenómenos de alienação humana, especialmente nos Países mais avançados, contra os quais se levanta com firmeza a voz da Igreja. Tantas multidões vivem ainda agora em condições de grande miséria material e moral. A queda do sistema comunista, em tantos países, elimina certamente um obstáculo para enfrentar de modo adequado e realístico estes problemas, mas não basta para resolvê-los. Existe até o risco de se difundir uma ideologia radical de tipo capitalista, que se recusa mesmo a tomá-los em conta, considerando a priori condenada ao fracasso toda a tentativa de os encarar e confia fideisticamente a sua solução ao livre desenvolvimento das forças de mercado.
43. A Igreja não tem modelos a propor. Os modelos reais e eficazes poderão nascer apenas no quadro das diversas situações históricas, graças ao esforço dos responsáveis que enfrentam os problemas concretos em todos os seus aspectos sociais, económicos, políticos e culturais que se entrelaçam mutuamente (84). A esse empenhamento, a Igreja oferece, como orientação ideal indispensável, a própria doutrina social que - como se disse - reconhece o valor positivo do mercado e da empresa, mas indica ao mesmo tempo a necessidade de que estes sejam orientados para o bem comum. Ela reconhece também a legitimidade dos esforços dos trabalhadores para conseguirem o pleno respeito da sua dignidade e espaços maiores de participação na vida da empresa, de modo que eles, embora trabalhando em conjunto com outros e sob a direcção de outros, possam em certo sentido "trabalhar por conta própria" (85) exercitando a sua inteligência e liberdade.
O desenvolvimento integral da pessoa humana no trabalho não contradiz, antes favorece a maior produtividade e eficácia do próprio trabalho, embora isso possa enfraquecer estruturas consolidadas de poder. A empresa não pode ser considerada apenas como uma "sociedade de capitais"; é simultaneamente uma "sociedade de pessoas", da qual fazem parte, de modo diverso e com específicas responsabilidades, quer aqueles que fornecem o capital necessário para a sua actividade, quer aqueles que à colaboram com o seu trabalho. Para conseguir este fim, é ainda necessário um grande movimento associado dos trabalhadores, cujo objectivo é a libertação e a promoção integral da pessoa.
À luz das "coisas novas" de hoje, foi relida a relação entre a propriedade individual, ou privada, e o destino universal dos bens. O homem realiza-se através da sua inteligência e da sua liberdade e, ao fazê-lo, assume como objecto e instrumento as coisas do mundo e delas se apropria. Neste seu agir, está o fundamento do direito à iniciativa e à propriedade individual. Mediante o seu trabalho, o homem empenha-se não só para proveito próprio, mas também para os outros e com os outros: cada um colabora para o trabalho e o bem dos outros. O homem trabalha para acorrer às necessidades da sua família, da comunidade de que faz parte, da Nação e, em definitivo, da humanidade inteira (86). Além disso, colabora para o trabalho dos outros, que operam na mesma empresa, como também para o trabalho dos fornecedores ou para o consumo dos clientes, numa cadeia de solidariedade que se alarga progressivamente. A posse dos meios de produção, tanto no campo industrial como no agrícola, é justa e legítima, se serve para um trabalho útil; pelo contrário, torna-se ilegítima, quando não é valorizada ou serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração, da especulação, e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho (87). Semelhante propriedade não tem qualquer justificação, e constitui um abuso diante de Deus e dos homens.
A obrigação de ganhar o pão com o suor do próprio rosto supõe, ao mesmo tempo, um direito. Uma sociedade onde este direito seja sistematicamente negado, onde as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores alcançarem níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social (88). Tal como a pessoa se realiza plenamente na livre doação de si própria, assim a propriedade se justifica moralmente na criação, em moldes e tempos devidos, de ocasiões de trabalho e crescimento humano para todos.
V - Estado e Cultura
44. Leão XIII não ignorava que uma sã teoria do Estado é necessária para assegurar o desenvolvimento normal das actividades humanas: tanto as espirituais, como as materiais, sendo ambas indispensáveis (89). Por isso, numa passagem da Rerum novarum, ele apresenta a organização da sociedade segundo três poderes - legislativo, executivo e judicial - o que constituía, naquele tempo, uma novidade no ensinamento da Igreja (90). Tal ordenamento reflecte uma visão realista da natureza social do homem a qual exige uma legislação adequada para proteger a liberdade de todos. Para tal fim é preferível que cada poder seja equilibrado por outros poderes e outras esferas de competência que o mantenham no seu justo limite. Este é o princípio do "Estado de direito", no qual é soberana a lei, e não a vontade arbitrária dos homens.
A esta concepção se opôs, nos tempos modernos, o totalitarismo, o qual, na forma marxista-leninista, defende que alguns homens, em virtude de um conhecimento mais profundo das leis do desenvolvimento da sociedade, ou de uma particular consciência de classe ou por um contacto com as fontes mais profundas da consciência colectiva, estão isentos de erro e podem, por conseguinte, arrogar-se o exercício de um poder absoluto. Acrescente-se que o totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido objectivo: se não exis- te uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de Nação, contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder, e cada um tende a aproveitar-se ao máximo dos meios à sua disposição para impor o próprio interesse ou opinião, sem atender aos direitos do outro. Então o homem é respeitado apenas na medida em que for possível instrumentalizá-lo no sentido de uma afirmação egoísta. A raiz do totalitarismo moderno, portanto, deve ser individuada na negação da transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível e, precisamente por isso, pela sua própria natureza, sujeito de direitos que ninguém pode violar: seja indivíduo, grupo, classe, Nação ou Estado. Nem tão-pouco o pode fazer a maioria de um corpo social, lançando-se contra a minoria, marginalizando, oprimindo, explorando ou tentando destruí-la (91).
45. A cultura e a práxis do totalitarismo comportam também a negação da Igreja. O Estado, ou então o partido, que pretende poder realizar na história o bem absoluto e se arvora por cima de todos os valores, não pode tolerar que seja afirmado um critério objectivo do bem e do mal, para além da vontade dos governantes, o qual, em determinadas circunstâncias, pode servir para julgar o seu comportamento. Isto explica porquê o totalitarismo procura destruir a Igreja ou, pelo menos, subjugá-la, fazendo-a instrumento do próprio aparelho ideológico (92).
O Estado totalitário tende, ainda, a absorver em si próprio a Nação, a sociedade, a família, as comunidades religiosas e as próprias pessoas. Defendendo a própria liberdade, a Igreja defende a pessoa, que deve obedecer antes a Deus que aos homens (cf. Act 5, 29), a família, as diversas organizações sociais e as Nações, realidades essas que gozam de uma específica esfera de autonomia e soberania.
46. A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno; (83) ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor dos seus interesses particulares ou dos objectivos ideológicos.
Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma recta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da "subjectividade" da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e cor-responsabilidade. Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo céptico constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idóneos às formas políticas democráticas, e que todos quantos estão convencidos de conhecer a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos. A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a acção política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra.
A Igreja também não fecha os olhos diante do perigo do fanatismo, ou fundamentalismo, daqueles que, em nome de uma ideologia que se pretende científica ou religiosa, defendem poder impor aos outros homens a sua concepção da verdade e do bem. Não é deste tipo a verdade cristã. Não sendo ideológica, a fé cristã não presume encarcerar num esquema rígido a variável realidade sócio-política e reconhece que a vida do homem se realiza na história, em condições diversas e não perfeitas. A Igreja, portanto, reafirmando constantemente a dignidade transcendente da pessoa, tem, por método, o respeito da liberdade (94).
Mas a liberdade só é plenamente valorizada pela aceitação da verdade: num mundo sem verdade, a liberdade perde a sua consistência, e o homem acaba exposto à violência das paixões e a condicionalismos visíveis ou ocultos. O cristão vive a liberdade (cf. Jo 8, 31-32), e serve-a propondo continuamente, segundo a natureza missionária da sua vocação, a verdade que conheceu. No diálogo com os outros homens, ele, atento a toda a parcela de verdade que encontre na experiência de vida e na cultura dos indivíduos e das Nações, não renunciará a afirmar tudo o que a sua fé e o recto uso da razão lhe deram a conhecer (95).
47. Após a queda do totalitarismo comunista e de muitos outros regimes totalitários e de "segurança nacional", assistimos hoje à prevalência, não sem con- trastes, do ideal democrático, em conjunto com uma viva atenção e preocupação pelos direitos humanos. Mas, exactamente por isso, é necessário que os povos, que estão reformando os seus regimes, dêem à democracia um autêntico e sólido fundamento mediante o reconhecimento explícito dos referidos direitos (96). Entre os principais, recordem-se: o direito à vida, do qual é parte integrante o direito a crescer à sombra do coração da mãe depois de ser gerado; o direito a viver numa família unida e num ambiente moral favorável ao desenvolvimento da própria personalidade; o direito a maturar a sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade; o direito a participar no trabalho para valorizar os bens da terra e a obter dele o sustento próprio e dos seus familiares; o direito a fundar uma família e a acolher e educar os filhos, exercitando responsavelmente a sua sexualidade. Fonte e síntese destes direitos é, em certo sentido, a liberdade religiosa, entendida como direito a viver na verdade da própria fé e em conformidade com a dignidade transcendente da pessoa (97).
Também nos Países onde vigoram formas de governo democrático, nem sempre estes direitos são totalmente respeitados. Não se trata apenas do escândalo do aborto, mas de diversos aspectos de uma crise dos sistemas democráticos, que às vezes parecem ter perdido a capacidade de decidir segundo o bem comum. As questões levantadas pela sociedade não são examinadas à luz dos critérios de justiça e moralidade, mas antes na base da força eleitoral ou financiária dos grupos que as apoiam. Semelhantes desvios da prática política geram, com o tempo, desconfiança e apatia e consequentemente diminuição da participação política e do espírito cívico, no seio da população, que se sente prejudicada e desiludida. Disso resulta a crescente incapacidade de enquadrar os interesses particulares numa coerente visão do bem comum. Este efectivamente não é a mera soma dos interesses particulares, mas implica a sua avaliação e composição feita com base numa equilibrada hierarquia de valores e, em última análise, numa correcta compreensão da dignidade e dos direitos da pessoa (98).
A Igreja respeita a legítima autonomia da ordem democrática, mas não é sua atribuição manifestar preferência por uma ou outra solução institucional ou constitucional. O contributo, por ela oferecido nesta ordem, é precisamente aquela visão da dignidade da pessoa, que se revela em toda a sua plenitude no mistério do Verbo encarnado (99).
48. Estas considerações gerais reflectem-se também no papel do Estado no sector da economia. A actividade económica, em particular a da economia de mercado, não se pode realizar num vazio institucional, jurídico e político. Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes. A principal tarefa do Estado é, portanto, a de garantir esta segurança, de modo que quem trabalha e produz possa gozar dos frutos do próprio trabalho e, consequentemente, se sinta estimulado a cumpri-lo com eficiência e honestidade. A falta de segurança, acompanhada pela corrupção dos poderes públicos e pela difusão de fontes impróprias de enriquecimento e de lucros fáceis fundados em actividades ilegais ou puramente especulativas, é um dos obstáculos principais ao desenvolvimento e à ordem económica.
Outra tarefa do Estado é a de vigiar e orientar o exercício dos direitos humanos, no sector económico; neste campo, porém, a primeira responsabilidade não é do Estado, mas dos indivíduos e dos diversos grupos e associações em que se articula a sociedade. O Estado não poderia assegurar directamente o direito de todos os cidadãos ao trabalho, sem uma excessiva estruturação da vida económica e restrição da livre iniciativa dos indivíduos. Contudo isto não significa que ele não tenha qualquer competência neste âmbito, como afirmaram aqueles que defendiam uma ausência completa de regras na esfera económica. Pelo contrário, o Estado tem o dever de secundar a actividade das empresas, criando as condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise.
O Estado tem também o direito de intervir quando situações particulares de monopólio criem atrasos ou obstáculos ao desenvolvimento. Mas, além destas tarefas de harmonização e condução do progresso, pode desempenhar funções de suplência em situações excepcionais, quando sectores sociais ou sistemas de empresas, demasiado débeis ou em vias de formação, se mostram inadequados à sua missão. Estas intervenções de suplência, justificadas por urgentes razões que se prendem com o bem comum, devem ser, quanto possível, limitadas no tempo, para não retirar permanentemente aos mencionados sectores e sistemas de empresas as competências que lhes são próprias e para não ampliar excessivamente o âmbito da intervenção estatal, tornando-se prejudicial tanto à liberdade económica como à civil.
Assistiu-se, nos últimos anos, a um vasto alargamento dessa esfera de intervenção, o que levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de estado, o "Estado do bem-estar". Esta alteração deu-se em alguns Países, para responder de modo mais adequado a muitas necessidades e carências, dando remédio a formas de pobreza e privação indignas da pessoa humana. Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como "Estado assistencial". As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas. Também neste âmbito, se deve respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum (100).
Ao intervir directamente, irresponsabilizando a sociedade, o Estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominando mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os usuários com um acréscimo enorme das despesas. De facto, parece conhecer melhor a necessidade e ser mais capaz de satisfazê-la quem a ela está mais vizinho e vai ao encontro do necessitado. Acrescente-se que, frequentemente, um certo tipo de necessidades requer uma resposta que não seja apenas material, mas que saiba compreender nelas a exigência humana mais profunda. Pense-se na condição dos refugiados, emigrantes, anciãos ou doentes e em todas as diversas formas que exigem assistência, como no caso dos toxicómanos: todas estas são pessoas que podem ser ajudadas eficazmente apenas por quem lhes ofereça, além dos cuidados necessários, um apoio sinceramente fraterno.
49. Neste campo, a Igreja fiel ao mandato de Cristo, seu Fundador, sempre esteve presente com as suas obras para oferecer ao homem carente um auxílio material que não o humilde e não o reduza a ser apenas objecto de assistência, mas o ajude a sair da sua precária condição, promovendo a sua dignidade de pessoa. Com profunda gratidão a Deus, deve-se registar que a caridade operativa nunca faltou na Igreja, verificando-se até um variado e reconfortante incremento hoje. A propósito, merece especial menção o fenómeno do voluntariado que a Igreja favorece e promove apelando à colaboração de todos para sustentá-lo e encorajá-lo nas suas iniciativas.
Para superar a mentalidade individualista hoje difundida, requer-se um concreto empenho de solidariedade e caridade que tem início no seio da família com o apoio mútuo dos esposos, e depois com os cuidados que uma geração presta à outra. Assim a família qualifica-se como comunidade de trabalho e de solidariedade. Acontece porém que, quando ela se decide a corresponder plenamente à própria vocação, pode-se encontrar privada do apoio necessário por parte do Estado, e não dispõe de recursos suficientes. É urgente promover não apenas políticas para a família, mas também políticas sociais, que tenham como principal objectivo a própria família, ajudando-a, mediante a atribuição de recursos adequados e de instrumentos eficazes de apoio quer na educação dos filhos quer no cuidado dos anciãos, evitando o seu afastamento do núcleo familiar e reforçando os laços entre as gerações (101).
Além da família, também outras sociedades intermédias desenvolvem funções primárias e constróem específicas redes de solidariedade. Estas, de facto, maturam como comunidades reais de pessoas e dinamizam o tecido social, impedindo-o de cair no anonimato e na massificação, infelizmente frequente na sociedade moderna. É na múltipla actuação de relações que vive a pessoa e cresce a "subjectividade" da sociedade. O indivíduo é hoje muitas vezes sufocado entre os dois pólos: o Estado e o mercado. Às vezes dá a impressão de que ele existe apenas como produtor e consumidor de mercadorias ou então como objecto da administração do Estado, esquecendo-se que a convivência entre os homens não se reduz ao mercado nem ao Estado, já que a pessoa possui em si mesma um valor singular, ao qual devem servir o Estado e o mercado. O homem é, acima de tudo, um ser que procura a verdade e se esforça por vivê-la e aprofundá-la num diálogo contínuo que envolve as gerações passadas e as futuras (102).
50. Por esta procura clara da verdade que se renova em cada geração, caracteriza-se a cultura da Nação. Com efeito, o património dos valores transmitidos e adquiridos é não raro submetido pelos jovens à contestação. Contestar, de resto, não quer dizer necessariamente destruir ou rejeitar de modo apriorístico, mas sobretudo pôr à prova na própria vida e, por meio desta verificação existencial, tornar tais valores mais vivos, actuais e personalizados, discernindo o que na tradição é válido daquilo que é falso e errado ou constitui formas antiquadas, que podem ser substituídas por outras mais adequadas aos novos tempos.
Neste contexto, convém lembrar que também a evangelização se insere na cultura das Nações, sustentando-a no seu caminho rumo à verdade e ajudando-a no trabalho de purificação e de enriquecimento (103). Quando, no entanto, uma cultura se fecha em si própria e procura perpetuar formas antiquadas de vida, recusando qualquer mudança e confronto com a verdade do homem, então ela torna-se estéril e entra em decadência.
51. Toda a actividade humana tem lugar no seio de uma cultura e integra-se nela. Para uma adequada formação de tal cultura, se requer a participação de todo o homem, que aí aplica a sua a criatividade, a sua inteligência, o seu conhecimento do mundo e dos homens. Aí investe ainda a sua capacidade de autodomínio, de sacrifício pessoal, de solidariedade e disponibilidade para promover o bem comum. Por isso, o primeiro e maior trabalho realiza-se no coração do homem, e o modo como ele se empenha em construir o seu futuro depende da concepção que tem de si mesmo e do seu destino. É a este nível que se coloca o contributo específico e decisivo da Igreja a favor da verdadeira cultura. Ela promove as qualidades dos comportamentos humanos, que favorecem a cultura da paz, contra os modelos que confundem o homem na massa, ignoram o papel da sua iniciativa e liberdade e põem a sua grandeza nas artes do conflito e da guerra. A Igreja presta este serviço, pregando a verdade relativa à criação do mundo, que Deus colocou nas mãos dos homens para que o tornem fecundo e mais perfeito com o seu trabalho, e pregando a verdade referente à redenção, pela qual o Filho de Deus salvou todos os homens e, simultaneamente, uniu-os entre si, tornando-os responsáveis uns pelos outros. A Sagrada Escritura fala-nos continuamente do compromisso activo a favor do irmão e apresenta-nos a exigência de uma co-responsabilidade que deve abraçar todos os homens.
Esta exigência não se restringe aos limites da própria família, nem sequer da Nação ou do Estado, mas abarca ordenadamente a humanidade inteira, de modo que ninguém se pode considerar alheio ou indiferente à sorte de outro membro da família humana. Ninguém pode afirmar que não é responsável pela sorte do próprio irmão (cf. Gn 4, 9; Lc 10, 29-37; Mt 25, 31-46)! A atenta e pressurosa solicitude em relação ao próximo, na hora da necessidade, facilitada hoje também pelos novos meios de comunicação que tornaram os homens mais vizinhos entre si, é particularmente importante quando se trata de encontrar os instrumentos de solução dos conflitos internacionais alternativos à guerra. Não é difícil afirmar que a terrível capacidade dos meios de destruição, acessíveis já às médias e pequenas potências, e a conexão cada vez mais estreita entre os povos de toda a terra, tornam muito difícil ou praticamente impossível limitar as consequências de um conflito.
52. Os pontífices Bento XV e seus sucessores compreenderam lucidamente este perigo (104), e eu próprio, por ocasião da recente guerra dramática no Golfo Pérsico, repeti o grito: "Nunca mais a guerra"! Nunca mais a guerra, que destrói a vida dos inocentes, que ensina a matar e igualmente perturba a vida dos assassinos, que deixa atrás de si um cortejo de rancores e de ódios, tornando mais difícil a justa solução dos próprios problemas que a provocaram! Como dentro dos Estados chegou finalmente o tempo em que o sistema da vingança privada e da represália foi substituído pelo império da lei, do mesmo modo é agora urgente que um progresso semelhante tenha lugar na Comunidade internacional. Não se deve esquecer também que, na raiz da guerra, geralmente há reais e graves razões: injustiças sofridas, frustração de legítimas aspirações, miséria e exploração de multidões humanas desesperadas, que não vêem possibilidade real de melhorar as suas condições, através dos caminhos da paz.
Por isso, o outro nome da paz é o desenvolvimento (105). Como existe a responsabilidade colectiva de evitar a guerra, do mesmo modo há a responsabilidade colectiva de promover o desenvolvimento. Como a nível interno é possível e obrigatório construir uma economia social que oriente o funcionamento do mercado para o bem comum, assim é necessário que hajam intervenções adequadas a nível internacional. Por isso deve-se fazer um grande esforço de recíproca compreensão, de conhecimento e de sensibilização da consciência. É esta a cultura almejada que faz crescer a confiança nas potencialidades humanas do pobre e, consequentemente, na sua capacidade de melhorar a sua condição através do trabalho, ou de dar um contributo positivo ao bem-estar económico. Para o fazer, porém, o pobre - indivíduo ou Nação - tem necessidade que lhe sejam oferecidas condições realisticamente acessíveis. Criar essas ocasiões é a tarefa de uma concertação mundial para o desenvolvimento, que implica inclusive o sacrifício das situações de lucro e de poder, usufruídas pelas economias mais desenvolvidas (106).
Isto pode acarretar importantes mudanças nos estilos consolidados de vida, com o objectivo de limitar o desperdício dos recursos ambientais e humanos, permitindo assim a todos os homens e povos da terra dispôr deles em medida suficiente. Acrescente-se a isso a valorização dos novos bens materiais e espirituais, fruto do trabalho e da cultura dos povos hoje marginalizados, obtendo-se assim o global enriquecimento humano da família das Nações.
VI - O Homem é o Caminho da Igreja
53. Em face da miséria do proletariado, Leão XIII dizia: "Abordamos este argumento com confiança e no nosso pleno direito (...). Parecer-nos-ia faltar à nossa missão, se calássemos" (107). Nos últimos 100 anos, a Igreja manifestou repetidamente o seu pensamento, seguindo de perto a evolução contínua da questão social. Não o fez para recuperar privilégios do passado ou para impor a sua concepção social. O seu único objectivo era o cuidado e a responsabilidade pelo homem, a Ela confiado pelo próprio Cristo: por este homem que, como o Concílio Vaticano II recorda, é a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma, e para a qual Deus tem o seu projecto, isto é, a participação na salvação eterna. Não se trata do homem "abstracto", mas do homem real, "concreto", "histórico": trata-se de cada homem, porque cada um foi englobado no mistério da redenção e Cristo uniu-se com cada um para sempre, através desse mistério. Disto se segue que a Igreja não pode abandonar o homem e que "este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer na realização da sua missão (...) o caminho traçado pelo próprio Cristo, caminho que invariavelmente passa pelo mistério da incarnação e da redenção" (109).
A inspiração que preside à doutrina social da Igreja é esta, e só esta. Se a foi elaborando pouco a pouco de forma sistemática, sobretudo a partir da data que comemoramos, é porque toda a riqueza doutrinal da Igreja tem como horizonte o homem, na sua concreta realidade de pecador e de justo.
54. A doutrina social hoje especialmente visa o homem, enquanto inserido na complexa rede de relações das sociedades modernas. As ciências humanas e a filosofia servem de ajuda para interpretar a centralidade do homem dentro da sociedade, e para o capacitarem a uma melhor compreensão de si mesmo, enquanto "ser social". Todavia somente a fé lhe revela plenamente a sua verdadeira identidade, e é dela precisamente que parte a doutrina social da Igreja, que, recolhendo todos os contributos das ciências e da filosofia, se propõe assistir o homem no caminho da salvação.
A Encíclica Rerum novarum pode ser lida como um importante contributo à análise sócio-económica do fim do século XIX, mas o seu valor particular deriva de ela ser um Documento do Magistério que se insere perfeitamente na missão evangelizadora da Igreja, conjuntamente com muitos outros Documentos desta natureza. Daqui resulta que a doutrina social, por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização: enquanto tal, anuncia Deus e o mistério de salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo. A esta luz, e somente nela, se ocupa do resto: dos direitos humanos de cada um e, em particular, do "proletariado", da família e da educação, dos deveres do Estado, do ordenamento da sociedade nacional e internacional, da vida económica, da cultura, da guerra e da paz, do respeito pela vida desde o momento da concepção até à morte.
55. A Igreja recebe o "sentido do homem" da Revelação divina. "Para conhecer o homem, o homem verdadeiro, o homem integral, é preciso conhecer Deus", dizia Paulo VI, citando imediatamente Santa Catarina de Sena, que, em oração, exprimia a mesma doutrina: "Na tua natureza, Divindade eterna, conhecerei a minha natureza" (110).
Portanto, a antropologia cristã é realmente um capítulo da teologia e, pela mesma razão, a doutrina social da Igreja, ocupando-se do homem, interassando-se por ele e pelo seu modo de se comportar no mundo, "pertence (...) ao campo da teologia e especialmente da teologia moral" (11). A dimensão teológica revela-se necessária para interpretar e resolver os problemas actuais da convivência humana. Isto é válido - tenha-se na devida conta - tanto no que se refere à solução "ateia", que priva o homem de uma das suas componentes fundamentais, a espiritual, quanto no que diz respeito às soluções permissivas e consumísticas, que buscam, sob vários pretextos, convencê-lo da sua independência de toda a lei e de Deus, encerrando-o num egoísmo que acaba por lesar a si e aos outros.
Quando a Igreja anuncia ao homem a salvação de Deus, quando lhe oferece e comunica, através dos sacramentos, a vida divina, quando orienta a sua vida segundo os mandamentos do amor a Deus e ao próximo, contribui para a valorização da dignidade do homem. Mas como nunca poderá abandonar esta sua missão religiosa e transcendente a favor do homem, eis porque se empenha sempre com novas forças e novos métodos na evangelização que promove o homem todo. Apesar de se dar conta de que a sua obra encontra hoje particulares dificuldades e obstáculos, a Igreja, quase ao início do Terceiro Milénio, permanece "sinal e salvaguarda do carácter transcendente da pessoa humana" (112) como, aliás, sempre procurou fazer, desde o princípio da sua existência, caminhando conjuntamente com o homem, ao longo de toda a história. A Encíclica Rerum novarum é disso uma expressão significativa.
56. Quero agradecer, no centenário desta Encíclica, a todos os que se empenharam em estudar, aprofundar e divulgar a doutrina social cristã. Para este fim, é indispensável a colaboração das Igrejas locais e faço votos de que a ocorrência seja motivo de um novo estímulo para o seu estudo, divulgação e aplicação nos múltiplos âmbitos da realidade.
Desejava, de modo particular, que ela fosse dada a conhecer e actuada nos Países, onde, após a queda do socialismo real, se revela uma grave desorientação na obra de reconstrução. Por sua vez os Países ocidentais correm o perigo de verem, nesta derrocada, a vitória unilateral do próprio sistema sócio-económico, sem se preocuparem, por isso, em fazerem nele as devidas correcções. Depois os Países do Terceiro Mundo encontram-se mais que nunca na dramática situação do subdesenvolvimento, que cada dia se torna mais grave.
Leão XIII, depois de ter formulado os princípios e as orientações para a solução da questão operária, escreveu esta palavra decisiva: "Cada um realize a parte que lhe compete e não demore porque o atraso poderia ainda tornar mais difícil a cura de um mal já tão grave", acrescentando ainda: "Quanto à Igreja, não deixará de modo nenhum faltar a sua quota-parte" (113).
57. Para a Igreja, a mensagem social do Evangelho não deve ser considerada uma teoria, mas sobretudo um fundamento e uma motivação para a acção. Impelidos por esta mensagem, alguns dos primeiros cristãos distribuíam os seus bens pelos pobres e davam testemunho de que era possível uma convivência pacífica e solidária, apesar das diversas proveniências sociais. Pela força do Evangelho, ao longo dos séculos, os monges cultivaram as terras, os religiosos e as religiosas fundaram hospitais e asilos para os pobres, as confrarias, bem como homens e mulheres de todas as condições empenharam-se a favor dos pobres e dos marginalizados, convencidos de que as palavras de Cristo: "Cada vez que fizestes estas coisas a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes" (Mt 25, 40), não deviam permanecer um piedoso desejo, mas tornar-se um compromisso concreto de vida.
A Igreja está consciente hoje mais que nunca de que a sua mensagem social encontrará credibilidade primeiro no testemunho das obras e só depois na sua coerência e lógica interna. Desta convicção provém também a sua opção preferencial pelos pobres, que nunca será exclusiva nem descriminatória relativamente aos outros grupos. Trata-se, de facto, de uma opção que não se estende apenas à pobreza material, dado que se encontram, especialmente na sociedade moderna, formas de pobreza não só económica mas também cultural e religiosa. O amor da Igreja pelos pobres, que é decisivo e pertence à sua constante tradição, impele-a a dirigir-se ao mundo no qual, apesar do progresso técnico-económico, a pobreza ameaça assumir formas gigantescas. Nos Países ocidentais, existe a variada pobreza dos grupos marginalizados, dos anciãos e doentes, das vítimas do consumismo, e ainda de tantos refugiados e emigrantes; nos Países em vias de desenvolvimento, desenham-se no horizonte crises dramáticas se não forem tomadas medidas internacionalmente coordenadas.
58. O amor ao homem - e em primeiro lugar ao pobre, no qual a Igreja vê Cristo - concretiza-se na promoção da justica. Esta nunca se poderá realizar plenamente, se os homens não deixarem de ver no necessitado, que pede ajuda para a sua vida, um importuno ou um fardo, para reconhecerem nele a ocasião de um bem em si, a possibilidade de uma riqueza maior. Só esta consciência dará a coragem para enfrentar o risco e a mudança implícita em toda a tentativa de ir em socorro do outro homem. De facto, não se trata apenas de "dar o supérfluo", mas de ajudar povos inteiros, que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo do desenvolvimento económico e humano. Isto será possível não só fazendo uso do supérfluo, que o nosso mundo produz em abundância, mas sobretudo alterando os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades. Não se trata de destruir instrumentos de organização social que deram boa prova de si, mas principalmente de os orientar segundo uma concepção adequada do bem comum dirigido a toda a família humana. Hoje está-se a verificar a denominada "mundialização da economia", fenómeno este que não deve ser desprezado, porque pode criar ocasiões extraordinárias de maior bem-estar. Mas é sentida uma necessidade cada vez maior de que a esta crescente internacionalização da economia correspondam válidos organismos internacionais de controle e orientação que encaminhem a economia para o bem comum, já que nenhum Estado por si só, ainda que fosse o mais poderoso da terra, seria capaz de o fazer. Para poder conseguir tal resultado é necessário que cresça o entendimento entre os grandes Países, e que nos organismos internacionais sejam equitativamente representados os interesses da grande família humana. Mas impõe-se também que, ao avaliarem as consequências das suas decisões, tenham em devida conta aqueles povos e Países que têm escasso peso no mercado internacional, mas em si concentram as necessidades mais graves e dolorosas, e necessitam de maior apoio para o seu desenvolvimento. Sem dúvida, há ainda muito a fazer neste campo.
59. Para se cumprir a justiça e serem bem sucedidas as tentativas dos homens para a realizar, é necessário o dom da graça que vem de Deus. Por meio dela, em colaboração com a liberdade dos homens, obtém-se aquela misteriosa presença de Deus na história que é a Providência.
A experiência da novidade vivida no seguimento de Cristo requer a sua comunicação aos outros homens, nas situações concretas das suas dificuldades, lutas, problemas e desafios, para que sejam iluminadas e tornadas mais humanas à luz da fé. Esta não ajuda simplesmente a encontrar soluções, mas torna humanamente aceitáveis inclusive as situações de sofrimento, de modo que nelas o homem não se perca nem esqueça a sua dignidade e vocação.
A doutrina social tem, além disso, uma importante dimensão interdisciplinar. Para encarnar melhor nos diversos contextos sociais, económicos e políticos em contínua mutação, essa doutrina entra em diálogo com diversas disciplinas que se ocupam do homem, assumindo em si os contributos que delas provêm, e ajudando-as, por sua vez, a abrir-se numa dimensão mais ampla ao serviço de cada pessoa, conhecida e amada na plenitude da sua vocação.
A par desta dimensão interdisciplinar, aparece depois a dimensão prática e em certo sentido experimental desta doutrina. De facto, ela situa-se no cruzamento da vida e da consciência cristã com as situações do mundo e exprime-se nos esforços que indivíduos, famílias, agentes culturais e sociais, políticos e homens de Estado realizam para lhe dar forma e aplicação na história.
60. Ao anunciar os princípios para a solução da questão operária, Leão XIII escrevia: "A solução de um problema tão árduo requer o concurso e a cooperação eficaz de outros também" (114). Ele estava convencido que os graves problemas, causados pela sociedade industrial, só podiam ser resolvidos pela colaboração entre todas as forças intervenientes. Essa afirmação tornou-se um elemento permanente da doutrina social da Igreja, e isto explica, entre outras razões, porquê o Papa João XXIII dirigiu a sua Encíclica sobre a paz, também a "todos os homens de boa vontade".
Todavia Leão XIII constatava com tristeza que as ideologias do tempo, especialmente o liberalismo e o marxismo, recusavam essa colaboração. Entretanto muitas coisas mudaram, especialmente nos últimos anos. O mundo de hoje está sempre mais consciente de que a solução dos graves problemas nacionais e internacionais não é apenas uma questão de produção económica ou de uma organização jurídica ou social, mas requer valores ético-religiosos específicos, bem como mudanças de mentalidade, de comportamentos e de estruturas. A Igreja sente-se particularmente responsável em oferecer este contributo e, como escrevi na Encíclica Sollicitudo rei socialis, há fundada esperança de que mesmo o grupo numeroso dos que não professam explicitamente uma religião possa contribuir para esse fundamento ético necessário à questão social (115).
No mesmo Documento, dirigi precisamente um apelo às Igrejas cristãs e a todas as grandes religiões do mundo, convidando-as a dar um testemunho unânime das nossas convicções comuns sobre a dignidade do homem, criado por Deus (116). De facto, estou persuadido que as religiões têm hoje e continuarão a ter um papel proeminente a desempenhar na conservação da paz e na construção de uma sociedade digna do homem.
A disponibilidade para o diálogo e colaboração vale, além disso, para todos os homens de boa vontade e, de modo particular, para as pessoas e grupos com uma responsabilidade específica no campo político, económico e social tanto a nível nacional como internacional.
61. No início da sociedade industrial, foi "o jugo quase servil" que obrigou o meu predecessor a tomar a palavra em defesa do homem. Nestes cem anos, a Igreja permaneceu fiel a esse empenho! De facto, interveio nos anos turbolentos da luta de classes, a seguir à primeira guerra mundial, para defender o homem da exploração económica e da tirania dos sistemas totalitários. Colocou a dignidade de pessoa no centro das suas mensagens sociais, após a segunda guerra mundial, insistindo sobre o destino universal dos bens materiais, sobre uma ordem social sem opressão e fundada no espírito de colaboração e solidariedade. Depois reiterou constantemente que a pessoa e a sociedade não têm necessidade apenas destes bens, mas também de valores espirituais e religiosos. Além disso, tendo verificado cada vez mais como tantos homens vivem, não no bem-estar do mundo ocidental, mas na miséria dos Países em vias de desenvolvimento e padecem uma condição que é ainda a do "jugo quase servil", sentiu-se na obrigação de denunciar essa realidade clara e francamente, embora sabendo que este seu grito não será sempre acolhido favoravelmente por todos.
Cem anos depois da publicação da Rerum novarum, a Igreja encontra-se ainda diante de "coisas novas" e de novos desafios. Por isso, este centenário da Encíclica deve confirmar em sua tarefa todos os "homens de boa vontade", e especialmente os crentes.
62. Esta minha Encíclica quis olhar ao passado, mas ela está sobretudo lançada para o futuro. Como a Rerum novarum, ela coloca-se quase no limiar do novo século e deseja, com a ajuda de Deus, preparar a sua vinda.
A verdadeira e perene "novidade das coisas" em cada tempo provém do infinito poder divino, que diz: "Eis que eu faço novas todas as coisas" (Ap 21, 5). Estas palavras referem-se à conclusão da história quando Cristo "entregar o reino a Deus Pai (...) para que Deus seja tudo em todos" (1 Cor 15, 24.28). Mas o cristão sabe que esta novidade, cuja plenitude aguardamos com o Regresso do Senhor, está presente desde a criação do mundo, e, mais precisamente, desde que Deus se fez homem em Jesus Cristo, e com Ele e por Ele realizou uma "nova criação" (2 Cor 5, 17; Gal 6, 15).
Ao concluir, quero agradecer a Deus omnipotente por ter dado à sua Igreja a luz e a força para acompanhar o homem no seu caminho terreno para o destino eterno. A Igreja, também no Terceiro Milénio, permanecerá fiel no assumir como próprio o caminho do homem, sabendo que não caminha só, mas com Cristo, seu Senhor. Foi Ele que fez Seu o caminho do homem, e o guia mesmo quando ele disso não se dá conta.
Maria, a Mãe do Redentor, que permaneceu ao lado de Cristo, no seu caminho ao encontro dos homens e com os homens, e precede a Igreja na peregrinação da fé, acompanhe, com Sua maternal intercessão, a humanidade em direcção ao próximo Milénio, na fidelidade Àquele que "ontem como hoje, é o mesmo e sê-lo-á para sempre" (cf. Heb 13, 8), Jesus Cristo, Nosso Senhor, em Nome do Qual a todos abençoo.
- Dado em Roma, junto de S. Pedro, na memória de S. José Operário, dia 1 de Maio do ano de 1991, décimo terceiro de pontificado.
Dall'Alto Dell'Apostolico Seggio
ENCÍCLICA
DALL'ALTO DELL'APOSTOLICO SEGGIO
DO PAPA LEÃO XIII
SOBRE A MAÇONARIA NA ITÁLIA
Aos Bispos, ao Clero, e ao Povo da Itália.
Veneráveis Irmãos e Amados Filhos, Saúde e Bênção Apostólica.
1. Do alto do Trono Apostólico, aonde a Providência Divina Nos colocou para vigiar pela salvação de todas as nações, Nós olhamos sobre a Itália em cujo seio, por um ato de singular predilecção, Deus estabeleceu a Sede de Seu Vigário, e da qual Nos vem no tempo presente muitas e amarguíssimas tristezas.
Não é nenhuma ofensa pessoal que Nos entristece, nem as privações e sacrifícios impostos a Nós pela actual condição das coisas, nem os ultrajes e escárnios que uma imprensa insolente tem todo o poder para atirar todos os dias contra Nós. Se somente a Nossa pessoa estivesse envolvida, e não a ruína à qual a Itália ameaçada em sua fé está se atirando, Nós suportaríamos estas ofensas sem reclamar, alegrando-Nos até por repetir o que um de Nossos mais ilustres Predecessores disse de si mesmo: "Se o aprisionamento do meu país não aumentasse a cada momento e a cada dia, quanto ao desprezo e escárnio de mim mesmo eu alegremente silenciaria."[1]
Mas, além da independência e dignidade da Santa Sé, a própria religião e a salvação de toda uma nação estão envolvidas, de uma nação que desde os primeiros tempos abriu o seu seio à Fé Católica e sempre a tem zelosamente preservado. Por incrível que pareça, é verdade; a tal ponto chegamos, que devemos temer que esta nossa Itália perca até a fé.
Muitas vezes Nós soamos o alarme, para advertir do perigo; mas por este motivo Nós não pensamos que tenhamos feito o suficiente. Em face aos continuados e ainda mais furiosos assaltos que são feitos, Nós ouvimos a voz do dever chamando-Nos mais poderosamente do que antes para falar-vos novamente, Veneráveis Irmãos, aos seus Clérigos, e a todo o povo italiano. Uma vez que o inimigo não dá trégua, então nem vós nem Nós podemos permanecer calados ou inertes. Pela Divina misericórdia Nós fomos constituídos guardiões e defensores da religião do povo confiado ao Nosso cuidado, Pastores e vigilantes sentinelas do rebanho de Cristo; e por este rebanho Nós devemos estar prontos, se necessário, a sacrificar tudo, até a própria vida.
2. Nós não diremos nada de novo; pois os fatos não mudaram daquilo que eles eram, e Nós em outros tempos falamos sobre eles quando a oportunidade surgiu.
Mas Nós agora pretendemos recapitular estes fatos de algum modo, e agrupá-los em uma única imagem, de modo a deduzir para instrução geral as consequências que seguem deles. Os fatos são incontestáveis e aconteceram à clara luz do dia; não separados uns dos outros, mas tão conectados entre si em uma série de modo a revelar com a mais completa evidência um sistema do qual eles são a verdadeira operação e desenvolvimento. O sistema não é novo; mas a audácia, a fúria, e a rapidez com as quais ele está sendo levado adiante agora, são novas. É o plano das seitas que está agora se desenrolando na Itália, especialmente no que se refere à religião Católica e à Igreja, com o propósito final e jurado, se isso fosse possível, de reduzi-la a nada.
Agora é desnecessário colocar as seitas Maçónicas em julgamento. Elas já estão julgadas; seus fins, seus meios, suas doutrinas, e sua acção, são todos conhecidos com indisputável certeza. Possuídos pelo espírito de Satanás, cujos instrumentos eles são, eles ardem como ele com um ódio mortal e implacável a Jesus Cristo e Sua obra; e eles se esforçam por todos os meios para derrubá-la e acorrentá-la. Esta guerra no momento presente se desenrola mais do que em qualquer outro lugar na Itália, na qual a religião Católica se enraizou mais profundamente; e acima de tudo em Roma, o centro da unidade Católica, e a Sede do Pastor Universal e Mestre da Igreja.
3. É bom traçar desde o início as diferentes fases deste combate.
4. A guerra começou pela derrubada do poder civil dos Papas, cuja queda, de acordo com as intenções secretas dos verdadeiros líderes, mais tarde abertamente declarada, era, sob um pretexto político, para ser o meio de pelo menos escravizar, se não destruir, o supremo poder espiritual dos Pontífices Romanos.
Para que nenhuma dúvida restasse quanto ao verdadeiro objectivo desta guerra, seguiu-se rapidamente a supressão das Ordens Religiosas; e portanto uma grande redução no número de operários evangélicos para a propagação da fé entre os pagãos, e para o ministério sagrado e serviço religioso nos países Católicos.
Mais tarde, a obrigação do serviço militar foi estendida aos clérigos, com o necessário resultado de que muitos e graves obstáculos foram colocados no recrutamento e devida formação até do Clero secular. Lançaram mãos das propriedades eclesiásticas, em parte por absoluto confisco, e em parte taxando-as com enormes cargas, de modo a empobrecer o Clero e a Igreja, e privar a Igreja do que é necessário para seu suporte temporal e para levar adiante instituições e obras auxiliares ao seu divino apostolado. Isto os próprios sectários abertamente declararam. Para diminuir a influência do Clero e de corpos clericais, apenas um meio eficaz precisa ser usado: tirar deles todos os seus bens, e reduzi-los à absoluta pobreza. Assim também a acção do Estado é em si mesma toda dirigida para erradicar da nação seu carácter religioso e Cristão. Das leis, e de toda a vida oficial, toda inspiração e ideia religiosa é sistematicamente banida, quando não directamente atacada. Cada manifestação pública de fé e de piedade Católica é ou proibida ou, sob pretextos vãos, de mil maneiras impedida.
Da família são tiradas sua fundação e constituição religiosa pela proclamação do casamento civil, como ele é chamado; e também pela educação inteiramente leiga que agora é exigida, dos primeiros elementos até o mais alto ensino das universidades, de modo que as gerações em crescimento, tanto quanto isto possa ser afectado pelo Estado, devem crescer sem qualquer ideia de religião, e sem as primeiras noções essenciais de seus deveres para com Deus. Isto é colocar o machado na raiz. Nenhum meio mais universal e eficaz poderia ser imaginado de retirar a sociedade, as famílias, e os indivíduos, da influência da Igreja e da fé. Demolir o Clericalismo (ou Catolicismo) até os seus fundamentos e em suas próprias fontes de vida, especificamente, na escola e na família: esta é a autêntica declaração dos escritores Maçons.
5. Será dito que isto não acontece somente na Itália, mas é um sistema de governo que os Estados seguem de modo geral.
Nós respondemos, que isto não refuta, mas confirma o que Nós estamos dizendo sobre os desígnios e acção da Maçonaria na Itália. Sim, este sistema é adoptado e levado adiante aonde quer que a Maçonaria use sua acção ímpia e pervertida; e, como a sua acção é largamente difundida, do mesmo modo este sistema anticristão é largamente aplicado. Mas a aplicação se torna mais veloz e geral, e é levada a maiores extremos, em países aonde o governo está mais sob o controle da seita e melhor promove os seus interesses. Infelizmente, no momento presente a nova Itália está entre estes países. Não apenas hoje ela está sujeita à pervertida e maligna influência das seitas; mas já por algum tempo eles a têm tiranizado como quiseram, com absoluto domínio e poder. Agora a direcção dos assuntos públicos, no que diz respeito à religião, está totalmente em conformidade com as aspirações das seitas; e para atingir as suas aspirações, eles encontram auxiliadores declarados e instrumentos de prontidão naqueles que detém o poder público. Leis adversas à Igreja e medidas hostis a ela são primeiro propostas, decididas, e resolvidas, nos encontros secretos da seita; e se algo apresenta até a mínima aparência de hostilidade ou prejuízo à Igreja, é imediatamente recebido favoravelmente e levado adiante.
Entre os fatos mais recentes Nós podemos mencionar a aprovação do novo código penal, no qual o que era mais obstinadamente exigido, a despeito de todas as razões em contrário, eram os artigos contra o Clero, que forma para eles uma lei excepcional, e até condenam como criminosas certas acções que são deveres sagrados de seus ministros.
A lei quanto às obras de piedade, pela qual qualquer propriedade de caridade, acumulada pela piedade e religião de nossos ancestrais sob a protecção e a guarda da Igreja, foi retirada completamente da acção e controle da Igreja, foi por alguns anos levada adiante nos encontros da seita, precisamente porque iria infligir um novo ultraje à Igreja, diminuir sua influência social, e suprimir imediatamente um grande número de doações feitas para o culto divino.
Então veio aquela obra eminentemente sectária, a erecção do monumento ao renomado apóstata de Nola, o qual, com a ajuda e favor do governo, foi promovido, determinado, e levado adiante pela Maçonaria, cujo mais autorizado porta-voz não se envergonhou de reconhecer o seu propósito e declarar seu significado. Seu propósito era insultar o Papado; seu significado que, ao invés da Fé Católica, deve agora haver em substituição a mais absoluta liberdade de examinação, de crítica, de pensamento, e de consciência: e o que é entendido por tal linguagem na boca das seitas é bem conhecido.
O selo foi colocado pelas mais explícitas declarações feitas pelo chefe de governo, que eram no seguinte sentido: - Que o verdadeiro e real conflito, que o governo tem o mérito de entender, é o conflito entre a fé e a Igreja de um lado e a livre examinação e a razão do outro. Que a Igreja tente fazer como ela fez antes, acorrentar novamente a razão e o livre-pensar, e prevalecer; mas o governo neste conflito declara-se abertamente a favor da razão como contrária à fé, e toma sobre si mesmo a tarefa de fazer do Estado Italiano a expressão evidente desta razão e liberdade: uma triste tarefa, que agora há pouco foi enfaticamente reafirmada em uma ocasião semelhante.
6. À luz de tais fatos e tais declarações como estas, é mais do que nunca claro que a ideia dominante que, em tudo que diz respeito à religião, controla o curso dos assuntos públicos na Itália, é a realização do programa Maçónico. Nós vemos quanto já foi realizado; nós sabemos quanto ainda resta a ser feito; e nós podemos prever com certeza que, enquanto os destinos da Itália estiverem nas mãos de governantes sectários ou de homens sujeitos às seitas, a realização do programa será forçada adiante, mais ou menos rapidamente de acordo com as circunstâncias, até o seu completo desenvolvimento.
A acção das seitas é no presente dirigida para atingir os seguintes objectivos, de acordo com os votos e resoluções passadas em suas mais importantes assembleias, - votos e resoluções inspirados por um ódio mortal à Igreja. A abolição nas escolas de qualquer tipo da instrução religiosa, e a fundação de instituições nas quais até as moças devem ser retiradas de toda influência clerical, qualquer que ela possa ser; porque o Estado, que deve ser absolutamente ateu, tem o inalienável direito e dever de formar o coração e os espíritos de seus cidadãos, e nenhuma escola deveria existir fora de sua inspiração e controle.
A aplicação rigorosa de todas as leis agora vigorando, que visam assegurar a absoluta independência da sociedade civil da influência clerical.
A estrita observância de leis suprimindo corporações religiosas, e o emprego de meios para fazê-las efectivas.
O controle de todas propriedades eclesiásticas, partindo do princípio que a sua propriedade pertence ao Estado, e a sua administração ao poder civil.
A exclusão de todo elemento Católico ou clerical de todas administrações públicas, de obras de caridade, hospitais, e escolas, dos conselhos que governam os destinos do país, de uniões académicas e semelhantes, de companhias, comités, e famílias, - uma exclusão de tudo, em qualquer lugar, e para sempre. Ao invés, a influência Maçónica deve ser sentida em todas as circunstâncias da vida social, e se tornar mestra e controladora de tudo.
Por meio disto o caminho vai ser aplainado em direcção à abolição do Papado; a Itália irá deste modo ser livre de seu implacável e mortal inimigo; e Roma, que no passado foi o centro da Teocracia universal no futuro será o centro da secularização universal, do qual a Carta Magna da liberdade humana deve ser proclamada à face do mundo inteiro. Estas são as autênticas declarações, aspirações, e resoluções, dos Maçons ou de suas assembleias.
7. Sem exagero, esta é a presente condição e a futura perspectiva da religião na Itália. Encolher-se para não ver a gravidade disto seria um erro fatal. Reconhecer isto como é, confrontar isto com a prudência e fortaleza evangélicas, inferir os deveres que isto impõe sobre todos os Católicos, e sobre nós especialmente que como Pastores temos que vigiar sobre eles e guiá-los à salvação, é entrar nos olhares da Providência, fazer uma obra de sabedoria e zelo pastoral.
Tanto quanto diz respeito a Nós, o ofício Apostólico põe sobre Nós o dever de protestar em alta voz mais uma vez contra tudo que tem sido feito, está sendo feito, ou está sendo tentado na Itália para prejudicar a religião. Defendendo e guardando os direitos sagrados da Igreja e do Pontificado, Nós abertamente repelimos e denunciamos a todo o mundo Católico os ultrajes que a Igreja e o Pontificado estão continuamente recebendo, especialmente em Roma, e que nos atrapalham no governo da Igreja Católica, e adicionam dificuldade e indignidade à Nossa condição. Nós estamos determinados a não omitir nada de Nossa parte que possa servir para manter a fé viva e vigorosa entre o povo italiano, e para protegê-lo contra os assaltos de seus inimigos. Nós, portanto, fazemos um apelo, Veneráveis Irmãos, ao vosso zelo e vosso grande amor pelas almas, de modo que, possuídos com um sentido da gravidade e do perigo no qual elas incorrem, vós possais aplicar os remédios adequados e fazer tudo o que puderdes para dispersar este perigo.
8. Nenhum meio que esteja em vosso poder deve ser negligenciado. Todos os recursos da palavra, todo expediente na acção, todos os imensos tesouros de socorro e graça que a Igreja coloca em vossas mãos, devem ser usados, para a formação de um Clero instruído e cheio do espírito de Jesus Cristo, para a educação cristã dos jovens, para a extirpação de doutrinas malignas, para a defesa das verdades Católicas, e para a manutenção do carácter Cristão e do espírito de vida familiar.
9. Quanto ao povo Católico, antes de mais nada é necessário que eles sejam instruídos quanto ao verdadeiro estado de coisas na Itália no que diz respeito à religião, o carácter essencialmente religioso do conflito na Itália contra o Pontífice, e os objectivos reais constantemente visados, para que eles possam ver pela evidência dos fatos os muitos modos pelos quais se conspira contra a sua religião, e possam se convencer do risco que eles correm de serem roubados e despojados do inestimável tesouro da fé.
Com esta convicção em suas mentes, e tendo ao mesmo tempo a certeza de que sem fé é impossível agradar a Deus e ser salvo, eles irão entender que o que agora está em jogo é o maior, para não dizer o único interesse, o qual cada um na terra está obrigado antes de todas as coisas, ao custo de qualquer sacrifício, a colocar fora de perigo, sob pena de miséria eterna. Eles irão, ainda mais, facilmente entender que, neste tempo de aberto e furioso conflito, seria desgraçante para eles desertarem do campo e se esconderem. Seu dever é permanecer em seus postos, e abertamente mostrar serem verdadeiros católicos por suas crenças e acções, em conformidade com a sua fé. Isto eles devem fazer pela honra de sua fé, e a glória do Soberano Líder cuja bandeira eles seguem; e para que eles possam escapar do grande infortúnio de serem repudiados no último dia, e de não serem reconhecidos como Seus pelo Supremo Juiz que declarou que qualquer um que não está com Ele está contra Ele.
Sem ostentação ou timidez, que eles dêem prova daquela verdadeira coragem que vem da consciência de cumprir um dever sagrado perante Deus e os homens. A esta franca profissão de fé os Católicos devem unir uma perfeita docilidade e amor filial para com a Igreja, um respeito sincero por seus Bispos, e uma absoluta devoção e obediência ao Pontífice Romano. Em uma palavra, eles irão reconhecer quão necessário é largar tudo que seja obra das seitas, ou que receba impulso ou favor da parte deles, como sendo sem dúvida alguma infectado pelo espírito anticristão; e eles irão, ao contrário, devotar-se com actividade, coragem e constância, a obras Católicas, e às associações e instituições que a Igreja abençoou, e que os Bispos e o Pontífice Romano encorajam e mantêm.
Além disso, vendo que o principal instrumento empregado por nossos inimigos é a imprensa, que em grande parte recebe deles sua inspiração e suporte, é importante que os Católicos se oponham à imprensa maligna por uma imprensa que seja boa, para a defesa da verdade, nascida do amor à religião, e para sustentar os direitos da Igreja. Enquanto a imprensa Católica estiver ocupada em deixar nus os desígnios pérfidos das seitas, em ajudar e defender as acções dos sagrados Pastores, e em defender a promover as obras Católicas, é dever os fiéis suportar eficazmente esta imprensa, - recusando ou cessando de favorecer de qualquer modo a imprensa maligna; e também directamente, concorrendo, tanto quanto cada um possa, para ajudá-la a viver e florescer: e neste assunto Nós pensamos que até agora não foi feito o suficiente na Itália.
Finalmente, o ensinamento dirigido por Nós a todos os Católicos, especialmente nas encíclicas "Humanum genus" e "Sapientiae Christianae", deveria ser particularmente aplicado aos Católicos da Itália, e ser imprimido sobre eles. Se eles têm algo a sofrer ou a sacrificar para permanecer fiéis aos seus deveres, que eles tomem coragem no pensamento de que o Reino dos Céus sofre violência e é ganhado somente fazendo violência a nós mesmos; e que aquele que ama a si mesmo e o que é seu mais do que Jesus Cristo, não é digno d'Ele. O exemplo dos muitos campeões invencíveis que, em todos os tempos, generosamente sacrificaram tudo pela fé, e os especiais auxílios da graça que fazem o jugo de Jesus Cristo suave e Seu fardo leve, devem animar poderosamente a sua coragem e sustentá-los no glorioso combate.
10. Até agora Nós temos considerado apenas o lado religioso do presente estado de coisas na Itália, uma vez que este é para Nós o mais essencial, e o assunto que eminentemente diz respeito a Nós em razão do ofício Apostólico que Nós temos. Mas é valioso considerar também o lado social e político, para que os italianos possam ver que não apenas o amor pela religião, mas também o mais nobre e sincero amor à pátria deveria incitá-los a resistir às ímpias tentativas das seitas. - Como uma prova convincente disto, é suficiente notar o tipo de futuro, na ordem social e política, que está sendo preparado para a Itália por homens cujo objectivo é - e eles não fazem segredo disto - combater uma guerra sem trégua contra o Catolicismo e o Papado.
11. Já o teste do passado fala eloquentemente por si mesmo.
O que a Itália se tornou neste primeiro Período de sua nova vida, quanto à moralidade pública e privada, segurança interna, ordem e paz, riqueza nacional e prosperidade, tudo isto é conhecido por vós pelos fatos, Veneráveis Irmãos, melhor do que Nós poderíamos descrever em palavras. Os próprios homens cujo interesse seria esconder tudo isto, são constrangidos pela verdade a admiti-lo. Nós apenas diremos que, sob as presentes condições, uma necessidade triste mas real, as coisas não poderiam ser de outro modo: a seita Maçónica, com toda a sua jactância de um espírito de beneficência e filantropia, pode apenas exercer uma influência maligna - uma influência que é maligna porque ataca e esforça-se por destruir a religião de Cristo, a verdadeira benfeitora da humanidade.
12. Todos sabem com que efeito salutar e em quantos modos a influência da religião penetra a sociedade. Está além de disputa que a sólida moralidade pública e privada dá honra e força aos Estados. Mas é igualmente certo que, sem religião não há verdadeira moralidade, pública ou privada.
Da família, solidamente baseada em seus fundamentos naturais, vem a vida, o crescimento, e a energia da sociedade. Mas sem religião, e sem moralidade, a parceria doméstica não tem estabilidade, e os laços familiares se tornam mais fracos e se rompem.
A prosperidade dos povos e das nações vem de Deus e de Suas bênçãos. Se um povo não atribui a sua prosperidade a Ele, mas se levanta contra Ele, e no orgulho de seu coração tacitamente diz a Ele que não tem necessidade d'Ele, sua prosperidade é apenas uma imagem, certa a desaparecer tão logo agrade ao Senhor confundir a orgulhosa insolência de Seus inimigos.
É a religião que, penetrando no fundo da consciência de cada um, faz com que ele sinta a força do dever e incita-o a cumpri-lo. É a religião que dá aos governantes sentimentos de justiça e amor para com seus súbditos; que faz os súbditos fiéis e sinceramente devotados aos seus governantes; que faz legisladores rectos e bons, magistrados justos e incorruptíveis, soldados bravos e heróicos, administradores conscienciosos e diligentes. É a religião que produz concórdia e afeição entre marido e esposa, amor e reverência entre os pais e seus filhos; que faz os pobres respeitarem as propriedades dos outros, e faz com que os ricos façam um uso justo de sua riqueza. Desta fidelidade ao dever, e deste respeito pelos direitos dos outros vem a ordem, a tranquilidade, e a paz, que formam uma parte tão importante da prosperidade de um povo e de um Estado. Tire a religião, e com ela todos estes benefícios imensamente preciosos desaparecerão da sociedade.
13. Para a Itália, além disso, a perda seria sensível.
Todas as suas glórias e grandezas, que por um longo tempo deram a ela o primeiro lugar entre as mais cultas nações, são inseparáveis da religião, que ou as produziu ou as inspirou, ou certamente as favoreceu, ajudou, e aumentou. Suas comunas nos falam de suas liberdades públicas: de suas glórias militares nós lemos em suas muitas memoráveis empresas contra os inimigos do nome Cristão. Suas ciências são vistas em suas universidades que, fundadas, mantidas, e privilegiadas pela Igreja, têm sido sua casa e teatro. Suas artes são mostradas nos inumeráveis monumentos de todo tipo com os quais a Itália está profusamente coberta. De suas instituições para auxílio dos sofredores, para os miseráveis e as classes trabalhadoras nós temos evidência em suas muitas fundações de caridade Cristã, nos muitos asilos estabelecidos para todo tipo de necessidade e infortúnio, e nas associações e corporações que cresceram sob a protecção da religião. A virtude e a força da religião são imortais porque a religião é de Deus. Ela tem tesouros de auxílio e eficacíssimos remédios, que podem ser maravilhosamente adaptados às necessidades de cada tempo e época. O que a religião tem sabido como fazer e tem feito em tempos passados, ela pode fazer também agora com uma virtude sempre fresca e vigorosa. Retirar a religião da Itália, é secar imediatamente a mais abundante fonte de inestimável auxílio e benefícios.
14. Além disso, um dos maiores e mais formidáveis perigos da sociedade de hoje, é a agitação dos Socialistas, que ameaçam levantá-la de seus fundamentos. Deste grande perigo a Itália não está livre; e embora outras nações possam estar mais infestadas do que a Itália por este espírito de subversão e desordem, não é entretanto menos verdadeiro que até aqui este espírito está se espalhando largamente e aumentando a cada dia em força. Tão criminosa é sua natureza, tão grande o poder de sua organização e a audácia de seus desígnios, que é necessário unir todas as forças conservadoras, se quisermos impedir seu progresso e evitar com sucesso o seu triunfo. Destas forças a principal, e sobre todas a chefe, é aquela que pode ser fornecida pela religião e a Igreja: sem isto, as mais estritas leis, os mais severos tribunais, e até a força das armas, vão se provar sem utilidade e insuficiente. Como, em tempos antigos, a força material não adiantou contra as hordas dos bárbaros, mas somente o poder da religião Cristã, que entrando em suas almas apagou sua ferocidade, civilizou suas maneiras, e os fez dóceis à voz da verdade e à lei do evangelho; do mesmo modo contra a fúria das multidões sem lei não haverá defesa efectiva sem o salutar poder da religião. É somente este poder que, derramando sobre suas mentes a luz da verdade, e instilando em seus corações os sagrados preceitos morais de Jesus Cristo, pode fazê-los ouvir a voz da consciência e do dever, e, antes de restringir suas mãos, restringir suas mentes e acalmar a violência da paixão.
Atacar a religião, é portanto privar a Itália de seu mais poderoso aliado contra um inimigo que se torna a cada dia mais formidável.
15. Mas isto não é tudo.
Como, na ordem social, a guerra contra a religião está se tornando mais desastrosa e destrutiva para a Itália, do mesmo modo, na ordem política, a inimizade contra a Santa Sé e o Pontífice Romano é para a Itália uma fonte dos maiores males. Mesmo quanto a isto, a demonstração não é necessária; é suficiente, para a completa expressão de Nosso pensamento, declarar em poucas palavras as suas conclusões. A guerra contra o Papa é para a Itália, internamente, uma causa de profunda divisão entra a Itália oficial e a grande parte dos italianos que são verdadeiramente Católicos: e toda divisão é uma fraqueza. Esta guerra priva nossa terra do suporte e da cooperação do partido que é mais francamente conservador; ela mantém no seio da nação um conflito religioso que nunca trouxe até agora qualquer bem público, mas até mesmo traz dentro de si os germes fatais do mal e do mais pesado castigo.
Externamente, o conflito com a Santa Sé, além de privar a Itália do prestígio e esplendor que ela com certeza teria vivendo em paz com o Pontificado, atrai sobre ela a hostilidade dos Católicos de todo o mundo, é uma causa de imensos sacrifícios, e pode em qualquer ocasião fornecer aos seus inimigos uma arma para ser usada contra ela.
16. Este é o assim chamado bem-estar e grandeza preparado para a Itália por aqueles que, tendo seus destinos em suas mãos, fazem tudo que podem, de acordo com as ímpias aspirações das seitas, para derrubar a religião Católica e o Papado.
17. Suponhamos, ao invés disto, que todas as ligações e conspirações com as seitas fossem deixadas de lado; que à religião e à Igreja, como o maior poder social, fosse permitida verdadeira liberdade e completo exercício de seus direitos.
Que feliz mudança viria sobre os destinos da Itália! Os males e os perigos que nós temos lamentado, como o resultado da guerra contra a religião e a Igreja, cessariam com o término do conflito; e ainda mais, nós veríamos mais uma vez florescer no solo escolhido da Itália Católica a grandeza e glória que a religião e a Igreja tem sempre abundantemente produzido. De seus poderes divinos nasceria espontaneamente uma reforma da moralidade pública e privada; os laços familiares seriam fortalecidos; e sob as influências religiosas, o sentido de dever e de fidelidade em seu cumprimento seria despertado em todos os níveis do povo para uma nova vida.
As questões sociais que agora ocupam tanto as mentes dos homens encontrariam seu caminho para a melhor e mais completa solução, pela aplicação prática dos preceitos evangélicos de caridade e justiça. A liberdade popular, não permitida a degenerar em licenciosidade, seria dirigida somente para bons fins, e se tornaria verdadeiramente digna do homem. As ciências, através daquela verdade da qual a Igreja é senhora, se levantariam rapidamente para uma mais alta excelência; e do mesmo modo as artes, através da poderosa inspiração que a religião deriva do alto, e que ela sabe como transfundir às mentes dos homens.
A paz sendo feita com a Igreja, a unidade religiosa e a concórdia civil seriam grandemente fortalecidas; a separação entre a Itália e os Católicos fiéis à Igreja cessaria, e a Itália iria deste modo adquirir um poderoso elemento de ordem e estabilidade. As justas demandas do Pontífice Romano sendo satisfeitas, e seus direitos soberanos reconhecidos, ele seria restaurado a uma condição de verdadeira e efectiva independência; e Católicos de outras partes do mundo, que, não através da influência exterior da ignorância do que desejam, mas através de um sentimento de fé e sentido do dever, levantam suas vozes em defesa da dignidade e liberdade do supremo Pastor de suas almas, não teriam mais razão para considerar a Itália como inimiga do Pontífice.
Ao contrário, a Itália ganharia um maior respeito e estima das outras nações por viver em harmonia com a Sé Apostólica; pois não somente tem esta Sé conferido especiais benefícios aos italianos por sua presença em meio a eles, mas também, pela constante difusão dos tesouros da fé deste centro de bênção e salvação, ela fez o nome italiano grande e respeitado entre todas as nações. A Itália reconciliada com o Pontífice, e fiel à sua religião, seria capaz de dignamente emular a glória de seus antigos tempos; e de qualquer progresso real que haja na época actual ela receberia um novo impulso para avançar em seu glorioso caminho. Roma, proeminentemente a cidade Católica, destinada por Deus para ser o centro da religião de Cristo e a Sede de Seu Vigário, tem tido nisso a causa de sua estabilidade e grandeza através das momentosas mudanças das muitas épocas que passaram. Colocada novamente sob o pacífico e paternal cetro do Pontífice Romano, ela se tornaria novamente o que a Providência e o curso das épocas a fizeram - não encolhida à condição de capital de um reino, nem dividida entre dois poderes soberanos diferentes em um dualismo contrário à toda sua história; mas a digna capital do mundo Católico, grande com toda a majestade da Religião e do supremo Sacerdócio, uma mestra e um exemplo para todas as nações da moralidade e da civilização.
18 Estas não são vãs ilusões, Veneráveis Irmãos, mas esperanças repousando sobre o mais sólido e verdadeiro fundamento. A sentença que tem sido por algum tempo comummente repetida, que os Católicos e o Pontífice são os inimigos da Itália, e aliados, por assim dizer, daqueles que derrubariam tudo, é um insulto gratuito e uma desavergonhada calúnia, ardilosamente espalhada por todos os lugares pelas seitas para disfarçar seus desígnios perversos, e para capacitá-los a continuar sem obstáculo sua odiosa obra de desnudar a Itália de seu carácter Católico. A verdade que é vista da maneira mais clara daquilo que nós dissemos até agora, é que os Católicos são os melhores amigos da Itália. Mantendo-se completamente distantes das seitas, renunciando ao seu espírito e às suas obras, lutando de todos os modos para que a Itália não perca a sua fé, mas a preserve em todo seu vigor - para que não lute contra a Igreja, mas seja sua fiel filha, - para que não ataque o Pontificado, mas se reconcilie com ele, - os Católicos dão prova por tudo isto de seu amor forte e verdadeiro pela religião de seus ancestrais e por sua terra.
Fazei tudo que puderdes, Veneráveis Irmãos, para difundir a luz da verdade entre o povo para que eles possam chegar finalmente ao entendimento de onde seu bem-estar e seu verdadeiro interesse se encontram; e para que se convençam que somente da fidelidade à religião e da paz com a Igreja e com o Pontífice Romano, eles podem esperar obter para a Itália um futuro digno de seu glorioso passado.
Para isto Nós chamaríamos a atenção, não daqueles afiliados às seitas, cujo propósito deliberado é estabelecer a nova edificação da Península Italiana sobre as ruínas da Religião Católica; mas de outros que, sem acolherem tais desígnios malévolos, ajudam estes homens em suas obras dando suporte à sua política; e especialmente dos jovens rapazes, que estão tão sujeitos a se extraviarem pela inexperiência e predominância do mero sentimento. Nós desejaríamos que todos se convencessem que o curso que agora é seguido não pode ser senão fatal para a Itália; e, em fazer este perigo mais uma vez conhecido, Nós somos movidos somente por uma consciência de dever e pelo amor à nossa terra.
19. Mas, para a iluminação das mentes dos homens, nós devemos acima de tudo pedir pelo especial auxílio do céu. Portanto, à nossa unida acção, Veneráveis Irmãos, nós precisamos juntar a oração; e que seja uma oração geral, constante, e fervorosa: uma oração que irá oferecer gentil violência ao coração de Deus e fazê-lo misericordioso à Itália nosso país, para que Ele desvie dela toda calamidade, especialmente aquela que seria a mais terrível - a perda da fé. - Tomemos como nossa medianeira junto a Deus a gloriosíssima VIRGEM MARIA, a invencível Rainha do Rosário, que tem tão grande poder sobre as forças do inferno, e por tantas vezes fez a Itália sentir os efeitos de Seu amor maternal.
Recorramos também com confiança aos santos Apóstolos PEDRO e PAULO, que sujeitaram esta terra abençoada à fé, santificaram-na por seus trabalhos, e a banharam em seu sangue.
20. Como uma garantia enquanto isso do auxílio que Nós pedimos, e como símbolo de Nossa mais especial afeição, recebei a Bênção Apostólica, que do fundo de Nosso coração Nós vos concedemos, Veneráveis Irmãos, ao vosso Clero, e ao povo italiano.
- Dado em Roma, junto de São Pedro, a 15 de Outubro de 1890, o décimo terceiro ano de Nosso Pontificado.
Referências:
[1] S. Gregório o Grande: Carta ao Imperador Maurício, Reg. 5.
Deiparae Virginis
Carta Encíclica
DEIPARAE VIRGINIS
sobre a oportunidade em definir o
Dogma da Assunção de Maria
Pio XII
01.03.1946
1. Invocando e experimentando os fiéis e cristãos o contínuo auxílio da Virgem Maria Mãe de Deus, desejam honrá-la cada vez mais; e, porque o amor, se está verdadeira e profundamente arraigado nos corações, por si mesmo se manifesta em novos testemunhos, esforçam-se por dar provas, no decurso dos séculos de mais intensa devoção para com ela. Acontece por isso, segundo a nossa convicção, que desde há algum tempo se apresentam à Sé Apostólica cartas de súplica - as que foram recebidas entre 1849 e 1940, reunidas em dois volumes e ilustradas com oportunos comentários, foram editadas recentemente - enviadas por cardeais, arcebispos, bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, associações, universidades e, enfim, por inumeráveis fiéis particulares, com o objectivo de que se declare e defina solenemente como dogma de fé que a bem-aventurada virgem Maria subiu em corpo aos céus. E, de certo, ninguém ignora que isso mesmo foi pedido com ardentes votos por quase 200 padres do concílio Vaticano.
2. Posto à frente do reino de Cristo para o defender e ajudar, cabe-nos o incessante cuidado e o vigilante dever, não só de afastar quanto lhe seja prejudicial, mas ainda de levar por diante quanto lhe seja de proveito. Por isso já desde o começo do nosso supremo pontificado se nos oferece a questão que há de ser diligentemente examinada e investigada: se é lícito, decoroso e conveniente que, interposto o nosso poder, sejam secundadas as referidas petições. Por este motivo não temos deixado nem deixaremos de elevar a Deus insistentes preces, para que nos inspire e dê a conhecer os desígnios da sua sempre adorável benignidade.
3. A fim de alcançarmos favoravelmente este auxílio da luz celestial, uni, veneráveis irmãos, com piedoso esforço, as vossas preces às nossas. Enquanto com paternal coração a isso vos exortamos, seguindo o caminho e o modo de proceder de nossos predecessores, sobretudo de Pio IX ao ter que definir a imaculada Conceição da Mãe de Deus, insistentemente vos rogamos que nos deis a conhecer com que devoção, conforme a sua fé e piedade, o clero e o povo confiados à vossa direcção veneram a assunção da beatíssima Virgem Maria. E, sobretudo, desejamos vivamente conhecer se vós, veneráveis irmãos, julgais, segundo a vossa sabedoria e prudência, que a assunção corporal da bem-aventurada Virgem Maria pode ser proposta e definida, e se o desejais ansiosamente com o vosso clero e povo.
4. Esperando as vossas respostas, que quanto mais rápidas mais gratas nos serão, pedimos para vós, veneráveis irmãos, e para os vossos fiéis, a largueza dos dons divinos e o favor da excelsa Virgem Maria, enquanto amantissimamente no senhor vos concedemos a vós e à grei confiada aos vossos cuidados, em testemunho da nossa paternal benevolência, a bênção apostólica.
- Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 1° de Março do ano de 1946, VIII do nosso pontificado.
Pio PP. XII
Divino Afflante Spiritu
Carta Encíclica
DIVINO AFFLANTE SPIRITU
sobre os estudos bíblicos
Aos Veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos,
Bispos e outros Ordinários dos Lugares,
em Paz e Comunhão com a Sé Apostólica,
e igualmente a todo o Clero e Fiéis Cristãos do Orbe Católico.
Veneráveis Irmãos e Amados Filhos: Saúde e Bênção Apostólica!
INTRODUÇÃO
Ocasião da Encíclica "Providentissimus Deus". Modo de celebrar o seu quinquagésimo aniversário.
Sob a inspiração do Espírito Santo compuseram os escritores sagrados aqueles livros que Deus, pelo seu paternal amor ao género humano, quis prodigalizar "para ensinar, para convencer, para corrigir, para instruir na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e apto para toda a obra boa" (1). Não é pois para admirar que a Santa Igreja, assim como recebeu incontaminado, das mãos dos Apóstolos, este tesouro concedido pelo céu, que ela considera preciosíssima fonte e norma divina da doutrina de fé e costumes, o tenha também guardado com cuidado especial, o defenda de toda a interpretação falsa e perversa, e o utilize solicitamente na missão de granjear às almas a salvação suprema, como o demonstram amplamente quase inumeráveis documentos de todas as épocas. Mas como nos tempos recentes se discutiu de modo especial a origem divina e a recta interpretação das Sagradas Letras, a Igreja propôs-se defendê-las e protegê-las com denodo e empenho ainda maiores. E assim, já o sacrossanto Concílio de Trento decretou solenemente que era preciso reconhecer "como sagrados e canónicos os livros íntegros, com todas as suas partes, na forma como se costumavam ler na Igreja Católica e se contêm na antiga edição Vulgata Latina" (2). E no nosso tempo o Concilio Vaticano, para reprovar as falsas teorias sobre a inspiração, declarou que estes mesmos livros os tinha de considerar a Igreja "como sagrados e canónicos", "não porque, compostos unicamente pela indústria humana, tenham sido depois aprovados pela sua autoridade, nem precisamente porque contenham a revelação sem erro, mas porque, escritos sob inspiração do Espírito Santo, têm por autor a Deus, e como tais foram entregues à Igreja" (3). E posteriormente ainda, como contra esta solene definição da doutrina católica, segundo a qual os livros "íntegros, como todas as suas partes", gozam da dita autoridade divina, que implica a imunidade de todo o erro, certos escritores católicos se atrevessem a circunscrever a verdade da Sagrada Escritura unicamente às coisas de fé e costumes, reputando as outras, quer de ordem física quer de ordem histórica, como "ditos acidentais" e - como eles pretendiam - sem conexão com a fé, o Nosso Predecessor Leão XIII, de imortal memória, na Carta Encíclica "Providentissimus Deus" de 18 de Novembro de 1893, feriu de morte, com plena razão, aqueles erros, e deu ao mesmo tempo sapientíssimos preceitos e normas para o estudo dos Livros Divinos.
Ao apresentar-se a conveniência de comemorar o 50º aniversário da publicação daquela Encíclica, considerada lei fundamental nos estudos bíblicos, pareceu-Nos da maior oportunidade, segundo a solicitude que desde o princípio do Nosso pontificado temos consagrado às disciplinas sagradas (4), confirmar e inculcar o que o Nosso Predecessor estabeleceu sabiamente e os seus sucessores contribuíram para consolidar e aperfeiçoar, e determinar o que os tempos presentes parecem requerer para incitar cada vez mais a uma coisa tão necessária e louvável, todos os filhos da Igreja que se dedicam a estes estudos.
I. PARTE HISTÓRICA: SOLICITUDE DE LEÃO XIII E DOS SEUS SUCESSORES PELOS ESTUDOS BÍBLICOS
§ lº - A obra de Leão XIII. Doutrina da inerrância bíblica.
O primeiro e máximo cuidado de Leão XIII foi expor a doutrina da verdade dos livros sagrados e defendê-la das impugnações contrárias. Assim, pois, fixou com graves expressões, que se não dá erro algum quando o escritor sagrado, ao falar de coisas físicas, "se deixa guiar pelas aparências sensíveis", como diz o Angélico (5), falando "ou de um modo figurado, ou como a linguagem vulgar costumava fazê-lo naquele tempo, e o faz hoje em muitas coisas da vida quotidiana, entre os próprios homens mais cultos". Porque os mesmos "escritores sagrados, ou mais exactamente - as palavras são de Santo Agostinho (6) - o espírito de Deus que falava por eles, não se propôs ensinar aos homens essas matérias (isto é: a constituição íntima das coisas aparentes), pois não aproveitavam à salvação de ninguém" (7); isto "convirá transportá-lo para as disciplinas afins, especialmente para a história", refutando com efeito "de modo semelhante as falsidades dos adversários" e defendendo "dos seus ataques a autoridade histórica da Sagrada Escritura" (8).
Nem seria de imputar-se ao escritor sagrado o erro quando "escapassem algumas inexactidões aos copistas na transcrição dos códices "ou quando fosse ambígua a significação genuína de alguma frase". Finalmente, que não é lícito de modo nenhum "restringir a inspiração unicamente a algumas partes da Sagrada Escritura, ou conceder que errou o próprio escritor sagrado", sendo que a inspiração divina "não só exclui por si mesma qualquer erro, senão que tão necessariamente o exclui e repele como necessário é que Deus, suma verdade, não seja absolutamente autor de erro nenhum. Esta é a antiga e constante fé da Igreja" (9).
Pois esta doutrina, que com tanta gravidade expôs o Nosso Predecessor Leão XIII, propomo-la também Nós, com a Nossa autoridade, e inculcamos que todos a sustentem religiosamente. Determinamos, além disso, que se não ponha menor cuidado em obedecer nos nossos próprios dias aos mesmos conselhos e incitações que ele para o seu tempo acrescentou, com grande sabedoria. Porque como surgissem novas e não leves dificuldades e questões, tanto das preconcebidas opiniões do "racionalismo", que por toda a parte se difundia, como, sobretudo, pelos antiquíssimos documentos achados e explorados em numerosos lugares das regiões orientais, o mesmo Nosso Predecessor, impelido pela solicitude do seu cargo apostólico, não só para que tão preclara fonte da revelação católica estivesse aberta mais segura e abundantemente para utilidade da grei do Senhor, mas também para que em parte alguma fosse violada, desejou ardentemente "que fossem muitos os que tomassem como coisa sua, e a mantivessem com vigor, a defesa das Letras Sagradas; e que sobretudo aqueles a quem a divina graça chamou às ordens sacras, empregassem cada dia maior diligência e indústria em lê-las, meditá-las e explicá-las, o que tudo é justíssimo que assim seja" (l0).
Impulso dado aos estudos bíblicos. Escola Bíblica de Jerusalém. Comissão Bíblica.
Por isso o mesmo Pontífice, que já muito antes tinha louvado e aprovado a Escola Bíblica de Jerusalém, fundada junto da Basílica de Santo Estêvão, pelo Mestre Geral da Sagrada Ordem dos Pregadores, para fomentar o estudo dos livros sagrados, dizendo especialmente dela "que os estudos bíblicos tinham recebido não pequeno impulso e o esperavam ainda maior" (11), no último ano da sua vida acrescentou nova razão para que estes estudos, tão recomendados na Encíclica "Providentissimus Deus", se aperfeiçoassem cada vez mais e se promovessem mais eficazmente.
Porque por meio da carta apostólica "Vigilantiae", datada de 30 de Outubro de 1902, constituiu o Conselho, ou como hoje se chama, a Comissão de graves varões, "que teriam como seu campo de actividade própria cuidar com todas as suas forças e fazer que a palavra divina seja entre nós objecto daquele estudo mais cuidado que os tempos pedem, e se mantenha isenta não só de todo o sopro de erro, mas de qualquer opinião temerária" (12); Comissão que também Nós, seguindo o exemplo dos Nossos Predecessores, confirmamos e ampliamos, usando do seu serviço, como o tínhamos feito antes muitas vezes para levar os intérpretes dos livros sagrados àquelas leis sãs da exegese católica que os Santos Padres, os doutores da Igreja e os próprios Sumos pontífices Nos confiaram (13).
§ 2º - A obra dos sucessores de Leão XIII. Pio X: Criação dos graus académicos. Programa dos Estudos Bíblicos. Instituto Bíblico.
Ao chegar a este ponto, não Nos parece inoportuno fazer grata menção do que os Nossos restantes Predecessores acrescentaram de mais importante e útil para o mesmo fim, e que bem poderíamos chamar complemento ou fruto da feliz iniciativa leonina. E em primeiro lugar Pio X, querendo "subministrar um modo certo de se obterem com abundância mestres recomendáveis pôr sua gravidade e sincera doutrina, que interpretassem nas escolas católicas os livros divinos, institui os graus académicos de licenciado e doutor em Sagrada Escritura, que a Comissão Bíblica havia de conferir" (14).
Depois promulgou a lei "sobre a orientação que se havia de observar no estudo da Sagrada Escritura nos seminários eclesiásticos", procurando que os alunos "não só entendessem e conhecessem por si mesmos a força, os modos e a doutrina da Bíblia, mas também pudessem fácil e frutuosamente dedicar-se ao ministério da palavra divina, e defender de qualquer ataque, os livros escritos sob a inspiração de Deus" (15).
Finalmente, "para que na cidade de Roma houvesse um Centro de Estudos Superiores sobre a Sagrada Escritura, que promovesse da maneira mais eficaz que fosse possível a doutrina bíblica, e todos os estudos a ela anexos, segundo o sentir da Igreja Católica", fundou, confiando-o à ínclita Companhia de Jesus, o Pontifício Instituto Bíblico, que quis fosse "dotado dos mais acreditados mestres e de todos os instrumentos de erudição bíblica", e traçou as suas leis e disciplina, professando seguir neste ponto "o salutar e frutuoso propósito" de Leão XIII (16).
Pio XI: Prescrição dos graus académicos. Mosteiro de S. Jerónimo para a revisão da Vulgata.
Tudo isto aperfeiçoou, finalmente, o Nosso próximo antecessor, de feliz memória, Pio XI, determinando, entre outras coisas, que ninguém "ensinasse nos seminários Sagrada Escritura senão depois que, terminado o curso especial de tais disciplinas, estivesse na posse legítima dos graus académicos conferidos pela Comissão Bíblica ou pelo Instituto Bíblico". Quis além disso que estes graus gozassem de iguais direitos e tivessem os mesmos efeitos que os legitimamente outorgados em Sagrada Teologia e Direito Canónico; estabeleceu também que a ninguém se conferisse um "beneficio a que estivesse canonicamente anexa a obrigação de explicar ao povo a Sagrada Escritura, se além dos restantes requisitos não possuísse a licenciatura ou o doutorado em Sagrada Escritura". E ao mesmo tempo que exortava os gerais das Ordens e Congregações religiosas, e os Bispos do orbe católico, a escolher alguns entre os seus melhores alunos, para os enviar a cursar estudos e obter os graus académicos no Instituto Bíblico, confirmava essas exortações com o seu próprio exemplo, constituindo da sua liberalidade rendas anuais para o mesmo fim (17).
Foi o mesmo Pontífice quem, depois de ter, pelo favor e com a aprovação de Pio X, de feliz recordação, no ano de 1907 "confiado aos monges beneditinos o encargo de preparar as investigações e os estudos onde se firmasse a nova versão latina das Escrituras, que tem o nome de "Vulgata" (18), querendo estabelecer com mais firmeza e segurança esta "árdua e trabalhosa empresa", que exige largo tempo e grandes dispêndios, e cuja extraordinária utilidade havia já sido demonstrada pelos egrégios volumes editados, criou desde os fundamentos, e dotou abundantissimamente de biblioteca e mais subsídios da investigação, o Mosteiro de S. Jerónimo, na cidade de Roma, que devia dedicar-se àquela exclusiva finalidade" (19).
§ 3º - Cuidados dos Sumos Pontífices pelo uso e difusão da Sagrada Escritura.
Também parece que se não deve passar aqui em silêncio o que recomendaram os Nossos Predecessores nas ocasiões oportunas: o estudo, a pregação, a piedosa leitura e meditação das Sagradas Escrituras. Porque Pio X aprovou com ardor a sociedade de S. Jerónimo, que procura levar os fiéis ao costume, certamente louvável, de ler e meditar os Santos Evangelhos, e facilitá-los o mais possível; e exortou-a a perseverar animosamente no propósito, dizendo "que era a coisa mais útil de todas, e a mais apropriada a estes tempos", pois contribuía não pouco para "desfazer a opinião de que a Igreja repugnava que a Sagrada Escritura fosse lida nas línguas modernas, ou a isso opunha algum impedimento" (20). Bento XV, por sua parte, ao cumprir-se o XV centenário da morte do Doutor Máximo, na exposição das Sagradas Escrituras, depois de ter inculcado com empenho os preceitos e o exemplo deste santo doutor, e os princípios e normas dados por Leão XIII e por ele próprio, e de ter feito novas recomendações nesta matéria, oportuníssimas e inolvidáveis, exortou "todos os filhos da Igreja, especialmente os clérigos, ao respeito à Sagrada Escritura, unido à sua piedosa leitura e assídua meditação"; e advertiu "que nestas páginas se havia de procurar o alimento com que a vida do espírito se nutrisse para a perfeição" e que "o principal uso da Escritura havia de ser para o exercício santo e frutuoso do ministério e da palavra divina"; e louvou igualmente de novo os trabalhos da sociedade que recebia o nome de S. Jerónimo, por cujos cuidados se difundem tão extensamente os Evangelhos e os Actos dos Apóstolos, "que já não há família cristã que os não tenha, e todos têm por costume a sua leitura e meditação diária" (21).
§ 4º - Frutos desta multíplice acção.
É grato e justo confessar que o conhecimento e o uso das Sagradas Escrituras progrediram não pouco entre os católicos, não só por estas iniciativas, preceitos e exortações dos Nossos Predecessores, mas também pelo trabalho e fadigas de quantos os secundaram com diligência, escrevendo, ensinando, pregando, traduzindo e propagando os Livros Sagrados. Porque das escolas em que se dão cursos superiores de Teologia e Escritura, especialmente do Nosso Pontifício Instituto Bíblico, saíram e saem cada dia mais numerosos cultores da Sagrada Escritura, que animados de ardente amor aos livros sagrados educam com o mesmo ardor o clero adolescente, e comunicam-lhe cuidadosamente a mesma doutrina que beberam. Não poucos deles promoveram e promovem também com os seus escritos os temas bíblicos, quer editando os textos sagrados segundo as normas da arte crítica, explicando-os, ilustrando-os, traduzindo-os nas línguas modernas, quer propondo-os à piedosa leitura e meditação dos fiéis, quer, finalmente, cultivando e estudando as disciplinas profanas que são úteis para a explanação da Escritura. Destas e outras iniciativas que cada dia se propagam e desenvolvem, como são, para dar algum exemplo, as Associações Bíblicas, os Congressos, as Reuniões, Semanas, Bibliotecas e Confrarias para a meditação dos Evangelhos, concebemos a esperança de que não poderá deixar de crescer em toda a parte, para bem das almas, a reverência, o uso e o conhecimento das Sagradas Letras, contanto que todos sustentem mais firme, mais ardorosa, mais fielmente a norma do estudo bíblico, prescrita por Leão XIII, declarada com mais amplitude e perfeição pelos seus Sucessores e confirmada e aumentada por Nós - pois é a única segura e comprovada pela experiência - sem recuarem ante as dificuldades que, como acontece em toda a obra humana, também não faltarão nunca nesta empresa gloriosa.
II. PARTE DOUTRINAL: O ESTUDO DA SAGRADA ESCRITURA NOS NOSSOS TEMPOS
Estado actual dos Estudos Bíblicos.
Ninguém há que não possa facilmente, notar que nos últimos cinquenta anos mudaram muito as condições da ciência bíblica e das suas ciências auxiliares. Porque omitindo outros muitos fatos, quando o Nosso Predecessor escreveu a encíclica "Providentissimus Deus" apenas um ou outro lugar da Palestina se havia começado a explorar com escavações destinadas a tais estudos. Agora, porém, estas investigações cresceram muitíssimo em número e, aperfeiçoadas com método e processos mais rigorosos, ensinam-nos muito mais e com mais certeza. Todos os especialistas e os que se dedicam a estes estudos conhecem bem quanta luz saiu daquelas investigações, para mais recta e plena inteligência dos Livros Sagrados. A importância dessas explorações aumenta ainda com a descoberta de documentos escritos, que servem grandemente para o conhecimento das línguas, literaturas, acontecimentos, costumes e cultos dos homens mais antigos. De não menor importância é o descobrimento e a investigação - tão frequente na nossa época - de papiros, que tanto serviram para conhecer as letras e instituições públicas e privadas, sobretudo da época do nosso Salvador. Além disso encontraram-se e editaram-se conscienciosamente velhos códices dos Livros Sagrados; investigou-se mais ampla e profundamente a exegese dos Padres da Igreja; esclareceu-se, finalmente, com inumeráveis exemplos, o modo de falar, narrar e escrever dos antigos. Tudo isto, que não sem especial desígnio da Providência o nosso tempo conseguiu, convida e adverte em certo modo os intérpretes das Sagradas Letras para que usem animosamente de tanta luz conseguida, para perscrutar com mais perfeição, ilustrar mais claramente, e propor mais luminosamente a palavra de Deus. E se é certo que, com grande conforto da alma, vemos que os aludidos intérpretes já secundaram e secundam cuidadosamente este convite, isso é fruto, e não o último nem o mais pequeno, da encíclica "Providentissimus Deus", com que o Nosso Predecessor Leão XIII, como que pressagiando este novo florescimento das disciplinas bíblicas, chamou ao trabalho os exegetas católicos e lhes definiu sabiamente qual havia de ser o seu caminho e o seu método de trabalho.
Nós, também, por Nossa parte, desejamos conseguir, por meio desta encíclica, que este trabalho não só perdure constante, mas se aperfeiçoe e torne mais fecundo, procurando sobretudo mostrar a todos o que resta fazer e com que disposição de ânimo o exegeta católico há de empreender hoje tão grande e excelsa empresa, e acrescentar novo alento e novos estímulos aos operários que trabalham com diligência na vinha do Senhor.
§ 1º - Recurso aos textos primitivos. Estudo das línguas bíblicas.
Já os Padres da Igreja, e especialmente Santo Agostinho, recomendavam com instância ao intérprete católico, que se propunha entender e explanar as Sagradas Escrituras, o conhecimento das línguas antigas e o recurso aos textos primitivos (22).
Mas as condições dos tempos eram então tais que muito poucos, e esses só imperfeitamente, conheciam a língua hebraica. Na Idade Média, por seu lado, quando chegou ao seu máximo florescimento a Teologia Escolástica, havia diminuído tanto o próprio conhecimento da língua grega, que até os maiores doutores daquelas épocas, ao explicar os Livros Divinos, se apoiavam unicamente na versão latina, que chamam Vulgata. Ao contrário, em nossos dias não só é familiar a quase todos os cultores das antiguidades e das letras a língua grega, que já desde o Renascimento havia sido em certo modo chamada a nova vida, mas propagou-se extensamente entre os homens cultos o conhecimento do hebreu e de outras línguas orientais. A ponto tal, que hoje há tanta abundância de subsídios para aprender aquelas línguas que o intérprete bíblico, que, rechaçando-os, se tolhe o acesso aos textos originais, não poderá evitar a nota de leviano e descuidado.
Porque é também missão do exegeta recolher com extremo cuidado e veneração os mais pequenos pormenores que sob a inspiração do Espírito Divino saíram da pena do hagiógrafo, para chegar a um conhecimento mais perfeito e pleno do seu pensamento. Por isso deve procurar com diligência adquirir cada dia mais perícia nas línguas bíblicas e nos outros idiomas orientais e dotar a sua interpretação com todos os auxílios que lhe possa fornecer qualquer género de filologia. Já S. Jerónimo intentou com empenho consegui-lo, conforme o permitiram os conhecimentos da sua época, e a isto mesmo tenderam, com incansável trabalho e não mediano fruto, não poucos dos grandes exegetas dos séculos XVI e XVII, embora então fosse muito mais escasso que hoje o conhecimento das línguas. Pela mesma razão convirá, pois, explanar o texto primitivo, que, escrito pelo próprio autor sagrado, tem maior autoridade e peso que qualquer tradução antiga ou moderna, por boa que seja; o que se conseguirá com maior facilidade e fruto, se ao conhecimento das línguas se aliar também, pelo que diz respeito ao próprio texto, um sólido conhecimento dos preceitos da crítica.
Importância da crítica textual.
Advertiu claramente Santo Agostinho a importância que se deve atribuir a esta crítica, quando entre os preceitos que se deviam inculcar ao estudioso dos Livros Sagrados pôs, em primeiro lugar, o cuidado de obter textos bem corrigidos. "A diligência de quem deseja conhecer as Escrituras Divinas - diz aquele preclaríssimo doutor da Igreja - deve olhar primeiramente à correcção dos códices, de modo que aos não emendados se prefiram aos emendados" (23).
Actualmente esta arte, conhecida pelo nome de "crítica textual" e que com grande louvor e fruto se usa na edição de textos profanos, emprega-se também nos Livros Sagrados, e com maior razão, pela própria reverência devida à palavra de Deus. Porque de sua própria natureza ela oferece a vantagem de restabelecer o mais perfeitamente possível o texto sagrado, expurgando-o das corrupções introduzidas, por deficiência dos copistas, e libertando-o, tanto quanto possível, de glosas, lacunas, inversões de palavras, repetições e outros erros de toda a espécie, que costumam infiltrar-se em escritos transmitidos ao longo de muitos séculos. Escusado será advertir que esta crítica, empregada há uns tantos decénios por alguns, a seu livre arbítrio, e de tal maneira que alguém pôde dizer que o que pretendiam era introduzir no texto sagrado, as suas opiniões e preconceitos, chegou a alcançar tal fixidez nas suas leis, e tal segurança, que veio a tornar-se notável auxílio para editar mais pura e esmeradamente a Palavra divina, e para que qualquer abuso se possa descobrir facilmente. Nem é preciso também recordar aqui - porque é notório e claro para todos os estudiosos da Sagrada Escritura - em quanto apreço e honra a Igreja teve, desde os primeiros séculos aos nossos dias, estes estudos da crítica. Hoje, pois, que a tanta perfeição chegou o emprego desta arte, é honrosa missão dos estudiosos da Bíblia, embora nem sempre seja fácil, procurar com todas as forças, que os católicos preparem oportunamente, e quanto antes, edições, tanto dos Livros Sagrados, como das versões antigas, redigidas segundo estas normas, isto é, de modo que aliem à máxima reverência ao texto sagrado a mais exacta observância das leis da crítica.
E saibam todos que este longo trabalho não é só necessário para ler rectamente os escritos que nos foram dados por inspiração divina, mas que o exige aquela piedade com que nos fica bem mostrar a nossa gratidão a Deus providentíssimo, que do trono da sua majestade nos enviou a nós, seus próprios filhos, estes livros, como se fossem cartas paternais.
Valor do decreto Tridentino sobre o uso da Vulgata. Versões em língua vulgar.
Não pense alguém que este uso dos textos primitivos, obtidos pelos métodos críticos, seja contrário, no mínimo que seja, ao que o Concílio Tridentino sabiamente estabeleceu a respeito da Vulgata Latina (24). Consta, na verdade, dos documentos, que os Presidentes do Concílio foram encarregados de pedir ao Sumo Pontífice, em nome do mesmo Concílio - o que eles fizeram - que mandasse corrigir, como melhor se pudesse, primeiro, a edição latina, depois o texto grego e hebreu, divulgando-o para utilidade da Santa Igreja de Deus (25); e se então, pelas dificuldades dos tempos e outros obstáculos, se não pôde satisfazer plenamente a este desejo, actualmente, como confiamos, poder-se-á satisfazer, com mais amplitude e perfeição, juntos os esforços de todos os doutores católicos. Quanto à vontade do Concílio de Trento de que "todos usem como autêntica" a versão latina Vulgata, todos sabem que isto se refere unicamente à Igreja latina e ao uso público da Escritura e de modo nenhum diminui, sem dúvida de espécie alguma, a autoridade e força dos textos originais. Porque se não tratava então dos textos originais, mas das versões latinas que então circulavam, entre as quais determinou o Concílio que deveria preferir-se, com razão, aquela que "recebeu aprovação na mesma Igreja pelo largo uso de tantos séculos".
Assim pois, esta autoridade proeminente da Vulgata, ou, como lhe chamam, esta autenticidade, não a estabeleceu o Concílio guiado sobretudo por razões críticas, mas antes pelo legítimo uso que dela se tinha feito na Igreja, no decurso de tantos séculos: uso que por si só demonstra que está imune de qualquer erro em matéria de fé e costumes, de modo que, segundo o manifesta e confirma a mesma Igreja, pode citar-se com segurança, e sem termo de errar, nas disputas, lições e pregações; de tal modo que a sobredita autenticidade mais merece o nome de jurídica que o de crítica. Por isso esta autoridade da Vulgata em assuntos doutrinais não impede - mais ainda, quase exige hoje em dia - que esta mesma doutrina se comprove e confirme pelos próprios textos originais, e que se invoque continuamente o auxílio dos mesmos textos, com os quais se aclare e patenteie cada vez mais a recta significação das Sagradas Letras.
Também se não proíbe pelo decreto do Concílio Tridentino que para uso e proveito dos fiéis, e mais fácil inteligência da palavra divina, se façam traduções nas línguas vivas, e directamente dos textos originais, como sabemos que já se fez, louvavelmente, em muitas regiões, com aprovação da autoridade eclesiástica.
§ 2º - Interpretação dos Livros Sagrados. Importância e investigação do sentido literal.
Bem apetrechado com o conhecimento das línguas antigas e os recursos da crítica, o exegeta católico há de empreender o trabalho de encontrar e expor a genuína significação dos Livros Sagrados, que é o principal de todos os trabalhos que lhe estão confiados. Na execução deste trabalho há de ter presente os intérpretes que o seu maior cuidado se há de pôr em distinguir e definir com clareza qual é o sentido das palavras bíblicas a que chamam literal, "do qual somente - como afirma bem o Aquinatense - se pode argumentar" (26). Assim, pois, deduzam com toda a diligência a significação literal das palavras com o seu conhecimento das línguas, recorrendo ao contexto e comparando com outras passagens semelhantes: subsídios todos de que se costuma lançar mão na interpretação dos escritos profanos, com o fim de aclarar até à evidência o pensamento do autor.
Porém os exegetas das Sagradas Letras, recordando que neste caso se trata da Palavra inspirada por Deus, cuja guarda e interpretação foi, pelo mesmo Deus, confiada à Igreja, hão de ter em conta, com diligência não menor, as explanações e declarações do magistério da Igreja, bem como as explicações dadas pelos Santos Padres, e também a "analogia da fé", como advertiu sabiamente Leão XIII, na encíclica "Providentissimus Deus" (27). Procurarão com singular empenho não expor somente - como lamentamos que se faça em certos comentários - as matérias relativas à história, à arqueologia, à filologia e outras disciplinas semelhantes, mas embora utilizadas estas, na medida em que possa ajudar a exegese, hão de mostrar de preferência qual é a doutrina teológica de fé e costumes de cada livro ou texto, de modo que esta sua explicação não só ajude os Professores de Teologia na tarefa de propor e confirmar os dogmas da fé, mas sirva de auxílio aos sacerdotes para explicar ao povo a doutrina cristã, e sirva finalmente a todos os fiéis para levarem uma vida santa e digna de um homem cristão.
Reto uso do sentido espiritual.
Ao dar esta interpretação preferentemente teológica, como dissemos, reduzirão eficazmente ao silêncio aqueles que, afirmando pouco encontrarem que eleve o espírito a Deus, alimente a alma e promova a vida interior, apregoam que é preciso refugiar-se numa certa interpretação espiritual e mística. Quão pouco assisadamente estes pensam demonstra-o a própria experiência de tantos que na consideração e meditação contínuas da palavra divina aperfeiçoam a sua alma e se tomaram de veemente amor a Deus; e ensinam-no claramente a constante prática da Igreja e os ensinamentos dos maiores doutores.
É certo que se não exclui da Escritura qualquer sentido espiritual. Porque as coisas que se disseram e se fizeram no Antigo Testamento, foram dispostas e ordenadas por Deus tão sabiamente que o passado fosse, de modo espiritual, um símbolo antecipado do que havia de suceder na nova lei da Graça. Por isso o exegeta deve encontrar e expor esta significação espiritual, contanto que conste exactamente que Deus a quis dar, do mesmo modo que o faz com a interpretação própria ou literal, como lhe chamam, que o hagi6grafo teve em vista e exprimiu. Só Deus pôde com efeito conhecer e revelar-nos esta significação espiritual.
Que tal sentido existe é-nos indicado e ensinado pelo próprio divino Salvador nos santos Evangelhos; mostram-no os Apóstolos oralmente e por escrito, imitando o exemplo do Mestre; mostra-o a doutrina perpetuamente transmitida pela tradição da Igreja; declara-o, finalmente, o mais antigo uso da liturgia, segundo o conhecido axioma: "lex precandi lex credendi est" (a norma da oração é norma de fé). Assim, pois, os exegetas católicos devem esclarecer e expor este sentido espiritual, querido e ordenado pelo próprio Deus, com a diligência que pede a dignidade da palavra divina; mas tenham meticuloso cuidado em não propor como sentido genuíno da Sagrada Escritura outras significações figurativas das coisas.
Porque se, sobretudo no cumprimento do dever da pregação, pode ser útil, para ilustrar e recomendar os assuntos de fé e moral, um certo uso mais amplo do texto sagrado, obtido por translação da significação verbal, contanto que se faça com sobriedade e moderação, nunca se deve esquecer contudo, que este uso das palavras da Sagrada Escritura lhe é como que externo e adventício, e não está isento de perigo, sobretudo hoje que os fiéis, e especialmente os instruídos nas ciências sagradas e profanas, procuram mais que o próprio Deus, nos quer significar nas Sagradas Letras do que aquilo que o eloquente orador ou escritor expõe usando com certa destreza as palavras da Bíblia: "a palavra de Deus, que é viva e eficaz, e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes, e que atinge até a alma e o espírito, até as junturas e as medulas, e que discerne os pensamentos e as intenções do coração" (28), não necessita acicates nem retoques humanos para mover e sacudir as almas; porque as páginas sagradas, escritas sob a inspiração do Espírito Divino, abundam só por si em significações originais; dotadas de força divina, valem por si mesmas; adornadas de galas celestiais, luzem e brilham por si, contanto que o intérprete as explique tão íntegra e escrupulosamente que se mostrem à luz todos os tesouros de sabedoria e prudência que nelas se escondem.
Incitamento ao estudo dos Santos Padres e dos grandes Intérpretes.
Na consecução destes fins poderá o exegeta católico receber grande benefício do diligente estudo das obras em que os Santos Padres, os Doutores da Igreja e os ilustres intérpretes dos tempos passados expuseram as Sagradas Letras. Porque embora eles por vezes possuam menos erudição profana e conhecimentos linguísticos que os intérpretes do nosso tempo, contudo, em virtude do papel que Deus lhes havia marcado na Igreja, sobressaem por certa e suave perspicácia nas coisas celestes, e por uma admirável agudeza mental com que penetram intimamente os recônditos da palavra divina e trazem à luz tudo quanto possa conduzir a ilustrar a doutrina de Cristo e promover a santidade da vida. Precisamente se deve lamentar que esses preciosos tesouros da antiguidade cristã sejam escassamente conhecidos para não poucos dos escritores actuais, e que os cultores da história da exegese não tenham feito já quanto era necessário para investigar cuidadosamente, e dar o devido valor a coisa de tanta importância. Oxalá haja muitos que, investigando com afinco os autores e obras de interpretação católica das Escrituras, como para esgotar as imensas riquezas que outros amontoam, contribuam eficazmente para que cada dia se veja melhor até que ponto penetraram e ilustraram a doutrina dos Livros Sagrados e deles tomem exemplo os modernos intérpretes para voltar aos temas oportunos. Porque assim se conseguirá finalmente a feliz aliança da solidez e da suavidade espiritual da linguagem dos antigos, com a maior erudição e mais avançado método dos modernos, que há de trazer, certamente, novos frutos ao campo das letras divinas, nunca assás cultivado e nunca esgotado.
§ 3º - Cuidados especiais dos Intérpretes nos nossos tempos. Estado actual da exegese.
Além disso, com razão se pode esperar que também os nossos tempos nalguma coisa poderão contribuir para a mais completa e minuciosa interpretação das Letras Sagradas. Porque não poucas coisas, especialmente das relativas à história, ou mal foram explicadas pelos escritores dos séculos passados ou não o foram no grau necessário, porque lhes faltavam quase todos os conhecimentos necessários para as ilustrar. Com que dificuldades e quase impossibilidades tropeçaram os próprios Santos Padres vê-se bem, para omitir outros pormenores, pelos esforços em que muitos deles insistiram para interpretar os primeiros capítulos do Génesis, e também pelas repetidas tentativas de S. Jerónimo de traduzir os salmos de modo que se visse claramente o seu sentido literal, ou seja: o que exprimem as próprias palavras. Há, finalmente, outros livros ou textos sagrados cujas dificuldades se descobriram recentemente, quando com mais profundo conhecimento das antiguidades surgiram novas questões que requerem mais atento estudo.
Sem razão, pois, andam dizendo alguns, que não compreendem bem as condições das ciências bíblicas, que ao exegeta católico do nosso tempo nada falta acrescentar ao já dito pela antiguidade cristã, quando é certo que a nossa época suscitou tantas coisas que necessitam nova investigação e exame e estimulam não pouco a actividade científica do intérprete de hoje.
Deve-se estudar a índole do Hagiógrafo.
Assim como a nossa época tem de arrostar com novas questões e novas dificuldades, oferece também, por mercê de Deus, novos subsídios e ajudas para a exegese. Entre estes parece digno de peculiar menção o de que os teólogos católicos, seguindo a doutrina dos Santos Padres, e especialmente a doutrina do Doutor Angélico e Comum, tenham investigado e apresentado a natureza e os efeitos da inspiração bíblica melhor do que era costume fazê-lo nos séculos passados. Porque partindo, no seu raciocínio, da suposição de que o hagiógrafo ao compor o livro sagrado é "organon" ou instrumento do Espírito Santo, mas instrumento vivo e dotado de razão, advertem justamente que ele, levado de moção divina, emprega as suas faculdades e forças de tal modo que, do livro que nasce por obra sua, podem coligir todos facilmente "a sua índole própria e peculiar e, por assim dizer, os seus traços e qualidades singulares" (29). Portanto, o intérprete, com todo o esmero e sem descurar nenhuma luz que hajam trazido as investigações mais recentes, esforçar-se-á por distinguir qual foi a índole própria e o teor de vida do escritor sagrado, em que época floresceu, que fontes escritas ou tradição oral utilizou, que formas de linguagem empregou. Porque deste modo melhor poderá conhecer quem foi o hagiógrafo e o que ele escrevendo quis significar.
Com efeito, não passa despercebido a ninguém que a norma suprema da interpretação é que se veja e defina o que quis dizer o escritor, segundo a magnífica advertência de Santo Atanásio: "Aqui, como convém praticar em qualquer outro lugar da Escritura divina, é preciso observar em que ocasião falou o Apóstolo e ter em conta escrupulosa e fielmente quem é a pessoa e qual o assunto por cuja causa escreveu, não seja caso que, por ignorância destes pormenores, ou entendendo outra coisa em vez daquela, alguém se afaste do significado verdadeiro" (30).
Importância do género literário especialmente na história.
Nas palavras e escritos dos antigos autores orientais frequentemente não é claro, como nos escritores nossos contemporâneos, qual é o sentido literal. Porque nem as leis da Gramática e da Filologia nem o contexto determinam, por si sós, o que eles quiseram significar com as suas palavras; é imprescindível que o intérprete remonte mentalmente a esses recuados séculos do Oriente e auxiliado convenientemente pelos subsídios da história, da arqueologia, da etnologia e outras disciplinas distinga e veja claro, que género literário, como se diz, quiseram empregar e de fato empregaram os escritores daquela vetusta idade. Porque os antigos orientais, para exprimir o que tinham na mente não empregavam sempre as mesmas formas e modos de dizer que nós usamos hoje, mas sim os que corriam entre os homens do seu tempo e da sua nação.
Quais foram estes, não pode o exegeta estabelecê-lo de antemão, mas só depois de cuidadosa investigação da antiga literatura do Oriente. Porém esta investigação, nos últimos decénios, conduza com maior cuidado e diligência que antes, esclareceu quais as formas de linguagem se usaram na antiguidade para descrever poeticamente as coisas, ou para apresentar as leis e normas de vida, ou finalmente, para narrar os fatos e sucessos da história. Esta mesma investigação comprovou também com evidência que o povo israelita sobressaiu singularmente entre as demais nações do velho Oriente no tocante ao escrever devidamente a história, tanto pela antiguidade como pelo fiel relato dos sucessos, o que já se deduziria pelo carisma da inspiração divina e pelo fim peculiar da história bíblica, que é religioso.
Pois bem: ninguém que conceba retamente a inspiração bíblica deve admirar-se de que também nos escritores sagrados, como nos outros antigos, se encontrem certos modos de expor e narrar, certos idiomatismos peculiares sobretudo às línguas semíticas, chamados aproximações, e certas hipérboles e, por vezes, até paradoxos com que as coisas se gravam mais firmemente no espírito. Porque não é alheio aos livros sagrados nenhum daqueles modos de falar de que a linguagem humana costuma servir-se, para expor um pensamento, entre os povos antigos, e sobretudo entre os orientais, com esta só condição: que o género literário usado não repugne à santidade e à verdade de Deus, como, segundo era de esperar da sua sagacidade, adverte já o mesmo Doutor Angélico com as seguintes palavras: "Na Escritura as coisas divinas são-nos comunicadas segundo os modos usados pelos homens" (31). Pois assim como o Verbo substancial de Deus se tornou semelhante aos homens em tudo "excepto no pecado" (32), também as palavras de Deus expressas pela língua humana se tornam semelhantes à linguagem humana em tudo menos no erro, o que já foi exaltado por S. João Crisóstomo, com grandes louvores, como "synkatábasin" ou "condescendência de Deus, e assegurou repetidas vezes que se dava nos Livros Sagrados" (33).
Por isso o exegeta católico que queira satisfazer plenamente as exigências actuais dos estudos bíblicos, quando expõe a Sagrada Escritura e trata de mostrar e provar que ela está imune de qualquer erro, há de empregar também prudentemente este subsídio, a saber: averiguar em que pode contribuir para a verdadeira e genuína interpretação a forma de expressão ou género literário usado pelo hagiógrafo; e convença-se de que este aspecto do seu dever não pode ser descurado sem grande detrimento da exegese católica. Não raro, com efeito - para só mencionar um exemplo - quando alguns lançam a acusação de que os autores sagrados se afastaram da fidelidade histórica, ou referiram sucessos com menos exactidão, vem a provar-se que só se trata daquelas expressões usuais antigas que eles costumavam empregar continuamente no seu trato mútuo e de fato se empregam correcta e universalmente. A imparcialidade exige, portanto, que quando se encontrem coisas semelhantes na elocução divina, que fala para os homens com palavras humanas, não se devam arguir de erro mais do que se faria se se encontrassem no uso quotidiano da vida.
Assim conhecidos e apreciados retamente os modos de dizer e género de falar e escrever dos antigos poder-se-ão resolver muitas das objecções contra a verdade e fidelidade histórica das Letras Divinas, além de que este estudo conduzirá à mais plena e clara compreensão do pensamento do autor sagrado.
Estudo das antiguidades bíblicas.
Os nossos estudiosos dos assuntos bíblicos trabalharão, pois, também nisto, com a devida diligência, e não omitirão nenhuma das provas descobertas que ofereçam a arqueologia, a história antiga ou o estudo das línguas primitivas e que sejam idóneas para fazer conhecer melhor a mentalidade dos escritores antigos e a sua maneira, forma e arte de raciocinar, narrar e escrever.
Nesta ordem de coisas advirtam também os seculares católicos, que podem não só trazer algum proveito aos estudos profanos, mas bem merecer da causa católica, entregando-se a explorar e investigar as antiguidades com toda a diligência e empenho convenientes, e colaborando na medida das suas forças para a solução desse tipo de problemas, até agora menos claros e nítidos. Porque todo o conhecimento humano, ainda que não seja de coisas sagradas, tem já uma íntima dignidade e excelência - como participação finita que é do conhecimento infinito de Deus; mas adquire nova e mais alta dignidade e como que consagração, quando se emprega para ilustrar com mais intensa luz as próprias coisas divinas.
§ 4º - Como tratar as questões mais difíceis.
Dificuldades felizmente resolvidas com os estudos modernos
Em virtude dessa mais perfeita investigação das antiguidades orientais de que falamos, do estudo mais cuidadoso do próprio texto original e do conhecimento mais amplo e diligente das línguas bíblicas e de todas as particularidades relativas ao Oriente, aconteceu felizmente, com a graça de Deus, que não poucas daquelas questões que no tempo do Nosso Predecessor Leão XIII, de perpétua recordação, tinham levantado contra a autenticidade, antiguidade, integridade e fidelidade dos livros sagrados, os críticos afastados da Igreja, ou inclusivamente adversários dela, hoje estão já resolvidas e solucionadas. Porque os exegetas católicos, empregando retamente as mesmas armas científicas de que os adversários não raro abusavam, propuseram as interpretações, que estando de acordo com a doutrina católica e o parecer tradicional e genuíno dos antigos, parecem ao mesmo tempo ter evitado as dificuldades que as novas investigações e descobertas suscitaram ou as que a antiguidade legou sem solução ao nosso tempo.
Daí proveio entre os católicos uma restauração total da confiança na autoridade e na verdade histórica da Bíblia, que no parecer de alguns se havia diminuído um pouco perante o número dos ataques; e ainda mais: porque não faltam escritores não católicos, que depois de levar a cabo um inquérito com ânimo sereno e imparcial, foram levados a deixar as teorias dos modernos e voltaram, pelo menos neste ou naquele caso, às opiniões mais antigas.
Esta mudança de situação deve-se em grande parte ao trabalho incansável com que os expositores católicos das Sagradas Letras, sem se amedrontarem ante as dificuldades e obstáculos de todo o género, lutaram com todas as suas forças por fazer reto uso dos conhecimentos, que trouxera para a solução dos problemas a investigação dos eruditos contemporâneos, no campo da arqueologia, da história e da filologia.
Dificuldades ainda não resolvidas
Ninguém se admire, contudo, de que ainda se não hajam resolvido e vencido todas as dificuldades, e que ainda hoje inquietam não pouco as inteligências dos exegetas católicos graves questões. Certo é que não deve perder-se por isso o ânimo, nem se deve esquecer que nas disciplinas humanas sucede exactamente o que sucede na natureza: que as coisas crescem lentamente e não se podem colher os frutos se não depois de muitos trabalhos. Assim sucedeu que algumas disputas, que nos tempos passados estiveram por resolver e suspensas, se solucionaram feliz e finalmente em nossos dias com o progresso dos estudos. Pela mesma razão se deve esperar que também estas outras, que hoje parecem extraordinariamente complicadas e extremamente árduas, acabem por aparecer em plena luz, graças ao constante esforço.
E se a solução desejada tarda e não nos sorri, e temos de deixar porventura que sejam os nossos sucessores que consigam o êxito feliz, ninguém se inquiete por isso, pois é justo que apliquemos a nós, o que já os Padres, e especialmente Santo Agostinho, advertiram no seu tempo: que Deus semeou de propósito dificuldades nos livros sagrados, que Ele mesmo inspirou, para que, por um lado, nos excitássemos a estudá-los e a examiná-los com mais afinco, e, por outro lado, sentindo salutarmente os limites da nossa inteligência, nos exercitássemos na devida humildade da alma (34). Nada teria portanto de estranho que nunca se chegasse a obter resposta de todo satisfatória a tal ou tal questão, tratando-se, como por vezes se trata, de coisas obscuras e demasiado afastadas dos nossos tempos e experiência, e podendo ter a exegese, como outras disciplinas, os seus segredos próprios, insuperáveis para os nossos espíritos, e incapazes de ceder a qualquer esforço.
Como se podem procurar as soluções positivas.
Apesar de ser esta a posição das coisas, o intérprete católico, impelido por um amor forte e operoso da sua especialidade e sinceramente dedicado à Santa Madre Igreja, de modo algum deve deixar de arrostar uma e outra vez com as difíceis questões ainda não resolvidas, não só para rechaçar as objecções dos adversários, mas também para tentar descobrir uma sólida explicação que concorde fielmente com a doutrina da Igreja, e nomeadamente com o que a tradição ensina sobre a imunidade de todo o erro da Sagrada Escritura e satisfaça ao mesmo tempo, como deve ser, as conclusões certas das disciplinas profanas.
Todos os outros filhos da Igreja recordem que todas as tentativas desses valentes operários da vinha do Senhor devem ser julgadas não só com imparcialidade e justiça, mas também com suma caridade; e detestem aquele modo menos prudente de pensar, segundo o qual tudo o que é novo é por isso mesmo rejeitável, ou pelo menos suspeito. Porque devem ter sempre presente, que quando a Igreja dá normas e leis é porque se trata da doutrina de fé e costumes, e que entre as muitas coisas que se propõem nos livros sagrados legais, históricos, sapienciais e proféticos, só muito poucas há cujo sentido tenha sido declarado pela autoridade da Igreja, e não são muitas mais aquelas em que seja unânime o sentir dos Santos Padres.
Restam, pois, muitas outras e gravíssimas, em cuja discussão e explicação se pode e deve exercer livremente a agudeza e o engenho dos intérpretes católicos, de modo que cada um contribua na medida das suas forças para o progresso cada vez maior da doutrina sagrada e para a defesa e honra da Igreja.
Esta verdadeira liberdade dos filhos da Igreja de Deus - que mantém por um lado com fidelidade a doutrina da Igreja, e por outro lado aceita com prazer, e utiliza como uma dádiva de Deus, os contributos dos conhecimento profanos - unanimemente mostrada e sustentada, é condição e fonte de todo o fruto sincero e de todo o avanço sólido na ciência católica, como adverte sabiamente o Nosso Predecessor Leão XIII, de feliz memória, quando diz: "se não fica salvaguardada a concórdia dos ânimos, e não se respeitam os princípios, não se poderão esperar grandes progressos desta ciência, por muito que se estude" (35).
§ 5º - Uso da Sagrada Escritura na instrução dos fiéis. Várias maneiras de empregar a Sagrada Escritura no ministério sagrado.
Quem considere os ingentes trabalhos que a exegese católica tomou sobre os seus ombros durante quase dois mil anos, para que a palavra de Deus, dirigida aos homens por meio das Sagradas Escrituras, seja cada vez mais total e perfeitamente conhecida, e com mais ardor amada, facilmente se convencerá de que os fiéis, e especialmente os Sacerdotes, têm a grave obrigação de usar copiosa e santamente desse tesouro acumulado ao longo de tantos séculos pelos mais altos engenhos. Porque Deus não concedeu os Livros Sagrados aos homens para lhes satisfazer a curiosidade ou para lhes dar um tema de investigação e estudo, mas como adverte o Apóstolo, para que estas divinas palavras nos pudessem "instruir para a salvação mediante a fé em Jesus Cristo"; e "para que o homem de Deus seja perfeito e esteja apto para toda a obra boa" (36).
Assim, pois, os sacerdotes que têm a incumbência de procurar a salvação dos fiéis, depois de terem investigado por si com diligente estudo as Páginas Sagradas e de as terem tornado suas, na oração e na meditação, tomem diligentemente, nos seus sermões, homilias e exortações, das riquezas celestes da palavra divina, confirmem a doutrina cristã com sentenças tomadas dos Livros Sagrados e a ilustrem com os preclaros exemplos da História Sagrada e especialmente do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo e tudo isto - evitando com todo o empenho e diligência as acomodações feitas a seu capricho e tomadas das coisas mais remotas, o que não é uso mas abuso da palavra divina - hão de propô-lo com tal eloquência, com tal nitidez e clareza, que os fiéis não só se movam e inflamem a conduzir retamente a vida, mas também concebam no seu espírito suma veneração pela Sagrada Escritura.
Os Bispos, por sua parte, tratarão de aumentar e aperfeiçoar cada dia esta veneração nos fiéis que lhes estão confiados, promovendo todas as iniciativas com que os homens cheios de ardor apostólico tratam louvavelmente de excitar e fomentar entre os católicos o conhecimento e o amor dos livros sagrados.
Favoreçam, pois e auxiliem as piedosas associações que se propõem difundir entre os fiéis as edições da Bíblia, e em especial dos Evangelhos, e procurem com todo o empenho que a sua leitura diária se faça nas famílias cristãs, recta e santamente; recomendem eficazmente a Sagrada Escritura traduzida nas línguas vivas com a aprovação da autoridade da Igreja, falando dela e empregando-a quando o permitam as leis da liturgia, e façam, ou procurem que outros oradores sagrados bem peritos façam dissertações públicas ou conferências sobre temas bíblicos. E quanto aos comentários que com tanto louvor e tão grande fruto se editam de vez em quando nos diversos países, ou para tratar e expor cientificamente as questões ou para acomodar os frutos de tais investigações ao ministério sagrado e à utilidade dos fiéis, cuidem os ministros Sagrados de apoiá-los com todas as suas forças e divulgá-los oportunamente entre os vários estados e classes do seu rebanho. Porque devem convencer-se estes ministros sagrados de que tais coisas e todas quantas o zelo apostólico e o sincero amor da Palavra divina achem idóneas para tão excelso propósito, lhes serão eficazes auxiliares na cura das almas.
Ensino da Sagrada Escritura nos Seminários
A ninguém passa despercebido que isto não o poderão fazer bem os sacerdotes, se estes, enquanto estiveram nos seminários não se embeberam de activo e perene amor das Sagradas Escrituras. Por isso os Bispos, a quem incumbe o paternal cuidado dos seus seminários, vigiem diligentemente que também nesta matéria nada se omita do que poderia contribuir para tal fim. Os professores de Sagrada Escritura, por sua parte, completem toda a sua instrução bíblica nos seminários de modo que para a formação dos adolescentes para o sacerdócio e para o ministério da palavra divina os instruam com aquele conhecimento e lhes inculquem aquele amor das sagradas letras sem as quais não podem obter-se abundantes frutos de apostolado. Por isso a explanação exegética seja sobretudo orientada para o aspecto teológico evitando as discussões ociosas e omitindo o que mais alimenta a curiosidade do que fomenta a verdadeira doutrina e a piedade sólida; apresentem o sentido literal, e sobretudo o teológico com tal solidez expliquem-no com tal perícia, inculquem-no com tanto ardor, que aconteça em certo modo aos seus alunos o que aconteceu aos discípulos de Jesus Cristo que iam para Emaús e que depois de ouvir as palavras do Mestre exclamaram: "Não é certo que o nosso coração se inflamava quando nos explicava as Escrituras"? (37).
Convertam-se assim as Letras Divinas, para os futuros sacerdotes da Igreja, em parte pura e perene da vida espiritual de cada um e em alimento e robustecimento da missão sagrada da pregação, que vão receber. Se chegarem a conseguir isto os professores desta importantíssima disciplina nos seminários, convençam-se com júbilo de que contribuíram notavelmente para a salvação das almas, para o progresso da causa católica, para a honra e glória de Deus e levaram a cabo uma obra em estreitíssima relação com a sua missão apostólica.
Oportunidade da Palavra de Deus neste tempo de guerra: consolação para os aflitos; para todos caminho de justiça.
Se o que expusemos, Veneráveis Irmãos e amados filhos, era necessário em qualquer época, é com certeza muito mais urgente em nossos lutuosos tempos, em que quase todos os povos e nações se submergem num mar de calamidades e uma guerra cruel acumula ruínas sobre ruínas e mortes sobre mortes, e em que, excitados mutuamente os mais acerbos ódios dos povos, vemos com suma dor que em não poucos diminuiu não já o sentimento da moderação dos ânimos e da caridade cristã, mas o próprio sentimento de humanidade.
E quem poderá sanar as feridas mortais da sociedade humana senão Aquele a quem o Príncipe dos Apóstolos, cheio de amor e confiança, invoca com as palavras: "Senhor, para quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna"? (38). A este nosso misericordiosíssimo Redentor convém, pois, atrair a todos com todas as forças, porque Ele é quem a todos ensina - aos que têm a prerrogativa da autoridade pública e aos que têm o dever da submissão e da obediência - a probidade verdadeira, a justiça integral, a caridade generosa. Ele é, finalmente, o único fundamento firme e a única defesa que pode existir da paz e da tranquilidade. "Porque ninguém pode pôr outro fundamento que não seja o que está posto, que é Jesus Cristo" (39).
Pois a este Cristo, autor da salvação, conhecê-lo-ão os homens tanto mais plenamente, amá-lo-ão tanto mais intensamente, imitá-lo-ão tanto mais fielmente, quanto maior for o empenho com que se resolvam a conhecer e meditar as Sagradas Escrituras e sobretudo o Novo Testamento. Porque, como diz o Estrídonense (40): "Ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo", "se alguma coisa há que nesta vida contenha o varão sábio e prudente, e entre as solicitações e torvelinhos do mundo o convença a permanecer de ânimo sereno, creio que é antes de mais nada, a meditação e a ciência das Escrituras" (41). Porque aqueles que estão fatigados e oprimidos por sucessos adversos e tristes aqui haurirão os verdadeiros confortos e a força divina para padecer e sofrer: aqui - isto é, nos Santos Evangelhos - todos têm a Cristo, sumo e perfeito modelo de justiça, caridade e misericórdia, e estão abertas, para o género humano ferido e receoso, as fontes daquela divina graça, que, quando se menospreza e esquece, nem os povos nem os seus governantes podem iniciar nem consolidar a tranquilidade social e a concórdia; finalmente, aqui aprenderão todos a Cristo, "que é cabeça de todo o principado e potestade" (42) e "que foi feito por Deus para nós, sabedoria, justiça, santificação e redenção" (43).
CONCLUSÃO
Exortação aos estudiosos da Sagrada Escritura.
Depois de ter exposto e recomendado tudo isto com o fim de adaptar os estudos bíblicos às necessidades do nosso tempo, só Nos resta, Veneráveis Irmãos e amados filhos, relativamente aos cultores da Bíblia que sejam filhos dedicados da Igreja e sigam fielmente a sua doutrina e normas, não só felicitá-los com ânimo paternal, porque foram escolhidos e chamados a tão excelsa missão, mas dar-lhes alento para que prossigam com todo o empenho e cuidado na execução da obra felizmente empreendida, renovando diariamente as suas forças.
Dissemos excelsa missão, porque que coisa há mais sublime do que perscrutar, explicar e apresentar aos fiéis, e defender contra os infiéis a própria palavra de Deus, dada aos homens por inspiração do Espírito Santo? Alimenta-se com este manjar espiritual a alma do próprio intérprete e nutre-se "para recordação da fé, consolo da esperança e alento da caridade" (44). Viver entre estas coisas, meditá-las, não saber mais nada, não procurar mais nada, não vos parece que é já viver no reino celestial aqui na terra"? (45). Apascentem-se com esta mesma comida os espíritos dos fiéis que daí tirarão conhecimento e amor de Deus e proveito e felicidade para suas próprias almas. Os expositores da palavra divina entreguem-se a esta santa ocupação: com toda a sua alma. "Orem para entenderem" (46), trabalhem para penetrarem cada vez mais profundamente nos segredos das sagradas páginas, ensinem e preguem para distribuírem também aos outros os tesouros da palavra de Deus. O que nos séculos passados conseguiram com tanto fruto os preclaros intérpretes da Sagrada Escritura, tratem de o emular na medida de suas forças os actuais, de modo que a Igreja, como nos tempos passados, tenha também no presente doutores na exposição das Letras Divinas, e os fiéis, pelo trabalho e esforço daqueles recebam toda a luz, exortação e alegria das Sagradas Escrituras. Neste trabalho, árduo, sem dúvida, e grave, tenham eles mesmos "por consolo os livros santos" (47), e lembrem-se do prémio prometido, visto que aqueles que "forem doutos brilharão como esplendor, no firmamento, e, os que ensinam aos outros a justiça, como estrelas durante perpétuas eternidades" (48).
Entretanto, desejando ardentemente a todos os filhos da Igreja e especialmente aos professores das ciências bíblicas, ao clero jovem e aos oradores sagrados, que meditando continuamente a palavra de Deus saboreiem como é bom e suave o espírito do Senhor (49), como augúrio de celestes dádivas e testemunho da Nossa paternal benevolência, a cada um de todos vós, Veneráveis Irmãos e amados filhos, concedemos, amorosamente no Senhor, a bênção apostólica.
- Dado em Roma, junto de S. Pedro, aos 30 de Setembro, festa de S. Jerónimo, Doutor Máximo na exposição das Sagradas Escrituras, no ano de 1943, quinto do Nosso Pontificado.
Pio Papa XII
REFERÊNCIAS
(1) 2Tim. 3,16ss.
(2) Sessão IV, decr. I; Ench. Bibl. nº 45.
(3) Sessão III, cap. 2; Ench. Bibl. nº 62.
(4) Alocução aos alunos dos seminários de Roma, 24.06.1939; AAS XXXI (1939), pp. 245-251.
(5) Cf. 1ª, q.70, art. 1 ad. 3.
(6) De Gen. ad. Litt. 2,9,20; PL XXXIV, vol. 270s.; CSEL XXVIII,3,1, p. 46.
(7) Leão XIII, Acta XIII, p. 355; Encf. Bibl. nº 106.
(8) Cf. Bento XV, encíclica Spiritus Paraclitus, AAS XII (1920), p. 396; Ench. Bibl. nº 471.
(9) Leão XIII, Acta XIII, p. 357ss.; Ench. Bibl. nº 109ss.
(10) Cf. Leão XIII, Acta XIII, p. 328; Ench. Bibl. nº 67ss.
(11) Carta apostólica Hyerosolymae in Coenobio, 17.09.1892; Leão XIII, Acta XII, pp. 32-2941, v. p. 240.
(12) Cf. Leão XIII, Acta XXII, p. 232s.; Ench. Bibl. nnº 140-141.
(13) Carta da Pontifícia Comissão Bíblica aos exmos. arcebispos e bispos da Itália, 20.08.1941; AAS XXXII (1941), pp. 465-672.
(14) Carta apostólica Scriturae Sanctae, 23.02.1904; Pio X, Acta I, pp. 176-179; Ench. Bibl. nnº 142-150, v. nnº 143-144.
(15) Cf. carta apostólica Quoniam in Re Biblica, 27.03.1906; Pio X, Acta III, pp. 72-76; Ench. Bibl. nnº 155-173, v. nº 155.
(16) Carta apostólica Vinea Electa, 07.05.1909; AAS I (1909), pp. 447-449; Ench. Bibl. nnº 293-306, v. nnº 296 e 294.
(17) Cf. motu proprio Bibliorum Scientiam, 27.04.1924; AAS XVI (1924), pp. 180-182; Ench. Bibl. nnº 518-525.
(18) Carta ao revmo. d. Aidano Gasquet, 03.12.1907; Pio X, Acta IV, pp. 117-119; Ench. Bibl. nnº 285ss.
(19) Constituição apostólica Inter Praecipuas, 15.06.1933; AAS XXVI (1934), pp.85-87.
(20) Carta Qui Piam ao emº. card. Casseta, 21.01.1907; Pio X, Acta IV, pp. 23-25.
(21) Carta encíclica Spiritus Paraclitus, 25.09.1920; AAS XII (1920), pp. 385-442; Ench. Bibl. nnº 457-508, v. nnº 457, 495, 497 e 491.
(22) Cf., p.ex., S. Jerónimo, in IV Evang. ad Damasum, PL XXIX, col. 526-527. S. Agostinho, De Doctr. Christ. II,21, PL XXXIV, col. 42-43.
(23) De Doctr. Christ. II,21; PL XXXIV, vol. 46.
(24) Decreto De Editione et Usu Sacrorum Librorum; Conc. Trento, ed. Soc. Goeres, t. V, p. 91s.
(25) Ibidem, p. 29.
(26) 1ª, q.1, art. 10 ad lum.
(27) Leão XIII, Acta XIII, pp. 345-346; Ench. Bibl. nnº 94-96.
(28) Hebr. 4,12.
(29) Cf. Bento XV, encíclica Spiritus Paraclitus; AAS XII (1920), p. 390; Ench. Bibl. nº 461.
(30) Contra Arianos I,54; PG XXVI, vol. 123.
(31) Comment. ad Hebr. cap. I, lectio IV.
(32) Hebr. 4,15.
(33) Cf. v. gr. in Gen. 1,4 (PG LIII, col. 34-35); in Gen. 2,21 (ibidem, col. 121); in Gen. 2,8 (ibidem, col. 135); Hom. XV in Joan, ad I,18 (PG LIX, col. 97ss.).
(34) Cf. S. Agostinho, Ep. 149 ad Paulinum nº 34 (PL XXXIII, col. 644); De Diversis Quaestionibus, q. 53, nº 2 (ibi. XL, col. 36); Enarr. in Ps 146 nº 12 (ibi. XXXVII, col. 1907).
(35) Carta apostólica Vigilantiae; Leão XIII, Acta XXII, p. 237; Ench. Bibl. nº 136.
(36) Cf. 1Tim. 3,15.17.
(37) Luc. 24,32.
(38) Jo. 6,69.
(39) 1Cor. 3,11.
(40) S. Jerónimo, in Isaim, prologus; PL XXIV, col. 17.
(41) Id., in Ephesios, prologus; PL XXVI, col. 439.
(42) Col. 2,10.
(43) 1Cor. 1,30.
(44) Cf. S. Agostinho, Contra Faustum XIII,18; PL XLII, col. 294; CSEL XXV, p. 400.
(45) S. Jerónimo, Ep. 53,10; PL XXII, col. 549; CSEL LIV, p. 463.
(46) S. Agostinho, De Doctr. Christ. III,56; PL XXXIV, col. 89.
(47) 1Mac. 12,9.
(48) Dan. 12,3.
(49) Cf. Sab. 12,1.
Ecclesia de Eucharistia
Carta Encíclica
ECCLESIA DE EUCHARISTIA
do Sumo Pontífice
João Paulo II
Aos Bispos
Aos Presbíteros e Diáconos
Às Pessoas Consagradas
E a todos os Fiéis Leigos
Sobre a Eucaristia
Na sua relação com a Igreja
INTRODUÇÃO
1. A Igreja vive da Eucaristia. Esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contém em síntese o próprio núcleo do mistério da Igreja. É com alegria que ela experimenta, de diversas maneiras, a realização incessante desta promessa: « Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo » (Mt 28, 20); mas, na sagrada Eucaristia, pela conversão do pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor, goza desta presença com uma intensidade sem par. Desde o Pentecostes, quando a Igreja, povo da nova aliança, iniciou a sua peregrinação para a pátria celeste, este sacramento divino foi ritmando os seus dias, enchendo-os de consoladora esperança.
O Concílio Vaticano II justamente afirmou que o sacrifício eucarístico é « fonte e centro de toda a vida cristã ».(1)Com efeito, « na santíssima Eucaristia, está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo ».(2) Por isso, o olhar da Igreja volta-se continuamente para o seu Senhor, presente no sacramento do Altar, onde descobre a plena manifestação do seu imenso amor.
2. Durante o Grande Jubileu do ano 2000, pude celebrar a Eucaristia no Cenáculo de Jerusalém, onde, segundo a tradição, o próprio Cristo a realizou pela primeira vez. O Cenáculo é o lugar da instituição deste santíssimo sacramento. Foi lá que Jesus tomou nas suas mãos o pão, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: « Tomai, todos, e comei: Isto é o meu Corpo que será entregue por vós » (cf. Mt 26, 26; Lc 22, 19; 1 Cor 11, 24). Depois, tomou nas suas mãos o cálice com vinho e disse-lhes: « Tomai, todos, e bebei: Este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos para remissão dos pecados » (cf. Mc 14, 24; Lc 22, 20; 1 Cor 11, 25). Dou graças ao Senhor Jesus por me ter permitido repetir no mesmo lugar, obedecendo ao seu mandato: « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19), as palavras por Ele pronunciadas há dois mil anos.
Teriam os Apóstolos, que tomaram parte na Última Ceia, entendido o significado das palavras saídas dos lábios de Cristo? Talvez não. Aquelas palavras seriam esclarecidas plenamente só no fim do Triduum Sacrum, ou seja, aquele período de tempo que vai da tarde de Quinta-feira Santa até à manhã do Domingo de Páscoa. Nestes dias, está contido o mysterium paschale; neles está incluído também o mysterium eucharisticum.
3. Do mistério pascal nasce a Igreja. Por isso mesmo a Eucaristia, que é o sacramento por excelência do mistério pascal, está colocada no centro da vida eclesial. Isto é visível desde as primeiras imagens da Igreja que nos dão os Actos do Apóstolos: « Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão, e às orações » (2, 42). Na « fracção do pão », é evocada a Eucaristia. Dois mil anos depois, continuamos a realizar aquela imagem primordial da Igreja. E, ao fazê-lo na celebração eucarística, os olhos da alma voltam-se para o Tríduo Pascal: para o que se realizou na noite de Quinta-feira Santa, durante a Última Ceia, e nas horas sucessivas. De facto, a instituição da Eucaristia antecipava, sacramentalmente, os acontecimentos que teriam lugar pouco depois, a começar da agonia no Getsémani. Revemos Jesus que sai do Cenáculo, desce com os discípulos, atravessa a torrente do Cedron e chega ao Horto das Oliveiras. Existem ainda hoje naquele lugar algumas oliveiras muito antigas; talvez tenham sido testemunhas do que aconteceu junto delas naquela noite, quando Cristo, em oração, sentiu uma angústia mortal « e o seu suor tornou-se-Lhe como grossas gotas de sangue, que caíam na terra » (Lc 22, 44). O sangue que, pouco antes, tinha entregue à Igreja como vinho de salvação no sacramento eucarístico, começava a ser derramado; a sua efusão completar-se-ia depois no Gólgota, tornando-se o instrumento da nossa redenção: « Cristo, vindo como Sumo Sacerdote dos bens futuros [...] entrou uma só vez no Santo dos Santos, não com o sangue dos carneiros ou dos bezerros, mas com o seu próprio sangue, tendo obtido uma redenção eterna » (Heb 9, 11-12).
4. A hora da nossa redenção. Embora profundamente turvado, Jesus não foge ao ver chegar a sua « hora »: « E que direi Eu? Pai, salva-Me desta hora? Mas por causa disto é que cheguei a esta hora! » (Jo 12, 27). Quer que os discípulos Lhe façam companhia, mas deve experimentar a solidão e o abandono: « Nem sequer pudestes vigiar uma hora Comigo. Vigiai e orai para não cairdes em tentação » (Mt 26, 40-41). Aos pés da cruz, estará apenas João ao lado de Maria e das piedosas mulheres. A agonia no Getsémani foi o prelúdio da agonia na cruz de Sexta-feira Santa. A hora santa, a hora da redenção do mundo. Quando se celebra a Eucaristia na basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, volta-se de modo quase palpável à « hora » de Jesus, a hora da cruz e da glorificação. Até àquele lugar e àquela hora se deixa transportar em espírito cada presbítero ao celebrar a Santa Missa, juntamente com a comunidade cristã que nela participa.
« Foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia ». Estes artigos da profissão de fé ecoam nas seguintes palavras de contemplação e proclamação: Ecce lignum crucis in quo salus mundi pependit. Venite adoremus - « Eis o madeiro da Cruz, no qual esteve suspenso o Salvador do mundo. Vinde adoremos! » É o convite que a Igreja faz a todos na tarde de Sexta-feira Santa. E, quando voltar novamente a cantar já no tempo pascal, será para proclamar: Surrexit Dominus de sepulcro qui pro nobis pependit in ligno. Alleluia - « Ressuscitou do sepulcro o Senhor que por nós esteve suspenso no madeiro. Aleluia ».
5. Mysterium fidei! - « Mistério da fé ». Quando o sacerdote pronuncia ou canta estas palavras, os presentes aclamam: « Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus! ».
Com estas palavras ou outras semelhantes, a Igreja, ao mesmo tempo que apresenta Cristo no mistério da sua Paixão, revela também o seu próprio mistério: Ecclesia de Eucharistia. Se é com o dom do Espírito Santo, no Pentecostes, que a Igreja nasce e se encaminha pelas estradas do mundo, um momento decisivo da sua formação foi certamente a instituição da Eucaristia no Cenáculo. O seu fundamento e a sua fonte é todo o Triduum Paschale, mas este está de certo modo guardado, antecipado e « concentrado » para sempre no dom eucarístico. Neste, Jesus Cristo entregava à Igreja a actualização perene do mistério pascal. Com ele, instituía uma misteriosa « contemporaneidade » entre aquele Triduum e o arco inteiro dos séculos.
Este pensamento suscita em nós sentimentos de grande e reconhecido enlevo. Há, no evento pascal e na Eucaristia que o actualiza ao longo dos séculos, uma « capacidade » realmente imensa, na qual está contida a história inteira, enquanto destinatária da graça da redenção. Este enlevo deve invadir sempre a assembleia eclesial reunida para a celebração eucarística; mas, de maneira especial, deve inundar o ministro da Eucaristia, o qual, pela faculdade recebida na Ordenação sacerdotal, realiza a consagração; é ele, com o poder que lhe vem de Cristo, do Cenáculo, que pronuncia: « Isto é o meu Corpo que será entregue por vós »; « este é o cálice do meu Sangue, [...] que será derramado por vós ». O sacerdote pronuncia estas palavras ou, antes, coloca a sua boca e a sua voz à disposição d'Aquele que as pronunciou no Cenáculo e quis que fossem repetidas de geração em geração por todos aqueles que, na Igreja, participam ministerialmente do seu sacerdócio.
6. É este « enlevo » eucarístico que desejo despertar com esta carta encíclica, que dá continuidade à herança jubilar que quis entregar à Igreja com a carta apostólica Novo millennio ineunte e o seu coroamento mariano – a carta apostólica Rosarium Virginis Mariæ. Contemplar o rosto de Cristo e contemplá-lo com Maria é o « programa » que propus à Igreja na aurora do terceiro milénio, convidando-a a fazer-se ao largo no mar da história lançando-se com entusiasmo na nova evangelização. Contemplar Cristo implica saber reconhecê-Lo onde quer que Ele Se manifeste, com as suas diversas presenças mas sobretudo no sacramento vivo do seu corpo e do seu sangue. A Igreja vive de Jesus eucarístico, por Ele é nutrida, por Ele é iluminada. A Eucaristia é mistério de fé e, ao mesmo tempo, « mistério de luz ».(3)Sempre que a Igreja a celebra, os fiéis podem de certo modo reviver a experiência dos dois discípulos de Emaús: « Abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-No » (Lc 24, 31).
7. Desde quando iniciei o ministério de Sucessor de Pedro, sempre quis contemplar a Quinta-feira Santa, dia da Eucaristia e do Sacerdócio, com um sinal de particular atenção enviando uma carta a todos os sacerdotes do mundo. Neste vigésimo quinto ano do meu Pontificado, desejo envolver mais plenamente a Igreja inteira nesta reflexão eucarística para agradecer ao Senhor especialmente pelo dom da Eucaristia e do sacerdócio: « Dom e mistério ».(4) Se, ao proclamar o Ano do Rosário, quis pôr este meu vigésimo quinto ano sob o signo da contemplação de Cristo na escola de Maria, não posso deixar passar esta Quinta-feira Santa de 2003 sem me deter diante do « rosto eucarístico » de Jesus, propondo à Igreja, com renovado ardor, a centralidade da Eucaristia. Dela vive a Igreja; nutre-se deste « pão vivo ». Por isso senti a necessidade de exortar a todos a experimentá-lo sempre de novo.
8. Quando penso na Eucaristia e olho para a minha vida de sacerdote, de Bispo, de Sucessor de Pedro, espontaneamente ponho-me a recordar tantos momentos e lugares onde tive a dita de celebrá-la. Recordo a igreja paroquial de Niegowic, onde desempenhei o meu primeiro encargo pastoral, a colegiada de S. Floriano em Cracóvia, a catedral do Wawel, a basílica de S. Pedro e tantas basílicas e igrejas de Roma e do mundo inteiro. Pude celebrar a Santa Missa em capelas situadas em caminhos de montanha, nas margens dos lagos, à beira do mar; celebrei-a em altares construídos nos estádios, nas praças das cidades... Este cenário tão variado das minhas celebrações eucarísticas faz-me experimentar intensamente o seu carácter universal e, por assim dizer, cósmico. Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo. Une o céu e a terra. Abraça e impregna toda a criação. O Filho de Deus fez-Se homem para, num supremo acto de louvor, devolver toda a criação Àquele que a fez surgir do nada. Assim, Ele, o sumo e eterno Sacerdote, entrando com o sangue da sua cruz no santuário eterno, devolve ao Criador e Pai toda a criação redimida. Fá-lo através do ministério sacerdotal da Igreja, para glória da Santíssima Trindade. Verdadeiramente este é o mysterium fidei que se realiza na Eucaristia: o mundo saído das mãos de Deus criador volta a Ele redimido por Cristo.
9. A Eucaristia, presença salvífica de Jesus na comunidade dos fiéis e seu alimento espiritual, é o que de mais precioso pode ter a Igreja no seu caminho ao longo da história. Assim se explica a cuidadosa atenção que ela sempre reservou ao mistério eucarístico, uma atenção que sobressai com autoridade no magistério dos Concílios e dos Sumos Pontífices. Como não admirar as exposições doutrinais dos decretos sobre a Santíssima Eucaristia e sobre o Santo Sacrifício da Missa promulgados pelo Concílio de Trento? Aquelas páginas guiaram a teologia e a catequese nos séculos sucessivos, permanecendo ainda como ponto de referência dogmático para a incessante renovação e crescimento do povo de Deus na sua fé e amor à Eucaristia. Em tempos mais recentes, há que mencionar três encíclicas: a encíclica Miræ caritatis de Leão XIII (28 de Maio de 1902),(5) a encíclica Mediator Dei de Pio XII (20 de Novembro de 1947) (6) e a encíclica Mysterium fidei de Paulo VI (3 de Setembro de 1965).(7)
O Concílio Vaticano II, embora não tenha publicado qualquer documento específico sobre o mistério eucarístico, todavia ilustra os seus vários aspectos no conjunto dos documentos, especialmente na constituição dogmática sobre a Igreja Lumen gentium e na constituição sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum concilium.
Eu mesmo, nos primeiros anos do meu ministério apostólico na Cátedra de Pedro, tive oportunidade de tratar alguns aspectos do mistério eucarístico e da sua incidência na vida daquele que é o seu ministro, com a carta apostólica Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980).(8) Hoje retomo o fio daquele discurso com o coração transbordante de emoção e gratidão, dando eco às palavras do Salmista: « Que darei eu ao Senhor por todos os seus benefícios? Elevarei o cálice da salvação invocando o nome do Senhor » (Sal 116/115, 12-13).
10. A este esforço de anúncio por parte do Magistério correspondeu um crescimento interior da comunidade cristã. Não há dúvida que a reforma litúrgica do Concílio trouxe grandes vantagens para uma participação mais consciente, activa e frutuosa dos fiéis no santo sacrifício do altar. Mais ainda, em muitos lugares, é dedicado amplo espaço à adoração do Santíssimo Sacramento, tornando-se fonte inesgotável de santidade. A devota participação dos fiéis na procissão eucarística da solenidade do Corpo e Sangue de Cristo é uma graça do Senhor que anualmente enche de alegria quantos nela participam. E mais sinais positivos de fé e de amor eucarísticos se poderiam mencionar.
A par destas luzes, não faltam sombras, infelizmente.De facto, há lugares onde se verifica um abandono quase completo do culto de adoração eucarística. Num contexto eclesial ou outro, existem abusos que contribuem para obscurecer a recta fé e a doutrina católica acerca deste admirável sacramento. Às vezes transparece uma compreensão muito redutiva do mistério eucarístico. Despojado do seu valor sacrificial, é vivido como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesa. Além disso, a necessidade do sacerdócio ministerial, que assenta na sucessão apostólica, fica às vezes obscurecida, e a sacramentalidade da Eucaristia é reduzida à simples eficácia do anúncio. Aparecem depois, aqui e além, iniciativas ecuménicas que, embora bem intencionadas, levam a práticas na Eucaristia contrárias à disciplina que serve à Igreja para exprimir a sua fé. Como não manifestar profunda mágoa por tudo isto? A Eucaristia é um dom demasiado grande para suportar ambiguidades e reduções.
Espero que esta minha carta encíclica possa contribuir eficazmente para dissipar as sombras de doutrinas e práticas não aceitáveis, a fim de que a Eucaristia continue a resplandecer em todo o fulgor do seu mistério.
CAPÍTULO I - MISTÉRIO DA FÉ
11. « O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue » (1 Cor 11, 23), instituiu o sacrifício eucarístico do seu corpo e sangue. As palavras do apóstolo Paulo recordam-nos as circunstâncias dramáticas em que nasceu a Eucaristia.Esta tem indelevelmente inscrito nela o evento da paixão e morte do Senhor. Não é só a sua evocação, mas presença sacramental. É o sacrifício da cruz que se perpetua através dos séculos.(9) Esta verdade está claramente expressa nas palavras com que o povo, no rito latino, responde à proclamação « mistério da fé » feita pelo sacerdote: « Anunciamos, Senhor, a vossa morte ».
A Igreja recebeu a Eucaristia de Cristo seu Senhor, não como um dom, embora precioso, entre muitos outros, mas como o dom por excelência, porque dom d'Ele mesmo, da sua Pessoa na humanidade sagrada, e também da sua obra de salvação. Esta não fica circunscrita no passado, pois « tudo o que Cristo é, tudo o que fez e sofreu por todos os homens, participa da eternidade divina, e assim transcende todos os tempos e em todos se torna presente ».(10)
Quando a Igreja celebra a Eucaristia, memorial da morte e ressurreição do seu Senhor, este acontecimento central de salvação torna-se realmente presente e « realiza-se também a obra da nossa redenção ».(11) Este sacrifício é tão decisivo para a salvação do género humano que Jesus Cristo realizou-o e só voltou ao Pai depois de nos ter deixado o meio para dele participarmos como se tivéssemos estado presentes. Assim cada fiel pode tomar parte nela, alimentando-se dos seus frutos inexauríveis. Esta é a fé que as gerações cristãs viveram ao longo dos séculos, e que o magistério da Igreja tem continuamente reafirmado com jubilosa gratidão por dom tão inestimável.(12) É esta verdade que desejo recordar mais uma vez, colocando-me convosco, meus queridos irmãos e irmãs, em adoração diante deste Mistério: mistério grande, mistério de misericórdia. Que mais poderia Jesus ter feito por nós?Verdadeiramente, na Eucaristia demonstra-nos um amor levado até ao « extremo » (cf. Jo 13, 1), um amor sem medida.
12. Este aspecto de caridade universal do sacramento eucarístico está fundado nas próprias palavras do Salvador. Ao instituí-lo, não Se limitou a dizer « isto é o meu corpo », « isto é o meu sangue », mas acrescenta: « entregue por vós (...) derramado por vós » (Lc 22, 19-20). Não se limitou a afirmar que o que lhes dava a comer e a beber era o seu corpo e o seu sangue, mas exprimiu também o seu valor sacrificial, tornando sacramentalmente presente o seu sacrifício, que algumas horas depois realizaria na cruz pela salvação de todos. « A Missa é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o memorial sacrificial em que se perpetua o sacrifício da cruz e o banquete sagrado da comunhão do corpo e sangue do Senhor ».(13)
A Igreja vive continuamente do sacrifício redentor, e tem acesso a ele não só através duma lembrança cheia de fé, mas também com um contacto actual, porque este sacrifício volta a estar presente, perpetuando-se, sacramentalmente, em cada comunidade que o oferece pela mão do ministro consagrado. Deste modo, a Eucaristia aplica aos homens de hoje a reconciliação obtida de uma vez para sempre por Cristo para humanidade de todos os tempos. Com efeito, « o sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício ».(14) Já o afirmava em palavras expressivas S. João Crisóstomo: « Nós oferecemos sempre o mesmo Cordeiro, e não um hoje e amanhã outro, mas sempre o mesmo. Por este motivo, o sacrifício é sempre um só. [...] Também agora estamos a oferecer a mesma vítima que então foi oferecida e que jamais se exaurirá ».(15)
A Missa torna presente o sacrifício da cruz; não é mais um, nem o multiplica.(16) O que se repete é a celebração memorial, a « exposição memorial » (memorialis demonstratio),(17) de modo que o único e definitivo sacrifício redentor de Cristo se actualiza incessantemente no tempo. Portanto, a natureza sacrificial do mistério eucarístico não pode ser entendida como algo isolado, independente da cruz ou com uma referência apenas indirecta ao sacrifício do Calvário.
13. Em virtude da sua íntima relação com o sacrifício do Gólgota, a Eucaristia é sacrifício em sentido próprio, e não apenas em sentido genérico como se se tratasse simplesmente da oferta de Cristo aos fiéis para seu alimento espiritual. Com efeito, o dom do seu amor e da sua obediência até ao extremo de dar a vida (cf. Jo 10,17-18) é em primeiro lugar um dom a seu Pai. Certamente, é um dom em nosso favor, antes em favor de toda a humanidade (cf. Mt 26, 28; Mc 14, 24; Lc 22, 20; Jo 10, 15), mas primariamente um dom ao Pai: « Sacrifício que o Pai aceitou, retribuindo esta doação total de seu Filho, que Se fez “obediente até à morte” (Flp 2, 8), com a sua doação paterna, ou seja, com o dom da nova vida imortal na ressurreição ».(18)
Ao entregar à Igreja o seu sacrifício, Cristo quis também assumir o sacrifício espiritual da Igreja, chamada por sua vez a oferecer-se a si própria juntamente com o sacrifício de Cristo. Assim no-lo ensina o Concílio Vaticano II: « Pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, [os fiéis] oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela ».(19)
14. A Páscoa de Cristo inclui, juntamente com a paixão e morte, a sua ressurreição. Assim o lembra a aclamação da assembleia depois da consagração: « Proclamamos a vossa ressurreição ». Com efeito, o sacrifício eucarístico torna presente não só o mistério da paixão e morte do Salvador, mas também o mistério da ressurreição, que dá ao sacrifício a sua coroação. Por estar vivo e ressuscitado é que Cristo pode tornar-Se « pão da vida » (Jo 6, 35.48), « pão vivo » (Jo 6, 51), na Eucaristia. S. Ambrósio lembrava aos neófitos esta verdade, aplicando às suas vidas o acontecimento da ressurreição: « Se hoje Cristo é teu, Ele ressuscita para ti cada dia ».(20) Por sua vez, S. Cirilo de Alexandria sublinhava que a participação nos santos mistérios « é uma verdadeira confissão e recordação de que o Senhor morreu e voltou à vida por nós e em nosso favor ».(21)
15. A reprodução sacramental na Santa Missa do sacrifício de Cristo coroado pela sua ressurreição implica uma presença muito especial, que – para usar palavras de Paulo VI – « chama-se “real”, não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem “reais”, mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela se torna presente Cristo completo, Deus e homem ».(22) Reafirma-se assim a doutrina sempre válida do Concílio de Trento: « Pela consagração do pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue; a esta mudança, a Igreja católica chama, de modo conveniente e apropriado, transubstanciação ».(23) Verdadeiramente a Eucaristia é mysterium fidei, mistério que supera os nossos pensamentos e só pode ser aceite pela fé, como lembram frequentemente as catequeses patrísticas sobre este sacramento divino. « Não hás-de ver – exorta S. Cirilo de Jerusalém – o pão e o vinho [consagrados] simplesmente como elementos naturais, porque o Senhor disse expressamente que são o seu corpo e o seu sangue: a fé t'o assegura, ainda que os sentidos possam sugerir-te outra coisa ».(24)
« Adoro te devote, latens Deitas »: continuaremos a cantar com S. Tomás, o Doutor Angélico. Diante deste mistério de amor, a razão humana experimenta toda a sua limitação. Compreende-se como, ao longo dos séculos, esta verdade tenha estimulado a teologia a árduos esforços de compreensão.
São esforços louváveis, tanto mais úteis e incisivos se capazes de conjugarem o exercício crítico do pensamento com a « vida de fé » da Igreja, individuada especialmente « no carisma da verdade » do Magistério e na « íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais » (25) sobretudo os Santos. Permanece o limite apontado por Paulo VI: « Toda a explicação teológica que queira penetrar de algum modo neste mistério, para estar de acordo com a fé católica deve assegurar que na sua realidade objectiva, independentemente do nosso entendimento, o pão e o vinho deixaram de existir depois da consagração, de modo que a partir desse momento são o corpo e o sangue adoráveis do Senhor Jesus que estão realmente presentes diante de nós sob as espécies sacramentais do pão e do vinho ».(26)
16. A eficácia salvífica do sacrifício realiza-se plenamente na comunhão, ao recebermos o corpo e o sangue do Senhor. O sacrifício eucarístico está particularmente orientado para a união íntima dos fiéis com Cristo através da comunhão: recebemo-Lo a Ele mesmo que Se ofereceu por nós, o seu corpo entregue por nós na cruz, o seu sangue « derramado por muitos para a remissão dos pecados » (Mt 26, 28). Recordemos as suas palavras: « Assim como o Pai, que vive, Me enviou e Eu vivo pelo Pai, assim também o que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). O próprio Jesus nos assegura que tal união, por Ele afirmada em analogia com a união da vida trinitária, se realiza verdadeiramente. A Eucaristia é verdadeiro banquete, onde Cristo Se oferece como alimento. A primeira vez que Jesus anunciou este alimento, os ouvintes ficaram perplexos e desorientados, obrigando o Mestre a insistir na dimensão real das suas palavras: « Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós » (Jo 6, 53). Não se trata de alimento em sentido metafórico, mas « a minha carne é, em verdade, uma comida, e o meu sangue é, em verdade, uma bebida » (Jo 6, 55).
17. Através da comunhão do seu corpo e sangue, Cristo comunica-nos também o seu Espírito. Escreve S. Efrém: « Chamou o pão seu corpo vivo, encheu-o de Si próprio e do seu Espírito. [...] E aquele que o come com fé, come Fogo e Espírito. [...] Tomai e comei-o todos; e, com ele, comei o Espírito Santo. De facto, é verdadeiramente o meu corpo, e quem o come viverá eternamente ».(27) A Igreja pede este Dom divino, raiz de todos os outros dons, na epiclese eucarística. Assim reza, por exemplo, a Divina Liturgia de S. João Crisóstomo: « Nós vos invocamos, pedimos e suplicamos: enviai o vosso Santo Espírito sobre todos nós e sobre estes dons, [...] para que sirvam a quantos deles participarem de purificação da alma, remissão dos pecados, comunicação do Espírito Santo ».(28) E, no Missal Romano, o celebrante suplica: « Fazei que, alimentando-nos do Corpo e Sangue do vosso Filho, cheios do seu Espírito Santo, sejamos em Cristo um só corpo e um só espírito ».(29) Assim, pelo dom do seu corpo e sangue, Cristo aumenta em nós o dom do seu Espírito, já infundido no Baptismo e recebido como « selo » no sacramento da Confirmação.
18. A aclamação do povo depois da consagração termina com as palavras « Vinde, Senhor Jesus », justamente exprimindo a tensão escatológica que caracteriza a celebração eucarística (cf. 1 Cor 11, 26). A Eucaristia é tensão para a meta, antegozo da alegria plena prometida por Cristo (cf. Jo 15, 11); de certa forma, é antecipação do Paraíso, « penhor da futura glória ».(30)A Eucaristia é celebrada na ardente expectativa de Alguém, ou seja, « enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador ».(31) Quem se alimenta de Cristo na Eucaristia não precisa de esperar o Além para receber a vida eterna: já a possui na terra, como primícias da plenitude futura, que envolverá o homem na sua totalidade. De facto, na Eucaristia recebemos a garantia também da ressurreição do corpo no fim do mundo: « Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia » (Jo 6, 54). Esta garantia da ressurreição futura deriva do facto de a carne do Filho do Homem, dada em alimento, ser o seu corpo no estado glorioso de ressuscitado. Pela Eucaristia, assimila-se, por assim dizer, o « segredo » da ressurreição. Por isso, S. Inácio de Antioquia justamente definia o Pão eucarístico como « remédio de imortalidade, antídoto para não morrer ».(32)
19. A tensão escatológica suscitada pela Eucaristia exprime e consolida a comunhão com a Igreja celeste. Não é por acaso que, nas Anáforas orientais e nas Orações Eucarísticas latinas, se lembra com veneração Maria sempre Virgem, Mãe do nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, os anjos, os santos apóstolos, os gloriosos mártires e todos os santos. Trata-se dum aspecto da Eucaristia que merece ser assinalado: ao celebrarmos o sacrifício do Cordeiro unimo-nos à liturgia celeste, associando-nos àquela multidão imensa que grita: « A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro » (Ap 7, 10). A Eucaristia é verdadeiramente um pedaço de céu que se abre sobre a terra; é um raio de glória da Jerusalém celeste, que atravessa as nuvens da nossa história e vem iluminar o nosso caminho.
20. Consequência significativa da tensão escatológica presente na Eucaristia é o estímulo que dá à nossa caminhada na história, lançando uma semente de activa esperança na dedicação diária de cada um aos seus próprios deveres. De facto se a visão cristã leva a olhar para o « novo céu » e a « nova terra » (Ap 21, 1), isso não enfraquece, antes estimula o nosso sentido de responsabilidade pela terra presente.(33) Desejo reafirmá-lo com vigor ao início do novo milénio, para que os cristãos se sintam ainda mais decididos a não descurar os seus deveres de cidadãos terrenos. Têm o dever de contribuir com a luz do Evangelho para a edificação de um mundo à medida do homem e plenamente conforme ao desígnio de Deus.
Muitos são os problemas que obscurecem o horizonte do nosso tempo. Basta pensar quanto seja urgente trabalhar pela paz, colocar sólidas premissas de justiça e solidariedade nas relações entre os povos, defender a vida humana desde a concepção até ao seu termo natural. E também que dizer das mil contradições dum mundo « globalizado », onde parece que os mais débeis, os mais pequenos e os mais pobres pouco podem esperar? É neste mundo que tem de brilhar a esperança cristã! Foi também para isto que o Senhor quis ficar connosco na Eucaristia, inserindo nesta sua presença sacrificial e comensal a promessa duma humanidade renovada pelo seu amor. É significativo que, no lugar onde os Sinópticos narram a instituição da Eucaristia, o evangelho de João proponha, ilustrando assim o seu profundo significado, a narração do « lava-pés », gesto este que faz de Jesus mestre de comunhão e de serviço (cf. Jo 13, 1-20). O apóstolo Paulo, por sua vez, qualifica como « indi- gna » duma comunidade cristã a participação na Ceia do Senhor que se verifique num contexto de discórdia e de indiferença pelos pobres (cf. 1 Cor 11, 17-22.27-34).(34)
Anunciar a morte do Senhor « até que Ele venha » (1 Cor 11, 26) inclui, para os que participam na Eucaristia, o compromisso de transformarem a vida, de tal forma que esta se torne, de certo modo, toda « eucarística ». São precisamente este fruto de transfiguração da existência e o empenho de transformar o mundo segundo o Evangelho que fazem brilhar a tensão escatológica da celebração eucarística e de toda a vida cristã: « Vinde, Senhor Jesus! » (cf. Ap 22, 20).
CAPÍTULO II - A EUCARISTIA EDIFICA A IGREJA
21. O Concílio Vaticano II veio recordar que a celebração eucarística está no centro do processo de crescimento da Igreja. De facto, depois de afirmar que « a Igreja, ou seja, o Reino de Cristo já presente em mistério, cresce visivelmente no mundo pelo poder de Deus »,(35) querendo de algum modo responder à questão sobre o modo como cresce, acrescenta: « Sempre que no altar se celebra o sacrifício da cruz, no qual “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (1 Cor 5, 7), realiza-se também a obra da nossa redenção. Pelo sacramento do pão eucarístico, ao mesmo tempo é representada e se realiza a unidade dos fiéis, que constituem um só corpo em Cristo (cf. 1 Cor 10, 17) ».(36)
Existe um influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da Igreja. Os evangelistas especificam que foram os Doze, os Apóstolos, que estiveram reunidos com Jesus na Última Ceia (cf. Mt 26, 20; Mc 14, 17; Lc 22, 14). Trata-se de um detalhe de notável importância, porque os Apóstolos « foram a semente do novo Israel e ao mesmo tempo a origem da sagrada Hierarquia ».(37) Ao oferecer-lhes o seu corpo e sangue como alimento, Cristo envolvia-os misteriosamente no sacrifício que iria consumar-se dentro de poucas horas no Calvário. De modo análogo à aliança do Sinai, que foi selada com um sacrifício e a aspersão do sangue,(38) os gestos e as palavras de Jesus na Última Ceia lançavam os alicerces da nova comunidade messiânica, povo da nova aliança.
No Cenáculo, os Apóstolos, tendo aceite o convite de Jesus: « Tomai, comei [...]. Bebei dele todos » (Mt 26, 26.27), entraram pela primeira vez em comunhão sacramental com Ele. Desde então e até ao fim dos séculos, a Igreja edifica-se através da comunhão sacramental com o Filho de Deus imolado por nós: « Fazei isto em minha memória [...]. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em minha memória » (1 Cor 11, 24-25; cf. Lc 22, 19).
22. A incorporação em Cristo, realizada pelo Baptismo, renova-se e consolida-se continuamente através da participação no sacrifício eucarístico, sobretudo na sua forma plena que é a comunhão sacramental. Podemos dizer não só que cada um de nós recebe Cristo, mas também que Cristo recebe cada um de nós. Ele intensifica a sua amizade connosco: « Chamei-vos amigos » (Jo 15, 14). Mais ainda, nós vivemos por Ele: « O que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). Na comunhão eucarística, realiza-se de modo sublime a inabitação mútua de Cristo e do discípulo: « Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós » (Jo 15, 4).
Unindo-se a Cristo, o povo da nova aliança não se fecha em si mesmo; pelo contrário, torna-se « sacramento » para a humanidade,(39) sinal e instrumento da salvação realizada por Cristo, luz do mundo e sal da terra (cf. Mt 5, 13-16) para a redenção de todos.(40) A missão da Igreja está em continuidade com a de Cristo: « Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós » (Jo 20, 21). Por isso, a Igreja tira a força espiritual de que necessita para levar a cabo a sua missão da perpetuação do sacrifício da cruz na Eucaristia e da comunhão do corpo e sangue de Cristo. Deste modo, a Eucaristia apresenta-se como fonte e simultaneamente vértice de toda a evangelização, porque o seu fim é a comunhão dos homens com Cristo e, n'Ele, com o Pai e com o Espírito Santo.(41)
23. Pela comunhão eucarística, a Igreja é consolidada igualmente na sua unidade de corpo de Cristo. A este efeito unificador que tem a participação no banquete eucarístico, alude S. Paulo quando diz aos coríntios: « O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão » (1 Cor 10, 16-17). Concreto e profundo, S. João Crisóstomo comenta: « Com efeito, o que é o pão? É o corpo de Cristo. E em que se transformam aqueles que o recebem?No corpo de Cristo; não muitos corpos, mas um só corpo. De facto, tal como o pão é um só apesar de constituído por muitos grãos, e estes, embora não se vejam, todavia estão no pão, de tal modo que a sua diferença desapareceu devido à sua perfeita e recíproca fusão, assim também nós estamos unidos reciprocamente entre nós e, todos juntos, com Cristo ».(42) A argumentação é linear: a nossa união com Cristo, que é dom e graça para cada um, faz com que, n'Ele, sejamos parte também do seu corpo total que é a Igreja. A Eucaristia consolida a incorporação em Cristo operada no Baptismo pelo dom do Espírito (cf. 1 Cor 12, 13.27).
A acção conjunta e indivisível do Filho e do Espírito Santo, que está na origem da Igreja, tanto da sua constituição como da sua continuidade, opera na Eucaristia. Bem ciente disto, o autor da Liturgia de S. Tiago, na epiclese da anáfora, pede a Deus Pai que envie o Espírito Santo sobre os fiéis e sobre os dons, para que o corpo e o sangue de Cristo « sirvam a todos os que deles participarem [...] de santificação para as almas e os corpos ».(43) A Igreja é fortalecida pelo Paráclito divino através da santificação eucarística dos fiéis.
24. O dom de Cristo e do seu Espírito, que recebemos na comunhão eucarística, realiza plena e sobreabundantemente os anseios de unidade fraterna que vivem no coração humano e ao mesmo tempo eleva esta experiência de fraternidade, que é a participação comum na mesma mesa eucarística, a níveis que estão muito acima da mera experiência dum banquete humano. Pela comunhão do corpo de Cristo, a Igreja consegue cada vez mais profundamente ser, « em Cristo, como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ».(44)
Aos germes de desagregação tão enraizados na humanidade por causa do pecado, como demonstra a experiência quotidiana, contrapõe-se a força geradora de unidade do corpo de Cristo. A Eucaristia, construindo a Igreja, cria por isso mesmo comunidade entre os homens.
25. O culto prestado à Eucaristia fora da Missa é de um valor inestimável na vida da Igreja, e está ligado intimamente com a celebração do sacrifício eucarístico. A presença de Cristo nas hóstias consagradas que se conservam após a Missa – presença essa que perdura enquanto subsistirem as espécies do pão do vinho (45) – resulta da celebração da Eucaristia e destina-se à comunhão, sacramental e espiritual.(46)Compete aos Pastores, inclusive pelo testemunho pessoal, estimular o culto eucarístico, de modo particular as exposições do Santíssimo Sacramento e também as visitas de adoração a Cristo presente sob as espécies eucarísticas(47)
É bom demorar-se com Ele e, inclinado sobre o seu peito como o discípulo predilecto (cf. Jo 13, 25), deixar-se tocar pelo amor infinito do seu coração. Se actualmente o cristianismo se deve caracterizar sobretudo pela « arte da oração »,(48) como não sentir de novo a necessidade de permanecer longamente, em diálogo espiritual, adoração silenciosa, atitude de amor, diante de Cristo presente no Santíssimo Sacramento? Quantas vezes, meus queridos irmãos e irmãs, fiz esta experiência, recebendo dela força, consolação, apoio!
Desta prática, muitas vezes louvada e recomendada pelo Magistério,(49) deram-nos o exemplo numerosos Santos. De modo particular, distinguiu-se nisto S. Afonso Maria de Ligório, que escrevia: « A devoção de adorar Jesus sacramentado é, depois dos sacramentos, a primeira de todas as devoções, a mais agradável a Deus e a mais útil para nós ».(50) A Eucaristia é um tesouro inestimável: não só a sua celebração, mas também o permanecer diante dela fora da Missa permite-nos beber na própria fonte da graça. Uma comunidade cristã que queira contemplar melhor o rosto de Cristo, segundo o espírito que sugeri nas cartas apostólicas Novo millennio ineunte e Rosarium Virginis Mariæ, não pode deixar de desenvolver também este aspecto do culto eucarístico, no qual perduram e se multiplicam os frutos da comunhão do corpo e sangue do Senhor.
CAPÍTULO III - A APOSTOLICIDADE DA EUCARISTIA E DA IGREJA
26. Se a Eucaristia edifica a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia, como antes recordei, consequentemente há entre ambas uma conexão estreitíssima, podendo nós aplicar ao mistério eucarístico os atributos que dizemos da Igreja quando professamos, no Símbolo Niceno-Constantinopolitano, que é « una, santa, católica e apostólica ». Também a Eucaristia é una e católica; e é santa, antes, é o Santíssimo Sacramento. Mas é principalmente sobre a sua apostolicidade que agora queremos concentrar a nossa atenção.
27. Quando o Catecismo da Igreja Católica explica em que sentido a Igreja se diz apostólica, ou seja, fundada sobre os Apóstolos, individua na expressão um tríplice sentido. O primeiro significa que a Igreja « foi e continua a ser construída sobre o “alicerce dos Apóstolos” (Ef 2, 20), testemunhas escolhidas e enviadas em missão pelo próprio Cristo ».(51) Ora, no caso da Eucaristia, os Apóstolos também estão na sua base: naturalmente o sacramento remonta ao próprio Cristo, mas foi confiado por Jesus aos Apóstolos e depois transmitido por eles e seus sucessores até nós. É em continuidade com a acção dos Apóstolos e obedecendo ao mandato do Senhor que a Igreja celebra a Eucaristia ao longo dos séculos.
O segundo sentido que o Catecismo indica para a apostolicidade da Igreja é este: ela « guarda e transmite, com a ajuda do Espírito Santo que nela habita, a doutrina, o bom depósito, as sãs palavras recebidas dos Apóstolos ».(52) Também neste sentido a Eucaristia é apostólica, porque é celebrada de acordo com a fé dos Apóstolos. Diversas vezes na história bimilenária do povo da nova aliança, o magistério eclesial especificou a doutrina eucarística, nomeadamente quanto à sua exacta terminologia, precisamente para salvaguardar a fé apostólica neste excelso mistério. Esta fé permanece imutável, e é essencial para a Igreja que assim continue.
28. Por último, a Igreja é apostólica enquanto « continua a ser ensinada, santificada e dirigida pelos Apóstolos até ao regresso de Cristo, graças àqueles que lhes sucedem no ofício pastoral: o Colégio dos Bispos, assistido pelos presbíteros, em união com o Sucessor de Pedro, Pastor supremo da Igreja ».(53) Para suceder aos Apóstolos na missão pastoral é necessário o sacramento da Ordem, graças a uma série ininterrupta, desde as origens, de Ordenações episcopais válidas.(54) Esta sucessão é essencial, para que exista a Igreja em sentido próprio e pleno.
A Eucaristia apresenta também este sentido da apostolicidade. De facto, como ensina o Concílio Vaticano II, « os fiéis por sua parte concorrem para a oblação da Eucaristia, em virtude do seu sacerdócio real »,(55)mas é o sacerdote ministerial que « realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo ».(56)Por isso se prescreve no Missal Romano que seja unicamente o sacerdote a recitar a oração eucarística, enquanto o povo se lhe associa com fé e em silêncio.(57)
29. A afirmação, várias vezes feita no Concílio Vaticano II, de que « o sacerdote ministerial realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo (in persona Christi) »,(58) estava já bem radicada no magistério pontifício.(59) Como já tive oportunidade de esclarecer noutras ocasiões, a expressão in persona Christi « quer dizer algo mais do que “em nome”, ou então “nas vezes” de Cristo. In persona, isto é, na específica e sacramental identificação com o Sumo e Eterno Sacerdote, que é o Autor e o principal Sujeito deste seu próprio sacrifício, no que verdadeiramente não pode ser substituído por ninguém ».(60) Na economia de salvação escolhida por Cristo, o ministério dos sacerdotes que receberam o sacramento da Ordem manifesta que a Eucaristia, por eles celebrada, é um dom que supera radicalmente o poder da assembleia e, em todo o caso, é insubstituível para ligar validamente a consagração eucarística ao sacrifício da cruz e à Última Ceia.
A assembleia que se reúne para a celebração da Eucaristia necessita absolutamente de um sacerdote ordenado que a ela presida, para poder ser verdadeiramente uma assembleia eucarística. Por outro lado, a comunidade não é capaz de dotar-se por si só do ministro ordenado. Este é um dom que ela recebe através da sucessão episcopal que remonta aos Apóstolos. É o Bispo que constitui, pelo sacramento da Ordem, um novo presbítero, conferindo-lhe o poder de consagrar a Eucaristia. Por isso, « o mistério eucarístico não pode ser celebrado em nenhuma comunidade a não ser por um sacerdote ordenado, como ensinou expressamente o Concílio Ecuménico Lateranense IV ».(61)
30. Tanto esta doutrina da Igreja Católica sobre o ministério sacerdotal na sua relação com a Eucaristia, como a referente ao sacrifício eucarístico foram, nos últimos decénios, objecto de profícuo diálogo no âmbito da acção ecuménica. Devemos dar graças à Santíssima Trindade pelos significativos progressos e aproximações que se verificaram e que nos ajudam a esperar um futuro de plena partilha da fé. Permanece plenamente válida ainda a observação feita pelo Concílio Vaticano II acerca das Comunidades eclesiais surgidas no ocidente depois do século XVI e separadas da Igreja Católica: « Embora falte às Comunidades eclesiais de nós separadas a unidade plena connosco proveniente do Baptismo, e embora creamos que elas não tenham conservado a genuína e íntegra substância do mistério eucarístico, sobretudo por causa da falta do sacramento da Ordem, contudo, quando na santa Ceia comemoram a morte e a ressurreição do Senhor, elas confessam ser significada a vida na comunhão de Cristo e esperam o seu glorioso advento ».(62)
Por isso, os fiéis católicos, embora respeitando as convicções religiosas destes seus irmãos separados, devem abster-se de participar na comunhão distribuída nas suas celebrações, para não dar o seu aval a ambiguidades sobre a natureza da Eucaristia e, consequentemente, faltar à sua obrigação de testemunhar com clareza a verdade. Isso acabaria por atrasar o caminho para a plena unidade visível. De igual modo, não se pode pensar em substituir a Missa do domingo por celebrações ecuménicas da Palavra, encontros de oração comum com cristãos pertencentes às referidas Comunidades eclesiais, ou pela participação no seu serviço litúrgico. Tais celebrações e encontros, em si mesmos louváveis quando em circunstâncias oportunas, preparam para a almejada comunhão plena incluindo a comunhão eucarística, mas não podem substituí-la.
Além disso, o facto de o poder de consagrar a Eucaristia ter sido confiado apenas aos Bispos e aos presbíteros não constitui qualquer rebaixamento para o resto do povo de Deus, já que na comunhão do único corpo de Cristo, que é a Igreja, este dom redunda em benefício de todos.
31. Se a Eucaristia é centro e vértice da vida da Igreja, é-o igualmente do ministério sacerdotal. Por isso, com espírito repleto de gratidão a Jesus Cristo nosso Senhor, volto a afirmar que a Eucaristia « é a principal e central razão de ser do sacramento do Sacerdócio, que nasceu efectivamente no momento da instituição da Eucaristia e juntamente com ela ».(63)
Muitas são as actividades pastorais do presbítero. Se depois se pensa às condições sócio-culturais do mundo actual, é fácil ver como grava sobre ele o perigo da dispersão pelo grande número e diversidade de tarefas. O Concílio Vaticano II individuou como vínculo, que dá unidade à sua vida e às suas actividades, a caridade pastoral. Esta – acrescenta o Concílio – « flui sobretudo do sacrifício eucarístico, que permanece o centro e a raiz de toda a vida do presbítero ».(64) Compreende-se, assim, quão importante seja para a sua vida espiritual, e depois para o bem da Igreja e do mundo, que o sacerdote ponha em prática a recomendação conciliar de celebrar diariamente a Eucaristia, « porque, mesmo que não possa ter a presença dos fiéis, é acto de Cristo e da Igreja ».(65) Deste modo, ele será capaz de vencer toda a dispersão ao longo do dia, encontrando no sacrifício eucarístico, verdadeiro centro da sua vida e do seu ministério, a energia espiritual necessária para enfrentar as diversas tarefas pastorais. Assim, os seus dias tornar-se-ão verdadeiramente eucarísticos.
Da centralidade da Eucaristia na vida e no ministério dos sacerdotes deriva também a sua centralidade na pastoral em prol das vocações sacerdotais. Primeiro, porque a oração pelas vocações encontra nela o lugar de maior união com a oração de Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote; e, depois, porque a solícita atenção dos sacerdotes pelo ministério eucarístico, juntamente com a promoção da participação consciente, activa e frutuosa dos fiéis na Eucaristia, constituem exemplo eficaz e estímulo para uma resposta generosa dos jovens ao apelo de Deus. Com frequência, Ele serve-Se do exemplo de zelosa caridade pastoral dum sacerdote para semear e fazer crescer no coração do jovem o germe da vocação ao sacerdócio.
32. Tudo isto comprova como é triste e anómala a situação duma comunidade cristã que, embora se apresente quanto a número e variedade de fiéis como uma paróquia, todavia não tem um sacerdote que a guie. De facto, a paróquia é uma comunidade de baptizados que exprime e afirma a sua identidade, sobretudo através da celebração do sacrifício eucarístico; mas isto requer a presença dum presbítero, o único a quem compete oferecer a Eucaristia in persona Christi. Quando uma comunidade está privada do sacerdote, procura-se justamente remediar para que de algum modo continuem as celebrações dominicais; e os religiosos ou os leigos que guiam os seus irmãos e irmãs na oração exercem de modo louvável o sacerdócio comum de todos os fiéis, baseado na graça do Baptismo. Mas tais soluções devem ser consideradas provisórias, enquanto a comunidade espera um sacerdote.
A deficiência sacramental destas celebrações deve, antes de mais nada, levar toda a comunidade a rezar mais fervorosamente ao Senhor para que mande trabalhadores para a sua messe (cf. Mt 9, 38); e estimulá-la a pôr em prática todos os demais elementos constitutivos duma adequada pastoral vocacional, sem ceder à tentação de procurar soluções que passem pela atenuação das qualidades morais e formativas requeridas nos candidatos ao sacerdócio.
33. Quando, devido à escassez de sacerdotes, foi confiada a fiéis não ordenados uma participação no cuidado pastoral duma paróquia, eles tenham presente que, como ensina o Concílio Vaticano II, « nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração eucarística ».(66) Portanto, hão-de pôr todo o cuidado em manter viva na comunidade uma verdadeira « fome » da Eucaristia, que leve a não perder qualquer ocasião de ter a celebração da Missa, valendo-se nomeadamente da presença eventual de um sacerdote não impedido pelo direito da Igreja de celebrá-la.
CAPÍTULO IV - A EUCARISTIA E A COMUNHÃO ECLESIAL
34. Em 1985, a Assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos reconheceu a « eclesiologia da comunhão » como a ideia central e fundamental dos documentos do Concílio Vaticano II.(67) Enquanto durar a sua peregrinação aqui na terra, a Igreja é chamada a conservar e promover tanto a comunhão com a Trindade divina como a comunhão entre os fiéis. Para isso, possui a Palavra e os sacramentos, sobretudo a Eucaristia; desta « vive e cresce »,(68) e ao mesmo tempo exprime-se nela. Não foi sem razão que o termo comunhão se tornou um dos nomes específicos deste sacramento excelso.
Daí que a Eucaristia se apresente como o sacramento culminante para levar à perfeição a comunhão com Deus Pai através da identificação com o seu Filho Unigénito por obra do Espírito Santo. Com grande intuição de fé, um insigne escritor de tradição bizantina assim exprimia esta verdade: na Eucaristia, « mais do que em qualquer outro sacramento, o mistério [da comunhão] é tão perfeito que conduz ao apogeu de todos os bens: nela está o termo último de todo o desejo humano, porque nela alcançamos Deus e Deus une-Se connosco pela união mais perfeita ».(69) Por isso mesmo, é conveniente cultivar continuamente na alma o desejo do sacramento da Eucaristia. Daqui nasceu a prática da « comunhão espiritual » em uso na Igreja há séculos, recomendada por santos mestres de vida espiritual. Escrevia S. Teresa de Jesus: « Quando não comungais e não participais na Missa, comungai espiritualmente, porque é muito vantajoso. [...] Deste modo, imprime-se em vós muito do amor de nosso Senhor ».(70)
35. Entretanto a celebração da Eucaristia não pode ser o ponto de partida da comunhão, cuja existência pressupõe, visando a sua consolidação e perfeição. O sacramento exprime esse vínculo de comunhão quer na dimensão invisível que em Cristo, pela acção do Espírito Santo, nos une ao Pai e entre nós, quer na dimensão visível que implica a comunhão com a doutrina dos Apóstolos, os sacramentos e a ordem hierárquica. A relação íntima entre os elementos invisíveis e os elementos visíveis da comunhão eclesial é constitutiva da Igreja enquanto sacramento de salvação.(71) Somente neste contexto, tem lugar a celebração legítima da Eucaristia e a autêntica participação nela. Por isso, uma exigência intrínseca da Eucaristia é que seja celebrada na comunhão e, concretamente, na integridade dos seus vínculos.
36. A comunhão invisível, embora por natureza esteja sempre em crescimento, supõe a vida da graça, pela qual nos tornamos « participantes da natureza divina » (cf. 2 Ped 1, 4), e a prática das virtudes da fé, da esperança e da caridade. De facto, só deste modo se pode ter verdadeira comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Não basta a fé; mas é preciso perseverar na graça santificante e na caridade, permanecendo na Igreja com o « corpo » e o « coração »; (72) ou seja, usando palavras de S. Paulo, é necessária « a fé que actua pela caridade » (Gal 5, 6).
A integridade dos vínculos invisíveis é um dever moral concreto do cristão que queira participar plenamente na Eucaristia, comungando o corpo e o sangue de Cristo. Um tal dever, recorda-o o referido Apóstolo com a advertência seguinte: « Examine-se cada qual a si mesmo e, então, coma desse pão e beba desse cálice » (1 Cor 11, 28). Com a sua grande eloquência, S. João Crisóstomo assim exortava os fiéis: « Também eu levanto a voz e vos suplico, peço e esconjuro para não vos abeirardes desta Mesa sagrada com uma consciência manchada e corrompida. De facto, uma tal aproximação nunca poderá chamar-se comunhão, ainda que toquemos mil vezes o corpo do Senhor, mas condenação, tormento e redobrados castigos ».(73)
Nesta linha, o Catecismo da Igreja Católica estabelece justamente: « Aquele que tiver consciência dum pecado grave, deve receber o sacramento da Reconciliação antes de se aproximar da Comunhão ».(74) Desejo, por conseguinte, reafirmar que vigora ainda e sempre há-de vigorar na Igreja a norma do Concílio de Trento que concretiza a severa advertência do apóstolo Paulo, ao afirmar que, para uma digna recepção da Eucaristia, « se deve fazer antes a confissão dos pecados, quando alguém está consciente de pecado mortal ».(75)
37. A Eucaristia e a Penitência são dois sacramentos intimamente unidos. Se a Eucaristia torna presente o sacrifício redentor da cruz, perpetuando-o sacramentalmente, isso significa que deriva dela uma contínua exigência de conversão, de resposta pessoal à exortação que S. Paulo dirigia aos cristãos de Corinto: « Suplicamo-vos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus » (2 Cor 5, 20). Se, para além disso, o cristão tem na consciência o peso dum pecado grave, então o itinerário da penitência através do sacramento da Reconciliação torna-se caminho obrigatório para se abeirar e participar plenamente do sacrifício eucarístico.
Tratando-se de uma avaliação de consciência, obviamente o juízo sobre o estado de graça compete apenas ao interessado; mas, em casos de comportamento externo de forma grave, ostensiva e duradoura contrário à norma moral, a Igreja, na sua solicitude pastoral pela boa ordem comunitária e pelo respeito do sacramento, não pode deixar de sentir-se chamada em causa. A esta situação de manifesta infracção moral se refere a norma do Código de Direito Canónico relativa à não admissão à comunhão eucarística de quantos « obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto ».(76)
38. A comunhão eclesial, como atrás recordei, é também visível, manifestando-se nos vínculos elencados pelo próprio Concílio Vaticano II quando ensina: « São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, e que, pelos laços da profissão da fé, dos sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, se unem, na sua estrutura visível, com Cristo, que a governa por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos ».(77)
A Eucaristia, como suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja, exige para ser celebrada um contexto de integridade dos laços, inclusive externos, de comunhão. De modo especial, sendo ela « como que a perfeição da vida espiritual e o fim para que tendem todos os sacramentos »,(78) requer que sejam reais os laços de comunhão nos sacramentos, particularmente no Baptismo e na Ordem sacerdotal. Não é possível dar a comunhão a uma pessoa que não esteja baptizada ou que rejeite a verdade integral de fé sobre o mistério eucarístico. Cristo é a verdade, e dá testemunho da verdade (cf. Jo 14, 6; 18, 37); o sacramento do seu corpo e sangue não consente ficções.
39. Além disso, em virtude do carácter próprio da comunhão eclesial e da relação que o sacramento da Eucaristia tem com a mesma, convém recordar que « o sacrifício eucarístico, embora se celebre sempre numa comunidade particular, nunca é uma celebração apenas dessa comunidade: de facto esta, ao receber a presença eucarística do Senhor, recebe o dom integral da salvação e manifesta-se assim, apesar da sua configuração particular que continua visível, como imagem e verdadeira presença da Igreja una, santa, católica e apostólica ».(79) Daí que uma comunidade verdadeiramente eucarística não possa fechar-se em si mesma, como se fosse auto-suficiente, mas deve permanecer em sintonia com todas as outras comunidades católicas.
A comunhão eclesial da assembleia eucarística é comunhão com o próprio Bispo e com o Romano Pontífice. Com efeito, o Bispo é o princípio visível e o fundamento da unidade na sua Igreja particular.(80) Seria, por isso, uma grande incongruência celebrar o sacramento por excelência da unidade da Igreja sem uma verdadeira comunhão com o Bispo. Escrevia S. Inácio de Antioquia: « Seja tida como legítima somente aquela Eucaristia que é presidida pelo Bispo ou por quem ele encarregou ».(81) De igual modo, visto que « o Romano Pontífice, como sucessor de Pedro, é perpétuo e visível fundamento da unidade não só dos Bispos mas também da multidão dos fiéis »,(82) a comunhão com ele é uma exigência intrínseca da celebração do sacrifício eucarístico. Esta grande verdade é expressa de vários modos pela Liturgia: « Cada celebração eucarística é feita em união não só com o próprio Bispo mas também com o Papa, com a Ordem episcopal, com todo o clero e com todo o povo. Toda a celebração válida da Eucaristia exprime esta comunhão universal com Pedro e com toda a Igreja ou, como no caso das Igrejas cristãs separadas de Roma, assim a reclama objectivamente ».(83)
40. A Eucaristia cria comunhão e educa para a comunhão. Ao escrever aos fiéis de Corinto, S. Paulo fazia-lhes ver como as suas divisões, que se davam nas assembleias eucarísticas, estavam em contraste com o que celebravam – a Ceia do Senhor. E convidava-os, por isso, a reflectirem sobre a verdadeira realidade da Eucaristia, para fazê-los voltar ao espírito de comunhão fraterna (cf. 1 Cor 11, 17-34). Encontramos um válido eco desta exigência em S. Agostinho quando, depois de recordar a afirmação do Apóstolo « vós sois corpo de Cristo e seus membros » (1 Cor 12, 27), observava: « Se sois o corpo de Cristo e seus membros, é o vosso sacramento que está colocado sobre a mesa do Senhor; é o vosso sacramento que recebeis ».(84) E daí concluía: « Cristo Senhor [...] consagrou na sua mesa o sacramento da nossa paz e unidade. Quem recebe o sacramento da unidade, sem conservar o vínculo da paz, não recebe um sacramento para seu benefício, mas antes uma condenação ».(85)
41. Esta eficácia peculiar que tem a Eucaristia para promover a comunhão é um dos motivos da importância da Missa dominical. Já me detive sobre esta e outras razões que a tornam fundamental para a vida da Igreja e dos fiéis, na carta apostólica sobre a santificação do domingo Dies Domini,(86) recordando, para além do mais, que participar na Missa é uma obrigação dos fiéis, a não ser que tenham um impedimento grave, pelo que aos Pastores impõe-se o correlativo dever de oferecerem a todos a possibilidade efectiva de cumprirem o preceito.(87) Mais tarde, na carta apostólica Novo millennio ineunte, ao traçar o caminho pastoral da Igreja no início do terceiro milénio, quis assinalar de modo particular a Eucaristia dominical, sublinhando a sua eficácia para criar comunhão: « É o lugar privilegiado, onde a comunhão é constantemente anunciada e fomentada. Precisamente através da participação eucarística, o dia do Senhor torna-se também o dia da Igreja, a qual poderá assim desempenhar de modo eficaz a sua missão de sacramento de unidade ».(88)
42. A defesa e promoção da comunhão eclesial é tarefa de todo o fiel, que encontra na Eucaristia, enquanto sacramento da unidade da Igreja, um campo de especial solicitude. De forma mais concreta e com particular responsabilidade, a referida tarefa recai sobre os Pastores da Igreja, segundo o grau e o ministério eclesiástico próprio de cada um. Por isso, a Igreja estabeleceu normas que visam promover o acesso frequente e frutuoso dos fiéis à mesa eucarística e simultaneamente determinar as condições objectivas nas quais se deve abster de administrar a comunhão. O cuidado com que se favorece a sua fiel observância torna-se uma expressão efectiva de amor à Eucaristia e à Igreja.
43. Quando se considera a Eucaristia como sacramento da comunhão eclesial, há um tema que, pela sua importância, não pode ser transcurado: refiro-me à sua relação com o empenho ecuménico. Todos devemos dar graças à Santíssima Trindade porque, nestas últimas décadas em todo o mundo, muitos fiéis foram contagiados pelo desejo ardente da unidade entre todos os cristãos. O Concílio Vaticano II, ao princípio do seu decreto sobre o ecumenismo, considera isto como um dom especial de Deus.(89) Foi uma graça eficaz que fez caminhar pela senda ecuménica tanto a nós, filhos da Igreja Católica, como aos nossos irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais.
A aspiração por chegar à meta da unidade impele-nos a voltar o olhar para a Eucaristia, que é o sacramento supremo da unidade do povo de Deus, a sua condigna expressão e fonte insuperável.(90) Na celebração do sacrifício eucarístico, a Igreja eleva a sua prece a Deus, Pai de misericórdia, para que conceda aos seus filhos a plenitude do Espírito Santo de modo que se tornem em Cristo um só corpo e um só espírito.(91) Quando apresenta esta súplica ao Pai das luzes, do Qual provém toda a boa dádiva e todo o dom perfeito (cf. Tg 1, 17), a Igreja acredita na eficácia da mesma, porque ora em união com Cristo, Cabeça e Esposo, o Qual assume a súplica da Esposa unindo-a à do seu sacrifício redentor.
44. Precisamente porque a unidade da Igreja, que a Eucaristia realiza por meio do sacrifício e da comunhão do corpo e sangue do Senhor, comporta a exigência imprescindível duma completa comunhão nos laços da profissão de fé, dos sacramentos e do governo eclesiástico, não é possível concelebrar a liturgia eucarística enquanto não for restabelecida a integridade de tais laços. A referida concelebração não seria um meio válido, podendo mesmo revelar-se um obstáculo, para se alcançar a plena comunhão, atenuando o sentido da distância da meta e introduzindo ou dando aval a ambiguidades sobre algumas verdades da fé. O caminho para a plena união só pode ser construído na verdade. Neste ponto, a interdição na lei da Igreja não deixa espaço a incertezas,(92) atendo-se à norma moral proclamada pelo Concílio Vaticano II.(93)
No entanto quero reafirmar as palavras que ajuntei, na carta encíclica Ut unum sint, depois de reconhecer a impossibilidade da partilha eucarística: « E todavia nós temos o desejo ardente de celebrar juntos a única Eucaristia do Senhor, e este desejo torna-se já um louvor comum, uma mesma imploração. Juntos dirigimo-nos ao Pai e fazemo-lo cada vez mais com um só coração ».(94)
45. Se não é legítima em caso algum a concelebração quando falta a plena comunhão, o mesmo não acontece relativamente à administração da Eucaristia, em circunstâncias especiais, a indivíduos pertencentes a Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. De facto, neste caso tem-se como objectivo prover a uma grave necessidade espiritual em ordem à salvação eterna dos fiéis, e não realizar uma intercomunhão, o que é impossível enquanto não forem plenamente reatados os laços visíveis da comunhão eclesial.
Nesta direcção se moveu o Concílio Vaticano II ao fixar como comportar-se com os Orientais que de boa fé se acham separados da Igreja Católica, quando espontaneamente pedem para receber a Eucaristia do ministro católico e estão bem preparados.(95) Tal modo de proceder seria depois ratificado por ambos os Códigos canónicos, nos quais é contemplado também, com os devidos ajustamentos, o caso dos outros cristãos não orientais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica.(96)
46. Na encíclica Ut unum sint, manifestei a minha complacência por esta norma que consente prover à salvação das almas, com o devido discernimento: « É motivo de alegria lembrar que os ministros católicos podem, em determinados casos particulares, administrar os sacramentos da Eucaristia, da Penitência e da Unção dos Enfermos a outros cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica, mas que desejam ardentemente recebê-los, pedem-nos livremente e manifestam a fé que a Igreja Católica professa nestes sacramentos. Reciprocamente, em determinados casos e por circunstâncias particulares, os católicos também podem recorrer, para os mesmos sacramentos, aos ministros daquelas Igrejas onde eles são válidos »(97)
É preciso reparar bem nestas condições que são imprescindíveis, mesmo tratando-se de determinados casos particulares, porque a rejeição duma ou mais verdades de fé relativas a estes sacramentos, contando-se entre elas a necessidade do sacerdócio ministerial para serem válidos, deixa o requerente impreparado para uma legítima recepção dos mesmos. E, vice-versa, também um fiel católico não poderá receber a comunhão numa comunidade onde falte o sacramento da Ordem.(98)
A fiel observância do conjunto das normas estabelecidas nesta matéria (99) é prova e simultaneamente garantia de amor por Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, pelos irmãos de outra confissão cristã aos quais é devido o testemunho da verdade, e ainda pela própria causa da promoção da unidade.
CAPÍTULO V - O DECORO DA CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
47. Quando alguém lê o relato da instituição da Eucaristia nos Evangelhos Sinópticos, fica admirado ao ver a simplicidade e simultaneamente a dignidade com que Jesus, na noite da Última Ceia, institui este grande sacramento. Há um episódio que, de certo modo, lhe serve de prelúdio: é a unção de Betânia. Uma mulher, que João identifica como sendo Maria, irmã de Lázaro, derrama sobre a cabeça de Jesus um vaso de perfume precioso, suscitando nos discípulos – particularmente em Judas (Mt 26, 8; Mc 14, 4; Jo 12, 4) – uma reacção de protesto contra tal gesto que, em face das necessidades dos pobres, constituía um « desperdício » intolerável. Mas Jesus faz uma avaliação muito diferente: sem nada tirar ao dever da caridade para com os necessitados, aos quais sempre se hão-de dedicar os discípulos – « Pobres, sempre os tereis convosco » (Jo 12, 8; cf. Mt 26, 11; Mc 14, 7) –, Ele pensa no momento já próximo da sua morte e sepultura, considerando a unção que Lhe foi feita como uma antecipação daquelas honras de que continuará a ser digno o seu corpo mesmo depois da morte, porque indissoluvelmente ligado ao mistério da sua pessoa.
Nos Evangelhos Sinópticos, a narração continua com o encargo dado por Jesus aos discípulos para fazerem uma cuidadosa preparação da « grande sala », necessária para comer a ceia pascal (cf. Mc 14, 15; Lc 22, 12), e com a descrição da instituição da Eucaristia. Deixando entrever, pelo menos em parte, o desenrolar dos ritos hebraicos da ceia pascal até ao canto do « Hallel » (cf. Mt 26, 30; Mc 14, 26), o relato, de maneira tão concisa como solene, embora com variantes nas diversas tradições, refere as palavras pronunciadas por Cristo sobre o pão e sobre o vinho, assumidos por Ele como expressões concretas do seu corpo entregue e do seu sangue derramado. Todos estes particulares são recordados pelos evangelistas à luz duma prática, consolidada já na Igreja primitiva, da « fracção do pão ». O certo é que, desde o tempo histórico de Jesus, no acontecimento de Quinta-feira Santa são visíveis os traços duma « sensibilidade » litúrgica, modulada sobre a tradição do Antigo Testamento e pronta a remodular-se na celebração cristã em sintonia com o novo conteúdo da Páscoa.
48. Tal como a mulher da unção de Betânia, a Igreja não temeu « desperdiçar », investindo o melhor dos seus recursos para exprimir o seu enlevo e adoração diante do dom incomensurável da Eucaristia. À semelhança dos primeiros discípulos encarregados de preparar a « grande sala », ela sentiu-se impelida, ao longo dos séculos e no alternar-se das culturas, a celebrar a Eucaristia num ambiente digno de tão grande mistério. Foi sob o impulso das palavras e gestos de Jesus, desenvolvendo a herança ritual do judaísmo, que nasceu a liturgia cristã. Porventura haverá algo que seja capaz de exprimir de forma devida o acolhimento do dom que o Esposo divino continuamente faz de Si mesmo à Igreja-Esposa, colocando ao alcance das sucessivas gerações de crentes o sacrifício que ofereceu uma vez por todas na cruz e tornando-Se alimento para todos os fiéis? Se a ideia do « banquete » inspira familiaridade, a Igreja nunca cedeu à tentação de banalizar esta « intimidade » com o seu Esposo, recordando-se que Ele é também o seu Senhor e que, embora « banquete », permanece sempre um banquete sacrificial, assinalado com o sangue derramado no Gólgota. O Banquete eucarístico é verdadeiramente banquete « sagrado », onde, na simplicidade dos sinais, se esconde o abismo da santidade de Deus: O Sacrum convivium, in quo Christus sumitur! - « Ó Sagrado Banquete, em que se recebe Cristo! » O pão que é repartido nos nossos altares, oferecido à nossa condição de viandantes pelas estradas do mundo, é « panis angelorum », pão dos anjos, do qual só é possível abeirar-se com a humildade do centurião do Evangelho: « Senhor, eu não sou digno que entres debaixo do meu tecto » (Mt 8, 8; Lc 6, 6).
49. Movida por este elevado sentido do mistério, compreende-se como a fé da Igreja no mistério eucarístico se tenha exprimido ao longo da história não só através da exigência duma atitude interior de devoção, mas também mediante uma série de expressões exteriores, tendentes a evocar e sublinhar a grandeza do acontecimento celebrado. Daqui nasce o percurso que levou progressivamente a delinear um estatuto especial de regulamentação da liturgia eucarística, no respeito pelas várias tradições eclesiais legitimamente constituídas. Sobre a mesma base, se desenvolveu um rico património de arte. Deixando-se orientar pelo mistério cristão, a arquitectura, a escultura, a pintura, a música encontraram na Eucaristia, directa ou indirectamente, um motivo de grande inspiração.
Tal é, por exemplo, o caso da arquitectura que viu a passagem, logo que o contexto histórico o permitiu, da sede inicial da Eucaristia colocada na « domus » das famílias cristãs às solenes basílicas dos primeiros séculos, às imponentes catedrais da Idade Média, até às igrejas, grandes ou pequenas, que pouco a pouco foram constelando as terras onde o cristianismo chegou. Também as formas dos altares e dos sacrários se foram desenvolvendo no interior dos espaços litúrgicos, seguindo não só os motivos da imaginação criadora, mas também os ditames duma compreensão específica do Mistério. O mesmo se pode dizer da música sacra; basta pensar às inspiradas melodias gregorianas, aos numerosos e, frequentemente, grandes autores que se afirmaram com os textos litúrgicos da Santa Missa. E não sobressai porventura uma enorme quantidade de produções artísticas, desde realizações de um bom artesanato até verdadeiras obras de arte, no âmbito dos objectos e dos paramentos utilizados na celebração eucarística?
Deste modo, pode-se afirmar que a Eucaristia, ao mesmo tempo que plasmou a Igreja e a espiritualidade, incidiu intensamente sobre a « cultura », especialmente no sector estético.
50. Neste esforço de adoração do mistério, visto na sua perspectiva ritual e estética, empenharam-se, como se fosse uma « competição », os cristãos do Ocidente e do Oriente. Como não dar graças ao Senhor especialmente pelo contributo prestado à arte cristã pelas grandes obras arquitectónicas e pictóricas da tradição greco-bizantina e de toda a área geográfica e cultural eslava? No Oriente, a arte sacra conservou um sentido singularmente intenso do mistério, levando os artistas a conceberem o seu empenho na produção do belo não apenas como expressão do seu génio, mas também como autêntico serviço à fé. Não se contentando apenas da sua perícia técnica, souberam abrir-se com docilidade ao sopro do Espírito de Deus.
Os esplendores das arquitecturas e dos mosaicos no Oriente e no Ocidente cristão são um património universal dos crentes, contendo em si mesmos um voto e – diria – um penhor da desejada plenitude de comunhão na fé e na celebração. Isto supõe e exige, como na famosa pintura da Trindade de Rublëv, uma Igreja profundamente « eucarística », na qual a partilha do mistério de Cristo no pão repartido esteja de certo modo imersa na unidade inefável das três Pessoas divinas, fazendo da própria Igreja um « ícone » da Santíssima Trindade.
Nesta perspectiva duma arte que em todos os seus elementos visa exprimir o sentido da Eucaristia segundo a doutrina da Igreja, é preciso prestar toda a atenção às normas que regulamentam a construção e o adorno dos edifícios sacros. A Igreja sempre deixou largo espaço criativo aos artistas, como a história o demonstra e como eu mesmo sublinhei na Carta aos Artistas; (100) mas, a arte sacra deve caracterizar-se pela sua capacidade de exprimir adequadamente o mistério lido na plenitude de fé da Igreja e segundo as indicações pastorais oportunamente dadas pela competente autoridade. Isto vale tanto para as artes figurativas como para a música sacra.
51. O que aconteceu em terras de antiga cristianização no âmbito da arte sacra e da disciplina litúrgica, está a verificar-se também nos continentes onde o cristianismo é mais jovem. Tal é a orientação assumida pelo Concílio Vaticano II a propósito da exigência duma sã e necessária « inculturação ». Nas minhas numerosas viagens pastorais, pude observar por todo o lado a grande vitalidade de que é capaz a celebração eucarística em contacto com as formas, os estilos e as sensibilidades das diversas culturas. Adaptando-se a condições variáveis de tempo e espaço, a Eucaristia oferece alimento não só aos indivíduos, mas ainda aos próprios povos, e plasma culturas de inspiração cristã.
Mas é necessário que tão importante trabalho de adaptação seja realizado na consciência constante deste mistério inefável, com que cada geração é chamada a encontrar-se. O « tesouro » é demasiado grande e precioso para se correr o risco de o empobrecer ou prejudicar com experimentações ou práticas introduzidas sem uma cuidadosa verificação pelas competentes autoridades eclesiásticas. Além disso, a centralidade do mistério eucarístico requer que tal verificação seja feita em estreita relação com a Santa Sé. Como escrevia na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Asia, « tal colaboração é essencial porque a Liturgia Sagrada exprime e celebra a única fé professada por todos e, sendo herança de toda a Igreja, não pode ser determinada pelas Igreja locais isoladamente da Igreja universal ».(101)
52. De quanto fica dito, compreende-se a grande responsabilidade que têm sobretudo os sacerdotes na celebração eucarística, à qual presidem in persona Christi, assegurando um testemunho e um serviço de comunhão não só à comunidade que participa directamente na celebração, mas também à Igreja universal, sempre mencionada na Eucaristia. Temos a lamentar, infelizmente, que sobretudo a partir dos anos da reforma litúrgica pós-conciliar, por um ambíguo sentido de criatividade e adaptação, não faltaram abusos, que foram motivo de sofrimento para muitos. Uma certa reacção contra o « formalismo » levou alguns, especialmente em determinadas regiões, a considerarem não obrigatórias as « formas » escolhidas pela grande tradição litúrgica da Igreja e do seu magistério e a introduzirem inovações não autorizadas e muitas vezes completamente impróprias.
Por isso, sinto o dever de fazer um veemente apelo para que as normas litúrgicas sejam observadas, com grande fidelidade, na celebração eucarística. Constituem uma expressão concreta da autêntica eclesialidade da Eucaristia; tal é o seu sentido mais profundo. A liturgia nunca é propriedade privada de alguém, nem do celebrante, nem da comunidade onde são celebrados os santos mistérios. O apóstolo Paulo teve de dirigir palavras àsperas à comunidade de Corinto pelas falhas graves na sua celebração eucarística, que tinham dado origem a divisões (skísmata) e à formação de facções ('airéseis) (cf. 1 Cor 11, 17-34). Actualmente também deveria ser redescoberta e valorizada a obediência às normas litúrgicas como reflexo e testemunho da Igreja, una e universal, que se torna presente em cada celebração da Eucaristia. O sacerdote, que celebra fielmente a Missa segundo as normas litúrgicas, e a comunidade, que às mesmas adere, demonstram de modo silencioso mas expressivo o seu amor à Igreja. Precisamente para reforçar este sentido profundo das normas litúrgicas, pedi aos dicastérios competentes da Cúria Romana que preparem, sobre este tema de grande importância, um documento específico, incluindo também referências de carácter jurídico. A ninguém é permitido aviltar este mistério que está confiado às nossas mãos: é demasiado grande para que alguém possa permitir-se de tratá-lo a seu livre arbítrio, não respeitando o seu carácter sagrado nem a sua dimensão universal.
CAPÍTULO VI - NA ESCOLA DE MARIA, MULHER «EUCARÍSTICA»
53. Se quisermos redescobrir em toda a sua riqueza a relação íntima entre a Igreja e a Eucaristia, não podemos esquecer Maria, Mãe e modelo da Igreja. Na carta apostólica Rosarium Virginis Mariæ, depois de indicar a Virgem Santíssima como Mestra na contemplação do rosto de Cristo, inseri também entre os mistérios da luz a instituição da Eucaristia.(102) Com efeito, Maria pode guiar-nos para o Santíssimo Sacramento porque tem uma profunda ligação com ele.
À primeira vista, o Evangelho nada diz a tal respeito. A narração da instituição, na noite de Quinta-feira Santa, não fala de Maria. Mas sabe-se que Ela estava presente no meio dos Apóstolos, quando, « unidos pelo mesmo sentimento, se entregavam assiduamente à oração » (Act 1, 14), na primeira comunidade que se reuniu depois da Ascensão à espera do Pentecostes. E não podia certamente deixar de estar presente, nas celebrações eucarísticas, no meio dos fiéis da primeira geração cristã, que eram assíduos à « fracção do pão » (Act 2, 42).
Para além da sua participação no banquete eucarístico, pode-se delinear a relação de Maria com a Eucaristia indirectamente a partir da sua atitude interior. Maria é mulher « eucarística » na totalidade da sua vida. A Igreja, vendo em Maria o seu modelo, é chamada a imitá-La também na sua relação com este mistério santíssimo.
54. Mysterium fidei! Se a Eucaristia é um mistério de fé que excede tanto a nossa inteligência que nos obriga ao mais puro abandono à palavra de Deus, ninguém melhor do que Maria pode servir-nos de apoio e guia nesta atitude de abandono. Todas as vezes que repetimos o gesto de Cristo na Última Ceia dando cumprimento ao seu mandato: « Fazei isto em memória de Mim », ao mesmo tempo acolhemos o convite que Maria nos faz para obedecermos a seu Filho sem hesitação: « Fazei o que Ele vos disser » (Jo 2, 5). Com a solicitude materna manifestada nas bodas de Caná, Ela parece dizer-nos: « Não hesiteis, confiai na palavra do meu Filho. Se Ele pôde mudar a água em vinho, também é capaz de fazer do pão e do vinho o seu corpo e sangue, entregando aos crentes, neste mistério, o memorial vivo da sua Páscoa e tornando-se assim “pão de vida” ».
55. De certo modo, Maria praticou a sua fé eucarística ainda antes de ser instituída a Eucaristia, quando ofereceu o seu ventre virginal para a encarnação do Verbo de Deus. A Eucaristia, ao mesmo tempo que evoca a paixão e a ressurreição, coloca-se no prolongamento da encarnação. E Maria, na anunciação, concebeu o Filho divino também na realidade física do corpo e do sangue, em certa medida antecipando n'Ela o que se realiza sacramentalmente em cada crente quando recebe, no sinal do pão e do vinho, o corpo e o sangue do Senhor.
Existe, pois, uma profunda analogia entre o fiat pronunciado por Maria, em resposta às palavras do Anjo, e o amen que cada fiel pronuncia quando recebe o corpo do Senhor. A Maria foi-Lhe pedido para acreditar que Aquele que Ela concebia « por obra do Espírito Santo » era o « Filho de Deus » (cf. Lc 1, 30-35). Dando continuidade à fé da Virgem Santa, no mistério eucarístico é-nos pedido para crer que aquele mesmo Jesus, Filho de Deus e Filho de Maria, Se torna presente nos sinais do pão e do vinho com todo o seu ser humano-divino.
« Feliz d'Aquela que acreditou » (Lc 1, 45): Maria antecipou também, no mistério da encarnação, a fé eucarística da Igreja. E, na visitação, quando leva no seu ventre o Verbo encarnado, de certo modo Ela serve de « sacrário » – o primeiro « sacrário » da história –, para o Filho de Deus, que, ainda invisível aos olhos dos homens, Se presta à adoração de Isabel, como que « irradiando » a sua luz através dos olhos e da voz de Maria. E o olhar extasiado de Maria, quando contemplava o rosto de Cristo recém-nascido e O estreitava nos seus braços, não é porventura o modelo inatingível de amor a que se devem inspirar todas as nossas comunhões eucarísticas?
56. Ao longo de toda a sua existência ao lado de Cristo, e não apenas no Calvário, Maria viveu a dimensão sacrificial da Eucaristia. Quando levou o menino Jesus ao templo de Jerusalém, « para O apresentar ao Senhor » (Lc 2, 22), ouviu o velho Simeão anunciar que aquele Menino seria « sinal de contradição » e que uma « espada » havia de trespassar também a alma d'Ela (cf. Lc 2, 34-35). Assim foi vaticinado o drama do Filho crucificado e de algum modo prefigurado o « stabat Mater » aos pés da Cruz. Preparando-Se dia a dia para o Calvário, Maria vive uma espécie de « Eucaristia antecipada », dir-se-ia uma « comunhão espiritual » de desejo e oferta, que terá o seu cumprimento na união com o Filho durante a Paixão, e manifestar-se-á depois, no período pós-pascal, na sua participação na celebração eucarística, presidida pelos Apóstolos, como « memorial » da Paixão.
Impossível imaginar os sentimentos de Maria, ao ouvir dos lábios de Pedro, João, Tiago e restantes apóstolos as palavras da Última Ceia: « Isto é o meu corpo que vai ser entregue por vós » (Lc 22, 19). Aquele corpo, entregue em sacrifício e presente agora nas espécies sacramentais, era o mesmo corpo concebido no seu ventre! Receber a Eucaristia devia significar para Maria quase acolher de novo no seu ventre aquele coração que batera em uníssono com o d'Ela e reviver o que tinha pessoalmente experimentado junto da Cruz.
57. « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19). No « memorial » do Calvário, está presente tudo o que Cristo realizou na sua paixão e morte. Por isso, não pode faltar o que Cristo fez para com sua Mãe em nosso favor. De facto, entrega-Lhe o discípulo predilecto e, nele, entrega cada um de nós: « Eis aí o teu filho ». E de igual modo diz a cada um de nós também: « Eis aí a tua mãe » (cf. Jo 19, 26-27).
Viver o memorial da morte de Cristo na Eucaristia implica também receber continuamente este dom. Significa levar connosco – a exemplo de João – Aquela que sempre de novo nos é dada como Mãe. Significa ao mesmo tempo assumir o compromisso de nos conformarmos com Cristo, entrando na escola da Mãe e aceitando a sua companhia. Maria está presente, com a Igreja e como Mãe da Igreja, em cada uma das celebrações eucarísticas. Se Igreja e Eucaristia são um binómio indivisível, o mesmo é preciso afirmar do binómio Maria e Eucaristia. Por isso mesmo, desde a antiguidade é unânime nas Igrejas do Oriente e do Ocidente a recordação de Maria na celebração eucarística.
58. Na Eucaristia, a Igreja une-se plenamente a Cristo e ao seu sacrifício, com o mesmo espírito de Maria. Tal verdade pode-se aprofundar relendo o Magnificat em perspectiva eucarística. De facto, como o cântico de Maria, também a Eucaristia é primariamente louvor e acção de graças. Quando exclama: « A minha alma glorifica ao Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus meu Salvador », Maria traz no seu ventre Jesus. Louva o Pai « por » Jesus, mas louva-O também « em » Jesus e « com » Jesus. É nisto precisamente que consiste a verdadeira « atitude eucarística ».
Ao mesmo tempo Maria recorda as maravilhas operadas por Deus ao longo da história da salvação, segundo a promessa feita aos nossos pais (cf. Lc 1, 55), anunciando a maravilha mais sublime de todas: a encarnação redentora. Enfim, no Magnificat está presente a tensão escatológica da Eucaristia. Cada vez que o Filho de Deus Se torna presente entre nós na « pobreza » dos sinais sacramentais, pão e vinho, é lançado no mundo o germe daquela história nova, que verá os poderosos « derrubados dos seus tronos » e « exaltados os humildes » (cf. Lc 1, 52). Maria canta aquele « novo céu » e aquela « nova terra », cuja antecipação e em certa medida a « síntese » programática se encontram na Eucaristia. Se o Magnificat exprime a espiritualidade de Maria, nada melhor do que esta espiritualidade nos pode ajudar a viver o mistério eucarístico. Recebemos o dom da Eucaristia, para que a nossa vida, à semelhança da de Maria, seja toda ela um magnificat!
CONCLUSÃO
59. « Ave, verum corpus natum de Maria Virgine ». Celebrei há poucos anos as bodas de ouro do meu sacerdócio. Hoje tenho a graça de oferecer à Igreja esta encíclica sobre a Eucaristia, na Quinta-feira Santa do meu vigésimo quinto ano de ministério petrino. Faço-o com o coração cheio de gratidão. Há mais de meio século todos os dias, a começar daquele 2 de Novembro de 1946 quando celebrei a minha Missa Nova na cripta de S. Leonardo na catedral do Wawel, em Cracóvia, os meus olhos concentram-se sobre a hóstia e sobre o cálice onde o tempo e o espaço de certo modo estão « contraídos » e o drama do Gólgota é representado ao vivo, desvendando a sua misteriosa « contemporaneidade ». Cada dia pôde a minha fé reconhecer no pão e no vinho consagrados aquele Viandante divino que um dia Se pôs a caminho com os dois discípulos de Emaús para abrir-lhes os olhos à luz e o coração à esperança (cf. Lc 24, 13-35).
Deixai, meus queridos irmãos e irmãs, que dê com íntima emoção, em companhia e para conforto da vossa fé, o meu testemunho de fé na Eucaristia: « Ave, verum corpus natum de Maria Virgine, / vere passum, immolatum, in cruce pro homine! ». Eis aqui o tesouro da Igreja, o coração do mundo, o penhor da meta pela qual, mesmo inconscientemente, suspira todo o homem. Mistério grande, que nos excede – é certo – e põe a dura prova a capacidade da nossa mente em avançar para além das aparências. Aqui os nossos sentidos falham – « visus, tactus, gustus in te fallitur », diz-se no hino Adoro te devote –; mas basta-nos simplesmente a fé, radicada na palavra de Cristo que nos foi deixada pelos Apóstolos. Como Pedro no fim do discurso eucarístico, segundo o Evangelho de João, deixai que eu repita a Cristo, em nome da Igreja inteira, em nome de cada um de vós: « Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna » (Jo 6, 68).
60. Na aurora deste terceiro milénio, todos nós, filhos da Igreja, somos convidados a progredir com renovado impulso na vida cristã. Como escrevi na carta apostólica Novo millennio ineunte, « não se trata de inventar um “programa novo”. O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n'Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste ».(103) A concretização deste programa de um renovado impulso na vida cristã passa pela Eucaristia.
Cada esforço de santidade, cada iniciativa para realizar a missão da Igreja, cada aplicação dos planos pastorais deve extrair a força de que necessita do mistério eucarístico e orientar-se para ele como o seu ponto culminante. Na Eucaristia, temos Jesus, o seu sacrifício redentor, a sua ressurreição, temos o dom do Espírito Santo, temos a adoração, a obediência e o amor ao Pai. Se transcurássemos a Eucaristia, como poderíamos dar remédio à nossa indigência?
61. O mistério eucarístico – sacrifício, presença, banquete – não permite reduções nem instrumentalizações; há-de ser vivido na sua integridade, quer na celebração, quer no colóquio íntimo com Jesus acabado de receber na comunhão, quer no período da adoração eucarística fora da Missa. Então a Igreja fica solidamente edificada, e exprime-se o que ela é verdadeiramente: una, santa, católica e apostólica; povo, templo e família de Deus; corpo e esposa de Cristo, animada pelo Espírito Santo; sacramento universal de salvação e comunhão hierarquicamente organizada.
O caminho que a Igreja percorre nestes primeiros anos do terceiro milénio é também caminho de renovado empenho ecuménico. Os últimos decénios do segundo milénio, com o seu apogeu no Grande Jubileu do ano 2000, impeliram-nos nesta direcção, convidando todos os baptizados a corresponderem à oração de Jesus « ut unum sint » (Jo 17, 11). É um caminho longo, cheio de obs- táculos que superam a capacidade humana; mas temos a Eucaristia e, na sua presença, podemos ouvir no fundo do coração, como que dirigidas a nós, as mesmas palavras que ouviu o profeta Elias: « Levanta-te e come, porque ainda tens um caminho longo a percorrer » (1 Re 19, 7). O tesouro eucarístico, que o Senhor pôs à nossa disposição, incita-nos para a meta que é a sua plena partilha com todos os irmãos, aos quais estamos unidos pelo mesmo Baptismo. Mas para não desperdiçar esse tesouro, é preciso respeitar as exigências que derivam do facto de ele ser sacramento da comunhão na fé e na sucessão apostólica.
Dando à Eucaristia todo o realce que merece e procurando com todo o cuidado não atenuar nenhuma das suas dimensões ou exigências, damos provas de estar verdadeiramente conscientes da grandeza deste dom. A isto nos convida uma tradição ininterrupta desde os primeiros séculos, que mostra a comunidade cristã vigilante na defesa deste « tesouro ». Movida pelo amor, a Igreja preocupa-se em transmitir às sucessivas gerações cristãs a fé e a doutrina sobre o mistério eucarístico, sem perder qualquer fragmento. E não há perigo de exagerar no cuidado que lhe dedicamos, porque, « neste sacramento, se condensa todo o mistério da nossa salvação ».(104)
62. Meus queridos irmãos e irmãs, vamos à escola dos Santos, grandes intérpretes da verdadeira piedade eucarística. Neles, a teologia da Eucaristia adquire todo o brilho duma vivência, « contagia-nos » e, por assim dizer, nos « abrasa ». Ponhamo-nos sobretudo à escuta de Maria Santíssima, porque n'Ela, como em mais ninguém, o mistério eucarístico aparece como o mistério da luz. Olhando-A, conhecemos a força transformadora que possui a Eucaristia. N'Ela, vemos o mundo renovado no amor. Contemplando-A elevada ao Céu em corpo e alma, vemos um pedaço do « novo céu » e da « nova terra » que se hão-de abrir diante dos nossos olhos na segunda vinda de Cristo. A Eucaristia constitui aqui na terra o seu penhor e, de algum modo, antecipação: « Veni, Domine Iesu » (Ap 22, 20)!
Nos sinais humildes do pão e do vinho transubstanciados no seu corpo e sangue, Cristo caminha connosco, como nossa força e nosso viático, e torna-nos testemunhas de esperança para todos. Se a razão experimenta os seus limites diante deste mistério, o coração iluminado pela graça do Espírito Santo intui bem como comportar-se, entranhando-se na adoração e num amor sem limites.
Façamos nossos os sentimentos de S. Tomás de Aquino, máximo teólogo e ao mesmo tempo cantor apaixonado de Jesus eucarístico, e deixemos que o nosso espírito se abra também na esperança à contemplação da meta pela qual suspira o coração, sedento como é de alegria e de paz:
« Bone Pastor, panis vere
Iesu, notri miserere... ».
« Bom Pastor, pão da verdade,
Tende de nós piedade,
Conservai-nos na unidade,
Extingui nossa orfandade
E conduzi-nos ao Pai.
Aos mortais dando comida
Dais também o pão da vida:
Que a família assim nutrida
Seja um dia reunida
Aos convivas lá do Céu ».
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 17 de Abril, Quinta-feira Santa, do ano 2003, vigésimo quinto do meu Pontificado e Ano do Rosário.
IOANNES PAULUS II
Notas
(1)Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11.
(2)Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 5.
(3)Cf. João Paulo II, Carta ap. Rosarium Virginis Mariæ (16 de Outubro de 2002), 21: AAS 95 (2003), 19.
(4)Assim quis intitular um testemunho autobiográfico que escrevi por ocasião das Bodas de Ouro do meu sacerdócio.
(5)Leonis XIII Acta, XXII (1903), 115-136.
(6)AAS 39 (1947), 521-595.
(7)AAS 57 (1965), 753-774.
(8)AAS 72 (1980), 113-148.
(9)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 47: « O nosso Salvador instituiu [...] o sacrifício eucarístico do seu Corpo e do seu Sangue para perpetuar pelo decorrer dos séculos, até Ele voltar, o sacrifício da cruz ».
(10)Catecismo da Igreja Católica, 1085.
(11)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 3.
(12)Cf. Paulo VI, Solene profissão de fé (30 de Junho de 1968), 24: AAS 60 (1968), 442; João Paulo II, Carta ap. Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980), 12: AAS 72 (1980), 142.
(13)Catecismo da Igreja Católica, 1382.
(14)Ibid., 1367.
(15)Homilias sobre a Carta aos Hebreus, 17, 3: PG 63, 131.
(16)« Trata-se realmente de uma única e mesma vítima, que o próprio Jesus oferece pelo ministério dos sacerdotes, Ele que um dia Se ofereceu a Si mesmo na cruz; somente o modo de oferecer-Se é que é diverso »: Conc. Ecum. de Trento, Sess. XXII, Doctrina de ss. Missæ sacrificio, cap. 2: DS 1743.
(17)Pio XII, Carta enc. Mediator Dei (20 de Novembro de 1947): AAS 39 (1947), 548.
(18)João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (15 de Março de 1979), 20: AAS 71 (1979), 310.
(19)Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11.
(20)De Sacramentis, V, 4, 26: CSEL 73, 70.
(21)Comentário ao Evangelho de João, XII, 20: PG 74, 726.
(22)Carta enc. Mysterium fidei (3 de Setembro de 1965): AAS 57 (1965), 764.
(23)Sess. XIII, Decretum de ss. Eucharistia, cap. 4: DS 1642.
(24)Catequeses mistagógicas, IV, 6: SCh 126, 138.
(25)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina Revelação Dei Verbum, 8.
(26)Solene profissão de fé (30 de Junho de 1968), 25: AAS 60 (1968), 442-443.
(27)Homilia IV para a Semana Santa: CSCO 413 / Syr. 182, 55.
(28)Anáfora.
(29)Oração Eucarística III.
(30)Antífona do Magnificat nas II Vésperas da Solenidade do SS. Corpo e Sangue de Cristo.
(31)Missal Romano, Embolismo depois do Pai Nosso.
(32)Carta aos Efésios, 20: PG 5, 661.
(33)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 39.
(34)« Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que disse: « Isto é o meu Corpo », [...] também afirmou: « Vistes-Me com fome e não me destes de comer », e ainda: « Na medida em que o recusastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes. [...] De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se Ele morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e depois ornamenta a sua mesa com o que sobra »: S. João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 50, 3-4: PG 58, 508-509; cf. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 31: AAS 80 (1988), 553-556.
(35)Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 3.
(36)Ibid., 3.
(37)Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, 5.
(38)« Moisés tomou o sangue e aspergiu com ele o povo, dizendo: “Este é o sangue da aliança que o Senhor concluiu convosco mediante todas estas palavras” » (Ex 24, 8).
(39)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 1.
(40)Cf. ibid., 9.
(41)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 5. No n. 6 do mesmo decreto, lê-se: « Nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia ».
(42)Homilias sobre a I Carta aos Coríntios, 24, 2: PG 61, 200; cf. Didaké, IX, 4: F. X. Funk, I, 22; S. Cipriano, Epistula LXIII, 13: PL 4, 384.
(43)Patrologia Orientalis, 26, 206.
(44)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 1.
(45)Cf. Conc. Ecum. de Trento, Sess. XIII, Decretum de ss. Eucharistia, cân. 4: DS 1654.
(46)Cf. Ritual Romano: Sagrada Comunhão e Culto do Mistério Eucarístico fora da Missa, n. 80.
(47)Cf. ibid., nn. 86-90.
(48)João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), 32: AAS 93 (2001), 288.
(49)« Durante o dia, os fiéis não deixem de visitar o Santíssimo Sacramento, que se deve conservar nas igrejas, no lugar mais digno e com as honras devidas segundo as leis litúrgicas; cada visita é prova de gratidão, sinal de amor e dever de adoração a Cristo ali presente »: Paulo VI, Carta enc. Mysterium fidei (3 de Setembro de 1965): AAS 57 (1965), 771.
(50)Visitas ao Santíssimo Sacramento e a Maria Santíssima, Introdução: Obras Ascéticas (Avelino 2000), 295.
(51)N. 857.
(52)2Ibid., 857.
(53)Ibid., 857.
(54)Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre algumas questões concernentes ao ministro da Eucaristia Sacerdotium ministeriale (6 de Agosto de 1983), III, 2: AAS 75 (1983), 1005.
(55)Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 10.
(56)Ibid., 10.
(57)Cf. Institutio generalis (editio typica tertia), n. 147.
(58)Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 10 e 28; Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 2.
(59)« O ministro do altar age personificando Cristo cabeça, que oferece em nome de todos os membros »: Pio XII, Carta enc. Mediator Dei (20 de Novembro de 1947): AAS 39 (1947), 556; cf. Pio X, Exort. ap. Hærent animo (4 de Agosto de 1908): Pii X Acta, IV, 16; Pio XI, Carta enc. Ad catholici sacerdotii (20 de Dezembro de 1935): AAS 28 (1936), 20.
(60)Carta ap. Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980), 8: AAS 72 (1980), 128-129.
(61)Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre algumas questões concernentes ao ministro da Eucaristia Sacerdotium ministeriale (6 de Agosto de 1983), III, 4: AAS 75 (1983), 1006; cf. IV Conc. Ecum. de Latrão, Const. sobre a fé católica Firmiter credimus, cap. 1: DS 802.
(62)Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 22.
(63)Carta ap. Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980), 2: AAS 72 (1980), 115.
(64)Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 14.
(65)Ibid., 13; Código de Direito Canónico, cân. 904; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 378.
(66)Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 6.
(67)Cf. Relação final, II-C.1: L'Osservatore Romano (ed. port. de 22/XII/1985), 651.
(68)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 26.
(69)Nicolau Cabasilas, A vida em Cristo, IV, 10: SCh 355, 270.
(70)Caminho de perfeição, c. 35.
(71)Cf. Congr. da Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 4: AAS 85 (1993), 839-840.
(72)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 14.
(73)Homilias sobre Isaías, 6, 3: PG 56, 139.
(74)N. 1385; cf. Código de Direito Canónico, cân. 916; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 711.
(75)Discurso aos membros da Sagrada Penitenciaria Apostólica e aos padres penitenciários das Basílicas Patriarcais de Roma (30 de Janeiro de 1981): AAS 73 (1981), 203; cf. Conc. Ecum. de Trento, Sess. XIII, Decretum de ss. Eucharistia, cap. 7 e can 11: DS 1647, 1661.
(76)Cân. 915; cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 712.
(77)Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 14.
(78)S. Tomás de Aquino, Summa theologiæ, III, q. 73, a. 3c.
(79)Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 11: AAS 85 (1993), 844.
(80)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 23.
(81)Carta aos cristãos de Esmirna, 8: PG 5, 713.
(82)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 23.
(83)Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 14: AAS 85 (1993), 847.
(84)Sermo 272: PL 38, 1247.
(85)Ibid.: o.c., 1248.
(86)Cf. nn. 31-51: AAS 90 (1998), 731-746.
(87)Cf. ibid., 48-49: o.c., 744.
(88)N. 36: AAS 93 (2001), 291-292.
(89)Cf. Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 1.
(90)Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11.
(91)« Fazei que, participando do único pão e do único cálice, permaneçamos unidos uns aos outros na comunhão do único Espírito Santo »: Anáfora da Liturgia de S. Basílio.
(92)Cf. Código de Direito Canónico, cân. 908; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 702; Pont. Cons. para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Directório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo (25 de Março de 1993), 122-125.129-131: AAS 85 (1993), 1086-1089; Congr. da Doutrina da Fé, Carta Ad exsequendam (18 de Maio de 2001): AAS 93 (2001), 786.
(93)« A comunicação nas coisas sagradas que ofende a unidade da Igreja ou inclui adesão formal ao erro ou perigo de aberração na fé, de escândalo e de indiferentismo, é proibida por lei divina »: Decr. sobre as Igrejas católicas orientais Orientalium Ecclesiarum, 26.
(94)N. 45: AAS 87 (1995), 948.
(95)Decr. sobre as Igrejas católicas orientais Orientalium Ecclesiarum, 27.
(96)Cf. Código de Direito Canónico, cân. 844-§§ 3 e 4; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 671-§§ 3 e 4.
(97)N. 46: AAS 87 (1995), 948.
(98)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 22.
(99)Cf. Código de Direito Canónico, cân. 844; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 671.
(100)Cf. AAS 91 (1999), 1155-1172.
(101)N. 22: AAS 92 (2000), 485.
(102)Cf. n. 21: AAS 95 (2003), 20.
(103)N. 29: AAS 93 (2001), 285.
(104)S. Tomás de Aquino, Summa theologiae, III, q. 83, a. 4c.
Evangelium Vitae
CARTA ENCÍCLICA
EVANGELIUM VITAE
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS
AOS RELIGIOSOS E RELIGIOSAS
AOS FIÉIS LEIGOS
E A TODAS AS PESSOAS DE BOA VONTADE
SOBRE O VALOR E A INVIOLABILIDADE
DA VIDA HUMANA
INTRODUÇÃO
1. O Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus. Amorosamente acolhido cada dia pela Igreja, há-de ser fiel e corajosamente anunciado como boa nova aos homens de todos os tempos e culturas.
Na aurora da salvação, é proclamado como feliz notícia o nascimento de um menino: " Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor " (Lc 2, 10-11). O motivo imediato que faz irradiar esta " grande alegria " é, sem dúvida, o nascimento do Salvador; mas, no Natal, manifesta-se também o sentido pleno de todo o nascimento humano, pelo que a alegria messiânica se revela fundamento e plenitude da alegria por cada criança que nasce (cf. Jo 16, 21).
Ao apresentar o núcleo central da sua missão redentora, Jesus diz: " Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância " (Jo 10, 10). Ele fala daquela vida " nova " e " eterna " que consiste na comunhão com o Pai, à qual todo o homem é gratuitamente chamado no Filho, por obra do Espírito Santificador. Mas é precisamente em tal " vida " que todos os aspectos e momentos da vida do homem adquirem pleno significado.
O valor incomparável da pessoa humana
2. O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para além das dimensões da sua existência terrena, porque consiste na participação da própria vida de Deus.
A sublimidade desta vocação sobrenatural revela a grandeza e o valor precioso da vida humana, inclusive já na sua fase temporal. Com efeito, a vida temporal é condição basilar, momento inicial e parte integrante do processo global e unitário da existência humana: um processo que, para além de toda a expectativa e merecimento, fica iluminado pela promessa e renovado pelo dom da vida divina, que alcançará a sua plena realização na eternidade (cf. 1 Jo 3, 1-2). Ao mesmo tempo, porém, o próprio chamamento sobrenatural sublinha a relatividade da vida terrena do homem e da mulher. Na verdade, esta vida não é realidade " última ", mas " penúltima "; trata-se, em todo o caso, de uma realidade sagrada que nos é confiada para a guardarmos com sentido de responsabilidade e levarmos à perfeição no amor pelo dom de nós mesmos a Deus e aos irmãos.
A Igreja sabe que este Evangelho da vida, recebido do seu Senhor,1 encontra um eco profundo e persuasivo no coração de cada pessoa, crente e até não crente, porque se ele supera infinitamente as suas aspirações, também lhes corresponde de maneira admirável. Mesmo por entre dificuldades e incertezas, todo o homem sinceramente aberto à verdade e ao bem pode, pela luz da razão e com o secreto influxo da graça, chegar a reconhecer, na lei natural inscrita no coração (cf. Rm 2, 14-15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início até ao seu termo, e afirmar o direito que todo o ser humano tem de ver plenamente respeitado este seu bem primário. Sobre o reconhecimento de tal direito é que se funda a convivência humana e a própria comunidade política.
De modo particular, devem defender e promover este direito os crentes em Cristo, conscientes daquela verdade maravilhosa, recordada pelo Concílio Vaticano II: " Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ".2 De facto, neste acontecimento da salvação, revela-se à humanidade não só o amor infinito de Deus que " amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único " (Jo 3, 16), mas também o valor incomparável de cada pessoa humana.
A Igreja, perscrutando assiduamente o mistério da Redenção, descobre com assombro incessante 3 este valor, e sente-se chamada a anunciar aos homens de todos os tempos este " evangelho ", fonte de esperança invencível e de alegria verdadeira para cada época da história. O Evangelho do amor de Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa e o Evangelho da vida são um único e indivisível Evangelho. É por este motivo que o homem, o homem vivo, constitui o primeiro e fundamental caminho da Igreja.4
As novas ameaças à vida humana
3. Precisamente por causa do mistério do Verbo de Deus que Se fez carne (cf. Jo 1, 14), cada homem está confiado à solicitude materna da Igreja. Por isso, qualquer ameaça à dignidade e à vida do homem não pode deixar de se repercutir no próprio coração da Igreja, é impossível não a tocar no centro da sua fé na encarnação redentora do Filho de Deus, não pode passar sem a interpelar na sua missão de anunciar o Evangelho da vida pelo mundo inteiro a toda a criatura (cf. Mc 16, 15).
Hoje, este anúncio torna-se particularmente urgente pela impressionante multiplicação e agravamento das ameaças à vida das pessoas e dos povos, sobretudo quando ela é débil e indefesa. Às antigas e dolorosas chagas da miséria, da fome, das epidemias, da violência e das guerras, vêm-se juntar outras com modalidades inéditas e dimensões inquietantes.
Já o Concílio Vaticano II, numa página de dramática actualidade, deplorou fortemente os múltiplos crimes e atentados contra a vida humana. À distância de trinta anos e fazendo minhas as palavras da Assembleia Conciliar, uma vez mais e com idêntica força os deploro em nome da Igreja inteira, com a certeza de interpretar o sentimento autêntico de toda a consciência recta: " Tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador ".5
4. Infelizmente, este panorama inquietante, longe de diminuir, tem vindo a dilatar-se: com as perspectivas abertas pelo progresso científico e tecnológico, nascem outras formas de atentados à dignidade do ser humano, enquanto se delínea e consolida uma nova situação cultural que dá aos crimes contra a vida um aspecto inédito e - se é possível - ainda mais iníquo, suscitando novas e graves preocupações: amplos sectores da opinião pública justificam alguns crimes contra a vida em nome dos direitos da liberdade individual e, sobre tal pressuposto, pretendem não só a sua impunidade mas ainda a própria autorização da parte do Estado para os praticar com absoluta liberdade e, mais, com a colaboração gratuita dos Serviços de Saúde.
Ora, tudo isto provoca uma profunda alteração na maneira de considerar a vida e as relações entre os homens. O facto de as legislações de muitos países, afastando-se quiçá dos próprios princípios basilares das suas Constituições, terem consentido em não punir ou mesmo até reconhecer a plena legitimidade de tais acções contra a vida, é conjuntamente sintoma preocupante e causa não marginal de uma grave derrocada moral: opções, outrora consideradas unanimamente criminosas e rejeitadas pelo senso moral comum, tornam-se pouco a pouco socialmente respeitáveis. A própria medicina que, por vocação, se orienta para a defesa e cuidado da vida humana, em alguns dos seus sectores vai-se prestando em escala cada vez maior a realizar tais actos contra a pessoa, e, deste modo, deforma o seu rosto, contradiz-se a si mesma e humilha a dignidade de quantos a exercem. Em semelhante contexto cultural e legal, os graves problemas demográficos, sociais ou familiares - que incidem sobre numerosos povos do mundo e exigem a atenção responsável e operante das comunidades nacionais e internacionais -, encontram-se também sujeitos a soluções falsas e ilusórias, em contraste com a verdade e o bem das pessoas e das nações.
O resultado de tudo isto é dramático: se é muitíssimo grave e preocupante o fenómeno da eliminação de tantas vidas humanas nascentes ou encaminhadas para o seu ocaso, não o é menos o facto de à própria consciência, ofuscada por tão vastos condicionalismos, lhe custar cada vez mais a perceber a distinção entre o bem e o mal, precisamente naquilo que toca o fundamental valor da vida humana.
Em comunhão com todos os Bispos do mundo
5. Ao problema das ameaças à vida humana no nosso tempo, foi dedicado o Consistório Extraordinário dos Cardeais, realizado em Roma de 4 a 7 de Abril de 1991. Depois de amplo e profundo debate do problema e dos desafios postos à família humana inteira e, de modo particular, à Comunidade cristã, os Cardeais, com voto unânime, pediram-me que reafirmasse, com a autoridade do Sucessor de Pedro, o valor da vida humana e a sua inviolabilidade, à luz das circunstâncias actuais e dos atentados que hoje a ameaçam.
Acolhendo tal pedido, no Pentecostes de 1991 escrevi uma carta pessoal a cada Irmão no Episcopado para que, em espírito de colegialidade, me oferecesse a sua colaboração com vista à elaboração de um específico documento.6 Agradeço profundamente a todos os Bispos que responderam, fornecendo-me preciosas informações, sugestões e propostas. Deram também assim testemunho da sua participação concorde e convicta na missão doutrinal e pastoral da Igreja acerca do Evangelho da vida.
Nessa mesma carta, que fora enviada poucos dias depois da celebração do centenário da Encíclica Rerum novarum, chamava a atenção de todos para esta singular analogia: " Como há um século, oprimida nos seus direitos fundamentais era a classe operária, e a Igreja com grande coragem tomou a sua defesa, proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do trabalhador, assim agora, quando outra categoria de pessoas é oprimida no direito fundamental à vida, a Igreja sente que deve, com igual coragem, dar voz a quem a não tem. O seu é sempre o grito evangélico em defesa dos pobres do mundo, de quantos estão ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus direitos humanos ".7
Espezinhada no direito fundamental à vida, é hoje uma grande multidão de seres humanos débeis e indefesos, como o são, em particular, as crianças ainda não nascidas. Se, ao findar do século passado, não fora consentido à Igreja calar perante as injustiças então reinantes, menos ainda pode ela calar hoje, quando às injustiças sociais do passado - infelizmente ainda não superadas - se vêm somar, em tantas partes do mundo, injustiças e opressões ainda mais graves, mesmo se disfarçadas em elementos de progresso com vista à organização de uma nova ordem mundial.
A presente Encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de cada país do mundo, quer ser uma reafirmação precisa e firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade, e, conjuntamente, um ardente apelo dirigido em nome de Deus a todos e cada um:respeita, defende, ama e serve a vida, cada vida humana! Unicamente por esta estrada, encontrarás justiça, progresso, verdadeira liberdade, paz e felicidade!
Cheguem estas palavras a todos os filhos e filhas da Igreja! Cheguem a todas as pessoas de boa vontade, solícitas pelo bem de cada homem e mulher e pelo destino da sociedade inteira!
6. Em profunda comunhão com cada irmão e irmã na fé e animado por sincera amizade para com todos, quero meditar de novo e anunciar o Evangelho da vida, clara luz que ilumina as consciências, esplendor de verdade que cura o olhar ofuscado, fonte inexaurível de constância e coragem para enfrentar os desafios sempre novos que encontramos no nosso caminho.
Tendo no pensamento a rica experiência vivida durante o Ano da Família, e quase completando idealmente a Carta que dirigi " a cada família concreta de cada região da terra ",8 olho com renovada confiança para todas as comunidades domésticas e faço votos por que renasça ou se reforce, em todos e aos diversos níveis, o compromisso de apoiarem a família, para que também hoje - mesmo no meio de numerosas dificuldades e graves ameaças - ela se conserve sempre, segundo o desígnio de Deus, como " santuário da vida ".9
A todos os membros da Igreja, povo da vida e pela vida, dirijo o mais premente convite para que, juntos, possamos dar novos sinais de esperança a este nosso mundo, esforçando-nos por que cresçam a justiça e a solidariedade e se afirme uma nova cultura da vida humana, para a edificação de uma autêntica civilização da verdade e do amor.
CAPÍTULO I - A VOZ DO SANGUE DO TEU IRMÃO CLAMA DA TERRA ATÉ MIM
AS ACTUAIS AMEAÇAS À VIDA HUMANA
7. " Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência. (...) Com efeito, Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e fê- -lo à imagem da sua própria natureza. Por inveja do demónio é que a morte entrou no mundo e prová-la-ão os que pertencem ao demónio " (Sab 1, 13-14; 2, 23-24).
O Evangelho da vida, que ressoa, logo ao princípio, com a criação do homem à imagem de Deus para um destino de vida plena e perfeita (cf. Gn 2, 7; Sab 9, 2-3), vê-se contestado pela experiência dilacerante da morte que entra no mundo, lançando o espectro da falta de sentido sobre toda a existência do homem.
A morte entra por causa da inveja do diabo (cf. Gn 3, 1.4-5) e do pecado dos primeiros pais (cf. Gn 2, 17; 3, 17-19). E entra de modo violento, através do assassínio de Abel por obra do seu irmão: " Logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra o irmão Abel e matou-o " (Gn 4, 8). Este primeiro assassínio é apresentado, com singular eloquência, numa página paradigmática do Livro do Génesis: página transcrita cada dia, sem cessar e com degradante repetição, no livro da história dos povos.
Queremos ler de novo, juntos, esta página bíblica, que, apesar do seu aspecto arcaico e extrema simplicidade, se apresenta riquíssima de ensinamentos.
" Abel foi pastor; e Caim, lavrador. Ao fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. Por seu lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as gorduras deles. O Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta, mas não olhou para Caim nem para a sua oferta.
Caim ficou muito irritado e o rosto transtornou- -se-lhe. O Senhor disse a Caim: "Porque estás zangado e o teu rosto abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto; se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo". Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: "Vamos ao campo". Porém, logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra o irmão Abel e matou-o.
O Senhor disse a Caim: "Onde está Abel, teu irmão?" Caim respondeu: "Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?" O Senhor replicou: "Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim. De futuro, serás maldito sobre a terra que abriu a sua boca para beber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, negar-te-á as suas riquezas. Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra".
Caim disse ao Senhor: "A minha culpa é grande demais para obter perdão! Expulsas-me hoje desta terra; obrigado a ocultar-me longe da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar-me matar-me-á".
O Senhor respondeu: "Não, se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais". E o Senhor marcou-o com um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar. Caim afastou-se da presença do Senhor e foi residir na região de Nod, ao oriente do Éden " (Gn 4, 2-16).
8. Caim está " muito irritado " e tem o rosto " transtornado ", porque " o Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta " (Gn 4, 4). O texto bíblico não revela o motivo pelo qual Deus preferiu o sacrifício de Abel ao de Caim; mas indica claramente que, mesmo preferindo a oferta de Abel, não interrompe o seu diálogo com Caim. Acautela-o, recordando-lhe a sua liberdade frente ao mal: o homem não está de forma alguma predestinado para o mal. Certamente, à semelhança de Adão, ele é tentado pela força maléfica do pecado que, como um animal feroz, se agacha à porta do seu coração, à espera de lançar-se sobre a presa. Mas Caim permanece livre diante do pecado. Pode e deve dominá-lo: " Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo " (Gn 4, 7).
Sobre a advertência feita pelo Senhor, porém, levam a melhor o ciúme e a ira, e Caim atira-se contra o próprio irmão e mata-o. Como lemos no Catecismo da Igreja Católica, " a Sagrada Escritura, na narrativa da morte de Abel por seu irmão Caim, revela, desde os primórdios da história humana, a presença no homem da cólera e da inveja, consequências do pecado original. O homem tornou-se inimigo do seu semelhante ".10
O irmão mata o irmão. Como naquele primeiro fratricídio, também em cada homicídio é violado o parentesco " espiritual " que congrega os homens numa única grande família,11 sendo todos participantes do mesmo bem fundamental: a igual dignidade pessoal. E, não raro, resulta violado também o parentesco " da carne e do sangue ", quando, por exemplo, as ameaças à vida se verificam ao nível do relacionamento pais e filhos, como sucede com o aborto ou quando, no mais vasto contexto familiar ou de parentela, é encorajada ou provocada a eutanásia.
Na raiz de qualquer violência contra o próximo, há uma cedência à " lógica " do maligno, isto é, daquele que " foi assassino desde o princípio " (Jo 8, 44), como nos recorda o apóstolo João: " Porque esta é a mensagem que ouvistes desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. Não seja como Caim que era do maligno, e matou o seu irmão " (1 Jo 3, 11-12). Assim o assassinato do irmão, desde os alvores da história, é o triste testemunho de como o mal progride com rapidez impressionante: à revolta do homem contra Deus no paraíso terreal segue-se a luta mortal do homem contra o homem.
Depois do crime, Deus intervém para vingar a vítima. Frente a Deus que o interroga sobre a sorte de Abel, Caim, em vez de se mostrar confundido e desculpar-se, esquiva-se à pergunta com arrogância: " Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão? " (Gn 4, 9). " Não sei dele ": com a mentira, Caim procura encobrir o crime. Assim aconteceu frequentemente e continua a verificar-se quando se servem das mais diversas ideologias para justificar e mascarar os crimes mais atrozes contra a pessoa. " Sou, porventura, guarda do meu irmão? ": Caim não quer pensar no irmão, e recusa-se a assumir aquela responsabilidade que cada homem tem pelo outro. Saltam espontaneamente ao pensamento as tendências actuais para sonegar a responsabilidade do homem pelo seu semelhante, de que são sintomas, entre outros, a falta de solidariedade com os membros mais débeis da sociedade - como são os idosos, os doentes, os imigrantes, as crianças -, e a indiferença que tantas vezes se regista nas relações entre os povos, mesmo quando estão em jogo valores fundamentais como a sobrevivência, a liberdade e a paz.
9. Mas Deus não pode deixar impune o crime: da terra onde foi derramado, o sangue da vítima exige que Ele faça justiça (cf. Gn 37, 26; Is 26, 21; Ez 24, 7-8). Deste texto, a Igreja retirou a denominação de " pecados que bradam ao Céu ", incluindo em primeiro lugar o homicídio voluntário.12 Para os hebreus, como para muitos povos da antiguidade, o sangue é a sede da vida, ou melhor " o sangue é a vida " (Dt 12, 23), e a vida, sobretudo a humana, pertence unicamente a Deus: por isso, quem atenta contra a vida do homem, de algum modo atenta contra o próprio Deus.
Caim é amaldiçoado por Deus como também pela terra, que lhe recusará os seus frutos (cf. Gn 4, 11-12). E épunido: habitará em terras agrestes e desertas. A violência homicida altera profundamente o ambiente da vida do homem. A terra, que era o " jardim do Éden " (Gn 2, 15), lugar de abundância, de serenas relações interpessoais e de amizade com Deus, torna-se o " país de Nod " (Gn 4, 16), lugar de " miséria ", de solidão e de afastamento de Deus. Caim será " fugitivo e vagabundo pela terra " (Gn 4, 14): dúvida e instabilidade sempre o acompanharão.
Contudo Deus, misericordioso mesmo quando castiga, " marcou 1 com um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar " (Gn 4, 15): põe-lhe um sinal, cujo objectivo não é condená-lo à abominação dos outros homens, mas protegê-lo e defendê-lo daqueles que o quiserem matar, ainda que seja para vingar a morte de Abel. Nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus Se constitui seu garante. E é precisamente aqui que se manifesta o mistério paradoxal da justiça misericordiosa de Deus, como escreve Santo Ambrósio: " Visto que tinha sido cometido um fratricídio - ou seja, o maior dos crimes -, no momento em que se introduziu o pecado, teve imediatamente de ser ampliada a lei da misericórdia divina; para que, caso o castigo atingisse imediatamente o culpado, não sucedesse que os homens, ao punirem, não usassem de qualquer tolerância nem mansidão, mas entregassem imediatamente ao castigo os culpados. (...) Deus repeliu Caim da sua presença e, renegado pelos seus pais, como que o desterrou para o exílio de uma habitação separada, pelo facto de ter passado da mansidão humana à crueldade selvagem. Todavia Deus não quer punir o homicida com um homicídio, porque prefere o arrependimento do pecador à sua morte ".13
" Que fizeste? " (Gn 4, 10): o eclipse do valor da vida
10. O Senhor disse a Caim: " Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim " (Gn 4, 10). A voz do sangue derramado pelos homens não cessa de clamar, de geração em geração, assumindo tons e acentos sempre novos e diversos.
A pergunta do Senhor " que fizeste? ", à qual Caim não se pode esquivar, é dirigida também ao homem contemporâneo, para que tome consciência da amplitude e gravidade dos atentados à vida que continuam a registar-se na história da humanidade, para que vá à procura das múltiplas causas que os geram e alimentam, e, enfim, para que reflita com extrema seriedade sobre as consequências que derivam desses mesmos atentados para a existência das pessoas e dos povos.
Algumas ameaças provêm da própria natureza, mas são agravadas pelo descuido culpável e pela negligência dos homens que, não raro, lhes poderiam dar remédio; outras, ao contrário, são fruto de situações de violência, de ódio, de interesses contrapostos, que induzem homens a agredirem outros homens com homicídios, guerras, massacres, genocídios.
Como não pensar na violência causada à vida de milhões de seres humanos, especialmente crianças, constrangidos à miséria, à subnutrição e à fome, por causa da iníqua distribuição das riquezas entre os povos e entre as classes sociais? Ou na violência inerente às guerras, e ainda antes delas, ao escandaloso comércio de armas, que favorece o torvelinho de tantos conflitos armados que ensanguentam o mundo? Ou então na sementeira de morte que se provoca com a imprudente alteração dos equilíbrios ecológicos, com a criminosa difusão da droga, ou com a promoção do uso da sexualidade segundo modelos que, além de serem moralmente inaceitáveis, acarretam ainda graves riscos para a vida? É impossível registar de modo completo a vasta gama das ameaças à vida humana, tantas são as formas, abertas ou camufladas, de que se revestem no nosso tempo!
11. Mas queremos concentrar a nossa atenção, de modo particular, sobre outro género de atentados, relativos à vida nascente e terminal, que apresentam novas características em relação ao passado e levantam problemas de singular gravidade: é que, na consciência colectiva, aqueles tendem a perder o carácter de " crimes " para assumir, paradoxalmente, o carácter de " direitos ", a ponto de se pretender um verdadeiro e próprioreconhecimento legal da parte do Estado e a consequente execução gratuita por intermédio dos profissionais da saúde. Tais atentados ferem a vida humana em situações de máxima fragilidade, quando se acha privada de qualquer capacidade de defesa. Mais grave ainda é o facto de serem consumados, em grande parte, mesmo no seio e por obra da família que está, pelo contrário, chamada constitutivamente a ser " santuário da vida ".
Como se pôde criar semelhante situação? Há que tomar em consideração diversos factores. Como pano de fundo, existe uma crise profunda da cultura, que gera cepticismo sobre os próprios fundamentos do conhecimento e da ética e torna cada vez mais difícil compreender claramente o sentido do homem, dos seus direitos e dos seus deveres. A isto, vêm juntar-se as mais diversas dificuldades existenciais e interpessoais, agravadas pela realidade de uma sociedade complexa, onde frequentemente as pessoas, os casais, as famílias são deixadas sozinhas a braços com os seus problemas. Não faltam situações de particular pobreza, angústia e exasperação, onde a luta pela sobrevivência, a dor nos limites do suportável, as violências sofridas, especialmente aquelas que investem as mulheres, tornam por vezes exigentes até ao heroísmo as opções de defesa e promoção da vida.
Tudo isto explica - pelo menos em parte - como possa o valor da vida sofrer hoje uma espécie de " eclipse ", apesar da consciência não cessar de o apontar como valor sagrado e intocável; e comprova-o o próprio fenómeno de se procurar encobrir alguns crimes contra a vida nascente ou terminal com expressões de âmbito terapêutico, que desviam o olhar do facto de estar em jogo o direito à existência de uma pessoa humana concreta.
12. Com efeito, se muitos e graves aspectos da problemática social actual podem, de certo modo, explicar o clima de difusa incerteza moral e, por vezes, atenuar a responsabilidade subjectiva no indivíduo, não é menos verdade que estamos perante uma realidade mais vasta que se pode considerar como verdadeira e própria estrutura de pecado, caracterizada pela imposição de uma cultura anti-solidária, que em muitos casos se configura como verdadeira " cultura de morte ". É activamente promovida por fortes correntes culturais, económicas e políticas, portadoras de uma concepção eficientista da sociedade.
Olhando as coisas deste ponto de vista, pode-se, em certo sentido, falar de uma guerra dos poderosos contra os débeis: a vida que requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é reputada inútil ou considerada como um peso insuportável, e, consequentemente, rejeitada sob múltiplas formas. Todo aquele que, pela sua enfermidade, a sua deficiência ou, mais simplesmente ainda, a sua própria presença, põe em causa o bem-estar ou os hábitos de vida daqueles que vivem mais avantajados, tende a ser visto como um inimigo do qual defender-se ou um inimigo a eliminar. Desencadeia-se assim uma espécie de " conjura contra a vida ". Esta não se limita apenas a tocar os indivíduos nas suas relações pessoais, familiares ou de grupo, mas alarga-se muito para além até atingir e subverter, a nível mundial, as relações entre os povos e os Estados.
13. Para facilitar a difusão do aborto, foram investidas - e continuam a sê-lo - somas enormes, destinadas à criação de fármacos que tornem possível a morte do feto no ventre materno, sem necessidade de recorrer à ajuda do médico. A própria investigação científica, neste âmbito, parece quase exclusivamente preocupada em obter produtos cada vez mais simples e eficazes contra a vida e, ao mesmo tempo, capazes de subtrair o aborto a qualquer forma de controlo e responsabilidade social.
Afirma-se frequentemente que a contracepção, tornada segura e acessível a todos, é o remédio mais eficaz contra o aborto. E depois acusa-se a Igreja Católica de, na realidade, favorecer o aborto, porque continua obstinadamente a ensinar a ilicitude moral da contracepção.
Bem vista, porém, a objecção é falaciosa. De facto, pode acontecer que muitos recorram aos contraceptivos com a intenção também de evitar depois a tentação do aborto. Mas os pseudo-valores inerentes à " mentalidade contraceptiva " - muito diversa do exercício responsável da paternidade e maternidade, actuada no respeito pela verdade plena do acto conjugal - são tais que tornam ainda mais forte essa tentação, na eventualidade de ser concebida uma vida não desejada. De facto, a cultura pro-aborto aparece sobretudo desenvolvida nos mesmos ambientes que recusam o ensinamento da Igreja sobre a contracepção. Certo é que a contracepção e o aborto são males especificamente diversos do ponto de vista moral: uma contradiz a verdade integral do acto sexual enquanto expressão própria do amor conjugal, o outro destrói a vida de um ser humano; a primeira opõe-se à virtude da castidade matrimonial, o segundo opõe-se à virtude da justiça e viola directamente o preceito divino " não matarás ".
Mas, apesar de terem natureza e peso moral diversos, eles surgem, com muita frequência, intimamente relacionados como frutos da mesma planta. É verdade que não faltam casos onde, à contracepção e ao próprio aborto se vem juntar a pressão de diversas dificuldades existenciais que, no entanto, não podem nunca exonerar do esforço de observar plenamente a lei de Deus. Mas, em muitíssimos outros casos, tais práticas afundam as suas raízes numa mentalidade hedonista e desresponsabilizadora da sexualidade, e supõem um conceito egoísta da liberdade que vê na procriação um obstáculo ao desenvolvimento da própria personalidade. A vida que poderia nascer do encontro sexual torna-se assim o inimigo que se há-de evitar absolutamente, e o aborto a única solução possível diante de uma contracepção falhada.
Infelizmente, emerge cada vez mais a estreita conexão que existe, a nível de mentalidade, entre as práticas da contracepção e do aborto, como o demonstra, de modo alarmante, a produção de fármacos, dispositivos intra-uterinos e preservativos, os quais, distribuídos com a mesma facilidade dos contraceptivos, actuam na prática como abortivos nos primeiros dias de desenvolvimento da vida do novo ser humano.
14. Também as várias técnicas de reprodução artificial, que pareceriam estar ao serviço da vida e que, não raro, são praticadas com essa intenção, na realidade abrem a porta a novos atentados contra a vida. Para além do facto de serem moralmente inaceitáveis, porquanto separam a procriação do contexto integralmente humano do acto conjugal,14 essas técnicas registam altas percentagens de insucesso: este diz respeito não tanto à fecundação como sobretudo ao desenvolvimento sucessivo do embrião, sujeito ao risco de morte em tempos geralmente muito breves. Além disso, são produzidos às vezes embriões em número superior ao necessário para a implantação no útero da mulher e esses, chamados " embriões supranumerários ", são depois suprimidos ou utilizados para pesquisas que, a pretexto de progresso científico ou médico, na realidade reduzem a vida humana a simples " material biológico ", de que se pode livremente dispor.
Os diagnósticos pré-natais, que não apresentam dificuldades morais quando feitos para individuar a eventualidade de curas necessárias à criança ainda no seio materno, tornam-se, com muita frequência, ocasião para propor e solicitar o aborto. É o aborto eugénico, cuja legitimação, na opinião pública, nasce de uma mentalidade - julgada, erradamente, coerente com as exigências " terapêuticas " - que acolhe a vida apenas sob certas condições, e que recusa a limitação, a deficiência, a enfermidade.
Seguindo a mesma lógica, chegou-se a negar os cuidados ordinários mais elementares, mesmo até a alimentação, a crianças nascidas com graves deficiências ou enfermidades. E o cenário contemporâneo apresenta-se ainda mais desconcertante com as propostas - avançadas aqui e além - para, na mesma linha do direito ao aborto, se legitimar até o infanticídio, retornando assim a um estado de barbárie que se esperava superado para sempre.
15. Ameaças não menos graves pesam também sobre os doentes incuráveis e os doentes terminais, num contexto social e cultural que, tornando mais difícil enfrentar e suportar o sofrimento, aviva a tentação de resolver o problema do sofrimento eliminando-o pela raiz, com a antecipação da morte para o momento considerado mais oportuno.
Para tal decisão concorrem, muitas vezes, elementos de natureza diversa mas infelizmente convergentes para essa terrível saída. Pode ser decisivo, na pessoa doente, o sentimento de angústia, exasperação, ou até desespero, provocado por uma experiência de dor intensa e prolongada. Vêem-se, assim, duramente postos à prova os equilíbrios, por vezes já abalados, da vida pessoal e familiar, de maneira que, por um lado, o doente, não obstante os auxílios cada vez mais eficazes da assistência médica e social, corre o risco de se sentir esmagado pela própria fragilidade; por outro lado, naqueles que lhe estão afectivamente ligados, pode gerar-se um sentimento de compreensível, ainda que mal-entendida, compaixão. Tudo isto fica agravado por uma atmosfera cultural que não vê qualquer significado nem valor no sofrimento, antes considera-o como o mal por excelência, que se há-de eliminar a todo o custo; isto verifica- -se especialmente quando não se possui uma visão religiosa que ajude a decifrar positivamente o mistério da dor.
Mas, no conjunto do horizonte cultural, não deixa de incidir também uma espécie de atitude prometéica do homem que, desse modo, se ilude de poder apropriar-se da vida e da morte para decidir delas, quando na realidade acaba derrotado e esmagado por uma morte irremediavelmente fechada a qualquer perspectiva de sentido e a qualquer esperança. Uma trágica expressão de tudo isto, encontramo-la na difusão da eutanásia, ora mascarada e subreptícia, ora actuada abertamente e até legalizada. Para além do motivo de presunta compaixão diante da dor do paciente, às vezes pretende-se justificar a eutanásia também com uma razão utilitarista, isto é, para evitar despesas improdutivas demasiado gravosas para a sociedade. Propõe-se, assim, a supressão dos recém-nascidos defeituosos, dos deficientes profundos, dos inválidos, dos idosos, sobretudo quando não auto-suficientes, e dos doentes terminais. Nem nos é lícito calar frente a outras formas mais astuciosas, mas não menos graves e reais, de eutanásia, como são as que se poderiam verificar, por exemplo, quando, para aumentar a disponibilidade de material para transplantes, se procedesse à extracção dos órgãos sem respeitar os critérios objectivos e adequados de certificação da morte do dador.
16. Outro motivo actual, que frequentemente é acompanhado por ameaças e atentados à vida, é o fenómeno demográfico. Este reveste aspectos diversos, nas várias partes do mundo: nos países ricos e desenvolvidos, regista-se uma preocupante diminuição ou queda da natalidade; os países pobres, ao contrário, apresentam em geral uma elevada taxa de aumento da população, dificilmente suportável num contexto de menor progresso económico e social, ou até de grave subdesenvolvimento. Face ao sobrepovoamento dos países pobres, verifica-se, a nível internacional, a falta de intervenções globais - sérias políticas familiares e sociais, programas de crescimento cultural e de justa produção e distribuição dos recursos - enquanto se continuam a actuar políticas anti-natalistas.
Devendo, sem dúvida, incluir-se a contracepção, a esterilização e o aborto entre as causas que contribuem para determinar as situações de forte queda da natalidade, pode ser fácil a tentação de recorrer aos mesmos métodos e atentados contra a vida, nas situações de " explosão demográfica ".
O antigo Faraó, sentindo como um íncubo a presença e a multiplicação dos filhos de Israel, sujeitou-os a todo o tipo de opressão e ordenou que fossem mortas todas as crianças do sexo masculino (cf. Ex 1, 7-22). Do mesmo modo se comportam hoje bastantes poderosos da terra.
Também estes vêem como um íncubo o crescimento demográfico em acto, e temem que os povos mais prolíferos e mais pobres representem uma ameaça para o bem-estar e a tranquilidade dos seus países. Consequentemente, em vez de procurarem enfrentar e resolver estes graves problemas dentro do respeito da dignidade das pessoas e das famílias e do inviolável direito de cada homem à vida, preferem promover e impor, por qualquer meio, um maciço planeamento da natalidade. As próprias ajudas económicas, que se dizem dispostos a dar, ficam injustamente condicionadas à aceitação desta política anti-natalista.
17. A humanidade de hoje oferece-nos um espectáculo verdadeiramente alarmante, se pensarmos não só aos diversos âmbitos em que se realizam os atentados à vida, mas também à singular dimensão numérica dos mesmos, bem como ao múltiplo e poderoso apoio que lhes é dado pelo amplo consenso social, pelo frequente reconhecimento legal, pelo envolvimento de uma parte dos profissionais da saúde.
Como senti dever bradar em Denver, por ocasião do VIII Dia Mundial da Juventude, " com o tempo, as ameaças contra a vida não diminuíram. Elas, ao contrário, assumem dimensões enormes. Não se trata apenas de ameaças vindas do exterior, de forças da natureza ou dos " Cains " que assassinam os " Abéis "; não, trata-se de ameaças programadas de maneira científica e sistemática. O século XX ficará considerado uma época de ataques maciços contra a vida, uma série infindável de guerras e um massacre permanente de vidas humanas inocentes. Os falsos profetas e os falsos mestres conheceram o maior sucesso possível ".15 Para além das intenções, que podem ser várias e quiçá assumir formas persuasivas em nome até da solidariedade, a verdade é que estamos perante uma objectiva " conjura contra a vida " que vê também implicadas Instituições Internacionais, empenhadas a encorajar e programar verdadeiras e próprias campanhas para difundir a contracepção, a esterilização e o aborto. Não se pode negar, enfim, que os mass-media são frequentemente cúmplices dessa conjura, ao abonarem junto da opinião pública aquela cultura que apresenta o recurso à contracepção, à esterilização, ao aborto e à própria eutanásia como sinal do progresso e conquista da liberdade, enquanto descrevem como inimigas da liberdade e do progresso as posições incondicionalmente a favor da vida.
" Sou, porventura, guarda do meu irmão? " (Gn 4, 9): uma noção perversa de liberdade
18. O panorama descrito requer ser conhecido não somente nos fenómenos de morte que o caracterizam, mas também nas múltiplas causas que o determinam. A pergunta do Senhor " que fizeste? " (Gn 4, 10) quase parece um convite dirigido a Caim para que, ultrapassando a materialidade do gesto homicida, veja toda a gravidade nas motivações que estão na sua origem e nas consequências que dele derivam.
As opções contra a vida nascem, às vezes, de situações difíceis ou mesmo dramáticas de profundo sofrimento, de solidão, de carência total de perspectivas económicas, de depressão e de angústia pelo futuro. Estas circunstâncias podem atenuar, mesmo até notavelmente, a responsabilidade subjectiva e, consequentemente, a culpabilidade daqueles que realizam tais opções em si mesmas criminosas. Hoje, todavia, o problema estende-se muito para além do reconhecimento, sempre necessário, destas situações pessoais. Põe-se também no plano cultural, social e político, onde apresenta o seu aspecto mais subversivo e perturbador na tendência, cada vez mais largamente compartilhada, de interpretar os mencionados crimes contra a vida como legítimas expressões da liberdade individual, que hão-de ser reconhecidas e protegidas como verdadeiros e próprios direitos.
Chega assim a uma viragem de trágicas consequências, um longo processo histórico, o qual, depois de ter descoberto o conceito de " direitos humanos " - como direitos inerentes a cada pessoa e anteriores a qualquer Constituição e legislação dos Estados -, incorre hoje numa estranha contradição: precisamente numa época em que se proclamam solenemente os direitos invioláveis da pessoa e se afirma publicamente o valor da vida, o próprio direito à vida é praticamente negado e espezinhado, particularmente nos momentos mais emblemáticos da existência, como são o nascer e o morrer.
Por um lado, as várias declarações dos direitos do homem e as múltiplas iniciativas que nelas se inspiram, indicam a consolidação a nível mundial de uma sensibilidade moral mais diligente em reconhecer o valor e a dignidade de cada ser humano enquanto tal, sem qualquer distinção de raça, nacionalidade, religião, opinião política, estrato social.
Por outro lado, a estas nobres proclamações contrapõem-se, infelizmente nos factos, a sua trágica negação. Esta é ainda mais desconcertante, antes mais escandalosa, precisamente porque se realiza numa sociedade que faz da afirmação e tutela dos direitos humanos o seu objectivo principal e, conjuntamente, o seu título de glória. Como pôr de acordo essas repetidas afirmações de princípio com a contínua multiplicação e a difusa legitimação dos atentados à vida humana? Como conciliar estas declarações com a recusa do mais débil, do mais carenciado, do idoso, daquele que acaba de ser concebido? Estes atentados encaminham-se exactamente na direcção contrária à do respeito pela vida e representam uma ameaça frontal a toda a cultura dos direitos do homem. É uma ameaça capaz, em última análise, de pôr em risco o próprio significado da convivência democrática: de sociedade de " con-viventes ", as nossas cidades correm o risco de passar a sociedade de excluídos, marginalizados, irradiados e suprimidos. Se depois o olhar se alarga ao horizonte mundial, como não pensar que a afirmação dos direitos das pessoas e dos povos, verificada em altas reuniões internacionais, se reduz a um estéril exercício retórico, se lá não é desmascarado o egoísmo dos países ricos que fecham aos países pobres o acesso ao desenvolvimento ou o condicionam a proibições absurdas de procriação, contrapondo o progresso ao homem? Porventura não é de pôr em discussão os próprios modelos económicos, adoptados pelos Estados frequentemente também por pressões e condicionamentos de carácter internacional, que geram e alimentam situações de injustiça e violência, nas quais a vida humana de populações inteiras fica degradada e espezinhada?
19. Onde estão as raízes de uma contradição tão paradoxal? Podemo-las individuar em avaliações globais de ordem cultural e moral, a começar daquela mentalidade que, exasperando e até deformando o conceito de subjectividade, só reconhece como titular de direitos quem se apresente com plena ou, pelo menos, incipiente autonomia e esteja fora da condição de total dependência dos outros. Mas, como conciliar tal impostação com a exaltação do homem enquanto ser " não-disponível "? A teoria dos direitos humanos funda-se precisamente na consideração do facto de o homem, ao contrário dos animais e das coisas, não poder estar sujeito ao domínio de ninguém. Deve-se acenar ainda àquela lógica que tende a identificar a dignidade pessoal com a capacidade de comunicação verbal e explícita e, em todo o caso, experimentável. Claro que, com tais pressupostos, não há espaço no mundo para quem, como o nascituro ou o doente terminal, é um sujeito estruturalmente débil, parece totalmente à mercê de outras pessoas e radicalmente dependente delas, e sabe comunicar apenas mediante a linguagem muda de uma profunda simbiose de afectos. Assim a força torna-se o critério de decisão e de acção, nas relações interpessoais e na convivência social. Mas isto é precisamente o contrário daquilo que, historicamente, quis afirmar o Estado de direito, como comunidade onde as " razões da força " são substituídas pela " força da razão ".
A outro nível, as raízes da contradição que se verifica entre a solene afirmação dos direitos do homem e a sua trágica negação na prática, residem numa concepção da liberdade que exalta o indivíduo de modo absoluto e não o predispõe para a solidariedade, o pleno acolhimento e serviço do outro. Se é certo que, por vezes, a supressão da vida nascente ou terminal aparece também matizada com um sentido equivocado de altruísmo e de compaixão humana, não se pode negar que tal cultura de morte, no seu todo, manifesta uma concepção da liberdade totalmente individualista que acaba por ser a liberdade dos " mais fortes " contra os débeis, destinados a sucumbir.
Precisamente neste sentido, se pode interpretar a resposta de Caim à pergunta do Senhor " onde está Abel, teu irmão? ": " Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão? " (Gn 4, 9). Sim, todo o homem é " guarda do seu irmão ", porque Deus confia o homem ao homem. E é tendo em vista também tal entrega que Deus dá a cada homem a liberdade, que possui uma dimensão relacional essencial. Trata-se de um grande dom do Criador, quando colocada como deve ser ao serviço da pessoa e da sua realização mediante o dom de si e o acolhimento do outro; quando, pelo contrário, a liberdade é absolutizada em chave individualista, fica esvaziada do seu conteúdo originário e contestada na sua própria vocação e dignidade.
Mas há um aspecto ainda mais profundo a sublinhar: a liberdade renega-se a si mesma, autodestrói-se e predispõe-se à eliminação do outro, quando deixa de reconhecer e respeitar a sua ligação constitutiva com a verdade. Todas as vezes que a razão humana, querendo emancipar-se de toda e qualquer tradição e autoridade, se fecha até às evidências primárias de uma verdade objectiva e comum, fundamento da vida pessoal e social, a pessoa acaba por assumir como única e indiscutível referência para as próprias decisões, não já a verdade sobre o bem e o mal, mas apenas a sua subjectiva e volúvel opinião ou, simplesmente, o seu interesse egoísta e o seu capricho.
20. Nesta concepção da liberdade, a convivência social fica profundamente deformada. Se a promoção do próprio eu é vista em termos de autonomia absoluta, inevitavelmente chega-se à negação do outro, visto como um inimigo de quem defender-se. Deste modo, a sociedade torna-se um conjunto de indivíduos, colocados uns ao lado dos outros mas sem laços recíprocos: cada um quer afirmar-se independentemente do outro, mais, quer fazer prevalecer os seus interesses. Todavia, na presença de análogos interesses da parte do outro, terá de se render a procurar qualquer forma de compromisso, se se quer que, na sociedade, seja garantido a cada um o máximo de liberdade possível. Deste modo, diminui toda a referência a valores comuns e a uma verdade absoluta para todos: a vida social aventura-se pelas areias movediças de um relativismo total. Então, tudo é convencional, tudo é negociável: inclusivamente o primeiro dos direitos fundamentais, o da vida.
É aquilo que realmente acontece, mesmo no âmbito mais especificamente político e estatal: o primordial e inalienável direito à vida é posto em discussão ou negado com base num voto parlamentar ou na vontade de uma parte - mesmo que seja maioritária - da população. É o resultado nefasto de um relativismo que reina incontestado: o próprio " direito " deixa de o ser, porque já não está solidamente fundado sobre a inviolável dignidade da pessoa, mas fica sujeito à vontade do mais forte. Deste modo e para descrédito das suas regras, a democracia caminha pela estrada de um substancial totalitarismo. O Estado deixa de ser a " casa comum ", onde todos podem viver segundo princípios de substancial igualdade, e transforma-se num Estado tirano, que presume de poder dispor da vida dos mais débeis e indefesos, desde a criança ainda não nascida até ao idoso, em nome de uma utilidade pública que, na realidade, não é senão o interesse de alguns.
Tudo parece acontecer no mais firme respeito da legalidade, pelo menos quando as leis, que permitem o aborto e a eutanásia, são votadas segundo as chamadas regras democráticas. Na verdade, porém, estamos perante uma mera e trágica aparência de legalidade, e o ideal democrático, que é verdadeiramente tal apenas quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana, é atraiçoado nas suas próprias bases: " Como é possível falar ainda de dignidade de toda a pessoa humana, quando se permite matar a mais débil e a mais inocente? Em nome de qual justiça se realiza a mais injusta das discriminações entre as pessoas, declarando algumas dignas de ser defendidas, enquanto a outras esta dignidade é negada? ".16 Quando se verificam tais condições, estão já desencadeados aqueles mecanismos que levam à dissolução da convivência humana autêntica e à desagregação da própria realidade estatal.
Reivindicar o direito ao aborto, ao infanticídio, à eutanásia, e reconhecê-lo legalmente, equivale a atribuir à liberdade humana um significado perverso e iníquo: o significado de um poder absoluto sobre os outros e contra os outros. Mas isto é a morte da verdadeira liberdade: " Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é escravo do pecado " (Jo 8, 34).
" Obrigado a ocultar-me longe da tua face " (Gn 4, 14): o eclipse do sentido de Deus e do homem
21. Quando se procuram as raízes mais profundas da luta entre a " cultura da vida " e a " cultura da morte ", não podemos deter-nos na noção perversa de liberdade acima referida. É necessário chegar ao coração do drama vivido pelo homem contemporâneo: o eclipse do sentido de Deus e do homem, típico de um contexto social e cultural dominado pelo secularismo que, com os seus tentáculos invasivos, não deixa às vezes de pôr à prova as próprias comunidades cristãs. Quem se deixa contagiar por esta atmosfera, entra facilmente na voragem de um terrível círculo vicioso: perdendo o sentido de Deus, tende-se a perder também o sentido do homem, da sua dignidade e da sua vida; por sua vez, a sistemática violação da lei moral, especialmente na grave matéria do respeito da vida humana e da sua dignidade, produz uma espécie de ofuscamento progressivo da capacidade de enxergar a presença vivificante e salvífica de Deus.
Podemos, mais uma vez, inspirar-nos na narração da morte de Abel provocada pelo seu irmão. Depois da maldição infligida por Deus a Caim, este dirige-se ao Senhor dizendo: " A minha culpa é grande demais para obter perdão. Expulsas-me hoje desta terra;obrigado a ocultar-me longe da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar-me matar-me-á " (Gn 4, 13-14).
Caim pensa que o seu pecado não poderá obter perdão do Senhor e que o seu destino inevitável será " ocultar-se longe " d'Ele. Se Caim chega a confessar que a sua culpa é " grande demais ", é por saber que se encontra diante de Deus e do seu justo juízo. Na realidade, só diante do Senhor é que o homem pode reconhecer o seu pecado e perceber toda a sua gravidade. Tal foi a experiência de David, que, depois " de ter feito o que é mal aos olhos do Senhor " e de ser repreendido pelo profeta Natã (cf. 2 Sam 11-12), exclama: " Eu reconheço os meus pecados, e as minhas culpas tenho-as sempre diante de mim. Pequei contra Vós, só contra Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos " (Sal 5150, 5-6).
22. Por isso, quando declina o sentido de Deus, também o sentido do homem fica ameaçado e adulterado, como afirma de maneira lapidar o Concílio Vaticano II: " Sem o Criador, a criatura não subsiste. (...) Antes, se se esquece Deus, a própria criatura se obscurece ".17 O homem deixa de conseguir sentir-se como " misteriosamente outro " face às diversas criaturas terrenas; considera-se apenas como um de tantos seres vivos, como um organismo que, no máximo, atingiu um estado muito elevado de perfeição. Fechado no estreito horizonte da sua dimensão física, reduz-se de certo modo a " uma coisa ", deixando de captar o carácter " transcendente " do seu " existir como homem ". Deixa de considerar a vida como um dom esplêndido de Deus, uma realidade " sagrada " confiada à sua responsabilidade e, consequentemente, à sua amorosa defesa, à sua " veneração ". A vida torna-se simplesmente " uma coisa ", que ele reivindica como sua exclusiva propriedade, que pode plenamente dominar e manipular.
Assim, diante da vida que nasce e da vida que morre, o homem já não é capaz de se deixar interrogar sobre o sentido mais autêntico da sua existência, assumindo com verdadeira liberdade estes momentos cruciais do próprio " ser ". Preocupa-se somente com o " fazer ", e, recorrendo a qualquer forma de tecnologia, moureja a programar, controlar e dominar o nascimento e a morte. Estes acontecimentos, em vez de experiências primordiais que requerem ser " vividas ", tornam-se coisas que se pretende simplesmente " possuir " ou " rejeitar ".
Aliás, uma vez excluída a referência a Deus, não surpreende que o sentido de todas as coisas resulte profundamente deformado, e a própria natureza, já não vista como mater 1, fique reduzida a " material " sujeito a todas as manipulações. A isto parece conduzir certa mentalidade técnico-científica, predominante na cultura contemporânea, que nega a ideia mesma de uma verdade própria da criação que se há-de reconhecer, ou de um desígnio de Deus sobre a vida que temos de respeitar. E isto não é menos verdade, quando a angústia pelos resultados de tal " liberdade sem lei " induz alguns à exigência oposta de uma " lei sem liberdade ", como sucede, por exemplo, em ideologias que contestam a legitimidade de qualquer forma de intervenção sobre a natureza, como que em nome de uma sua " divinização ", o que uma vez mais menospreza a sua dependência do desígnio do Criador.
Na realidade, vivendo " como se Deus não existisse ", o homem perde o sentido não só do mistério de Deus, mas também do mistério do mundo, e do mistério do seu próprio ser.
23. O eclipse do sentido de Deus e do homem conduz inevitavelmente ao materialismo prático, no qual prolifera o individualismo, o utilitarismo e o hedonismo. Também aqui se manifesta a validade perene daquilo que escreve o Apóstolo: " Como não procuraram ter de Deus conhecimento perfeito, entregou-os Deus a um sentimento pervertido, a fim de que fizessem o que não convinha (Rm 1, 28). Assim os valores do ser ficam substituídos pelos do ter.
O único fim que conta, é a busca do próprio bem-estar material. A chamada " qualidade de vida " é interpretada prevalente ou exclusivamente como eficiência económica, consumismo desenfreado, beleza e prazer da vida física, esquecendo as dimensões mais profundas da existência, como são as interpessoais, espirituais e religiosas.
Em tal contexto, o sofrimento - peso inevitável da existência humana mas também factor de possível crescimento pessoal -, é " deplorado ", rejeitado como inútil, ou mesmo combatido como mal a evitar sempre e por todos os modos. Quando não é possível superá-lo e a perspectiva de um bem-estar, pelo menos futuro, se desvanece, parece então que a vida perdeu todo o significado e cresce no homem a tentação de reivindicar o direito à sua eliminação.
Sempre no mesmo horizonte cultural, o corpo deixa de ser visto como realidade tipicamente pessoal, sinal e lugar da relação com os outros, com Deus e com o mundo. Fica reduzido à dimensão puramente material: é um simples complexo de órgãos, funções e energias, que há-de ser usado segundo critérios de mero prazer e eficiência. Consequentemente, também a sexualidade fica despersonalizada e instrumentalizada: em lugar de ser sinal, lugar e linguagem do amor, ou seja, do dom de si e do acolhimento do outro na riqueza global da pessoa, torna-se cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos. Deste modo se deforma e falsifica o conteúdo original da sexualidade humana, e os seus dois significados - unitivo e procriativo -, inerentes à própria natureza do acto conjugal, acabam artificialmente separados: assim a união é atraiçoada e a fecundidade fica sujeita ao arbítrio do homem e da mulher. A geração torna-se, então, o " inimigo " a evitar no exercício da sexualidade: se aceite, é-o apenas porque exprime o próprio desejo ou mesmo a determinação de ter o filho " a todo o custo ", e não já porque significa total acolhimento do outro e, por conseguinte, abertura à riqueza de vida que o filho é portador.
Na perspectiva materialista até aqui descrita, as relações interpessoais experimentam um grave empobrecimento. E os primeiros a sofrerem os danos são a mulher, a criança, o enfermo ou atribulado, o idoso. O critério próprio da dignidade pessoal - isto é, o do respeito, do altruísmo e do serviço - é substituído pelo critério da eficiência, do funcional e da utilidade: o outro é apreciado não por aquilo que " é ", mas por aquilo que " tem, faz e rende ". É a supremacia do mais forte sobre o mais fraco.
24. É no íntimo da consciência moral que se consuma o eclipse do sentido de Deus e do homem, com todas as suas múltiplas e funestas consequências sobre a vida. Em questão está, antes de mais, a consciência de cada pessoa, onde esta, na sua unicidade e irrepetibilidade, se encontra a sós com Deus.18 Mas, em certo sentido, é posta em questão também a " consciência moral " da sociedade: esta é, de algum modo, responsável, não só porque tolera ou favorece comportamentos contrários à vida, mas também porque alimenta a " cultura da morte ", chegando a criar e consolidar verdadeiras e próprias " estruturas de pecado " contra a vida. A consciência moral, tanto do indivíduo como da sociedade, está hoje - devido também à influência invasora de muitos meios de comunicação social -, exposta a um perigo gravíssimo e mortal: o perigo da confusão entre o bem e o mal, precisamente no que se refere ao fundamental direito à vida. Uma parte significativa da sociedade actual revela-se tristemente semelhante àquela humanidade que Paulo descreve na Carta aos Romanos. É feita " de homens que sufocam a verdade na injustiça " (1, 18): tendo renegado Deus e julgando poder construir a cidade terrena sem Ele, " desvaneceram nos seus pensamentos ", pelo que " se obscureceu o seu insensato coração " (1, 21); " considerando-se sábios, tornaram-se néscios " (1, 22), fizeram-se autores de obras dignas de morte, e " não só as cometem, como também aprovam os que as praticam " (1, 32). Quando a consciência, esse luminoso olhar da alma (cf. Mt 6, 22-23), chama " bem ao mal e mal ao bem " (Is 5, 20), está já no caminho da sua degeneração mais preocupante e da mais tenebrosa cegueira moral.
Mas todos esses condicionalismos e tentativas de impor silêncio não conseguem sufocar a voz do Senhor, que ressoa na consciência de cada homem: é sempre deste sacrário íntimo da consciência que pode recomeçar um novo caminho de amor, de acolhimento e de serviço à vida humana.
" Aproximaste-vos do sangue de aspersão " (cf. Heb 12, 22.24): sinais de esperança e convite ao compromisso
25. " A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim! " (Gn 4, 10). Não é só a voz do sangue de Abel, o primeiro inocente morto, a gritar por Deus, fonte e defensor da vida. Também o sangue de todos os outros homens, assassinados depois de Abel, é voz que brada ao Senhor. De uma forma absolutamente única, porém, grita a Deus a voz do sangue de Cristo, de quem Abel, na sua inocência, é figura profética, como nos recorda o autor da Carta aos Hebreus: " Vós, porém, aproximaste-vos do monte de Sião, da cidade do Deus vivo, (...) de Jesus, o Mediador da Nova Aliança, e de um sangue de aspersão que fala melhor do que o de Abel " (12, 22.24).
É o sangue de aspersão. Símbolo e sinal prefigurador dele fora o sangue dos sacrifícios da Antiga Aliança, com os quais Deus exprimia a vontade de comunicar a sua vida aos homens, purificando-os e consagrando-os (cf. Ex 24, 8; Lv 17, 11). Agora em Cristo, tudo isso se cumpre e realiza: o d'Ele é o sangue de aspersão que redime, purifica e salva; é o sangue do Mediador da Nova Aliança, " derramado por muitos, em remissão dos pecados " (Mt 26, 28). Este sangue, que brota do peito trespassado de Cristo na Cruz (cf. Jo 19, 34), " fala melhor " do que o sangue de Abel; aquele, com efeito, exprime e exige uma " justiça " mais profunda, mas sobretudo implora misericórdia,19 torna-se junto do Pai intercessão pelos irmãos (cf. Heb 7, 25), é fonte de perfeita redenção e dom de vida nova.
O sangue de Cristo, ao mesmo tempo que revela a grandeza do amor do Pai, manifesta também como o homem é precioso aos olhos de Deus e quão inestimável seja o valor da sua vida. Isto mesmo nos recorda o apóstolo Pedro: " Sabei que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver, recebida por tradição dos vossos pais, não a preço de coisas corruptíveis, prata ou ouro, mas pelo sangue precioso de Cristo, como de um cordeiro imaculado e sem defeito algum " (1 Ped 1, 18-19). Contemplando precisamente o sangue precioso de Cristo, sinal da sua doação de amor (cf. Jo 13, 1), o crente aprende a reconhecer e a apreciar a dignidade quase divina de cada homem, e pode exclamar com incessante e agradecida admiração: " Que grande valor deve ter o homem aos olhos do Criador, se "mereceu tão grande Redentor" (Precónio Pascal), se "Deus deu o seu Filho", para que ele, o homem, "não pereça, mas tenha a vida eterna" (cf. Jo 3, 16) "! 20
Além disso, o sangue de Cristo revela ao homem que a sua grandeza e, consequentemente, a sua vocação consiste no dom sincero de si. Precisamente porque é derramado como dom de vida, o sangue de Jesus já não é sinal de morte, de separação definitiva dos irmãos, mas instrumento de uma comunhão que é riqueza de vida para todos. Quem, no sacramento da Eucaristia, bebe este sangue e permanece em Jesus (cf. Jo 6, 56), vê-se associado ao mesmo dinamismo de amor e doação de vida d'Ele, para levar à plenitude a primordial vocação ao amor que é própria de cada homem (cf. Gn 1, 27; 2, 18-24).
É, enfim, do sangue de Cristo que todos os homens recebem a força para se empenharem a favor da vida. Precisamente esse sangue é o motivo mais forte de esperança, melhor é o fundamento da certeza absoluta de que, segundo o desí- gnio de Deus, a vitória será da vida. " Nunca mais haverá morte " - exclama a voz poderosa que sai do trono de Deus na Jerusalém celeste (Ap 21, 4). E S. Paulo assegura-nos que a vitória actual sobre o pecado é sinal e antecipação da vitória definitiva sobre a morte, quando " se cumprirá o que está escrito: "A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?" " (1 Cor 15, 54-55).
26. Na realidade, não faltam prenúncios desta vitória nas nossas sociedade e culturas, apesar de marcadas tão fortemente pela " cultura da morte ". Dar-se-ia, por conseguinte, uma imagem unilateral que poderia induzir a um estéril desânimo, se a denúncia das ameaças contra a vida não fosse acompanhada pela apresentação dos sinais positivos, operantes na actual situação da humanidade.
Infelizmente, estes sinais positivos têm com frequência dificuldade em manifestar-se e ser reconhecidos, talvez também porque não recebem adequada atenção dos meios de comunicação social. Mas quantas iniciativas de ajuda e amparo às pessoas mais débeis e indefesas surgiram - e continuam a surgir - na comunidade cristã e na sociedade, a nível local, nacional e internacional, por obra de indivíduos, grupos, movimentos e organizações de vário género!
Muitos são ainda os esposos que, com generosa responsabilidade, sabem acolher os filhos como " o maior dom do matrimónio ".21 E não faltam famílias que, para além do seu serviço quotidiano à vida, sabem também abrir-se ao acolhimento de crianças abandonadas, de adolescentes e jovens em dificuldade, de pessoas inválidas, de idosos que vivem na solidão. Numerosos são os centros de ajuda à vida ou instituições análogas, dinamizadas por pessoas e grupos que, com admirável dedicação e sacrifício, oferecem apoio moral e material às mães em dificuldade, tentadas a recorrer ao aborto. Surgem e multiplicam-se ainda os grupos de voluntários, empenhados em dar hospitalidade a quem não tem família, encontra-se em condições de particular dificuldade ou precisa de reencontrar um ambiente educativo que o ajude a superar hábitos destrutivos e recuperar o sentido da vida.
A medicina, promovida com grande empenho por investigadores e profissionais, prossegue no seu esforço por encontrar remédios cada vez mais eficazes: resultados, antes totalmente impensáveis e capazes de abrir promissoras perspectivas, são hoje obtidos em favor da vida nascente, das pessoas que sofrem e dos doentes em fase grave ou terminal. Várias entidades e organizações se mobilizam para levar aos países mais atingidos pela miséria e por doenças crónicas, tais benefícios da medicina mais avançada. Do mesmo modo, associações nacionais e internacionais de médicos movem-se rapidamente, para prestar socorro às populações provadas por calamidades naturais, epidemias ou guerras. Apesar de estar ainda longe da sua plena consecução uma verdadeira justiça internacional na partilha dos recursos médicos, como não reconhecer, nos passos até agora dados, o sinal de crescente solidariedade entre os povos, de apreciável sensibilidade humana e moral, e de maior respeito pela vida?
27. Face a legislações que permitiram o aborto e a tentativas, aqui e além concretizadas, de legalizar a eutanásia, surgiram em todo o mundo movimentos e iniciativas de sensibilização social a favor da vida. Quando estes movimentos, de acordo com a sua inspiração autêntica, agem com determinada firmeza mas sem recorrer à violência, então eles favorecem uma tomada de consciência mais ampla e profunda do valor da vida, fazem apelo e realizam um empenho mais decisivo em sua defesa.
Como não recordar, além disso, todos aqueles gestos diários de acolhimento, de sacrifício, de cuidado desinteressado, que um número incalculável de pessoas realiza com amor nas famílias, nos hospitais, nos orfanatos, nos lares da terceira idade, e noutros centros ou comunidades em defesa da vida? A Igreja, deixando-se guiar pelo exemplo de Jesus, " bom samaritano " (cf. Lc 10, 29-37), e sustentada pela sua força, sempre esteve em primeira fila nestes confins da caridade: muitos dos seus filhos e filhas, especialmente religiosas e religiosos, em formas antigas e novas, consagraram e continuam a consagrar a sua vida a Deus, dando-a por amor do próximo mais débil e necessitado.
Estes gestos constroem em profundidade aquela " civilização do amor e da vida ", sem a qual a existência das pessoas e da sociedade perde o seu significado humano mais autêntico. Ainda que ninguém os notasse, e ficassem escondidos aos olhos dos outros, a fé assegura que o Pai, " que vê no segredo " (Mt 6, 4), saberá não só recompensá-los, mas também torná-los desde já fecundos de frutos duradouros para todos.
Entre os sinais de esperança, há que incluir ainda o crescimento, em muitos estratos da opinião pública, de uma nova sensibilidade cada vez mais contrária à guerra como instrumento de solução dos conflitos entre os povos, e sempre mais inclinada à busca de instrumentos eficazes, mas " não violentos ", para bloquear o agressor armado. No mesmo horizonte, se coloca igualmente a aversão cada vez mais difusa na opinião pública à pena de morte - mesmo vista só como instrumento de " legítima defesa " social -, tendo em consideração as possibilidades que uma sociedade moderna dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma que, enquanto torna inofensivo aquele que o cometeu, não lhe tira definitivamente a possibilidade de se redimir.
Também ocorre saudar favoravelmente a atenção crescente à qualidade de vida e à ecologia, que se regista sobretudo nas sociedades mais avançadas, nas quais os anseios das pessoas já não estão concentrados tanto sobre os problemas da sobrevivência como sobretudo na procura de um melhoramento global das condições de vida. Particularmente significativo é o despertar da reflexão ética acerca da vida: a aparição e o desenvolvimento cada vez maior da bioética favoreceu a reflexão e o diálogo - entre crentes e não crentes, como também entre crentes de diversas religiões - sobre problemas éticos, mesmo fundamentais, que dizem respeito à vida do homem.
28. Este horizonte de luzes e sombras deve tornar-nos, a todos, plenamente conscientes de que nos encontramos perante um combate gigantesco e dramático entre o mal e o bem, a morte e a vida, a " cultura da morte " e a " cultura da vida ". Encontramo-nos não só " diante ", mas necessariamente " no meio " de tal conflito: todos estamos implicados e tomamos parte nele, com a responsabilidade iniludível de decidir incondicionalmente a favor da vida.
Também para nós, ressoa claro e forte o convite de Moisés: " Vê, ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o bem; do outro, a morte e o mal. (...) Coloco diante de ti a vida e a morte, a felicidade e a maldição. Escolhe a vida, e então viverás com toda a tua posteridade " (Dt 30, 15.19). É um convite muito apropriado para nós, chamados cada dia a ter de escolher entre a " cultura da vida " e a " cultura da morte ". Mas o apelo do Deuteronómio é ainda mais profundo, porque nos chama a uma opção especificamente religiosa e moral. Trata-se de dar à própria existência uma orientação fundamental, vivendo com fidelidade e coerência a Lei do Senhor: " Recomendo-te hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis e seus decretos. (...) Escolhe a vida, e então viverás com toda a tua posteridade. Ama o Senhor, teu Deus, escuta a sua voz e permanece-Lhe fiel, porque é Ele a tua vida e a longevidade dos teus dias " (30, 16.19-20).
A decisão incondicional a favor da vida atinge em plenitude o seu significado religioso e moral, quando brota, é plasmada e alimentada pela fé em Cristo. Nada ajuda tanto a enfrentar positivamente o conflito entre a morte e a vida, no qual estamos imersos, como a fé no Filho de Deus que Se fez homem e veio habitar entre os homens, " para que tenham vida, e a tenham em abundância " (Jo 10, 10): é a fé no Ressuscitado, que venceu a morte; é a fé no sangue de Cristo " que fala melhor do que o de Abel " (Heb 12, 24).
Assim, com a luz e a força desta fé, perante os desafios da situação actual, a Igreja toma consciência mais viva da graça e da responsabilidade, que lhe vêm do seu Senhor, de anunciar, celebrar e servir o Evangelho da vida.
CAPÍTULO II - VIM PARA QUE TENHAM VIDA
A MENSAGEM CRISTÃ SOBRE A VIDA
29. Frente às inumeráveis e graves ameaças contra a vida, presentes no mundo contemporâneo, poder-se-ia ficar como que dominado por um sentido de impotência insuperável: jamais o bem poderá ter força para vencer o mal!
Este é o momento em que o Povo de Deus, e nele cada um dos crentes, é chamado a professar, com humildade e coragem, a própria fé em Jesus Cristo, " o Verbo da vida " (1 Jo 1, 1). O Evangelho da vida não é uma simples reflexão, mesmo se original e profunda, sobre a vida humana; nem é apenas um preceito destinado a sensibilizar a consciência e provocar mudanças significativas na sociedade; tampouco é a ilusória promessa de um futuro melhor. O Evangelho da vida é uma realidade concreta e pessoal, porque consiste no anúncio da própria pessoa de Jesus. Ao apóstolo Tomé, e nele a cada homem, Jesus apresenta-Se com estas palavras: " Eu sou o caminho, a verdade e a vida " (Jo 14, 6). A mesma identidade foi referida a Marta, irmã de Lázaro: " Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em Mim, não morrerá jamais " (Jo 11, 25-26). Jesus é o Filho que, desde toda a eternidade, recebe a vida do Pai (cf. Jo 5, 26) e veio estar com os homens, para os tornar participantes deste dom: " Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância " (Jo 10, 10).
Deste modo, a possibilidade de " conhecer " a verdade plena sobre o valor da vida humana é oferecida ao homem pela palavra, a acção e a própria pessoa de Jesus; e desta " fonte ", vem-lhe, de forma especial, a capacidade de " praticar " perfeitamente tal verdade (cf. Jo 3, 21), ou seja, a capacidade de assumir e realizar em plenitude a responsabilidade de amar e servir, de defender e promover a vida humana.
Em Cristo, de facto, é anunciado definitivamente e concedido plenamente aquele Evangelho da vida, que, oferecido já na Revelação do Antigo Testamento e, antes ainda, de algum modo escrito no próprio coração de cada homem e mulher, ressoa em toda a consciência " desde o princípio ", ou seja, desde a própria criação, de tal modo que, não obstante os condicionalismos negativos do pecado, pode também ser conhecido nos seus traços essenciais pela razão humana. Como escreve o Concílio Vaticano II, Cristo " com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do Espírito da verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação, a saber, que Deus está connosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna ".22
30. É, pois, com o olhar fixo no Senhor Jesus que desejamos novamente escutar d'Ele " as palavras de Deus " (Jo 3, 34) e meditar o Evangelho da vida. O sentido mais profundo e original desta meditação sobre a mensagem revelada relativa à vida humana foi recolhido pelo apóstolo João, quando escreve, no início da sua Primeira Carta: " O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida, - porque a vida manifestou-se, nós vimo-la, damos testemunho dela e vos anunciamos esta vida eterna que estava no Pai e que nos foi manifestada - o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco " (1, 1-3).
Então, a vida divina e eterna é anunciada e comunicada em Jesus, " Verbo da vida ". Graças a este anúncio e a este dom, a vida física e espiritual do homem, mesmo na sua fase terrena, adquire plenitude de valor e significado: com efeito, a vida divina e eterna é o fim, para o qual está orientado e chamado o homem que vive neste mundo. Assim, o Evangelho da vida encerra tudo aquilo que a própria experiência e a razão humana dizem acerca do valor da vida humana: acolhe-o, eleva-o e condu-lo à sua plena realização.
" O Senhor é a minha força e a minha glória, foi Ele quem me salvou " (Ex 15, 2): a vida é sempre um bem
31. Na verdade, a plenitude evangélica do anúncio sobre a vida fora preparada já no Antigo Testamento. É sobretudo nos acontecimentos do Êxodo, fulcro da experiência de fé do Antigo Testamento, que Israel descobre quão preciosa é aos olhos de Deus a sua vida. Quando já parece votado ao extermínio, dado que sobre todos os seus recém-nascidos do sexo masculino grava a ameaça de morte (cf. Ex 1, 15-22), o Senhor revela-Se-lhes como salvador, capaz de assegurar um futuro a quem vive sem esperança. Nasce, assim, em Israel uma certeza bem precisa: a sua vida não se acha à mercê de um faraó que a pode usar com despótico arbítrio; mas, ao contrário, é objecto de um terno e intenso amor da parte de Deus.
A libertação da escravidão é o dom de uma identidade, o reconhecimento de uma dignidade indelével e o início de uma história nova, na qual caminham lado a lado a descoberta de Deus e a descoberta de si próprio. A experiência do Êxodo é constitutiva e paradigmática. Lá Israel compreendeu que, todas as vezes que estiver ameaçado na sua existência, terá apenas de recorrer a Deus com renovada confiança para encontrar n'Ele eficaz assistência: " Formei-te, tu és meu servo; Israel, não te posso esquecer " (Is 44, 21).
Assim, enquanto reconhece o valor da própria existência como povo, Israel avança também na percepção do sentido e valor da vida como tal. É uma reflexão que se desenvolve particularmente nos Livros Sapienciais, partindo da experiência quotidiana da precariedade da vida e da consciência das ameaças que a tramam. Diante das contradições da existência, a fé é chamada a dar uma resposta.
É sobretudo o problema da dor, o que mais pressiona a fé e a põe à prova. Como não identificar o gemido universal do homem na meditação do Livro de Job? O inocente esmagado pelo sofrimento é compreensivelmente levado a interrogar-se: " Por que razão foi concedida a luz ao infeliz, e a vida àquele cuja alma está desconsolada, os quais esperam a morte sem que ela venha e a procuram com mais ardor que um tesouro? " (3, 20-21). Mas, mesmo na escuridão mais densa, a fé encaminha para o reconhecimento confiante e adorador do " mistério ": " Sei que podes tudo e que nada Te é impossível " (Job 42, 2).
Progressivamente a Revelação faz ver, com uma clareza cada vez maior, o germe de vida imortal posto pelo Criador no coração dos homens: " Todas as coisas que Deus fez são boas no seu tempo. Além disso, pôs no coração 1 a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro " (Ecl 3, 11). Este germe de totalidade e plenitude anseia por se manifestar no amor e realizar-se, por dom gratuito de Deus, na participação da sua vida eterna.
" Pela fé no nome de Jesus, este homem recobrou as forças " (Act 3, 16): na precariedade da existência humana, Jesus realiza plenamente o sentido da vida
32. A experiência do povo da Aliança renova-se em todos os " pobres " que encontram Jesus de Nazaré. Como Deus, " amante da vida " (Sab 11, 26), já tinha tranquilizado Israel no meio dos perigos, assim agora o Filho de Deus anuncia a quantos se sentem ameaçados e limitados na própria existência, que a sua vida é um bem, ao qual o amor do Pai dá sentido e valor.
" Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a boa nova é anunciada aos pobres " (Lc 7, 22). Com estas palavras do profeta Isaías (35, 5-6; 61, 1), Jesus apresenta o significado da sua própria missão: deste modo, aqueles que sofrem por causa de uma existência de qualquer modo " limitada " ouvem d'Ele a boa nova do interesse que Deus nutre por eles e têm a confirmação de que também a sua vida é um dom zelosamente guardado nas mãos do Pai (cf. Mt 6, 25-34).
Quem se sente particularmente interpelado pela pregação e acção de Jesus, são os " pobres ". As multidões de doentes e marginalizados, que O seguem e procuram (cf. Mt 4, 23-25), encontram na sua palavra e nos seus gestos a revelação do valor imenso da vida deles e de quão fundados sejam os seus anseios de salvação.
Acontece o mesmo na missão da Igreja, já desde as suas origens. Ao anunciar Jesus como Aquele que " andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele " (Act 10, 38), ela sabe que é portadora de uma mensagem de salvação que ressoa, com toda a sua novidade, precisamente nas situações de miséria e pobreza da vida humana. Assim faz Pedro, ao curar o paralítico que estava colocado diariamente junto da porta " Formosa " do templo de Jerusalém a pedir esmola: " Não tenho ouro nem prata, mas vou dar-te o que tenho: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda! " (Act 3, 6). Pela fé em Jesus, " Príncipe da vida " (Act 3, 15), a vida que ali jaz abandonada e suplicante, reencontra a consciência de si mesma e a sua plena dignidade.
A palavra e os gestos de Jesus e da sua Igreja não dizem respeito apenas a quem está enfermo, aflito pela provação, ou é vítima das diversas formas de marginalização social. Vão mais fundo, tocando o próprio sentido da vida de cada homem nas suas dimensões morais e espirituais. Só quem reconhece que a própria vida está tocada pelas mazelas do pecado, pode reencontrar a verdade e a autenticidade da própria existência junto de Jesus Salvador, segundo as suas próprias palavras: " Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos, mas os pecadores, que Eu vim chamar ao arrependimento " (Lc 5, 31-32).
Pelo contrário, aquele que à semelhança do rico agricultor da parábola evangélica julga poder assegurar a própria vida com a posse de simples bens materiais, na realidade engana-se. A vida está-lhe escapando, e bem depressa ficará privado dela sem ter chegado a perceber o seu verdadeiro significado: " Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma; e o que acumulaste para quem será? " (Lc 12, 20).
33. Na vida de Jesus, desde o início até ao fim, encontra-se esta " dialéctica " singular entre a experiência da contingência da vida humana e a afirmação do seu valor. De facto, a precariedade caracteriza a vida de Jesus, desde o seu nascimento. Ele depara certamente com o acolhimento dos justos, que se unem ao " sim " pronto e feliz de Maria (cf. Lc 1, 38). Mas logo aparece também a rejeição por parte de um mundo que se torna hostil e procura o Menino " para O matar " (Mt 2, 13), ou então fica indiferente e alheio ao cumprimento do mistério desta vida que entra no mundo: " não havia para eles lugar na hospedaria " (Lc 2, 7). Exactamente por este contraste - as ameaças e inseguranças, por um lado, e o poder do dom de Deus, pelo outro - resplandece com maior força a glória que irradia da casa de Nazaré e da manjedoura de Belém: esta vida que nasce é salvação para a humanidade inteira (cf. Lc 2, 10-11).
As contradições e riscos da vida são assumidos plenamente por Jesus: " sendo rico, fez-Se pobre por vós, a fim de vos enriquecer pela pobreza " (2 Cor 8, 9). Esta pobreza, de que fala Paulo, não é apenas despojamento dos privilégios divinos, mas também partilha das condições mais humildes e precárias da vida humana (cf. Fil 2, 6-7). Jesus vive esta pobreza ao longo de toda a sua vida até ao momento culminante da cruz: " Humilhou-Se a Si mesmo, feito obediente até à morte e morte de cruz. Por isso é que Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todo o nome " (Fil 2, 8-9). É precisamente na sua morte que Jesus revela toda a grandeza e valor da vida, enquanto a sua doação na cruz se torna fonte de vida nova para todos os homens (cf. Jo 12, 32). Neste peregrinar por entre as contradições e a própria perda da vida, Jesus é guiado pela certeza de que ela está nas mãos do Pai. Por isso, na cruz pode dizer-Lhe: " Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito " (Lc 23, 46), isto é, a minha vida. Verdadeiramente grande é o valor da vida humana, se o Filho de Deus a assumiu e fez dela o lugar onde se realiza a salvação para a humanidade inteira!
" Chamados (...) a ser conformes à imagem do Seu Filho " (Rm 8, 28-29): a glória de Deus resplandece no rosto do homem
34. A vida é sempre um bem. Esta é uma intuição ou até um dado de experiência, cuja razão profunda o homem é chamado a compreender.
Por que motivo a vida é um bem? Esta pergunta percorre a Bíblia inteira, encontrando já nas primeiras páginas uma resposta eficaz e admirável. A vida que Deus dá ao homem é diversa e original, se comparada com a de qualquer outra criatura viva, dado que ele, apesar de emparentado com o pó da terra (cf. Gn 2, 7; 3, 19; Job 34, 15; Sal 103102, 14; 104103, 29), é, no mundo, manifestação de Deus, sinal da sua presença, vestígio da sua glória (cf. Gn 1, 26-27; Sal 8, 6). Isto mesmo quis sublinhar Santo Ireneu de Lião, com a célebre definição: " A glória de Deus é o homem vivo ".23 Ao homem foi dada uma dignidade sublime, que tem as suas raízes na ligação íntima que o une ao seu Criador: no homem, brilha um reflexo da própria realidade de Deus.
Afirma-o o Livro do Génesis, na primeira narração das origens, ao colocar o homem no vértice da actividade criadora de Deus, como seu coroamento, no termo de um processo que vai do caos indefinido até à criatura mais perfeita. Na criação, tudo está ordenado para o homem e tudo lhe fica submetido: " Enchei e dominai a terra. Dominai (...) sobre todos os animais que se movem na terra " (1, 28) - ordena Deus ao homem e à mulher. Mensagem semelhante aparece também no outro relato das origens: " O Senhor levou o homem e colocou-o no jardim do Éden para o cultivar e, também, para o guardar " (Gn 2, 15). Confirma- -se assim o primado do homem sobre as coisas: estas estão ordenadas ao homem e entregues à sua responsabilidade, enquanto por nenhuma razão pode o homem ser subjugado pelos seus semelhantes e como que reduzido ao estatuto de coisa.
Na narração bíblica, a distinção entre o homem e as demais criaturas é evidenciada sobretudo pelo facto de apenas a sua criação ser apresentada como fruto de uma especial decisão da parte de Deus, de uma deliberação que consiste em estabelecer uma ligação particular e específica com o Criador: " Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança " (Gn 1, 26). A vida que Deus oferece ao homem, é um dom, pelo qual Deus participa algo de Si mesmo à sua criatura.
Israel interrogar-se-á longamente acerca do sentido desta ligação particular e específica do homem com Deus. O Livro de Ben-Sirá reconhece que Deus, ao criar os homens, " revestiu-os da força conveniente e fê-los à própria imagem " (17, 3). E a isso subordina o autor sagrado, não só o domínio sobre o mundo, mas também as faculdades espirituais mais específicas do homem, como a razão, o discernimento do bem e do mal, a vontade livre: " Encheu-os de saber e inteligência, e mostrou-lhes o bem e o mal " (Sir 17, 7). A capacidade de alcançar a verdade e a liberdade são prerrogativas do homem enquanto criatura feita à imagem do seu Criador, o Deus verdadeiro e justo (cf. Dt 32, 4). Dentre todas as criaturas visíveis, apenas o homem é " capaz de conhecer e amar o seu Criador ".24 A vida que Deus dá ao homem, é muito mais do que uma existência no tempo. É tensão para uma plenitude de vida; é germe de uma existência que ultrapassa os próprios limites do tempo: " Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e fê-lo à imagem da sua própria natureza " (Sab 2, 23).
35. Também o relato jahvista das origens exprime a mesma convicção. Esta antiga narração fala de um sopro divino que éinsuflado no homem, para que este dê entrada na vida: " O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo " (Gn 2, 7).
A origem divina deste espírito de vida explica a perene insatisfação que acompanha o homem, ao longo dos seus dias. Obra plasmada pelo Senhor e trazendo em si mesmo um traço indelével de Deus, o homem tende naturalmente para Ele. Quando escuta o anseio profundo do coração, não pode deixar de fazer sua esta afirmação de Santo Agostinho: " Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós ".25
Como é eloquente aquela insatisfação que se apodera da vida do homem no Éden, quando lhe resta como única referência o mundo vegetal e animal (cf. Gn 2, 20)! Somente a aparição da mulher, isto é, de um ser que é carne da sua carne e osso dos seus ossos (cf. Gn 2, 23) e no qual vive igualmente o espírito de Deus Criador, pode satisfazer a exigência de diálogo interpessoal, tão vital para a existência humana. No outro, homem ou mulher, reflecte-Se o próprio Deus, abrigo definitivo e plenamente feliz de toda a pessoa.
" Que é o homem para Vos lembrardes dele, o filho do homem para dele cuidardes? " - interroga-se o Salmista (Sal 8, 5). Diante da imensidão do universo, coisa bem pequena é o homem; mas é precisamente este contraste que faz sobressair a sua grandeza: " Pouco lhe falta para que seja um ser divino; de glória e de honra o coroastes " (Sal 8, 6). A glória de Deus resplandece no rosto do homem. Nele, o Criador encontra o seu repouso, como comenta, maravilhado e comovido, Santo Ambrósio: " Terminou o sexto dia, ficando concluída a criação do mundo com a formação daquela obra-prima, o homem, que exerce o domínio sobre todos os seres vivos e é como que o ápice do universo e a suprema beleza de todo o ser criado. Verdadeiramente deveremos manter um silêncio reverente, já que o Senhor Se repousou de toda a obra do mundo. Repousou-Se no íntimo do homem, repousou-Se na sua mente e no seu pensamento; de facto, tinha criado o homem dotado de razão, capaz de O imitar, émulo das suas virtudes, desejoso das graças celestes. Nestes seus dotes, repousa Deus que disse: "Sobre quem repousarei senão naquele que é humilde, pacífico e teme as minhas palavras?" (Is 66, 1-2). Agradeço ao Senhor nosso Deus que criou uma obra tão maravilhosa que nela encontra o seu repouso ".26
36. Infelizmente, este projecto maravilhoso de Deus ficou ofuscado pela irrupção do pecado na história. Com o pecado, o homem revolta-se contra o Criador, acabando por idolatrar as criaturas: " Veneraram a criatura e prestaram-lhe culto de preferência ao Criador " (Rm 1, 25). Deste modo, o ser humano não só deturpa a imagem de Deus em si mesmo, mas é tentado a ofendê-la também nos outros, substituindo as relações de comunhão por atitudes de desconfiança, indiferença, inimizade, até chegar ao ódio homicida. Quando não se reconhece Deus como tal, atraiçoa-se o sentido profundo do homem e prejudica-se a comunhão entre os homens.
Na vida do homem, a imagem de Deus volta a resplandecer e manifesta-se em toda a sua plenitude com a vinda do Filho de Deus em carne humana: " Ele é a imagem do Deus invisível " (Col 1, 15), " o resplendor da sua glória e a imagem da sua substância " (Heb 1, 3). Ele é a imagem perfeita do Pai.
O projecto de vida confiado ao primeiro Adão encontra finalmente em Cristo a sua realização. Enquanto a desobediência de Adão arruína e deturpa o desígnio de Deus sobre a vida do homem e introduz a morte no mundo, a obediência redentora de Cristo é fonte de graça que se derrama sobre os homens, abrindo a todos, de par em par, as portas do reino da vida (cf. Rm 5, 12-21). Afirma o apóstolo Paulo: " O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão é um espírito vivificante " (1 Cor 15, 45).
A todos aqueles que aceitam seguir Cristo, é-lhes dada a plenitude da vida: neles, a imagem divina é restaurada, renovada e levada à perfeição. Este é o desígnio de Deus para os seres humanos: tornarem-se " conformes à imagem do seu Filho " (Rm 8, 29). Só assim, no esplendor desta imagem, é que o homem pode ser liberto da escravidão da idolatria, pode reconstruir a fraternidade perdida e reencontrar a sua identidade.
" Quem crê em Mim, ainda que esteja morto viverá " (Jo 11, 26): o dom da vida eterna
37. A vida que o Filho de Deus veio dar aos homens, não se reduz meramente à existência no tempo. A vida, que desde sempre está " n'Ele " e constitui " a luz dos homens " (Jo 1, 4), consiste em ser gerados por Deus e participar na plenitude do seu amor: " A todos os que O receberam, aos que crêem n'Ele, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus; eles que não nasceram do sangue, nem de vontade carnal, nem de vontade do homem, mas sim de Deus " (Jo 1, 12-13).
Umas vezes, Jesus designa esta vida, que Ele veio dar, simplesmente como " a vida "; e apresenta o ser gerado por Deus como condição necessária para poder alcançar o fim para o qual o homem foi criado: " Quem não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus " (Jo 3, 3). O dom desta vida constitui o objecto próprio da missão de Jesus; Ele " é Aquele que desce do Céu e dá a vida ao mundo " (Jo 6, 33), de tal modo que pode afirmar com toda a verdade: " Quem Me segue (...) terá a luz da vida " (Jo 8, 12).
Outras vezes, Jesus fala de " vida eterna ", sem querer com o adjectivo aludir apenas a uma perspectiva supratemporal. " Eterna " é a vida que Jesus promete e dá, porque é plenitude de participação na vida do " Eterno ". Todo aquele que crê em Jesus e vive em comunhão com Ele tem a vida eterna (cf. Jo 3, 15; 6, 40), porque d'Ele escuta as únicas palavras que revelam e infundem plenitude de vida à sua existência; são as " palavras de vida eterna ", que Pedro reconhece na sua confissão de fé: " Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna; e nós acreditamos e sabemos que és o Santo de Deus " (Jo 6, 68-69). O que seja essa vida eterna, declara-o Jesus quando se dirigiu ao Pai na grande oração sacerdotal: " A vida eterna consiste nisto: que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste " (Jo 17, 3). Conhecer a Deus e ao seu Filho é acolher o mistério da comunhão de amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo, na própria vida que se abre, já desde agora, à vida eterna pela participação na vida divina.
38. Por conseguinte, a vida eterna é a própria vida de Deus e simultaneamente a vida dos filhos de Deus. Um assombro incessante e uma gratidão sem limites não podem deixar de se apoderar do crente diante desta inesperada e inefável verdade que nos vem de Deus em Cristo. O crente faz suas as palavras do apóstolo João: " Vede com que amor nos amou o Pai, ao querer que fôssemos chamados filhos de Deus. E somo-lo de facto! (...) Caríssimos, agora somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que havemos de ser. Sabemos, porém, que, quando Ele Se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é " (1 Jo 3, 1-2).
Assim, chega ao seu auge a verdade cristã acerca da vida. A dignidade desta não está ligada apenas às suas origens, à sua proveniência de Deus, mas também ao seu fim, ao seu destino de comunhão com Deus no conhecimento e no amor d'Ele. É à luz desta verdade que Santo Ireneu especifica e completa a sua exaltação do homem: " glória de Deus " é, sim, " o homem vivo ", mas " a vida do homem consiste na visão de Deus ".27
Daqui resultam consequências imediatas para a vida humana em sua própria condição terrena, na qual já germinou e está a crescer a vida eterna. Se o homem ama instintivamente a vida porque é um bem, tal amor encontra ulterior motivação e força, nova amplitude e profundidade nas dimensões divinas desse bem. Em semelhante perspectiva, o amor que cada ser humano tem pela vida não se reduz à simples busca de um espaço onde poder exprimir-se a si mesmo e entrar em relação com os outros, mas evolui até à certeza feliz de poder fazer da própria existência o " lugar " da manifestação de Deus, do encontro e comunhão com Ele. A vida que Jesus nos dá, não desvaloriza a nossa existência no tempo, mas assume-a e condu-la ao seu último destino: " Eu sou a ressurreição e a vida; (...) todo aquele que vive e crê em Mim não morrerá jamais " (Jo 11, 25.26).
" A cada um, pedirei contas do seu irmão " (cf. Gn 9, 5): veneração e amor pela vida dos outros
39. A vida do homem provém de Deus, é dom seu, é imagem e figura d'Ele, participação do seu sopro vital. Desta vida, portanto, Deus é o único senhor: o homem não pode dispor dela. Deus mesmo o confirma a Noé, depois do dilúvio: " Ao homem, pedirei contas da vida do homem, seu irmão " (Gn 9, 5). E o texto bíblico preocupa-se em sublinhar como a sacralidade da vida tem o seu fundamento em Deus e na sua acção criadora: " Porque Deus fez o homem à sua imagem " (Gn 9, 6).
Portanto, a vida e a morte do homem estão nas mãos de Deus, em seu poder: " Deus tem nas suas mãos a alma de todo o ser vivente, e o sopro de vida de todos os homens " - exclama Job (12, 10). " O Senhor é que dá a morte e a vida, leva à habitação dos mortos e retira de lá " (1 Sam 2, 6). Apenas Ele pode afirmar: " Só Eu é que dou a vida e dou a morte " (Dt 32, 39).
Mas Deus não exerce esse poder como arbítrio ameaçador, mas, sim, como cuidado e solicitude amorosa pelas suas criaturas. Se é verdade que a vida do homem está nas mãos de Deus, não o é menos que estas são mãos amorosas como as de uma mãe que acolhe, nutre e toma conta do seu filho: " Fico sossegado e tranquilo como criança deitada nos braços de sua mãe, como um menino deitado é a minha alma " (Sal 131130, 2; cf. Is 49, 15; 66, 12-13; Os 11, 4). Assim nas vicissitudes dos povos e na sorte dos indivíduos, Israel não vê o fruto de pura casualidade ou de um destino cego, mas o resultado de um desígnio de amor, pelo qual Deus resguarda todas as potencialidades da vida e se contrapõe às forças de morte que nascem do pecado: " Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência " (Sab 1, 13-14).
40. Da sacralidade da vida dimana a sua inviolabilidade, inscrita desde as origens no coração do homem, na sua consciência. A pergunta " que fizeste? " (Gn 4, 10), dirigida por Deus a Caim depois de ter assassinado o irmão Abel, traduz a experiência de cada homem: no fundo da sua consciência, ele sente incessantemente o apelo à inviolabilidade da vida - a própria e a alheia -, como realidade que não lhe pertence, pois é propriedade e dom de Deus Criador e Pai.
O preceito relativo à inviolabilidade da vida humana ocupa o centro dos " dez mandamentos " na aliança do Sinai (cf. Ex 34, 28). Nele se proíbe, antes de mais, o homicídio: " Não matarás " (Ex 20, 13), " não causarás a morte do inocente e do justo " (Ex 23, 7); mas proíbe também - como se explicita na legislação posterior de Israel - qualquer lesão infligida a outrem (cf. Ex 21, 12-27). Tem-se de reconhecer que esta sensibilidade pelo valor da vida no Antigo Testamento, apesar de já tão notável, não alcança ainda a perfeição do Sermão da Montanha, como resulta de alguns aspectos da legislação penal então vigente, que previa castigos corporais pesados e até mesmo a pena de morte. Mas globalmente esta mensagem, que o Novo Testamento levará à perfeição, é já um forte apelo ao respeito pela inviolabilidade da vida física e da integridade pessoal, e tem o seu ápice no mandamento positivo que obriga a cuidar do próximo como de si mesmo: " Amarás o teu próximo como a ti mesmo " (Lv 19, 18).
41. O mandamento " não matarás ", contido e aprofundado no mandamento positivo do amor do próximo, é confirmado em toda a sua validade pelo Senhor Jesus. Ao jovem rico que Lhe pede " Mestre, que hei-de fazer de bom para alcançar a vida eterna? ", responde: " Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos " (Mt 19, 16.17). E, logo em primeiro lugar, cita " não matarás " (19, 18). No Sermão da Montanha, Jesus exige dos discípulos uma justiça superior à dos escribas e fariseus, no campo do respeito pela vida: " Ouvistes que foi dito aos antigos: "Não matarás; aquele que matar está sujeito a ser condenado". Eu, porém, digo-vos: quem se irritar contra o seu irmão será réu perante o tribunal " (Mt 5, 21-22).
Com a sua palavra e os seus gestos, Jesus explicita ulteriormente as exigências positivas do mandamento referente à inviolabilidade da vida. Estavam já presentes no Antigo Testamento, onde a legislação se preocupava em garantir e salvaguardar as situações de vida débil e ameaçada: o estrangeiro, a viúva, o órfão, o enfermo, o pobre em geral, a própria vida antes de nascer (cf. Ex 21, 22; 22, 20-26). Mas com Jesus, essas exigências positivas adquirem novo vigor e ímpeto, manifestando-se em toda a sua amplitude e profundidade: vão desde o velar pela vida do irmão (familiar, membro do mesmo povo, estrangeiro que habita na terra de Israel), passam pelo cuidar do desconhecido, para chegarem até ao amor do inimigo.
O desconhecido deixa de ser tal para quem deve fazer-se próximo de todo aquele que se encontra necessitado, até assumir a responsabilidade da sua vida, como ensina, de modo eloquente e incisivo, a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37). Também o inimigo cessa de o ser para quem é obrigado a amá-lo (cf. Mt 5, 38-48; Lc 6, 27-35) e " fazer-lhe bem " (cf. Lc 6, 27.33.35), levando remédio às carências da sua vida, com prontidão e sem esperar recompensa (cf. Lc 6, 34-35). No vértice deste amor, está a oração pelo inimigo, pela qual nos colocamos em sintonia com o amor providente de Deus: " Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está nos Céus; pois Ele faz que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores " (Mt 5, 44-45; cf. Lc 6, 28.35).
Assim, o mandamento de Deus, orientado para a defesa da vida do homem, tem a sua dimensão mais profunda na exigência de veneração e amor por toda a pessoa e sua vida. Este é o ensinamento que o apóstolo Paulo, dando eco às palavras de Jesus (cf. Mt 19, 17-18), dirige aos cristãos de Roma: " Com efeito: "Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás" e qualquer dos outros mandamentos resumem-se nestas palavras: "Amarás ao próximo como a ti mesmo". A caridade não faz mal ao próximo. A caridade é, pois, o pleno cumprimento da lei " (Rm 13, 9-10).
" Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra " (Gn 1, 28): as responsabilidades do homem pela vida
42. Defender e promover, venerar e amar a vida é tarefa que Deus confia a cada homem, ao chamá-lo enquanto sua imagem viva a participar no domínio que Ele tem sobre o mundo: " Abençoando-os, Deus disse: "Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra" " (Gn 1, 28).
O texto bíblico manifesta claramente a amplitude e profundidade do domínio que Deus concede ao homem. Trata-se, antes de mais, de domínio sobre a terra e sobre todo o ser vivo, como recorda o Livro da Sabedoria: " Deus dos nossos pais e Senhor de misericórdia, (...) formastes o homem pela vossa sabedoria, para dominar sobre as criaturas a quem destes a vida, para governar o mundo com santidade e justiça " (9, 1.2-3). Também o Salmista exalta o domínio do homem como sinal da glória e honra recebidas do Criador: " Destes-lhe domínio sobre as obras das vossas mãos. Tudo submetestes debaixo dos seus pés; os rebanhos e os gados sem excepção, até mesmo os animais selvagens; as aves do céu e os peixes do mar, tudo o que se move nos oceanos " (Sal 8, 7-9).
Chamado a cultivar e guardar o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15), o homem detém uma responsabilidade específica sobre o ambiente de vida, ou seja, sobre a criação que Deus pôs ao serviço da sua dignidade pessoal, da sua vida: e isto não só em relação ao presente, mas também às gerações futuras. É a questão ecológica - desde a preservação do " habitat " natural das diversas espécies animais e das várias formas de vida, até à " ecologia humana " propriamente dita 28 - que, no texto bíblico, encontra luminosa e forte indicação ética para uma solução respeitosa do grande bem da vida, de toda a vida. Na realidade, " o domínio conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de "usar e abusar", ou de dispor das coisas como melhor agrade. A limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e expressa simbolicamente com a proibição de "comer o fruto da árvore" (cf. Gn 2, 16-17), mostra com suficiente clareza que, nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem impunemente ser transgredidas ".29
43. Uma certa participação do homem no domínio de Deus manifesta-se também na específica responsabilidade que lhe está confiada no referente à vida propriamente humana. Essa responsabilidade atinge o auge na doação da vida, através da geração por obra do homem e da mulher no matrimónio, como nos recorda o Concílio Vaticano II: " O mesmo Deus que disse "não é bom que o homem esteja só" (Gn 2, 18) e que "desde a origem fez o ser humano varão e mulher" (Mt 19, 4), querendo comunicar uma participação especial na sua obra criadora, abençoou o homem e a mulher dizendo: "crescei e multiplicai-vos" (Gn 1, 28) ".30
Ao falar de " uma participação especial " do homem e da mulher na " obra criadora " de Deus, o Concílio pretende pôr em relevo como a geração do filho é um facto não só profundamente humano mas também altamente religioso, enquanto implica os cônjuges, que formam " uma só carne " (Gn 2, 24), e simultaneamente o próprio Deus que Se faz presente. Como escrevi na Carta às Famílias, " quando da união conjugal dos dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa. Ao afirmarmos que os cônjuges, enquanto pais, são colaboradores de Deus Criador na concepção e geração de um novo ser humano, não nos referimos apenas às leis da biologia; pretendemos sobretudo sublinhar que, na paternidade e maternidade humana, o próprio Deus está presente de um modo diverso do que se verifica em qualquer outra geração "sobre a terra". Efectivamente, só de Deus pode provir aquela "imagem e semelhança" que é própria do ser humano, tal como aconteceu na criação. A geração é a continuação da criação ".31
Isto mesmo ensina, com linguagem clara e eloquente, o texto sagrado ao mencionar o grito jubiloso da primeira mulher, a " mãe de todos os viventes " (Gn 3, 20); consciente da intervenção de Deus, Eva exclama: " Gerei um homem com o auxílio do Senhor " (Gn 4, 1). Assim, na geração, através da comunicação da vida dos pais ao filho transmite-se, graças à criação da alma imortal,32 a imagem e semelhança do próprio Deus. Neste sentido, se exprime o início do " livro da genealogia de Adão ": " Quando Deus criou o homem, fê-lo à semelhança de Deus. Criou-os varão e mulher, e abençoou-os. Deu-lhes o nome de Homem no dia em que os criou. Com cento e trinta anos, Adão gerou um filho à sua imagem e semelhança, e pôs-lhe o nome de Set " (Gn 5, 1-3). Precisamente neste papel de colaboradores de Deus, que transmite a sua imagem à nova criatura, está a grandeza dos cônjuges, dispostos " a colaborar com o amor do Criador e Salvador, que por meio deles aumenta cada dia mais e enriquece a sua família ".33 À luz disto, o bispo Anfilóquio exaltava o " matrimónio santo, eleito e elevado acima de todos os dons terrenos ", porque " gerador da humanidade, artífice de imagens de Deus ".34
Assim o homem e a mulher, unidos pelo matrimónio, estão associados a uma obra divina: por meio do acto da geração, o dom de Deus é acolhido, e uma nova vida se abre ao futuro.
Mas, uma vez realçada a missão específica dos pais, há que acrescentar: a obrigação de acolher e servir a vida compete a todos e deve manifestar-se sobretudo a favor da vida em condições de maior fragilidade. É o próprio Cristo quem no-lo recorda, ao pedir para ser amado e servido nos irmãos provados por qualquer tipo de sofrimento: famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes, encarcerados... Aquilo que for feito a cada um deles, é feito ao próprio Cristo (cf. Mt 25, 31-46).
" Vós é que plasmastes o meu interior " (Sal 139138, 13): a dignidade da criança ainda não nascida
44. A vida humana atravessa situações de grande fragilidade, quer ao entrar no mundo, quer quando sai do tempo para ir ancorar-se na eternidade. Na Palavra de Deus, encontramos numerosos apelos ao cuidado e respeito pela vida, sobretudo quando esta aparece ameaçada pela doença e pela velhice. Se faltam apelos directos e explícitos para salvaguardar a vida humana nas suas origens, especialmente a vida ainda não nascida, ou então a vida próxima do seu termo, isso explica-se facilmente pelo facto de que a mera possibilidade de ofender, agredir ou mesmo negar a vida em tais condições estava fora do horizonte religioso e cultural do Povo de Deus.
No Antigo Testamento, a esterilidade era temida como uma maldição, enquanto se considerava uma bênção a prole numerosa: " Os filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um mimo do Senhor " (Sal 127126, 3; cf. Sal 128127, 3-4). Para esta convicção, concorre certamente a consciência que Israel tem de ser o povo da Aliança, chamado a multiplicar-se segundo a promessa feita a Abraão: " Ergue os olhos para os céus e conta as estrelas, se fores capaz de as contar (...) será assim a tua descendência " (Gn 15, 5). Mas influi sobretudo a certeza de que a vida transmitida pelos pais tem a sua origem em Deus, como o atestam tantas páginas bíblicas que, com respeito e amor, falam da concepção, da moldagem da vida no ventre materno, do nascimento e da ligação íntima entre o momento inicial da existência e a acção de Deus Criador.
" Antes que fosses formado no ventre de tua mãe, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei " (Jr 1, 5): a existência de cada indivíduo, desde as suas origens, obedece ao desígnio de Deus. Job, na profundidade da sua dor, detém-se a contemplar a obra de Deus na miraculosa formação do seu corpo no ventre da mãe, retirando daí motivo de confiança e exprimindo a certeza da existência de um projecto divino para a sua vida: " As tuas mãos formaram-me e fizeram-me e, de repente, vais aniquilar-me? Lembra-Te que me formaste com o barro; far-me-ás, agora, voltar ao pó? Não me espremeste como o leite e coalhaste como o queijo? De pele e de carne me revestiste, de ossos e de nervos me consolidaste. Deste-me a vida e favoreceste-me; a tua providência conservou o meu espírito " (10, 8-12). Modulações cheias de enlevo adorador pela intervenção de Deus na vida em formação no ventre materno ressoam também nos Salmos.35
Como pensar que este maravilhoso processo de germinação da vida possa subtrair-se, por um só momento, à obra sapiente e amorosa do Criador para ficar abandonado ao arbítrio do homem? Não o pensa, seguramente, a mãe dos sete irmãos que professa a sua fé em Deus, princípio e garantia da vida desde a concepção e ao mesmo tempo fundamento da esperança da nova vida para além da morte: " Não sei como aparecestes nas minhas entranhas, porque não fui eu quem vos deu a alma nem a vida e nem fui eu quem ajuntou os vossos membros. Mas o Criador do mundo, autor do nascimento do homem e criador de todas as coisas, restituir-vos-á, na sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora fizerdes pouco caso de vós mesmos por amor das suas leis " (2 Mac 7, 22-23).
45. A revelação do Novo Testamento confirma o reconhecimento indiscutível do valor da vida desde os seus inícios. A exaltação da fecundidade e o trepidante anseio da vida ressoam nas palavras com que Isabel rejubila pela sua gravidez: ao Senhor " aprouve retirar a minha ignomínia " (Lc 1, 25). Mas o valor da pessoa, desde a sua concepção, é celebrado ainda melhor no encontro da Virgem Maria e Isabel e entre as duas crianças, que trazem no seio. São precisamente eles, os meninos, a revelarem a chegada da era messiânica: no seu encontro, começa a agir a força redentora da presença do Filho de Deus no meio dos homens. " Depressa se manifestam - escreve Santo Ambrósio - os benefícios da chegada de Maria e da presença do Senhor. (...) Isabel foi a primeira a escutar a voz, mas João foi o primeiro a pressentir a graça. Aquela escutou segundo a ordem da natureza; este exultou em virtude do mistério. Ela apreendeu a chegada de Maria; este, a do Senhor. A mulher ouviu a voz da mulher; o menino sentiu a presença do Filho. Aquelas proclamam a graça de Deus, estes realizam-na interiormente, iniciando no seio de suas mães o mistério de piedade; e, por um duplo milagre, as mães profetizam sob a inspiração de seus filhos. O filho exultou de alegria; a mãe ficou cheia do Espírito Santo. A mãe não se antecipou ao filho; foi este que, uma vez cheio do Espírito Santo, o comunicou a sua mãe ".36
" Confiei mesmo quando disse: "Sou um homem de todo infeliz" " (Sal 116115, 10): a vida na velhice e no sofrimento
46. Também no que se refere aos últimos dias da existência, seria anacrónico esperar da revelação bíblica uma referência expressa à problemática actual do respeito pelas pessoas idosas e doentes, ou uma explícita condenação das tentativas de lhes antecipar violentamente o fim: encontramo-nos, de facto, perante um contexto cultural e religioso que não está pervertido por tais tentações, mas antes reconhece na sabedoria e experiência do ancião uma riqueza insubstituível para a família e a sociedade.
A velhice goza de prestígio e é circundada de veneração (cf. 2 Mac 6, 23). O justo não pede para ser privado da velhice nem do seu peso; antes pelo contrário: " Vós sois a minha esperança, a minha confiança, Senhor, desde a minha juventude. (...) Agora, na velhice e na decrepitude, não me abandoneis, ó Deus; para que narre às gerações a força do vosso braço, o vosso poder a todos os que hão-de vir " (Sal 7170, 5.18). O ideal do tempo messiânico é apresentado como aquele em que " não mais haverá (...) um velho que não complete os seus dias " (Is 65, 20).
Mas, como enfrentar o declínio inevitável da vida, na velhice?Como comportar-se frente à morte? O crente sabe que a sua vida está nas mãos de Deus: " Senhor, nas tuas mãos está a minha vida " (cf. Sal 1615, 5); e d'Ele aceite também a morte: " Este é o juízo do Senhor sobre toda a humanidade; e porque quererias reprovar a lei do Altíssimo? " (Sir 41, 4). O homem não é senhor nem da vida nem da morte; tanto numa como noutra, deve abandonar-se totalmente à " vontade do Altíssimo ", ao seu desígnio de amor.
Também no momento da doença, o homem é chamado a viver a mesma entrega ao Senhor e a renovar a sua confiança fundamental n'Aquele que " sara todas as enfermidades " (cf. Sal 103102, 3). Quando toda e qualquer esperança de saúde parece fechar-se para o homem - a ponto de o levar a gritar: " Os meus dias são como a sombra que declina, e vou-me secando como o feno " (Sal 102101, 12) - , mesmo então o crente está animado pela fé inabalável no poder vivificador de Deus. A doença não o leva ao desespero nem ao desejo da morte, mas a uma invocação cheia de esperança: " Confiei mesmo quando disse: "Sou um homem de todo infeliz" " (Sal 116115, 10); " Senhor, meu Deus, a vós clamei e fui curado. Senhor, livrastes a minha alma da mansão dos mortos; destes-me a vida quando já descia ao túmulo " (Sal 3029, 3-4).
47. A missão de Jesus, com as numerosas curas realizadas, indica quanto Deus tem a peito também a vida corporal do homem. " Médico do corpo e do espírito ",37 Jesus foi mandado pelo Pai para anunciar a boa nova aos pobres e para curar os de coração despedaçado (cf. Lc 4, 18; Is 61, 1). Depois, ao enviar os seus discípulos pelo mundo, confia-lhes uma missão na qual a cura dos doentes acompanha o anúncio do Evangelho: " Pelo caminho, proclamai que o reino dos Céus está perto. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demónios " (Mt 10, 7-8; cf. Mc 6, 13; 16, 18).
Certamente, a vida do corpo na sua condição terrena não é um absoluto para o crente, de tal modo que lhe pode ser pedido para a abandonar por um bem superior; como diz Jesus, " quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por Mim e pelo Evangelho, salvá-la-á " (Mc 8, 35). A este propósito, o Novo Testamento oferece diversos testemunhos. Jesus não hesita em sacrificar-Se a Si próprio e, livremente, faz da sua vida uma oferta ao Pai (cf. Jo 10, 17) e aos seus (cf. Jo 10, 15). Também a morte de João Baptista, precursor do Salvador, atesta que a existência terrena não é o bem absoluto: é mais importante a fidelidade à palavra do Senhor, ainda que esta possa pôr em jogo a vida (cf. Mc 6, 17-29). E Estêvão, ao ser privado da vida temporal porque testemunha fiel da ressurreição do Senhor, segue os passos do Mestre e vai ao encontro dos seus lapidadores com as palavras do perdão (cf. Act 7, 59-60), abrindo a estrada do exército inumerável dos mártires, venerados pela Igreja desde o princípio.
Todavia, ninguém pode escolher arbitrariamente viver ou morrer; efectivamente, senhor absoluto de tal decisão é apenas o Criador, Aquele em quem " vivemos, nos movemos e existimos " (Act 17, 28).
" Todos os que a seguirem alcançarão a vida " (Bar 4, 1): da Lei do Sinai ao dom do Espírito
48. A vida traz indelevelmente inscrita nela uma verdade sua. O homem, ao acolher o dom de Deus, deve comprometer-se a manter a vida nesta verdade, que lhe é essencial. Desviar-se dela, equivale a condenar-se a si próprio à insignificância e à infelicidade, com a consequência de poder tornar-se também uma ameaça para a existência dos outros, já que foram rompidos os diques que garantiam o respeito e a defesa da vida, em qualquer situação.
A verdade da vida é revelada pelo mandamento de Deus. A palavra do Senhor indica concretamente a direcção que a vida deve seguir, para poder respeitar a própria verdade e salvaguardar a sua dignidade. Não é apenas o mandamento específico - " não matarás " (Ex 20, 13; Dt 5, 17) - a garantir a protecção da vida; mas a Lei do Senhor em toda a sua extensão está ao serviço dessa protecção, porque revela aquela verdade na qual a vida encontra o seu pleno significado.
Não admira, pois, que a Aliança de Deus com o seu povo esteja tão intensamente ligada à perspectiva da vida, mesmo na sua dimensão corpórea. Naquela, o mandamento é dado como caminho da vida: " Vê, ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o bem; de outro, a morte e o mal. Recomendo-te hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis e seus decretos. Se assim fizeres, viverás, engrandecer-te-ás e serás abençoado pelo Senhor, teu Deus, na terra em que vais entrar para a possuir " (Dt 30, 15-16). Não está em questão apenas a terra de Canaã e a existência do povo de Israel, mas também o mundo de hoje e do futuro e a existência de toda a humanidade. De facto, não é possível, absolutamente, a vida permanecer autêntica e plena, quando se afasta do bem; e o bem, por sua vez, está essencialmente ligado aos mandamentos do Senhor, isto é, à " lei da vida " (Sir 17, 11). O bem que se tem de realizar, não é imposto à vida como um fardo que pesa sobre ela, porque a própria razão da vida é precisamente o bem, e a vida é construída apenas mediante o cumprimento do bem.
Portanto, é a Lei no seu todo que salvaguarda plenamente a vida do homem. Isto explica como é difícil manter-se fiel ao preceito " não matarás ", quando não são observadas as demais " palavras de vida " (Act 7, 38), às quais ele está ligado. Fora deste horizonte, o mandamento acaba por se tornar uma mera obrigação extrínseca, da qual bem depressa desejar-se-ão ver os limites e procurar-se-ão as atenuantes ou as excepções. Só se nos abrirmos à plenitude da verdade acerca de Deus, do homem e da história, é que o preceito " não matarás " voltará a resplandecer como o melhor para o homem em todas as suas dimensões e relações. Nesta perspectiva, podemos atingir a plenitude da verdade contida na passagem do Livro do Deuteronómio, retomada por Jesus na resposta à primeira tentação: " O homem não vive somente de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor " (8, 3; cf. Mt 4, 4).
É escutando a palavra do Senhor que o homem pode viver com dignidade e justiça; é observando a lei de Deus que o homem pode produzir frutos de vida e de felicidade: " Todos os que a seguirem alcançarão a vida, e os que a abandonarem cairão na morte " (Bar 4, 1).
49. A história de Israel mostra como é difícil permanecer fiel à lei da vida, que Deus inscreveu no coração dos homens e entregou no Sinai ao povo da Aliança. Contra a busca de projectos de vida alternativos ao plano de Deus, levantam-se de modo particular os Profetas, recordando insistentemente que só o Senhor é a autêntica fonte da vida. Assim escreve Jeremias: " O meu povo cometeu um duplo crime: abandonou-Me a Mim, fonte de águas vivas, para cavar cisternas, cisternas rotas, que não podem reter as águas " (2, 13). Os Profetas apontam o dedo acusador contra aqueles que desprezam a vida e violam os direitos das pessoas: " Esmagam como o pó da terra a cabeça do pobre " (Am 2, 7); " mancharam este lugar com o sangue de inocentes " (Jr 19, 4). E a estes, vem juntar-se o profeta Ezequiel que mais de uma vez verbera a cidade de Jerusalém, designando-a como " a cidade sanguinária " (22, 2; 24, 6.9), a " cidade que derramou o sangue no seu seio " (22, 3).
Mas, ao mesmo tempo que denunciam as ofensas contra a vida, os Profetas preocupam-se sobretudo por suscitar a esperança de um novo princípio de vida, capaz de fundar um renovado relacionamento com Deus e com os irmãos, entreabrindo possibilidades inéditas e extraordinárias para compreender e actuar todas as exigências contidas no Evangelho da vida. Isso será possível unicamente mediante um dom de Deus, que purifique e renove: " Derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados; Eu vos purificarei de todas as manchas e de todos os pecados. Dar-vos-ei um coração novo e infundirei em vós um espírito novo " (Ez 36, 25-26; cf. Jr 31, 31-34). Graças a este " coração novo ", pode-se compreender e realizar o sentido mais verdadeiro e profundo da vida: ser um dom que se consuma no dar-se. É a mensagem luminosa sobre o valor da vida que nos vem da figura do Servo do Senhor: " Oferecendo a sua vida em sacrifício expiatório, terá uma posteridade duradoura e viverá longos dias. (...) Livrada a sua alma dos tormentos, verá a luz " (Is 53, 10.11).
Na existência de Jesus de Nazaré, a Lei teve pleno cumprimento, ao ser dado o coração novo por meio do seu Espírito. Com efeito, Cristo não revoga a Lei, mas leva-a ao seu pleno cumprimento (cf.Mt 5, 17): a Lei e os Profetas resumem-se na regra-áurea do amor recíproco (cf. Mt 7, 12). N'Ele, a Lei torna-se definitivamente " evangelho ", feliz notícia do domínio de Deus sobre o mundo, que reconduz toda a existência às suas raízes e perspectivas originais. É a Nova Lei, " a lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus " (Rm 8, 2), cuja expressão fundamental, a exemplo do Senhor que dá a vida pelos próprios amigos (cf. Jo 15, 13), é o dom de si no amor aos irmãos: " Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos " (1 Jo 3, 14). É lei de liberdade, alegria e felicidade.
" Hão-de olhar para Aquele que trespassaram " (Jo 19, 37): na árvore da Cruz, cumpre-se o Evangelho da Vida
50. No final deste capítulo, em que meditámos a mensagem cristã sobre a vida, quereria deter-me com cada um de vós a contemplar Aquele que trespassaram e que atrai todos a Si (cf. Jo 19, 37; 12, 32). Levantando os olhos para " o espectáculo " da cruz (cf. Lc 23, 48), poderemos descobrir, nesta árvore gloriosa, o cumprimento e a plena revelação de todo o Evangelho da vida.
Nas primeiras horas da tarde de Sexta-feira Santa, " as trevas cobriram toda a terra (...) por o sol se haver eclipsado. O véu do Templo rasgou-se ao meio " (Lc 23, 44.45). É o símbolo de uma grande perturbação cósmica e de uma luta atroz das forças do bem contra as do mal, da vida contra a morte. Também hoje nos encontramos no meio de uma luta dramática entre a " cultura da morte " e a " cultura da vida ". Mas o esplendor da Cruz não fica submerso pelas trevas; pelo contrário, aquela desenha-se ainda mais clara e luminosa, revelando-se como o centro, o sentido e o fim da história inteira e de toda a vida humana.
Jesus é pregado na cruz e levantado da terra. Vive o momento da sua máxima " impotência ", e a sua vida parece totalmente abandonada aos insultos dos seus adversários e às mãos dos seus carrascos: é humilhado, escarnecido, ultrajado (cf. Mc 15, 24-36). E contudo, precisamente diante de tudo isso e " ao vê-Lo expirar daquela maneira ", o centurião romano exclama: " Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus! " (Mc 15, 39). Revela-se assim, no momento da sua extrema debilidade, a identidade do Filho de Deus: na Cruz, manifesta-se a sua glória!
Com a sua morte, Jesus ilumina o sentido da vida e da morte de todo o ser humano. Antes de morrer, Jesus reza ao Pai, pedindo o perdão para os seus perseguidores (cf. Lc 23, 34), e ao malfeitor, que Lhe pede para Se recordar dele no seu reino, responde: " Em verdade te digo: hoje estarás Comigo no Paraíso " (Lc 23, 43). Depois da sua morte, " abriram-se os túmulos e muitos corpos de santos que estavam mortos, ressuscitaram " (Mt 27, 52). A salvação, operada por Jesus, é doação de vida e de ressurreição. Ao longo da sua existência, Jesus tinha concedido a salvação, curando e fazendo o bem a todos (cf. Act 10, 38). Mas os milagres, as curas e as próprias ressurreições eram sinal de outra salvação que consiste no perdão dos pecados, ou seja, na libertação do homem do mal mais profundo, e na sua elevação à própria vida de Deus.
Na Cruz, renova-se e realiza-se, em sua perfeição plena e definitiva, o prodígio da serpente erguida por Moisés no deserto (cf. Jo 3, 14-15; Nm 21, 8-9). Também hoje, voltando o olhar para Aquele que foi trespassado, cada homem com a sua existência ameaçada recobra a esperança segura de encontrar libertação e redenção.
51. Mas há ainda outro acontecimento específico que atrai o meu olhar e merece compenetrada meditação. " Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: "Tudo está consumado". E inclinando a cabeça, entregou o espírito " (Jo 19, 30). E o soldado romano " perfurou-Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água " (Jo 19, 34).
Tudo chegou já ao seu pleno cumprimento. O " entregar o espírito " exprime certamente a morte de Jesus, semelhante à de qualquer outro ser humano, mas parece aludir também ao " dom do Espírito ", com que Ele nos resgata da morte e desperta para uma vida nova.
A própria vida de Deus é participada ao homem. Mediante os sacramentos da Igreja - cujo símbolo são o sangue e a água, que brotam do lado de Cristo -, aquela vida é incessantemente comunicada aos filhos de Deus, constituídos como povo da nova aliança. Da Cruz, fonte de vida, nasce e se propaga o " povo da vida ".
Deste modo, a contemplação da Cruz leva-nos às raízes mais profundas daquilo que sucedeu. Jesus que, ao entrar no mundo, tinha dito: " Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade " (cf. Heb 10, 9), fez-Se em tudo obediente ao Pai, e tendo " amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim " (Jo 13, 1), entregando-Se inteiramente por eles.
Ele que não " veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos " (Mc 10, 45), chega ao vértice do amor na Cruz: " Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos " (Jo 15, 13). E Ele morreu por nós, quando éramos ainda pecadores (cf. Rm 5, 8).
Deste modo, Cristo proclama que a vida atinge o seu centro, sentido e plenitude quando é doada.
Chegada a este ponto, a meditação faz-se louvor e agradecimento e, ao mesmo tempo, estimula-nos a imitar Jesus e a seguir os seus passos (cf. 1 Ped 2, 21).
Também nós somos chamados a dar a nossa vida pelos irmãos, realizando assim, na sua verdade mais plena, o sentido e o destino da nossa existência.
Podê-lo-emos fazer porque Vós, Senhor, nos destes o exemplo e comunicastes a força do Espírito. Podê-lo-emos fazer se cada dia, Convosco e como Vós, formos obedientes ao Pai e fizermos a sua vontade.
Concedei-nos, pois, ouvir com coração dócil e generoso toda a palavra que sai da boca de Deus: aprenderemos assim não apenas a " não matar " a vida do homem, mas também a sabê-la venerar, amar e promover.
CAPÍTULO III - NÃO MATARÁS
A LEI SANTA DE DEUS
" Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos " (Mt 19, 17): Evangelho e mandamento
52. " Aproximou-se d'Ele um jovem e disse- -Lhe: "Que hei-de fazer de bom para alcançar a vida eterna?" " (Mt 19, 16). Jesus respondeu: " Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos " (Mt 19, 17). O Mestre fala da vida eterna, isto é, da participação na própria vida de Deus. A esta vida, chega-se através da observância dos mandamentos, incluindo naturalmente aquele que diz " não matarás ". Este é precisamente o primeiro preceito do Decálogo que Jesus recorda ao jovem, quando este Lhe solicita os mandamentos que terá de cumprir: " Retorquiu Jesus: "Não matarás; não cometerás adultério; não roubarás..." " (Mt 19, 18).
O mandamento de Deus nunca está separado do seu amor: é sempre um dom para o crescimento e a alegria do homem. Como tal, constitui um aspecto essencial e um elemento inalienável do Evangelho, mais, o próprio mandamento se configura como " evangelho ", ou seja, uma boa e feliz notícia. Também o Evangelho da vida é um grande dom de Deus e simultaneamente uma exigente tarefa para o homem. Aquele suscita assombro e gratidão na pessoa livre e pede para ser acolhido, guardado e valorizado com vivo sentimento de responsabilidade: dando-lhe a vida, Deus exige do homem que a ame, respeite e promova. Deste modo, o dom faz-se mandamento, e o mandamento é em si mesmo um dom.
Imagem viva de Deus, o homem foi querido pelo seu Criador como rei e senhor. " Deus fez o homem - escreve S. Gregório de Nissa - de forma tal que pudesse desempenhar a sua função de rei da terra. (...) O homem foi criado à imagem d'Aquele que governa o universo. Tudo indica que, desde o princípio, a sua natureza está marcada pela realeza. (...) Assim a natureza humana, criada para ser senhora das outras criaturas, à semelhança do Soberano do universo, foi estabelecida como sua imagem viva, participante da dignidade do divino Arquétipo ".38 Chamado para ser fecundo e multiplicar-se, sujeitar a terra e dominar sobre os seres que lhe são inferiores (cf. Gn 1, 28), o homem é rei e senhor não apenas das coisas, mas também e primariamente de si mesmo 39 e, em certo sentido, da vida que lhe é dada e que ele pode transmitir por meio da geração cumprida no amor e no respeito do desígnio de Deus. No entanto, o seu domínio não é absoluto, mas ministerial: é reflexo concreto do domínio único e infinito de Deus. Por isso, o homem deve vivê-lo com sabedoria e amor, participando da sabedoria e do amor incomensurável de Deus. E isto verifica-se pela obediência à sua Lei santa: uma obediência livre e alegre (cf. Sal 119118) que nasce e se alimenta da certeza de que os preceitos do Senhor são dons de graça, confiados ao homem sempre e só para o seu bem, para a defesa da sua dignidade pessoal e para a prossecução da sua felicidade.
Aquilo que foi dito no referente às coisas, vale ainda mais agora no contexto da vida: o homem não é senhor absoluto e árbitro incontestável, mas - e nisso está a sua grandeza incomparável - é " ministro do desígnio de Deus ".40
A vida é confiada ao homem como um tesouro que não pode malbaratar, como um talento que há-de pôr a render. Dela terá de prestar contas ao seu Senhor (cf. Mt 25, 14-30; Lc 19, 12-27).
" Ao homem, pedirei contas da vida do homem " (Gn 9, 5): a vida humana é sagrada e inviolável
53. " A vida humana é sagrada, porque, desde a sua origem, supõe "a acção criadora de Deus" e mantém-se para sempre numa relação especial com o Criador, seu único fim. Só Deus é senhor da vida, desde o princípio até ao fim: ninguém, em circunstância alguma, pode reivindicar o direito de destruir directamente um ser humano inocente ".41 Com estas palavras, a Instrução Donum vitae expõe o conteúdo central da revelação de Deus sobre a sacralidade e inviolabilidade da vida humana.
De facto, a Sagrada Escritura apresenta ao homem o preceito " não matarás " (Ex 20, 13; Dt 5, 17) como mandamento divino. Como já sublinhei, encontra-se no Decálogo, no coração da Aliança, que o Senhor concluiu com o povo eleito; mas estava já contido na aliança primordial de Deus com a humanidade, após o castigo purificador do dilúvio, que fora provocado pelo incremento do pecado e da violência (cf. Gn 9, 5-6).
Deus proclama-Se Senhor absoluto da vida do homem, formado à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26-28). A vida humana possui, portanto, um carácter sagrado e inviolável, no qual se reflecte a própria inviolabilidade do Criador. Por isso mesmo, será Deus que Se fará juiz severo de qualquer violação do mandamento " não matarás ", colocado na base de toda a convivência social. Deus é o go'el, ou seja, o defensor do inocente (cf. Gn 4, 9-15; Is 41, 14; Jr 50, 34; Sal 1918, 15). Deus comprova, assim também, que não Se alegra com a perdição dos vivos (cf. Sab 1, 13). Com esta, apenas Satanás se pode alegrar: foi pela sua inveja que a morte entrou no mundo (cf. Sab 2, 24). " Assassino desde o princípio ", o diabo é também " mentiroso e pai da mentira " (Jo 8, 44): enganando o homem, levou-o para metas de pecado e de morte, apresentadas como objectivos e frutos de vida.
54. O preceito " não matarás ", explicitamente, tem um forte conteúdo negativo: indica o limite extremo que nunca poderá ser transposto. Implicitamente, porém, induz a uma atitude positiva de respeito absoluto pela vida, levando a promovê-la e a crescer seguindo a estrada do amor que se dá, acolhe e serve. Também o povo da Aliança, ainda que lentamente e não sem contradições, experimentou um amadurecimento progressivo nessa direcção, preparando-se assim para a grande proclamação de Jesus: o amor do próximo é um mandamento semelhante ao do amor de Deus; " destes dois mandamentos depende toda a Lei e os Profetas " (Mt 22, 36-40). " Com efeito, (...) não matarás (...) e qualquer dos outros mandamentos - sublinha S. Paulo - resumem-se nestas palavras: "Amarás ao próximo como a ti mesmo" " (Rm 13, 9; cf. Gal 5, 14). Assumido e levado à perfeição na Nova Lei, o preceito " não matarás " permanece como condição indispensável para poder " entrar na vida " (cf. Mt 19, 16-19). E, nesta mesma perspectiva, aponta decisivamente a palavra do apóstolo João: " Todo aquele que odeia o seu irmão é homicida e sabeis que nenhum homicida tem a vida eterna permanentemente em si " (1 Jo 3, 15).
Desde os seus primórdios, a Tradição viva da Igreja - como testemunha a Didaké, o escrito cristão extra-bíblico mais antigo - reafirmou de modo categórico o mandamento " não matarás ": " Há dois caminhos, um da vida e o outro da morte; mas entre os dois existe uma grande diferença. (...) Segundo o preceito da doutrina: não matarás; (...) não matarás o embrião por meio do aborto, nem farás que morra o recém-nascido. (...) Este é o caminho da morte: (...) não têm compaixão do pobre, não sofrem com o enfermo, nem reconhecem o seu Criador; assassinam os seus filhos e pelo aborto fazem perecer criaturas de Deus; desprezam o necessitado, oprimem o atribulado, são defensores dos ricos e juízes injustos dos pobres; estão cheios de todo o pecado. Possais, filhos, permanecer sempre longe de todas estas culpas! ".42
Ao longo dos tempos, a Tradição da Igreja ensinou sempre e unanimamente o valor absoluto e permanente do mandamento " não matarás ". É sabido que, nos primeiros séculos, o homicídio se contava entre os três pecados mais graves - juntamente com a apostasia e o adultério -, e exigia-se uma penitência pública particularmente onerosa e demorada, antes de ser concedido ao homicida arrependido o perdão e a readmissão na comunidade eclesial.
55. Não há de que se maravilhar! Matar o ser humano, no qual está presente a imagem de Deus, é pecado de particular gravidade.Só Deus é dono da vida! No entanto, frente aos múltiplos casos, frequentemente dramáticos, que a vida individual e social apresenta, a reflexão dos crentes procurou sempre alcançar um conhecimento mais completo e profundo daquilo que o mandamento de Deus proíbe e prescreve.43 Com efeito, há situações onde os valores propostos pela Lei de Deus parecem formar um verdadeiro paradoxo. É o caso, por exemplo, da legítima defesa, onde o direito de proteger a própria vida e o dever de não lesar a alheia se revelam, na prática, dificilmente conciliáveis. Sem dúvida que o valor intrínseco da vida e o dever de dedicar um amor a si mesmo não menor que aos outros, fundam um verdadeiro direito à própria defesa. O próprio preceito que manda amar os outros, enunciado no Antigo Testamento e confirmado por Jesus, supõe o amor a si mesmo como termo de comparação: " Amarás o teu próximo como a ti mesmo " (Mc 12, 31). Portanto, ninguém poderia renunciar ao direito de se defender por carência de amor à vida ou a si mesmo, mas apenas em virtude de um amor heróico que, na linha do espírito das bem-aventuranças evangélicas (cf. Mt 5, 38- 48), aprofunde o amor a si mesmo, transfigurando-o naquela oblação radical cujo exemplo mais sublime é o próprio Senhor Jesus.
Por outro lado, " a legítima defesa pode ser, não somente um direito, mas um dever grave, para aquele que é responsável pela vida de outrem, do bem comum da família ou da sociedade ".44 Acontece, infelizmente, que a necessidade de colocar o agressor em condições de não molestar implique, às vezes, a sua eliminação. Nesta hipótese, o desfecho mortal há-de ser atribuído ao próprio agressor que a tal se expôs com a sua acção, inclusive no caso em que ele não fosse moralmente responsável por falta do uso da razão.45
56. Nesta linha, coloca-se o problema da pena de morte, à volta do qual se regista, tanto na Igreja como na sociedade, a tendência crescente para pedir uma aplicação muito limitada, ou melhor, a total abolição da mesma. O problema há-de ser enquadrado na perspectiva de uma justiça penal, que seja cada vez mais conforme com a dignidade do homem e portanto, em última análise, com o desígnio de Deus para o homem e a sociedade. Na verdade, a pena, que a sociedade inflige, tem " como primeiro efeito o de compensar a desordem introduzida pela falta ".46 A autoridade pública deve fazer justiça pela violação dos direitos pessoais e sociais, impondo ao réu uma adequada expiação do crime como condição para ser readmitido no exercício da própria liberdade. Deste modo, a autoridade há-de procurar alcançar o objectivo de defender a ordem pública e a segurança das pessoas, não deixando, contudo, de oferecer estímulo e ajuda ao próprio réu para se corrigir e redimir.47
Claro está que, para bem conseguir todos estes fins, a medida e a qualidade da pena hão-de ser atentamente ponderadas e decididas, não se devendo chegar à medida extrema da execução do réu senão em casos de absoluta necessidade, ou seja, quando a defesa da sociedade não fosse possível de outro modo. Mas, hoje, graças à organização cada vez mais adequada da instituição penal, esses casos são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes.
Em todo o caso, permanece válido o princípio indicado pelo novo Catecismo da Igreja Católica: " na medida em que outros processos, que não a pena de morte e as operações militares, bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a paz pública, tais processos não sangrentos devem preferir-se, por serem proporcionados e mais conformes com o fim em vista e a dignidade humana ".48
57. Se se deve mostrar uma atenção assim tão grande por qualquer vida, mesmo pela do réu e a do injusto agressor, o mandamento " não matarás " tem valor absoluto quando se refere à pessoa inocente. E mais ainda, quando se trata de um ser frágil e inerme que encontra a sua defesa radical do arbítrio e da prepotência alheia, unicamente na força absoluta do mandamento de Deus.
De facto, a inviolabilidade absoluta da vida humana inocente é uma verdade moral explicitamente ensinada na Sagrada Escritura, constantemente mantida na Tradição da Igreja e unanimamente proposta pelo seu Magistério. Tal unanimidade é fruto evidente daquele " sentido sobrenatural da fé " que, suscitado e apoiado pelo Espírito Santo, preserva do erro o Povo de Deus, quando " manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes ".49
Face ao progressivo enfraquecimento, nas consciências e na sociedade, da percepção da absoluta e grave ilicitude moral da eliminação directa de qualquer vida humana inocente, sobretudo no seu início e no seu termo, o Magistério da Igreja intensificou as suas intervenções em defesa da sacralidade e inviolabilidade da vida humana. Ao Magistério pontifício, particularmente insistente, sempre se uniu o Magistério episcopal, com numerosos e amplos documentos doutrinais e pastorais emanados quer pelas Conferências Episcopais, quer pelos Bispos individualmente. Não faltou sequer, forte e incisiva na sua brevidade, a intervenção do Concílio Vaticano II.50
Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos da Igreja Católica,confirmo que a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral. Esta doutrina, fundada naquela lei não-escrita que todo o homem, pela luz da razão, encontra no próprio coração (cf. Rm 2, 14-15), é confirmada pela Sagrada Escritura, transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magisterio ordinário e universal.51
A decisão deliberada de privar um ser humano inocente da sua vida é sempre má do ponto de vista moral, e nunca pode ser lícita nem como fim, nem como meio para um fim bom. É, de facto, uma grave desobediência à lei moral, antes ao próprio Deus, autor e garante desta; contradiz as virtudes fundamentais da justiça e da caridade. " Nada e ninguém pode autorizar que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante. E também a ninguém é permitido requerer este gesto homicida para si ou para outrem confiado à sua responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou implicitamente. Não há autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir ".52
No referente ao direito à vida, cada ser humano inocente é absolutamente igual a todos os demais. Esta igualdade é a base de todo o relacionamento social autêntico, o qual, para o ser verdadeiramente, não pode deixar de se fundar sobre a verdade e a justiça, reconhecendo e tutelando cada homem e cada mulher como pessoa, e não como coisa de que se possa dispor. Diante da norma moral que proíbe a eliminação directa de um ser humano inocente, " não existem privilégios, nem excepções para ninguém. Ser o dono do mundo ou o último "miserável" sobre a face da terra, não faz diferença alguma: perante as exigências morais, todos somos absolutamente iguais ".53
" Vossos olhos contemplaram-me ainda em embrião " (Sal 139138, 16): o crime abominável do aborto
58. Dentre todos os crimes que o homem pode realizar contra a vida, o aborto provocado apresenta características que o tornam particularmente grave e abjurável. O Concílio Vaticano II define-o, juntamente com o infanticídio, " crime abominável ".54
Mas hoje, a percepção da sua gravidade vai-se obscurecendo progressivamente em muitas consciências. A aceitação do aborto na mentalidade, nos costumes e na própria lei, é sinal eloquente de uma perigosíssima crise do sentido moral que se torna cada vez mais incapaz de distinguir o bem do mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida. Diante de tão grave situação, impõe-se mais que nunca a coragem de olhar frontalmente a verdade e chamar as coisas pelo seu nome, sem ceder a compromissos com o que nos é mais cómodo, nem à tentação de auto-engano. A propósito disto, ressoa categórica a censura do Profeta: " Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas " (Is 5, 20). Precisamente no caso do aborto, verifica-se a difusão de uma terminologia ambígua, como " interrupção da gravidez ", que tende a esconder a verdadeira natureza dele e a atenuar a sua gravidade na opinião pública. Talvez este fenómeno linguístico seja já, em si mesmo, sintoma de um mal-estar das consciências. Mas nenhuma palavra basta para alterar a realidade das coisas: o aborto provocado é a morte deliberada e directa, independentemente da forma como venha realizada, de um ser humano na fase inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento.
A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio e, particularmente, quando se consideram as circunstâncias específicas que o qualificam. A pessoa eliminada é um ser humano que começa a desabrochar para a vida, isto é, o que de mais inocente, em absoluto, se possa imaginar: nunca poderia ser considerado um agressor, menos ainda um injusto agressor! É frágil, inerme, e numa medida tal que o deixa privado inclusive daquela forma mínima de defesa constituída pela força suplicante dos gemidos e do choro do recém-nascido. Está totalmente entregue à protecção e aos cuidados daquela que o traz no seio. E todavia, às vezes, é precisamente ela, a mãe, quem decide e pede a sua eliminação, ou até a provoca.
É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a mãe um carácter dramático e doloroso: a decisão de se desfazer do fruto concebido não é tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou um nível de vida digno para os outros membros da família. Às vezes, temem-se para o nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente.
59. A decidirem a morte da criança ainda não nascida, a par da mãe, aparecem, com frequência, outras pessoas. Antes de mais, culpado pode ser o pai da criança, não apenas quando claramente constringe a mulher ao aborto, mas também quando favorece indirectamente tal decisão ao deixá-la sozinha com os problemas de uma gravidez: 55 desse modo, a família fica mortalmente ferida e profanada na sua natureza de comunidade de amor e na sua vocação para ser " santuário da vida ". Nem se podem calar as solicitações que, às vezes, provêm do âmbito familiar mais alargado e dos amigos. A mulher, não raro, é sujeita a pressões tão fortes que se sente psicologicamente constrangida a ceder ao aborto: não há dúvida que, neste caso, a responsabilidade moral pesa particularmente sobre aqueles que directa ou indirectamente a forçaram a abortar. Responsáveis são também os médicos e restantes profissionais da saúde, sempre que põem ao serviço da morte a competência adquirida para promover a vida.
Mas a responsabilidade cai ainda sobre os legisladores que promoveram e aprovaram leis abortistas, e sobre os administradores das estruturas clínicas onde se praticam os abortos, na medida em que a sua execução deles dependa. Uma responsabilidade geral, mas não menos grave, cabe a todos aqueles que favoreceram a difusão de uma mentalidade de permissivismo sexual e de menosprezo pela maternidade, como também àqueles que deveriam ter assegurado - e não o fizeram - válidas políticas familiares e sociais de apoio às famílias, especialmente às mais numerosas ou com particulares dificuldades económicas e educativas. Não se pode subestimar, enfim, a vasta rede de cumplicidades, nela incluindo instituições internacionais, fundações e associações, que se batem sistematicamente pela legalização e difusão do aborto no mundo. Neste sentido, o aborto ultrapassa a responsabilidade dos indivíduos e o dano que lhes é causado, para assumir uma dimensão fortemente social: é uma ferida gravíssima infligida à sociedade e à sua cultura por aqueles que deveriam ser os seus construtores e defensores. Como escrevi na Carta às Famílias, " encontramo-nos defronte a uma enorme ameaça contra a vida, não apenas dos simples indivíduos, mas também de toda a civilização ".56 Achamo-nos perante algo que bem se pode definir uma " estrutura de pecado " contra a vida humana ainda não nascida.
60. Alguns tentam justificar o aborto, defendendo que o fruto da concepção, pelo menos até um certo número de dias, não pode ainda ser considerado uma vida humana pessoal. Na realidade, porém, " a partir do momento em que o óvulo é fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é a do pai nem a da mãe, mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por conta própria. Nunca mais se tornaria humana, se não o fosse já desde então. A esta evidência de sempre (...) a ciência genética moderna fornece preciosas confirmações. Demonstrou que, desde o primeiro instante, se encontra fixado o programa daquilo que será este ser vivo: uma pessoa, esta pessoa individual, com as suas notas características já bem determinadas. Desde a fecundação, tem início a aventura de uma vida humana, cujas grandes capacidades, já presentes cada uma delas, apenas exigem tempo para se organizar e encontrar prontas a agir ".57 Não podendo a presença de uma alma espiritual ser assinalada através da observação de qualquer dado experimental, são as próprias conclusões da ciência sobre o embrião humano a fornecer " uma indicação valiosa para discernir racionalmente uma presença pessoal já a partir desta primeira aparição de uma vida humana: como poderia um indivíduo humano não ser uma pessoa humana? ".58
Aliás, o valor em jogo é tal que, sob o perfil moral, bastaria a simples probabilidade de encontrar-se em presença de uma pessoa para se justificar a mais categórica proibição de qualquer intervenção tendente a eliminar o embrião humano. Por isso mesmo, independentemente dos debates científicos e mesmo das afirmações filosóficas com os quais o Magistério não se empenhou expressamente, a Igreja sempre ensinou - e ensina - que tem de ser garantido ao fruto da geração humana, desde o primeiro instante da sua existência, o respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade e unidade corporal e espiritual: " O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida ".59
61. Os textos da Sagrada Escritura, que nunca falam do aborto voluntário e, por conseguinte, também não apresentam condenações directas e específicas do mesmo, mostram pelo ser humano no seio materno uma consideração tal que exige, como lógica consequência, que se estenda também a ele o mandamento de Deus: " não matarás ".
A vida humana é sagrada e inviolável em cada momento da sua existência, inclusive na fase inicial que precede o nascimento. Desde o seio materno, o homem pertence a Deus que tudo perscruta e conhece, que o forma e plasma com suas mãos, que o vê quando ainda é um pequeno embrião informe, e que nele entrevê o adulto de amanhã, cujos dias estão todos contados e cuja vocação está já escrita no " livro da vida " (cf. Sal 139138, 1.13-16). Quando está ainda no seio materno - como testemunham numerosos textos bíblicos 60 - já o homem é objecto muito pessoal da amorosa e paterna providência de Deus.
A Tradição cristã - como justamente se realça na Declaração sobre esta matéria, emanada pela Congregação para a Doutrina da Fé 61 - é clara e unânime, desde as suas origens até aos nossos dias, em classificar o aborto como desordem moral particularmente grave. A comunidade cristã, desde o seu primeiro confronto com o mundo greco-romano onde se praticava amplamente o aborto e o infanticídio, opôs-se radicalmente, com a sua doutrina e a sua praxe, aos costumes generalizados naquela sociedade, como o demonstra a já citada Didaké.62 Entre os escritores eclesiásticos da área linguística grega, Atenágoras recorda que os cristãos consideram homicidas as mulheres que recorrem a produtos abortivos, porque os filhos, apesar de estarem ainda no seio da mãe, " são já objecto dos cuidados da Providência divina ".63 Entre os latinos, Tertuliano afirma: " É um homicídio premeditado impedir de nascer; pouco importa que se suprima a alma já nascida ou que se faça desaparecer durante o tempo até ao nascer. É já um homem aquele que o será ".64
Ao longo da sua história já bimilenária, esta mesma doutrina foi constantemente ensinada pelos Padres da Igreja, pelos seus Pastores e Doutores. Mesmo as discussões de carácter científico e filosófico acerca do momento preciso da infusão da alma espiritual não incluíram nunca a mínima hesitação quanto à condenação moral do aborto.
62. O Magistério pontifício mais recente reafirmou, com grande vigor, esta doutrina comum. Em particular Pio XI, na encíclicaCasti connubii rejeitou as alegadas justificações do aborto; 65 Pio XII excluiu todo o aborto directo, isto é, qualquer acto que vise directamente destruir a vida humana ainda não nascida, " quer tal destruição seja pretendida como fim ou apenas como meio para o fim "; 66 João XXIII corroborou que a vida humana é sagrada, porque " desde o seu despontar empenha directamente a acção criadora de Deus ".67 O Concílio Vaticano II, como já foi recordado, condenou o aborto com grande severidade: " A vida deve, pois, ser salvaguardada com extrema solicitude, desde o primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis ".68
A disciplina canónica da Igreja, desde os primeiros séculos, puniu com sanções penais aqueles que se manchavam com a culpa do aborto, e tal praxe, com penas mais ou menos graves, foi confirmada nos sucessivos períodos históricos. O Código de Direito Canónico de 1917, para o aborto, prescrevia a pena de excomunhão.69 Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que " quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae ",70 isto é, automática. A excomunhão recai sobre todos aqueles que cometem este crime com conhecimento da pena, incluindo também cúmplices sem cujo contributo o aborto não se teria realizado.
71 com uma sanção assim reiterada, a Igreja aponta este crime como um dos mais graves e perigosos, incitando, deste modo, quem o comete a ingressar diligentemente pela estrada da conversão. Na Igreja, de facto, a finalidade da pena de excomunhão é tornar plenamente consciente da gravidade de um determinado pecado e, consequentemente, favorecer a adequada conversão e penitência.
Frente a semelhante unanimidade na tradição doutrinal e disciplinar da Igreja, Paulo VI pôde declarar que tal ensinamento não conheceu mudança e é imutável.72 Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos - que de várias e repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina - declaro que o aborto directo, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.73
Nenhuma circunstância, nenhum fim, nenhuma lei no mundo poderá jamais tornar lícito um acto que é intrinsecamente ilícito, porque contrário à Lei de Deus, inscrita no coração de cada homem, reconhecível pela própria razão, e proclamada pela Igreja.
63. A avaliação moral do aborto deve aplicar-se também às recentes formas de intervenção sobre embriões humanos, que, não obstante visarem objectivos em si legítimos, implicam inevitavelmente a sua morte. É o caso da experimentação sobre embriões, em crescente expansão no campo da pesquisa biomédica e legalmente admitida em alguns países. Se " devem ser consideradas lícitas as intervenções no embrião humano, sob a condição de que respeitem a vida e a integridade do embrião, não comportem para ele riscos desproporcionados, e sejam orientadas para a sua cura, para a melhoria das suas condições de saúde ou para a sua sobrevivência individual ",74 impõe-se, pelo contrário, afirmar que o uso de embriões ou de fetos humanos como objecto de experimentação constitui um crime contra a sua dignidade de seres humanos, que têm direito ao mesmo respeito devido à criança já nascida e a qualquer pessoa.75
A mesma condenação moral vale para o sistema que desfruta os embriões e os fetos humanos ainda vivos - às vezes " produzidos " propositadamente para este fim através da fecundação in vitro - seja como " material biológico " à disposição, seja como fornecedores de órgãos ou de tecidos para transplante no tratamento de algumas doenças. Na realidade, o assassínio de criaturas humanas inocentes, ainda que com vantagem para outras, constitui um acto absolutamente inaceitável.
Especial atenção há-de ser reservada à avaliação moral das técnicas de diagnose pré-natal, que permitem individuar precocemente eventuais anomalias do nascituro. Com efeito, devido à complexidade dessas técnicas, a avaliação em causa deve fazer-se mais cuidadosa e articuladamente. Quando estão isentas de riscos desproporcionados para a criança e para a mãe, e se destinam a tornar possível uma terapia precoce ou ainda a favorecer uma serena e consciente aceitação do nascituro, estas técnicas são moralmente lícitas. Mas, dado que as possibilidade de cura antes do nascimento são hoje ainda reduzidas, acontece bastantes vezes que essas técnicas são postas ao serviço de uma mentalidade eugenista que aceita o aborto selectivo, para impedir o nascimento de crianças afectadas por tipos vários de anomalias. Semelhante mentalidade é ignominiosa e absolutamente reprovável, porque pretende medir o valor de uma vida humana apenas segundo parâmetros de " normalidade " e de bem-estar físico, abrindo assim a estrada à legitimação do infanticídio e da eutanásia.
Na realidade, porém, a própria coragem e serenidade com que muitos irmãos nossos, afectados por graves deficiências, conduzem a sua existência quando são aceites e amados por nós, constituem um testemunho particularmente eficaz dos valores autênticos que qualificam a vida e a tornam, mesmo em condições difíceis, preciosa para o próprio e para os outros. A Igreja sente-se solidária com os cônjuges que, com grande ansiedade e sofrimento, aceitam acolher os seus filhos gravemente deficientes, tal como se sente grata a todas as famílias que, pela adopção, acolhem os que são abandonados pelos seus pais por causa de limitações ou doenças.
" Só Eu é que dou a vida e dou a morte " (Dt 32, 39): o drama da eutanásia
64. No outro topo da existência, o homem encontra-se diante do mistério da morte. Hoje, na sequência dos progressos da medicina e num contexto cultural frequentemente fechado à transcendência, a experiência do morrer apresenta-se com algumas características novas. Com efeito, quando prevalece a tendência para apreciar a vida só na medida em que proporciona prazer e bem-estar, o sofrimento aparece como um contratempo insuportável, de que é preciso libertar-se a todo o custo. A morte, considerada como " absurda " quando interrompe inesperadamente uma vida ainda aberta para um futuro rico de possíveis experiências interessantes, torna-se, pelo contrário, uma " libertação reivindicada ", quando a existência é tida como já privada de sentido porque mergulhada na dor e inexoravelmente votada a um sofrimento sempre mais intenso.
Além disso, recusando ou esquecendo o seu relacionamento fundamental com Deus, o homem pensa que é critério e norma de si mesmo e julga que tem inclusive o direito de pedir à sociedade que lhe garanta possibilidades e modos de decidir da própria vida com plena e total autonomia. Em particular, o homem que vive nos países desenvolvidos é que assim se comporta: a tal se sente impelido, entre outras coisas, pelos contínuos progressos da medicina e das suas técnicas cada vez mais avançadas. Por meio de sistemas e aparelhagens extremamente sofisticadas, hoje a ciência e a prática médica são capazes de resolver casos anteriormente insolúveis e de aliviar ou eliminar a dor, como também de sustentar e prolongar a vida até em situações de debilidade extrema, de reanimar artificialmente pessoas cujas funções biológicas elementares sofreram danos imprevistos, de intervir para tornar disponíveis órgãos para transplante.
Num tal contexto, torna-se cada vez mais forte a tentação daeutanásia, isto é, de apoderar-se da morte, provocando-a antes do tempo e, deste modo, pondo fim " docemente " à vida própria ou alheia. Na realidade, aquilo que poderia parecer lógico e humano, quando visto em profundidade, apresenta-se absurdo e desumano. Estamos aqui perante um dos sintomas mais alarmantes da " cultura de morte " que avança sobretudo nas sociedades do bem-estar, caracterizadas por uma mentalidade eficientista que faz aparecer demasiadamente gravoso e insuportável o número crescente das pessoas idosas e debilitadas. Com muita frequência, estas acabam por ser isoladas da família e da sociedade, organizada quase exclusivamente sobre a base de critérios de eficiência produtiva, segundo os quais uma vida irremediavelmente incapaz não tem mais qualquer valor.
65. Para um correcto juízo moral da eutanásia, é preciso, antes de mais, defini-la claramente. Por eutanásia, em sentido verdadeiro e próprio, deve-se entender uma acção ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de eliminar o sofrimento. " A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das intenções e ao nível dos métodos empregues ".76
Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado " excesso terapêutico ", ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência " renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes ".77 Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há-de medir-se segundo as situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à disposição são objectivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à morte.78
Na medicina actual, têm adquirido particular importância os denominados " cuidados paliativos ", destinados a tornar o sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao mesmo tempo ao paciente um adequado acompanhamento humano. Neste contexto, entre outros problemas, levanta-se o da licitude do recurso aos diversos tipos de analgésicos e sedativos para aliviar o doente da dor, quando isso comporta o risco de lhe abreviar a vida. Ora, se pode realmente ser considerado digno de louvor quem voluntariamente aceita sofrer renunciando aos meios lenitivos da dor, para conservar a plena lucidez e, se crente, participar, de maneira consciente, na Paixão do Senhor, tal comportamento " heróico " não pode ser considerado obrigatório para todos. Já Pio XII afirmara que é lícito suprimir a dor por meio de narcóticos, mesmo com a consequência de limitar a consciência e abreviar a vida, " se não existem outros meios e se, naquelas circunstâncias, isso em nada impede o cumprimento de outros deveres religiosos e morais ".79 É que, neste caso, a morte não é querida ou procurada, embora por motivos razoáveis se corra o risco dela: pretende- -se simplesmente aliviar a dor de maneira eficaz, recorrendo aos analgésicos postos à disposição pela medicina. Contudo, " não se deve privar o moribundo da consciência de si mesmo, sem motivo grave ": 80 quando se aproxima a morte, as pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas obrigações morais e familiares, e devem sobretudo poder-se preparar com plena consciência para o encontro definitivo com Deus.
Feitas estas distinções, em conformidade com o Magistério dos meus Predecessores 81 e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.82
A eutanásia comporta, segundo as circunstâncias, a malícia própria do suicídio ou do homicídio.
66. Ora, o suicídio é sempre moralmente inaceitável, tal como o homicídio. A tradição da Igreja sempre o recusou, como opção gravemente má.83 Embora certos condicionalismos psicológicos, culturais e sociais possam levar a realizar um gesto que tão radicalmente contradiz a inclinação natural de cada um à vida, atenuando ou anulando a responsabilidade subjectiva, o suicídio, sob o perfil objectivo, é um acto gravemente imoral, porque comporta a recusa do amor por si mesmo e a renúncia aos deveres de justiça e caridade para com o próximo, com as várias comunidades de que se faz parte, e com a sociedade no seu conjunto.84 No seu núcleo mais profundo, o suicídio constitui uma rejeição da soberania absoluta de Deus sobre a vida e sobre a morte, deste modo proclamada na oração do antigo Sábio de Israel: " Vós, Senhor, tendes o poder da vida e da morte, e conduzis os fortes à porta do Hades e de lá os tirais " (Sab 16, 13; cf. Tob 13, 2).
Compartilhar a intenção suicida de outrem e ajudar a realizá-la mediante o chamado " suicídio assistido ", significa fazer-se colaborador e, por vezes, autor em primeira pessoa de uma injustiça que nunca pode ser justificada, nem sequer quando requerida. " Nunca é lícito - escreve com admirável actualidade Santo Agostinho - matar o outro: ainda que ele o quisesse, mesmo se ele o pedisse, porque, suspenso entre a vida e a morte, suplica ser ajudado a libertar a alma que luta contra os laços do corpo e deseja desprender-se; nem é lícito sequer quando o doente já não estivesse em condições de sobreviver ".85 Mesmo quando não é motivada pela recusa egoísta de cuidar da vida de quem sofre, a eutanásia deve designar-se uma falsa compaixão, antes uma preocupante " perversão " da mesma: a verdadeira " compaixão ", de facto, torna solidário com a dor alheia, não suprime aquele de quem não se pode suportar o sofrimento. E mais perverso ainda se manifesta o gesto da eutanásia, quando é realizado por aqueles que - como os parentes - deveriam assistir com paciência e amor o seu familiar, ou por quantos - como os médicos -, pela sua específica profissão, deveriam tratar o doente, inclusive nas condições terminais mais penosas.
A decisão da eutanásia torna-se mais grave, quando se configura como um homicídio, que os outros praticam sobre uma pessoa que não a pediu de modo algum nem deu nunca qualquer consentimento para a mesma. Atinge-se, enfim, o cúmulo do arbítrio e da injustiça, quando alguns, médicos ou legisladores, se arrogam o poder de decidir quem deve viver e quem deve morrer. Aparece assim reproposta a tentação do Éden: tornar-se como Deus " conhecendo o bem e o mal " (cf. Gn 3, 5). Mas, Deus é o único que tem o poder de fazer morrer e de fazer viver: " Só Eu é que dou a vida e dou a morte " (Dt 32, 39; cf. 2 Re 5, 7; 1 Sam 2, 6). Ele exerce o seu poder sempre e apenas segundo um desígnio de sabedoria e amor. Quando o homem usurpa tal poder, subjugado por uma lógica insensata e egoísta, usa-o inevitavelmente para a injustiça e a morte. Assim, a vida do mais fraco é abandonada às mãos do mais forte; na sociedade, perde-se o sentido da justiça e fica minada pela raiz a confiança mútua, fundamento de qualquer relação autêntica entre as pessoas.
67. Bem diverso, ao contrário, é o caminho do amor e da verdadeira compaixão, que nos é imposto pela nossa comum humanidade e que a fé em Cristo Redentor, morto e ressuscitado, ilumina com novas razões. A súplica que brota do coração do homem no confronto supremo com o sofrimento e a morte, especialmente quando é tentado a fechar-se no desespero e como que a aniquilar-se nele, é sobretudo uma petição de companhia, solidariedade e apoio na prova. É um pedido de ajuda para continuar a esperar, quando falham todas as esperanças humanas. Como nos recordou o Concílio Vaticano II, " é em face da morte que o enigma da condição humana mais se adensa " para o homem; e, todavia, " a intuição do próprio coração fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de eternidade que nele existe, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte ".86
Esta repugnância natural da morte e este germe de esperança na imortalidade são iluminadas e levadas à plenitude pela fé cristã, que promete e oferece a participação na vitória de Cristo Ressuscitado: é a vitória d'Aquele que, pela sua morte redentora, libertou o homem da morte, " salário do pecado " (Rm 6, 23), e lhe deu o Espírito, penhor de ressurreição e de vida (cf. Rm 8, 11). A certeza da imortalidade futura e a esperança na ressurreição prometida projectam uma luz nova sobre o mistério do sofrimento e da morte e infundem no crente uma força extraordinária para se abandonar ao desígnio de Deus.
O apóstolo Paulo exprimiu esta novidade em termos de pertença total ao Senhor que abraça qualquer condição humana: " Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor " (Rm 14, 7-8). Morrer para o Senhor significa viver a própria morte como acto supremo de obediência ao Pai (cf. Fil 2, 8), aceitando encontrá-la na " hora " querida e escolhida por Ele (cf. Jo 13, 1), o único que pode dizer quando está cumprido o caminho terreno. Viver para o Senhor significa também reconhecer que o sofrimento, embora permaneça em si mesmo um mal e uma prova, sempre se pode tornar fonte de bem. E torna-se tal se é vivido por amor e com amor, na participação, por dom gratuito de Deus e por livre opção pessoal, no próprio sofrimento de Cristo crucificado. Deste modo, quem vive o seu sofrimento no Senhor fica mais plenamente configurado com Ele (cf. Fil 3, 10; 1 Ped 2, 21) e intimamente associado à sua obra redentora a favor da Igreja e da huma-
nidade.87 É esta experiência do Apóstolo, que toda a pessoa que sofre é chamada a viver: " Alegro-me nos sofrimentos suportados por vossa causa e completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja " (Col 1, 24).
" Importa mais obedecer a Deus do que aos homens " (Act 5, 29): a lei civil e a lei moral
68. Uma das características dos actuais atentados à vida humana - como já se disse várias vezes - é a tendência para exigir a sua legitimação jurídica, como se fossem direitos que o Estado deveria, pelo menos em certas condições, reconhecer aos cidadãos e, consequentemente, a pretensão da execução dos mesmos com a assistência segura e gratuita dos médicos e restantes profissionais da saúde.
Considera-se, não raro, que a vida daquele que ainda não nasceu ou está gravemente debilitado, seria um bem simplesmente relativo: teria de ser confrontada e ponderada com outros bens, segundo uma lógica proporcionalista ou de puro cálculo. Igualmente pensa-se que só quem se encontra na situação concreta e nela está pessoalmente implicado é que poderia realizar uma justa ponderação dos bens em jogo: por conseguinte, unicamente essa pessoa poderia decidir sobre a moralidade da sua escolha. Por isso, e no interesse da convivência civil e da harmonia social, o Estado deveria respeitar essa escolha, chegando mesmo a admitir o aborto e a eutanásia.
Outras vezes, julga-se que a lei civil não poderia exigir que todos os cidadãos vivessem segundo um grau de moralidade mais elevado do que aquele que eles mesmos reconhecem e condividem. Por isso, a lei deveria exprimir sempre a opinião e a vontade da maioria dos cidadãos e reconhecer-lhes também, pelo menos em certos casos extremos, o direito ao aborto e à eutanásia. Nesses casos, aliás, a proibição e a punição dos referidos actos conduziria inevitavelmente - assim o dizem - a um aumento de práticas clandestinas: e estas escapariam ao necessário controlo social e seriam realizadas sem a devida segurança médica. E interrogam-se, além disso, se o apoiar uma lei que não é concretamente aplicável não significaria, em última análise, minar também a autoridade de qualquer outra lei.
Nas opiniões mais radicais, chega-se mesmo a defender que, numa sociedade moderna e pluralista, deveria ser reconhecida a cada pessoa total autonomia para dispor da própria vida e da vida de quem ainda não nasceu: não seria competência da lei fazer a escolha entre as diversas opiniões morais, e menos ainda poderia ela pretender impor uma opinião particular em detrimento das outras.
69. Certo é que, na cultura democrática do nosso tempo, se acha amplamente generalizada a opinião, segundo a qual o ordenamento jurídico de uma sociedade haveria de limitar-se a registar e acolher as convicções da maioria e, consequentemente, dever-se-ia construir apenas sobre aquilo que a própria maioria reconhece e vive como moral. Se, depois, se chega a pensar que uma verdade comum e objectiva seria realmente inacessível, então o respeito pela liberdade dos cidadãos - que, num regime democrático, são considerados os verdadeiros soberanos - exigiria que, a nível legislativo, se reconhecesse a autonomia da consciência de cada um e, por conseguinte, ao estabelecer aquelas normas que são absolutamente necessárias à convivência social, se adequassem exclusivamente à vontade da maioria, fosse ela qual fosse. Desta maneira, todo o político deveria separar claramente, no seu agir, o âmbito da consciência privada e o do comportamento público.
Em consequência disto, registam-se duas tendências que na aparência são diametralmente opostas. Por um lado, os indivíduos reivindicam para si a mais completa autonomia moral de decisão, e pedem que o Estado não assuma nem imponha qualquer concepção ética, mas se limite a garantir o espaço mais amplo possível à liberdade de cada um, tendo como único limite externo não lesar o espaço de autonomia a que cada um dos outros cidadãos também tem direito. Mas por outro lado, pensa-se que, no desempenho das funções públicas e profissionais, o respeito pela liberdade alheia de escolha obrigaria cada qual a prescindir das próprias convicções para se colocar ao serviço de qualquer petição dos cidadãos, que as leis reconhecem e tutelam, aceitando como único critério moral no exercício das próprias funções aquilo que está estabelecido pelas mesmas leis. Deste modo, a responsabilidade da pessoa é delegada na lei civil com a abdicação da própria consciência moral, pelo menos no âmbito da acção pública.
70. Raiz comum de todas estas tendências é o relativismo ético, que caracteriza grande parte da cultura contemporânea. Não falta quem pense que tal relativismo seja uma condição da democracia, visto que só ele garantiria tolerância, respeito recíproco entre as pessoas e adesão às decisões da maioria, enquanto as normas morais, consideradas objectivas e vinculantes, conduziriam ao autoritarismo e à intolerância.
Mas é exactamente a problemática conexa com o respeito da vida que mostra os equívocos e contradições, com terríveis resultados práticos, que se escondem nesta posição.
É verdade que a história regista casos de crimes cometidos em nome da " verdade ". Mas crimes não menos graves e negações radicais da liberdade foram também cometidos e cometem-se em nome do " relativismo ético ". Quando uma maioria parlamentar ou social decreta a legitimidade da eliminação, mesmo sob certas condições, da vida humana ainda não nascida, porventura não assume uma decisão " tirânica " contra o ser humano mais débil e indefeso? Justamente reage a consciência universal diante dos crimes contra a humanidade, de que o nosso século viveu tão tristes experiências. Porventura deixariam de ser crimes, se, em vez de terem sido cometidos por tiranos sem escrúpulos, fossem legitimados por consenso popular?
Não se pode mitificar a democracia até fazer dela o substituto da moralidade ou a panaceia da imoralidade. Fundamentalmente, é um " ordenamento " e, como tal, um instrumento, não um fim. O seu carácter " moral " não é automático, mas depende da conformidade com a lei moral, à qual se deve submeter como qualquer outro comportamento humano: por outras palavras, depende da moralidade dos fins que persegue e dos meios que usa. Regista-se hoje um consenso quase universal sobre o valor da democracia, o que há-de ser considerado um positivo " sinal dos tempos ", como o Magistério da Igreja já várias vezes assinalou.88 Mas, o valor da democracia vive ou morre nos valores que ela encarna e promove: fundamentais e imprescindíveis são certamente a dignidade de toda a pessoa humana, o respeito dos seus direitos intangíveis e inalienáveis, e bem assim a assunção do " bem comum " como fim e critério regulador da vida política.
Na base destes valores, não podem estar " maiorias " de opinião provisórias e mutáveis, mas só o reconhecimento de uma lei moral objectiva que, enquanto " lei natural " inscrita no coração do homem, seja ponto normativo de referência para a própria lei civil. Quando, por um trágico obscurecimento da consciência colectiva, o cepticismo chegasse a pôr em dúvida mesmo os princípios fundamentais da lei moral, então o próprio ordenamento democrático seria abalado nos seus fundamentos, ficando reduzido a puro mecanismo de regulação empírica dos diversos e contrapostos interesses.89
Alguém poderia pensar que, na falta de melhor, já esta função reguladora fosse de apreciar em vista da paz social. Mesmo reconhecendo qualquer ponto de verdade em tal avaliação, é difícil não ver que, sem um ancoradouro moral objectivo, a democracia não pode assegurar uma paz estável, até porque é ilusória a paz não fundada sobre os valores da dignidade de cada homem e da solidariedade entre todos os homens. Nos próprios regimes de democracia representativa, de facto, a regulação dos interesses é frequentemente feita a favor dos mais fortes, sendo estes os mais competentes para manobrar não apenas as rédeas do poder, mas também a formação dos consensos. Em tal situação, facilmente a democracia se torna uma palavra vazia.
71. Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma sã democracia, urge, pois, redescobrir a existência de valores humanos e morais essenciais e congénitos, que derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado poderá jamais criar, modificar ou destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar e promover.
Importa retomar, neste sentido, os elementos fundamentais da visão das relações entre lei civil e lei moral, tal como os propõe a Igreja, mas que fazem parte também do património das grandes tradições jurídicas da humanidade.
Certamente, a função da lei civil é diversa e de âmbito mais limitado que a da lei moral. De facto, " em nenhum âmbito da vida, pode a lei civil substituir-se à consciência, nem pode ditar normas naquilo que ultrapassa a sua competência ",90 que é assegurar o bem comum das pessoas, mediante o reconhecimento e defesa dos seus direitos fundamentais, a promoção da paz e da moralidade pública.91 Com efeito, a função da lei civil consiste em garantir uma convivência social na ordem e justiça verdadeira, para que todos " tenhamos vida tranquila e sossegada, com toda a piedade e honestidade " (1 Tm 2, 2). Por isso mesmo, a lei civil deve assegurar a todos os membros da sociedade o respeito de alguns direitos fundamentais, que pertencem por natureza à pessoa e que qualquer lei positiva tem de reconhecer e garantir. Primeiro e fundamental entre eles é o inviolável direito à vida de todo o ser humano inocente. Se a autoridade pública pode, às vezes, renunciar a reprimir algo que, se proibido, provocaria um dano maior,92 ela não poderá nunca aceitar como direito dos indivíduos - ainda que estes sejam a maioria dos membros da sociedade -, a ofensa infligida a outras pessoas através do menosprezo de um direito tão fundamental como o da vida. A tolerância legal do aborto ou da eutanásia não pode, de modo algum, fazer apelo ao respeito pela consciência dos outros, precisamente porque a sociedade tem o direito e o dever de se defender contra os abusos que se possam verificar em nome da consciência e com o pretexto da liberdade.93
A este propósito, João XXIII recordara na Encíclica Pacem in terris: " Hoje em dia crê-se que o bem comum consiste sobretudo no respeito dos direitos e deveres da pessoa. Oriente-se, pois, o empenho dos poderes públicos sobretudo no sentido que esses direitos sejam reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos, tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres. "A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres". Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas disposições estão privadas de qualquer valor jurídico ".94
72. Também está em continuidade com toda a Tradição da Igreja, a doutrina da necessidade da lei civil se conformar com a lei moral, como se vê na citada encíclica de João XXIII: " A autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus. Por isso, se os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência dos cidadãos. (...) Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder ".95 O mesmo ensinamento aparece claramente em S. Tomás de Aquino, que escreve: " A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a recta razão: derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor, mas é um acto de violência ".96 E ainda: " Toda a lei constituída pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei natural. Se, ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei natural, então não é lei mas sim corrupção da lei ".97
Ora, a primeira e mais imediata aplicação desta doutrina diz respeito à lei humana que menospreza o direito fundamental e primordial à vida, direito próprio de cada homem. Assim, as leis que legitimam a eliminação directa de seres humanos inocentes, por meio do aborto e da eutanásia, estão em contradição total e insanável com o direito inviolável à vida, próprio de todos os homens, e negam a igualdade de todos perante a lei. Poder-se-ia objectar que é diverso o caso da eutanásia, quando pedida em plena consciência pelo sujeito interessado. Mas um Estado que legitimasse tal pedido, autorizando a sua realização, estaria a legalizar um caso de suicídio-homicídio, contra os princípios fundamentais da não- -disponibilidade da vida e da tutela de cada vida inocente. Deste modo, favorece-se a diminuição do respeito pela vida e abre-se a estrada a comportamentos demolidores da confiança nas relações sociais.
As leis que autorizam e favorecem o aborto e a eutanásia colocam-se, pois, radicalmente não só contra o bem do indivíduo, mas também contra o bem comum e, por conseguinte, carecem totalmente de autêntica validade jurídica. De facto, o menosprezo do direito à vida, exactamente porque leva a eliminar a pessoa, ao serviço da qual a sociedade tem a sua razão de existir, é aquilo que se contrapõe mais frontal e irreparavelmente à possibilidade de realizar o bem comum. Segue-se daí que, quando uma lei civil legitima o aborto ou a eutanásia, deixa, por isso mesmo, de ser uma verdadeira lei civil, moralmente obrigatória.
73. O aborto e a eutanásia são, portanto, crimes que nenhuma lei humana pode pretender legitimar. Leis deste tipo não só não criam obrigação alguma para a consciência, como, ao contrário, geram uma grave e precisa obrigação de opor-se a elas através da objecção de consciência. Desde os princípios da Igreja, a pregação apostólica inculcou nos cristãos o dever de obedecer às autoridades públicas legitimamente constituídas (cf. Rm 13, 1-7; 1 Ped 2, 13-14), mas, ao mesmo tempo, advertiu firmemente que " importa mais obedecer a Deus do que aos homens " (Act 5, 29). Já no Antigo Testamento e a propósito de ameaças contra a vida, encontramos um significativo exemplo de resistência à ordem injusta da autoridade. As parteiras dos hebreus opuseram-se ao Faraó, que lhes tinha dado a ordem de matarem todos os rapazes por ocasião do parto. " Não cumpriram a ordem do rei do Egipto, e deixaram viver os rapazes " (Ex 1, 17). Mas há que salientar o motivo profundo deste seu comportamento: " As parteiras temiam a Deus " (Ex 1, 17). É precisamente da obediência a Deus - o único a Quem se deve aquele temor que significa reconhecimento da sua soberania absoluta - que nascem a força e a coragem de resistir às leis injustas dos homens. É a força e a coragem de quem está disposto mesmo a ir para a prisão ou a ser morto à espada, na certeza de que nisto " está a paciência e a fé dos Santos " (Ap 13, 10).
Portanto, no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito conformar-se com ela, " nem participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem dar-lhe a aprovação com o próprio voto ".98
Um particular problema de consciência poder-se-ia pôr nos casos em que o voto parlamentar fosse determinante para favorecer uma lei mais restritiva, isto é, tendente a restringir o número dos abortos autorizados, como alternativa a uma lei mais permissiva já em vigor ou posta a votação. Não são raros tais casos. Sucede, com efeito, que, enquanto, nalgumas partes do mundo, continuam as campanhas para a introdução de leis favoráveis ao aborto, tantas vezes apoiadas por organismos internacionais poderosos, noutras nações, pelo contrário - particularmente naquelas que já fizeram a amarga experiência de tais legislações permissivas -, vão-se manifestando sinais de reconsideração. No caso hipotizado, quando não fosse possível esconjurar ou abrogar completamente uma lei abortista, um deputado, cuja absoluta oposição pessoal ao aborto fosse clara e conhecida de todos, poderia licitamente oferecer o próprio apoio a propostas que visassem limitar os danos de uma tal lei e diminuir os seus efeitos negativos no âmbito da cultura e da moralidade pública. Ao proceder assim, de facto, não se realiza a colaboração ilícita numa lei injusta; mas cumpre-se, antes, uma tentativa legítima e necessária para limitar os seus aspectos iníquos.
74. A introdução de legislações injustas põe frequentemente os homens moralmente rectos frente a difíceis problemas de consciência em matéria de colaboração, por causa da imperiosa afirmação do próprio direito de não ser obrigado a participar em acções moralmente más. Às vezes, as opções que se impõem tomar, são dolorosas e podem requerer o sacrifício de posições profissionais consolidadas ou a renúncia a legítimas perspectivas de promoção na carreira. Noutros casos, pode acontecer que o cumprimento de algumas acções, em si mesmas indiferentes ou mesmo até positivas, previstas no articulado de legislações globalmente injustas, consinta a salvaguarda de vidas humanas ameaçadas. Mas, por outro lado, pode-se justamente temer que a disponibilidade a realizar tais acções não só provoque um escândalo e favoreça o enfraquecimento da oposição necessária aos atentados contra a vida, como insensivelmente induza também a conformar-se cada vez mais com uma lógica permissiva.
Para iluminar esta difícil questão moral, é preciso recorrer aos princípios gerais referentes à cooperação em acções moralmente más. Os cristãos, como todos os homens de boa vontade, são chamados, sob grave dever de consciência, a não prestar a sua colaboração formal em acções que, apesar de admitidas pela legislação civil, estão em contraste com a lei de Deus. Na verdade, do ponto de vista moral, nunca é lícito cooperar formalmente no mal. E essa cooperação verifica-se quando a acção realizada, pela sua própria natureza ou pela configuração que tem assumido num contexto concreto, se qualifica como participação directa num acto contra a vida humana inocente ou como aprovação da intenção moral do agente principal. Tal cooperação nunca pode ser justificada invocando o respeito da liberdade alheia, nem apoiando-se no facto de que a lei civil a prevê e requer: com efeito, nos actos cumpridos pessoalmente por cada um, existe uma responsabilidade moral, à qual ninguém poderá jamais subtrair-se e sobre a qual cada um será julgado pelo próprio Deus (cf. Rm 2, 6; 14, 12).
Recusar a própria participação para cometer uma injustiça é não só um dever moral, mas também um direito humano basilar. Se assim não fosse, a pessoa seria constrangida a cumprir uma acção intrinsecamente incompatível com a sua dignidade e, desse modo, ficaria radicalmente comprometida a sua própria liberdade, cujo autêntico sentido e fim reside na orientação para a verdade e o bem. Trata-se, pois, de um direito essencial que, precisamente como tal, deveria estar previsto e protegido pela própria lei civil. Nesse sentido, a possibilidade de se recusar a participar na fase consultiva, preparatória e executiva de semelhantes actos contra a vida, deveria ser assegurada aos médicos, aos outros profissionais da saúde e aos responsáveis pelos hospitais, clínicas e casas de saúde. Quem recorre à objecção de consciência deve ser salvaguardado não apenas de sanções penais, mas ainda de qualquer dano no plano legal, disciplinar, económico e profissional.
" Amarás ao teu próximo como a ti mesmo " (Lc 10, 27): " promove " a vida
75. Os mandamentos de Deus ensinam-nos o caminho da vida. Os preceitos morais negativos, isto é, aqueles que declaram moralmente inaceitável a escolha de uma determinada acção, têm um valor absoluto para a liberdade humana: valem sempre e em todas as circunstâncias, sem excepção. Indicam que a escolha de determinado comportamento é radicalmente incompatível com o amor a Deus e com a dignidade da pessoa, criada à sua imagem: por isso, tal escolha não pode ser resgatada pela bondade de qualquer intenção ou consequência, está em contraste insanável com a comunhão entre as pessoas, contradiz a decisão fundamental de orientar a própria vida para Deus.99
Já neste sentido, os preceitos morais negativos têm uma função positiva importantíssima: o "não" que exigem incondicionalmente, aponta o limite intransponível abaixo do qual o homem livre não pode descer, e simultaneamente indica o mínimo que ele deve respeitar e do qual deve partir para pronunciar inumeráveis " sins ", capazes de cobrir progressivamente todo o horizonte do bem (cf. Mt 5, 48), em cada um dos seus âmbitos. Os mandamentos, de modo particular os preceitos morais negativos, são o início e a primeira etapa necessária do caminho da liberdade: " A primeira liberdade - escreve Santo Agostinho - consiste em estar isento de crimes (...), como seja o homicídio, o adultério, a fornicação, o roubo, a fraude, o sacrilégio, e assim por diante. Quando alguém começa a não ter estes crimes (e nenhum cristão os deve ter), começa a levantar a cabeça para a liberdade, mas isto é apenas o início da liberdade, não a liberdade perfeita ".100
76. O mandamento " não matarás " estabelece, pois, o ponto de partida de um caminho de verdadeira liberdade, que nos leva a promover activamente a vida e a desenvolver determinadas atitudes e comportamentos ao seu serviço: procedendo assim, exercemos a nossa responsabilidade para com as pessoas que nos estão confiadas, e manifestamos, em obras e verdade, o nosso reconhecimento a Deus pelo grande dom da vida (cf. Sal 139138, 13-14).
O Criador confiou a vida do homem à sua solicitude responsável, não para que disponha arbitrariamente dela mas a guarde com sabedoria e administre com amorosa fidelidade. O Deus da Aliança confiou a vida de cada homem ao homem, seu irmão, segundo a lei da reciprocidade no dar e no receber, no dom de si e no acolhimento do outro. Na plenitude dos tempos, o Filho de Deus, encarnando e dando a sua vida pelo homem, mostrou a altura e profundidade a que pode chegar esta lei da reciprocidade. Com o dom do seu Espírito, Cristo dá conteúdos e significados novos à lei da reciprocidade, à entrega do homem ao homem. O Espírito, que é artífice de comunhão no amor, cria entre os homens uma nova fraternidade e solidariedade, verdadeiro reflexo do mistério de recíproca doação e acolhimento próprios da Santíssima Trindade. O próprio Espírito torna-Se a lei nova, que dá força aos crentes e apela à sua responsabilidade para viverem reciprocamente o dom de si e o acolhimento do outro, participando no próprio amor de Jesus Cristo e segundo a sua medida.
77. Animado e plasmado por esta lei nova está também o mandamento que diz " não matarás ". Para o cristão, isto implica, em última análise, o imperativo de respeitar, amar e promover a vida de cada irmão, segundo as exigências e as dimensões do amor de Deus em Jesus Cristo. " Ele deu a Sua vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos " (1 Jo 3, 16).
O mandamento " não matarás ", inclusive nos seus conteúdos mais positivos de respeito, amor e promoção da vida humana, vincula todo o homem. De facto, ressoa na consciência moral de cada um como um eco irreprimível da aliança primordial de Deus criador com o homem; todos o podem conhecer pela luz da razão e observar pela obra misteriosa do Espírito que, soprando onde quer (cf. Jo 3, 8), alcança e inspira todo o homem que vive neste mundo.
Constitui, portanto, um serviço de amor, aquele que todos estamos empenhados em assegurar ao nosso próximo, para que a sua vida seja defendida e promovida sempre, mas sobretudo quando é mais débil ou ameaçada. É uma solicitude pessoal mas também social, que todos devemos cultivar, pondo o respeito incondicional da vida humana como fundamento de uma sociedade renovada.
É-nos pedido que amemos e honremos a vida de cada homem e de cada mulher, e que trabalhemos, com constância e coragem, para que, no nosso tempo atravessado por demasiados sinais de morte, se instaure finalmente uma nova cultura da vida, fruto da cultura da verdade e do amor.
CAPÍTULO IV - A MIM O FIZESTES
POR UMA NOVA CULTURA DA VIDA HUMANA
" Vós sois o povo adquirido por Deus, para proclamardes as suas obras maravilhosas " (1 Ped 2, 9): o povo da vida e pela vida
78. A Igreja recebeu o Evangelho, como anúncio e fonte de alegria e de salvação. Recebeu-o em dom de Jesus, que foi enviado pelo Pai " para anunciar a Boa Nova aos pobres " (Lc 4, 18). Recebeu-o através dos Apóstolos, que o Mestre enviou pelo mundo inteiro (cf. Mc 16, 15; Mt 28, 19-20). Nascida desta acção missionária, a Igreja ouve ressoar em si mesma todos os dias aquela palavra de incitamento apostólico: " Ai de mim se não evangelizar! " (1 Cor 9, 16). " Evangelizar - como escrevia Paulo VI - constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar ".101
A evangelização é uma acção global e dinâmica que envolve a Igreja na sua participação da missão profética, sacerdotal e real do Senhor Jesus. Por isso, a evangelização compreende indivisivelmente as dimensões do anúncio, da celebração e do serviço da caridade. É um acto profundamente eclesial, que compromete todos os operários do Evangelho, cada um segundo os seus carismas e o próprio ministério.
O mesmo acontece quando se trata de anunciar o Evangelho da vida, parte integrante do Evangelho que é Jesus Cristo. Nós estamos ao serviço deste Evangelho, amparados na certeza de o termos recebido em dom e de sermos enviados a proclamá-lo a toda a humanidade, " até aos confins do mundo " (Act 1, 8). Por isso, grata e humildemente conservamos a consciência de ser o povo da vida e pela vida e assim nos apresentamos diante de todos.
79. Somos o povo da vida, porque Deus, no seu amor generoso, deu-nos o Evangelho da vida e, por este mesmo Evangelho, fomos transformados e salvos. Fomos reconquistados pelo " Príncipe da vida " (Act 3, 15), com o preço do seu sangue precioso (cf. 1 Cor 6, 20; 7, 23; 1 Ped 1, 19), e, pelo banho baptismal, fomos enxertados n'Ele (cf. Rm 6, 4-5; Col 2, 12) como ramos que recebem seiva e fecundidade da única árvore (cf. Jo 15, 5). Interiormente renovados pela graça do Espírito, " Senhor que dá a vida ", tornámo-nos um povo pela vida, e como tal somos chamados a comportar-nos.
Somos enviados: estar ao serviço da vida não é para nós um título de glória, mas um dever que nasce da consciência de sermos " o povo adquirido por Deus para proclamar as suas obras maravilhosas " (cf. 1 Ped 2, 9). No nosso caminho, guia-nos e anima-nos a lei do amor: um amor, cuja fonte e modelo é o Filho de Deus feito homem que " pela sua morte deu a vida ao mundo ".102
Somos enviados como povo. O compromisso de servir a vida incumbe sobre todos e cada um. É uma responsabilidade tipicamente " eclesial ", que exige a acção concertada e generosa de todos os membros e estruturas da comunidade cristã. Mas a sua característica de dever comunitário não elimina nem diminui a responsabilidade de cada pessoa, a quem é dirigido o mandamento do Senhor de " fazer-se próximo " de todo o homem: " Vai e faz tu também do mesmo modo " (Lc 10, 37).
Todos juntos sentimos o dever de anunciar o Evangelho da vida, de o celebrar na liturgia e na existência inteira, de o servir com as diversas iniciativas e estruturas de apoio e promoção.
" O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos " (1 Jo 1, 3): anunciar o Evangelho da vida
80. " O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida (...) isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco " (1 Jo 1, 1.3). Jesus é o único Evangelho: Ele é tudo o que temos para dizer e testemunhar.
O próprio anúncio de Jesus é anúncio da vida. Ele, de facto, é o " Verbo da vida " (1 Jo 1, 1). N'Ele, " a vida manifestou-se " (1 Jo 1, 2); melhor, Ele mesmo é a " vida eterna que estava no Pai e que nos foi manifestada " (1 Jo 1, 2). Esta mesma vida, graças ao dom do Espírito, foi comunicada ao homem. Orientada para a vida em plenitude - a " vida eterna " -, também a vida terrena de cada um adquire o seu sentido pleno.
Iluminados pelo Evangelho da vida, sentimos a necessidade de o proclamar e testemunhar pela surpreendente novidade que o caracteriza: identificando-se com o próprio Jesus, portador de toda a novidade 103 e vencedor daquele " envelhecimento " que provém do pecado e conduz à morte,104 este Evangelho supera toda a expectativa do homem e revela a grandeza excelsa, a que a dignidade da pessoa é elevada pela graça. Assim a contempla S. Gregório de Nissa: " Quando comparado com os outros seres, o homem nada vale, é pó, erva, ilusão; mas, uma vez adoptado como filho pelo Deus do universo, é feito familiar deste Ser, cuja excelência e grandeza ninguém pode ver, ouvir nem compreender. Com que palavra, pensamento ou arroubo de espírito poderemos celebrar a superabundância desta graça? O homem supera a sua natureza: de mortal passa a imortal, de perecível a imperecível, de efémero a eterno, de homem torna-se deus ".105
A gratidão e a alegria por esta dignidade incomensurável do homem incitam-nos a tornar os demais participantes desta mensagem: " O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco " (1 Jo 1, 3). É necessário fazer chegar o Evangelho da vida ao coração de todo o homem e mulher, e inseri-lo nas pregas mais íntimas do tecido da sociedade inteira.
81. Trata-se em primeiro lugar de anunciar o núcleo deste Evangelho: é o anúncio de um Deus vivo e solidário, que nos chama a uma profunda comunhão Consigo e nos abre à esperança segura da vida eterna; é a afirmação do laço indivisível que existe entre a pessoa, a sua vida e a própria corporeidade; é a apresentação da vida humana como vida de relação, dom de Deus, fruto e sinal do seu amor; é a proclamação da extraordinária relação de Jesus com todo o homem, que permite reconhecer o rosto de Cristo em cada rosto humano; é a indicação do " dom sincero de si " como tarefa e lugar de plena realização da própria liberdade.
Importa, depois, mostrar todas as consequências deste mesmo Evangelho, que se podem resumir assim: a vida humana, dom precioso de Deus, é sagrada e inviolável, e, por isso mesmo, o aborto provocado e a eutanásia são absolutamente inaceitáveis; a vida do homem não apenas não deve ser eliminada, mas há-de ser protegida com toda a atenção e carinho; a vida encontra o seu sentido no amor recebido e dado, em cujo horizonte haurem plena verdade a sexualidade e a procriação humana; nesse amor, até mesmo o sofrimento e a morte têm um sentido, podendo tornar-se acontecimentos de salvação, não obstante perdurar o mistério que os envolve; o respeito pela vida exige que a ciência e a técnica estejam sempre orientadas para o homem e para o seu desenvolvimento integral; a sociedade inteira deve respeitar, defender e promover a dignidade de toda a pessoa humana, em cada momento e condição da sua vida.
82. Para sermos verdadeiramente um povo ao serviço da vida, temos de propor, com constância e coragem, estes conteúdos, desde o primeiro anúncio do Evangelho, e, depois, na catequese e nas diversas formas de pregação, no diálogo pessoal e em toda a acção educativa. Aos educadores, professores, catequistas e teólogos, incumbe o dever de pôr em destaque as razões antropológicas que fundamentam e apoiam o respeito de cada vida humana. Desta forma, ao mesmo tempo que faremos resplandecer a original novidade do Evangelho da vida, poderemos ajudar os demais a descobrirem, inclusive à luz da razão e da experiência, como a mensagem cristã ilumina plenamente o homem e o significado do seu ser e existir; encontraremos valiosos pontos de encontro e diálogo também com os não crentes, empenhados todos juntos a fazer despertar uma nova cultura da vida.
Cercados pelas vozes mais constrastantes, enquanto muitos rejeitam a sã doutrina sobre a vida do homem, sentimos dirigida a nós a recomendação de Paulo a Timóteo: " Prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, censura e exorta com bondade e doutrina " (2 Tm 4, 2). Com particular vigor, há-de ressoar esta exortação no coração de quantos na Igreja, mais directamente e a diverso título, participam da sua missão de " mestra " da verdade. Ressoe, antes de mais, em nós, Bispos, que somos os primeiros a quem é pedido tornar-se incansável anunciador do Evangelho da vida; está-nos confiado também o dever de vigiar sobre a transmissão íntegra e fiel do ensinamento proposto nesta Encíclica, e de recorrer às medidas mais oportunas para que os fiéis sejam preservados de toda a doutrina contrária ao mesmo. Havemos de dedicar especial atenção às Faculdades Teológicas, aos Seminários e às diversas Instituições Católicas, para que aí seja comunicado, ilustrado e aprofundado o conhecimento da sã doutrina.106 A exortação de Paulo seja também ouvida por todos os teólogos, pastores e quantos desempenham tarefas de ensino, catequese e formação das consciências: cientes do papel que lhes cabe, não assumam nunca a grave responsabilidade de atraiçoar a verdade e a própria missão, expondo ideias pessoais contrárias ao Evangelho da vida, que o Magistério fielmente propõe e interpreta.
Quando anunciarmos este Evangelho, não devemos temer a oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambiguidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo (cf. Rm 12, 2). Com a força recebida de Cristo, que venceu o mundo pela sua morte e ressurreição (cf. Jo 16, 33), devemos estar no mundo, mas não ser do mundo (cf. Jo 15, 19; 17, 16).
" Eu Vos louvo porque me fizestes como um prodígio " (Sal 139138, 14): celebrar o Evangelho da vida
83. Enviados ao mundo como " povo pela vida ", o nosso anúncio deve tornar-se também uma verdadeira e própria celebração do Evangelho da vida. É precisamente esta celebração, com toda a força evocativa dos seus gestos, símbolos e ritos, que se torna o lugar mais precioso e significativo para transmitir a beleza e a grandeza desse Evangelho.
Para isso, urge, antes de mais, cultivar, em nós e nos outros, um olhar contemplativo.107 Este nasce da fé no Deus da vida, que criou cada homem fazendo dele um prodígio (cf. Sal 139138, 14). É o olhar de quem observa a vida em toda a sua profundidade, reconhecendo nela as dimensões de generosidade, beleza, apelo à liberdade e à responsabilidade. É o olhar de quem não pretende apoderar-se da realidade, mas a acolhe como um dom, descobrindo em todas as coisas o reflexo do Criador e em cada pessoa a sua imagem viva (cf. Gn 1, 27; Sal 8, 6). Este olhar não se deixa cair em desânimo à vista daquele que se encontra enfermo, atribulado, marginalizado, ou às portas da morte; mas deixa-se interpelar por todas estas situações procurando nelas um sentido, sendo, precisamente em tais circunstâncias, que se apresenta disponível para ler de novo no rosto de cada pessoa um apelo ao entendimento, ao diálogo, à solidariedade.
É tempo de todos assumirem este olhar, tornando-se novamente capazes de venerar e honrar cada homem, com ânimo repleto de religioso assombro, como nos convidava a fazer Paulo VI numa das suas mensagens natalícias.108 Animado por este olhar contemplativo, o povo novo dos redimidos não pode deixar de prorromper em hinos de alegria, louvor e gratidão pelo dom inestimável da vida, pelo mistério do chamamento de todo o homem a participar, em Cristo, na vida da graça e numa existência de comunhão sem fim com Deus Criador e Pai.
84. Celebrar o Evangelho da vida significa celebrar o Deus da vida, o Deus que dá a vida: " Nós devemos celebrar a Vida eterna, da qual procede qualquer outra vida. Dela recebe a vida, na proporção das respectivas capacidades, todo o ser que, de algum modo, participa da vida. Essa Vida divina, que está acima de qualquer vida, vivifica e conserva a vida. Toda a vida e qualquer movimento vital procedem desta Vida que transcende cada vida e cada princípio de vida. A Ela devem as almas a sua incorruptibilidade, como também vivem, graças a Ela, todos os animais e todas as plantas que recebem da vida um eco mais débil. Aos homens, seres compostos de espírito e matéria, a Vida dá a vida. Se depois nos acontece abandoná-la, então a Vida, pelo transbordar do seu amor pelo homem, converte-nos e chama-nos a Si. E mais... Promete também conduzir-nos - alma e corpo - à vida perfeita, à imortalidade. É demasiado pouco dizer que esta Vida é viva: Ela é Princípio de vida, Causa e Fonte única de vida. Todo o vivente deve contemplá-la e louvá-la: é Vida que transborda de vida ".109
Como o Salmista, também nós, na oração diária individual e comunitária, louvamos e bendizemos a Deus nosso Pai que nos plasmou no seio materno, viu-nos e amou-nos quando estávamos ainda em embrião (cf. Sal 139138, 13.15-16), e exclamamos, com alegria irreprimível: " Eu Vos louvo porque me fizestes como um prodígio; as vossas obras são admiráveis, conheceis a sério a minha alma " (Sal 139138, 14). Sim, " esta vida mortal, não obstante as suas aflições, os seus mistérios obscuros, os seus sofrimentos, a sua fatal caducidade, é um facto belíssimo, um prodígio sempre original e enternecedor, um acontecimento digno de ser cantado com júbilo e glória ".110 Mais, o homem e a sua vida não se revelam apenas como um dos prodígios mais altos da criação: Deus conferiu ao homem uma dignidade quase divina (cf. Sal 8, 6-7). Em cada criança que nasce e em cada homem que vive ou morre, reconhecemos a imagem da glória de Deus: nós celebramos esta glória em cada homem, sinal do Deus vivo, ícone de Jesus Cristo.
Somos chamados a exprimir assombro e gratidão pela vida recebida em dom e a acolher, saborear e comunicar o Evangelho da vida, não só através da oração pessoal e comunitária, mas sobretudo com as celebrações do ano litúrgico. No mesmo contexto, há que recordar, de modo particular, os Sacramentos, sinais eficazes da presença e acção salvadora do Senhor Jesus na existência cristã: tornam os homens participantes da vida divina, assegurando-lhes a energia espiritual necessária para realizarem plenamente o verdadeiro significado do viver, do sofrer e do morrer. Graças a uma genuína descoberta do sentido dos ritos e à sua adequada valorização, as celebrações litúrgicas, sobretudo as sacramentais, serão capazes de exprimir cada vez melhor a verdade plena acerca do nascimento, da vida, do sofrimento e da morte, ajudando a viver estas realidades como participação no mistério pascal de Cristo morto e ressuscitado.
85. Na celebração do Evangelho da vida, é preciso saber apreciar e valorizar também os gestos e os símbolos, de que são ricas as diversas tradições e costumes culturais dos povos. Trata-se de momentos e formas de encontro, pelos quais, nos diversos países e culturas, se manifesta a alegria pela vida que nasce, o respeito e defesa de cada existência humana, o cuidado por quem sofre ou passa necessidade, a solidariedade com o idoso ou o moribundo, a partilha da tristeza de quem está de luto, a esperança e o desejo da imortalidade.
Nesta perspectiva e acolhendo a sugestão feita pelos Cardeais no Consistório de 1991, proponho que se celebre anualmente um Dia em defesa da Vida, nas diversas Nações, à semelhança do que já se verifica por iniciativa de algumas Conferências Episcopais. É necessário que essa ocorrência seja preparada e celebrada com a activa participação de todas as componentes da Igreja local. O seu objectivo principal é suscitar nas consciências, nas famílias, na Igreja e na sociedade, o reconhecimento do sentido e valor da vida humana em todos os seus momentos e condições, concentrando a atenção de modo especial na gravidade do aborto e da eutanásia, sem contudo transcurar os outros momentos e aspectos da vida que merecem ser, de vez em quando, tomados em atenta consideração, conforme a evolução da situação histórica sugerir.
86. Em coerência com o culto espiritual agradável a Deus (cf.Rm 12, 1), a celebração do Evangelho da vida requer a sua concretização sobretudo na existência quotidiana, vivida no amor pelos outros e na doação de si próprio. Assim, toda a nossa existência tornar-se-á acolhimento autêntico e responsável do dom da vida e louvor sincero e agradecido a Deus que nos fez esse dom. É o que sucede já com tantos e tantos gestos de doação, frequentemente humilde e escondida, cumpridos por homens e mulheres, crianças e adultos, jovens e idosos, sãos e doentes.
É neste contexto, rico de humanidade e amor, que nascem também os gestos heróicos. Estes são a celebração mais solene do Evangelho da vida, porque o proclamam com o dom total de si; são a manifestação refulgente do mais elevado grau de amor, que é dar a vida pela pessoa amada (cf. Jo 15, 13); são a participação no mistério da Cruz, na qual Jesus revela quão grande valor tem para Ele a vida de cada homem e como esta se realiza em plenitude no dom sincero de si. Além dos factos clamorosos, existe o heroísmo do quotidiano, feito de pequenos ou grandes gestos de partilha que alimentam uma autêntica cultura da vida. Entre estes gestos, merece particular apreço a doação de órgãos feita, segundo formas eticamente aceitáveis, para oferecer uma possibilidade de saúde e até de vida a doentes, por vezes já sem esperança.
A tal heroísmo do quotidiano, pertence o testemunho silencioso, mas tão fecundo e eloquente, de " todas as mães corajosas, que se dedicam sem reservas à própria família, que sofrem ao dar à luz os próprios filhos, e depois estão prontas a abraçar qualquer fadiga e a enfrentar todos os sacrifícios, para lhes transmitir quanto de melhor elas conservam em si ".111 No cumprimento da sua missão, " nem sempre estas mães heróicas encontram apoio no seu ambiente. Antes, os modelos de civilização, com frequência promovidos e propagados pelos meios de comunicação, não favorecem a maternidade. Em nome do progresso e da modernidade, são apresentados como já superados os valores da fidelidade, da castidade e do sacrifício, nos quais se distinguiram e continuam a distinguir-se multidões de esposas e de mães cristãs. (...) Nós vos agradecemos, mães heróicas, o vosso amor invencível! Nós vos agradecemos a intrépida confiança em Deus e no seu amor. Nós vos agradecemos o sacrifício da vossa vida. (...) Cristo, no Mistério Pascal, restituiu-vos o dom que Lhe fizestes. Ele, de facto, tem o poder de vos restituir a vida, que Lhe levastes em oferenda ".112
" De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé se não tiver obras? " (Tg 2, 14): servir o Evangelho da vida
87. Em virtude da participação na missão real de Cristo, o apoio e a promoção da vida humana devem actuar-se através do serviço da caridade, que se exprime no testemunho pessoal, nas diversas formas de voluntariado, na animação social e no compromisso político. Trata-se de uma exigência sobremaneira premente na hora actual, em que a " cultura da morte " se contrapõe à " cultura da vida ", de forma tão forte que muitas vezes parece levar a melhor. Antes ainda, porém, trata-se de uma exigência que nasce da " fé que actua pela caridade " (Gal 5, 6), como nos adverte a Carta de S. Tiago: " De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé se não tiver obras? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhe disser: "Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos", sem lhes dar o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, é morta em si mesma " (2, 14-17).
No serviço da caridade, há uma atitude que nos há-de animar e caracterizar: devemos cuidar do outro enquanto pessoa confiada por Deus à nossa responsabilidade. Como discípulos de Jesus, somos chamados a fazermo-nos próximo de cada homem (cf. Lc 10, 29-37), reservando uma preferência especial a quem vive mais pobre, sozinho e necessitado. É precisamente através da ajuda prestada ao faminto, ao sedento, ao estrangeiro, ao nu, ao doente, ao encarcerado - como também à criança ainda não nascida, ao idoso que está doente ou perto da morte -, que temos a possibilidade de servir Jesus, como Ele mesmo declarou: " Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes " (Mt 25, 40). Por isso, não podemos deixar de nos sentir interpelados e julgados por esta página sempre actual de S. João Crisóstomo: " Queres honrar o corpo de Cristo? Não O transcures quando se encontrar nu! Não vale prestares honras aqui no templo com tecidos de seda, e depois transcurá-Lo lá fora, onde sofre frio e nudez ".113
O serviço da caridade a favor da vida deve ser profundamente unitário: não pode tolerar unilateralismos e discriminações, já que a vida humana é sagrada e inviolável em todas as suas fases e situações; é um bem indivisível. Trata-se de "cuidar " da vida toda e da vida de todos. Ou melhor ainda e mais profundamente, trata-se de ir até às próprias raízes da vida e do amor.
Partindo exactamente deste amor profundo por todo o homem e mulher, foi-se desenvolvendo, ao longo dos séculos, uma extraordinária história de caridade, que introduziu, na vida eclesial e civil, numerosas estruturas de serviço à vida, que suscitam a admiração até do observador menos prevenido. É uma história que cada comunidade cristã deve, com renovado sentido de responsabilidade, continuar a escrever graças a uma múltipla acção pastoral e social. Neste sentido, é preciso criar formas discretas mas eficazes de acompanhamento da vida nascente, prestando uma especial solidariedade àquelas mães que, mesmo privadas do apoio do pai, não temem trazer ao mundo o seu filho e educá-lo. Cuidado análogo deve ser reservado à vida provada pela marginalização ou pelo sofrimento, de forma particular nas suas etapas finais.
88. Tudo isto comporta uma obra educativa paciente e corajosa, que estimule todos e cada um a carregar os fardos dos outros (cf. Gal 6, 2); requer uma contínua promoção das vocações ao serviço, particularmente entre os jovens; implica a realização de projectos e iniciativas concretas, sólidas e inspiradas evangelicamente.
Múltiplos são os instrumentos a valorizar por um empenho competente e sério. Relativamente às fontes da vida, sejam promovidos os centros com os métodos naturais de regulação da fertilidade, como válida ajuda à paternidade e maternidade responsável, na qual cada pessoa, a começar do filho, é reconhecida e respeitada por si mesma, e cada decisão é animada e guiada pelo critério do dom sincero de si. Também os consultórios matrimoniais e familiares, através da sua acção específica de consulta e prevenção, desenvolvida à luz de uma antropologia coerente com a visão cristã da pessoa, do casal e da sexualidade, constituem um precioso serviço para descobrir o sentido do amor e da vida, e para apoiar e assistir cada família na sua missão de " santuário da vida ". Ao serviço da vida nascente, estão ainda os centros de ajuda à vida e os lares de acolhimento da vida. Graças à sua acção, tantas mães-solteiras e casais em dificuldade readquirem razões e convicções, e encontram assistência e apoio para superar contrariedades e medos no acolhimento de uma vida nascitura ou que acaba de vir à luz.
Diante da vida condicionada por dificuldades, extravio, doença ou marginalização, outros instrumentos - como as comunidades para a recuperação dos toxicodependentes, os lares para abrigo de menores ou dos doentes mentais, os centros para acolhimento e tratamento dos doentes da SIDA, as Cooperativas de solidariedade sobretudo para inválidos - são expressões eloquentes daquilo que a caridade sabe inventar para dar novas razões de esperança e possibilidades concretas de vida a cada um.
Quando, depois, a existência terrena se encaminha para o seu termo, é ainda a caridade que encontra as modalidades mais oportunas para os idosos, sobretudo se não-autosuficientes, e os chamados doentes terminais poderem gozar de uma assistência verdadeiramente humana e receber respostas adequadas às suas exigências, especialmente à sua angústia e solidão. Nestes casos, é insubstituível o papel das famílias; mas estas podem encontrar grande ajuda nas estruturas sociais de assistência e, quando necessário, no recurso aos cuidados paliativos, valendo-se para o efeito dos idóneos serviços clínicos e sociais, sejam os existentes nos edifícios públicos de internamento e tratamento, sejam os disponíveis para apoio no domicílio.
Em particular, ocorre reconsiderar o papel dos hospitais, das clínicas e das casas de saúde: a sua verdadeira identidade não é a de serem apenas estruturas onde se cuida dos enfermos e doentes terminais, mas e primariamente ambientes nos quais o sofrimento, a dor e a morte sejam reconhecidos e interpretados no seu significado humano e especificamente cristão. De modo especial, tal identidade deve manifestar-se clara e eficientemente nas instituições dependentes de religiosos ou, de alguma maneira, ligadas à Igreja.
89. Estas estruturas e lugares de serviço à vida, e todas as demais iniciativas de apoio e solidariedade, que as diversas situações poderão sugerir em cada ocasião, precisam de ser animados por pessoas generosamente disponíveis e profundamente conscientes de quão decisivo seja o Evangelho da vida para o bem do indivíduo humano e da sociedade.
Peculiar é a responsabilidade confiada aos profissionais da saúde - médicos, farmacêuticos, enfermeiros, capelães, religiosos e religiosas, administradores e voluntários: a sua profissão pede-lhes que sejam guardiães e servidores da vida humana. No actual contexto cultural e social, em que a ciência e a arte médica correm o risco de extraviar-se da sua dimensão ética originária, podem ser às vezes fortemente tentados a transformarem-se em fautores de manipulação da vida, ou mesmo até em agentes de morte. Perante tal tentação, a sua responsabilidade é hoje muito maior e encontra a sua inspiração mais profunda e o apoio mais forte precisamente na intrínseca e imprescindível dimensão ética da profissão clínica, como já reconhecia o antigo e sempre actual juramento de Hipócrates, segundo o qual é pedido a cada médico que se comprometa no respeito absoluto da vida humana e da sua sacralidade.
O respeito absoluto de cada vida humana inocente exige inclusivamente o exercício da objecção de consciência frente ao aborto provocado e à eutanásia. O " fazer morrer " nunca pode ser considerado um cuidado médico, nem mesmo quando a intenção fosse apenas a de secundar um pedido do paciente: pelo contrário, é a própria negação da profissão médica, que se define como um apaixonado e vigoroso " sim " à vida. Também a pesquisa biomédica, campo fascinante e promissor de novos e grandes benefícios para a humanidade, deve sempre rejeitar experiências, investigações ou aplicações que, menosprezando a dignidade inviolável do ser humano, deixam de estar ao serviço dos homens para se transformarem em realidades que, parecendo socorrê-los, efectivamente os oprimem.
90. Um papel específico são chamadas a desempenhar as pessoas empenhadas no voluntariado: oferecem um contributo precioso ao serviço da vida, quando sabem conjugar capacidade profissional com um amor generoso e gratuito. O Evangelho da vida impele-as a elevarem os sentimentos de simples filantropia até à altura da caridade de Cristo; a reavivarem diariamente, por entre fadigas e cansaços, a consciência da dignidade de cada homem; a irem à procura das carências das pessoas, iniciando - se necessário - novos caminhos em lugares onde a necessidade é mais urgente, e a atenção e o apoio menos consistentes.
O realismo pertinaz da caridade exige que o Evangelho da vida seja servido ainda por meio de formas de animação social e de empenho político, que defendam e proponham o valor da vida nas nossas sociedades cada vez mais complexas e pluralistas. Indivíduos, famílias, grupos, entidades associativas têm a sua responsabilidade, mesmo se a título e com método diverso, na animação social e na elaboração de projectos culturais, económicos, políticos e legislativos que, no respeito de todos e segundo a lógica da convivência democrática, contribuam para edificar uma sociedade, onde a dignidade de cada pessoa seja reconhecida e tutelada, e a vida de todos fique tutelada e promovida.
Semelhante tarefa incumbe, de modo particular, sobre os responsáveis da vida pública. Chamados a servir o homem e o bem comum, têm o dever de realizar opções corajosas a favor da vida, primeiro que tudo, no âmbito das disposições legislativas. Num regime democrático, onde as leis e as decisões se estabelecem sobre a base do consenso de muitos, pode atenuar-se na consciência dos indivíduos investidos de autoridade o sentido da responsabilidade pessoal. Mas ninguém pode jamais abdicar desta responsabilidade, sobretudo quando tem um mandato legislativo ou poder decisório que o chama a responder perante Deus, a própria consciência e a sociedade inteira de opções eventualmente contrárias ao verdadeiro bem comum. Se as leis não são o único instrumento para defender a vida humana, desempenham, contudo, um papel muito importante, por vezes determinante, na promoção de uma mentalidade e dos costumes. Afirmo, uma vez mais, que uma norma que viola o direito natural de um inocente à vida, é injusta e, como tal, não pode ter valor de lei. Por isso, renovo o meu veemente apelo a todos os políticos para não promulgarem leis que, ao menosprezarem a dignidade da pessoa, minam pela raiz a própria convivência social.
A Igreja sabe que é difícil actuar uma defesa legal eficaz da vida no contexto das democracias pluralistas, por causa da presença de fortes correntes culturais de matriz diversa. Todavia, movida pela certeza de que a verdade moral não pode deixar de ter eco no íntimo de cada consciência, ela encoraja os políticos - a começar pelos que são cristãos - a não se renderem, mas tomarem aquelas decisões que, tendo em conta as possibilidades concretas, levem a restabelecer uma ordem justa na afirmação e promoção do valor da vida. Nesta perspectiva, convém sublinhar que não basta eliminar as leis iníquas. Mas terão de ser removidas as causas que favorecem os atentados contra a vida, sobretudo garantindo o devido apoio à família e à maternidade: a política familiar deve constituir o ponto fulcral e o motor de todas as políticas sociais. Para isso, é necessário activar iniciativas sociais e legislativas, capazes de garantir condições de autêntica liberdade de escolha em ordem à paternidade e à maternidade; impõe-se, além disso, reordenar as políticas do emprego, de urbanização, da habitação, dos serviços sociais, para se conseguir conciliar entre si os tempos do trabalho e da família, tornando possível um efectivo cuidado das crianças e dos idosos.
91. Um capítulo importante da política em favor da vida é constituído hoje pela problemática demográfica. As autoridades públicas têm certamente a responsabilidade de intervir com válidas iniciativas " para orientar a demografia da população "; 114 mas tais iniciativas devem pressupor e respeitar sempre a responsabilidade primária e inalienável dos esposos e das famílias, e não podem recorrer a métodos desrespeitadores da pessoa e dos seus direitos fundamentais, a começar pelo direito à vida de todo o ser humano inocente. Por isso, é moralmente inaceitável que, para regular a natalidade, se encoraje ou até imponha o uso de meios como a contracepção, a esterilização e o aborto.
Bem diferentes são os caminhos para resolver o problema demográfico: os Governos e as várias instituições internacionais devem, antes de tudo, visar a criação de condições económicas, sociais, médico-sanitárias e culturais que permitam aos esposos realizarem as suas opções procriadoras, com plena liberdade e verdadeira responsabilidade; devem esforçar-se, depois, por " aumentar os meios e distribuir com maior justiça a riqueza, para que todos possam participar equitativamente dos bens da criação. São necessárias soluções a nível mundial, que instaurem uma verdadeira economia de comunhão e participação de bens, tanto na ordem internacional como nacional ".115 Esta é a única estrada que respeita a dignidade das pessoas e das famílias, como também o autêntico património cultural dos povos.
Vasto e complexo é, portanto, o serviço ao Evangelho da vida. Ele manifesta-se cada vez mais como âmbito precioso e favorável para uma efectiva colaboração com os irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, na linha daquele ecumenismo das obras que o Concílio Vaticano II, com autoridade, encorajou.116 Além disso, o referido serviço apresenta-se como espaço providencial para o diálogo e colaboração com os sequazes de outras religiões e com todos os homens de boa vontade: a defesa e a promoção da vida não são monopólio de ninguém, mas tarefa e responsabilidade de todos. O desafio que temos pela frente, na vigília do terceiro milénio, é árduo: somente a cooperação concorde de todos aqueles que acreditam no valor da vida, poderá evitar uma derrota da civilização com consequências imprevisíveis.
" Os filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um mimo do Senhor " (Sal 127126, 3): a família " santuário da vida "
92. No seio do " povo da vida e pela vida ", resulta decisiva a responsabilidade da família: é uma responsabilidade que brota da própria natureza dela - uma comunidade de vida e de amor, fundada sobre o matrimónio - e da sua missão que é " guardar, revelar e comunicar o amor ".117 Em causa está o próprio amor de Deus, do qual os pais são constituídos colaboradores e como que intérpretes na transmissão da vida e na educação da mesma segundo o seu projecto de Pai.118 É, por conseguinte, o amor que se faz generosidade, acolhimento, doação: na família, cada um é reconhecido, respeitado e honrado porque pessoa, e se alguém está mais necessitado, maior e mais diligente é o cuidado por ele.
A família tem a ver com os seus membros durante toda a existência de cada um, desde o nascimento até à morte. Ela é verdadeiramente " o santuário da vida (...), o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico ".119 Por isso, o papel da família é determinante e insubstituível na construção da cultura da vida.
Como igreja doméstica, a família é chamada a anunciar, celebrar e servir o Evangelho da vida. Esta tríplice função compete primariamente aos cônjuges, chamados a serem transmissores da vida, apoiados numa consciência sempre renovada do sentido da geração, enquanto acontecimento onde, de modo privilegiado, se manifesta que a vida humana é um dom recebido a fim de, por sua vez, ser dado. Na geração de uma nova vida, eles tomam consciência de que o filho " se é fruto da recíproca doação de amor dos pais, é, por sua vez, um dom para ambos: um dom que promana do dom ".120
A família cumpre a sua missão de anunciar o Evangelho da vida, principalmente através da educação dos filhos. Pela palavra e pelo exemplo, no relacionamento mútuo e nas opções quotidianas, e mediante gestos e sinais concretos, os pais iniciam os seus filhos na liberdade autêntica, que se realiza no dom sincero de si, e cultivam neles o respeito do outro, o sentido da justiça, o acolhimento cordial, o diálogo, o serviço generoso, a solidariedade e os demais valores que ajudam a viver a existência como um dom. A obra educadora dos pais cristãos deve constituir um serviço à fé dos filhos e prestar uma ajuda para eles cumprirem a vocação recebida de Deus. Entra na missão educadora dos pais ensinar e testemunhar aos filhos o verdadeiro sentido do sofrimento e da morte: podê-lo-ão fazer se souberem estar atentos a todo o sofrimento existente ao seu redor e, antes ainda, se souberem desenvolver atitudes de solidariedade, assistência e partilha com doentes e idosos no âmbito familiar.
93. Além disso, a família celebra o Evangelho da vida com a oração diária, individual e familiar: nela, agradece e louva o Senhor pelo dom da vida e invoca luz e força para enfrentar os momentos de dificuldade e sofrimento, sem nunca perder a esperança. Mas a celebração que dá significado a qualquer outra forma de oração e de culto é a que se exprime na existência quotidiana da família, quando esta é uma existência feita de amor e doação.
A celebração transforma-se assim num serviço ao Evangelho da vida, que se exprime através da solidariedade, vivida no seio e ao redor da família como atenção carinhosa, vigilante e cordial nas acções pequenas e humildes de cada dia. Uma expressão particularmente significativa de solidariedade entre as famílias é a disponibilidade para a adopção ou para o acolhimento das crianças abandonadas pelos seus pais ou, de qualquer modo, em situação de grave dificuldade. O verdadeiro amor paterno e materno sabe ir além dos laços da carne e do sangue para acolher também crianças de outras famílias, oferecendo-lhes quanto seja necessário para a sua vida e o seu pleno desenvolvimento. Entre as formas de adopção, merece ser assinalada a adopção à distância, que se há-de preferir sempre que o abandono tenha por único motivo as condições de grave pobreza da família. Na realidade, com esta espécie de adopção é oferecida aos pais a ajuda necessária para manter e educar os próprios filhos, sem ter de os desarraigar do seu ambiente natural.
Concebida como " determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum ",121 a solidariedade requer ser também concretizada mediante formas de participação social e política. Consequentemente, servir o Evangelho da vida implica que as famílias, nomeadamente tomando parte em apropriadas associações, se empenhem por que as leis e as instituições do Estado não lesem de modo algum o direito à vida, desde a sua concepção até à morte natural, mas o defendam e promovam.
94. Um lugar especial há-de ser reconhecido aos idosos. Enquanto, nalgumas culturas, a pessoa de mais idade permanece inserida na família com um papel activo importante, noutras, ao contrário, quem chegou à velhice é sentido como um peso inútil e fica abandonado a si mesmo: em tal contexto, pode mais facilmente surgir a tentação de recorrer à eutanásia.
A marginalização ou mesmo a rejeição dos idosos é intolerável. A sua presença na família ou, pelo menos, a estreita solidariedade desta com eles quando, pelo reduzido espaço da habitação ou outros motivos, essa presença não fosse possível, é de importância fundamental para criar um clima de intercâmbio recíproco e de comunicação enriquecedora entre as várias idades da vida. Por isso, é importante que se conserve, ou se restabeleça onde tal se perdeu, uma espécie de " pacto " entre as gerações, de modo que os pais idosos, chegados ao termo da sua caminhada, possam encontrar nos filhos aquele acolhimento e solidariedade que lhes tinham oferecido quando estes estavam a desabrochar para a vida: exige-o a obediência ao mandamento divino que ordena honrar o pai e a mãe (cf. Ex 20, 12; Lv 19, 3). Mas há mais... O idoso não há-de ser considerado apenas objecto de atenção, solidariedade e serviço. Também ele tem um valioso contributo a prestar ao Evangelho da vida. Graças ao rico património de experiência adquirido ao longo dos anos, o idoso pode e deve ser transmissor de sabedoria, testemunha de esperança e de caridade.
Se é verdade que " o futuro da humanidade passa pela família ",122 tem-se de reconhecer que as actuais condições sociais, económicas e culturais frequentemente tornam mais árdua e penosa a tarefa da família ao serviço da vida. Para poder realizar a sua vocação de " santuário da vida ", enquanto célula de uma sociedade que ama e acolhe a vida, é necessário e urgente que a família como tal seja ajudada e apoiada. As sociedades e os Estados devem assegurar todo o apoio necessário, mesmo económico, para que as famílias possam responder de forma mais humana aos próprios problemas. Por seu lado, a Igreja deve promover incansavelmente uma pastoral familiar capaz de ajudar cada família a redescobrir, com alegria e coragem, a sua missão no que diz respeito ao Evangelho da vida.
" Comportai-vos como filhos da luz " (Ef 5, 8): para realizar uma viragem cultural
95. " Comportai-vos como filhos da luz. (...) Procurai o que é agradável ao Senhor, e não participeis das obras infrutuosas das trevas " (Ef 5, 8.10-11). No contexto social de hoje, marcado por uma luta dramática entre a " cultura da vida " e a " cultura da morte ", importa maturar um forte sentido crítico, capaz de discernir os verdadeiros valores e as autênticas exigências.
Urge uma mobilização geral das consciências e um esforço ético comum, para se actuar uma grande estratégia a favor da vida. Todos juntos devemos construir uma nova cultura da vida: nova, porque em condições de enfrentar e resolver os problemas inéditos de hoje acerca da vida do homem; nova, porque assumida com convicção mais firme e laboriosa por todos os cristãos; nova, porque capaz de suscitar um sério e corajoso confronto cultural com todos. A urgência desta viragem cultural está ligada à situação histórica que estamos a atravessar, mas radica-se sobretudo na própria missão evangelizadora confiada à Igreja. De facto, o Evangelho visa " transformar a partir de dentro e fazer nova a própria humanidade "; 123 é como o fermento que leveda toda a massa (cf. Mt 13, 33) e, como tal, é destinado a permear todas as culturas e a animá-las a partir de dentro,124 para que exprimam a verdade integral sobre o homem e sua vida.
Tem-se de começar por renovar a cultura da vida no seio das próprias comunidades cristãs. Muitas vezes os crentes, mesmo até os que participam activamente na vida eclesial, caiem numa espécie de dissociação entre a fé cristã e as suas exigências éticas a propósito da vida, chegando assim ao subjectivismo moral e a certos comportamentos inaceitáveis. Devemos, pois, interrogar-nos, com grande lucidez e coragem, acerca da cultura da vida que reina hoje entre os indivíduos cristãos, as famílias, os grupos e as comunidades das nossas Dioceses. Com igual clareza e decisão, teremos de individuar os passos que somos chamados a dar para servir a vida na plenitude da sua verdade. Ao mesmo tempo, devemos promover um confronto sério e profundo com todos, inclusive com os não crentes, sobre os problemas fundamentais da vida humana, tanto nos lugares da elaboração do pensamento, como nos diversos âmbitos profissionais e nas situações onde se desenrola diariamente a existência de cada um.
96. O primeiro e fundamental passo para realizar esta viragem cultural consiste na formação da consciência moral acerca do valor incomensurável e inviolável de cada vida humana. Suma importância tem aqui a descoberta do nexo indivisível entre vida e liberdade. São bens inseparáveis: quando um é violado, o outro acaba por o ser também. Não há liberdade verdadeira, onde a vida não é acolhida nem amada; nem há vida plena senão na liberdade. Ambas as realidades têm, ainda, um peculiar e natural ponto de referência que as une indissoluvelmente: a vocação ao amor. Este, enquanto sincero dom de si,125 é o sentido mais verdadeiro da vida e da liberdade da pessoa.
Na formação da consciência, igualmente decisiva é a descoberta do laço constitutivo que une a liberdade à verdade. Como disse já várias vezes, o desarraigar a liberdade da verdade objectiva torna impossível fundar os direitos da pessoa sobre uma base racional sólida, e cria as premissas para se afirmar, na sociedade, o arbítrio desenfreado dos indivíduos ou o totalitarismo repressivo do poder público.126
Então é essencial que o homem reconheça a evidência primordial da sua condição de criatura que recebe de Deus o ser e a vida como dom e tarefa: só admitindo esta inata dependência no seu ser, pode o homem realizar em plenitude a vida e a liberdade própria e, simultaneamente, respeitar em toda a sua profundidade a vida e a liberdade alheia. É sobretudo aqui que se manifesta como, " no centro de cada cultura, está o comportamento que o homem assume diante do mistério maior: o mistério de Deus ".127 Quando se nega Deus e se vive como se Ele não existisse ou de qualquer modo não se tem em conta os seus mandamentos, então facilmente se acaba por negar ou comprometer também a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade da sua vida.
97. À formação da consciência está estritamente ligada a obra educativa, que ajuda o homem a ser cada vez mais homem, introdu-lo sempre mais profundamente na verdade, orienta-o para um crescente respeito da vida, forma-o nas justas relações entre as pessoas.
De modo particular, é necessário educar para o valor da vida,a começar das suas próprias raízes. É uma ilusão pensar que se pode construir uma verdadeira cultura da vida humana, se não se ajudam os jovens a compreender e a viver a sexualidade, o amor e a existência inteira no seu significado verdadeiro e na sua íntima correlação. A sexualidade, riqueza da pessoa toda, " manifesta o seu significado íntimo ao levar a pessoa ao dom de si no amor ".128 A banalização da sexualidade conta-se entre os principais factores que estão na origem do desprezo pela vida nascente: só um amor verdadeiro sabe defender a vida. Não é possível, pois, eximir-nos de oferecer, sobretudo aos adolescentes e aos jovens, uma autêntica educação da sexualidade e do amor, educação essa que requer a formação para a castidade, como virtude que favorece a maturidade da pessoa e a torna capaz de respeitar o significado " esponsal " do corpo.
A obra de educação para a vida comporta a formação dos cônjuges sobre a procriação responsável. No seu verdadeiro significado, esta exige que os esposos sejam dóceis ao chamamento do Senhor e vivam como fiéis intérpretes do seu desígnio: este cumpre-se com a generosa abertura da família a novas vidas, permanecendo em atitude de acolhimento e de serviço à vida, mesmo quando os cônjuges, por sérios motivos e no respeito da lei moral, decidem evitar, com ou sem limites de tempo, um novo nascimento. A lei moral obriga-os, em qualquer caso, a dominar as tendências do instinto e das paixões e a respeitar as leis biológicas inscritas na pessoa de ambos. É precisamente este respeito que torna legítimo, ao serviço da procriação responsável, o recurso aos métodos naturais de regulação da fertilidade: estes têm-se aperfeiçoado progressivamente sob o ponto de vista científico e oferecem possibilidades concretas para decisões de harmonia com os valores morais. Uma honesta ponderação dos resultados conseguidos deveria fazer ruir preconceitos ainda demasiado difusos e convencer os cônjuges, bem como os profissionais da saúde e da assistência social, sobre a importância de uma adequada formação a tal respeito. A Igreja está agradecida àqueles que, com sacrifício pessoal e dedicação frequentemente ignorada, se empenham na pesquisa e na difusão de tais métodos, promovendo ao mesmo tempo uma educação dos valores morais que o seu uso supõe.
A obra educativa não pode deixar de tomar em consideração, ainda, o sofrimento e a morte. Na realidade, ambos fazem parte da experiência humana, e é vão, para além de ilusório, procurá-los reprimir ou ignorar. Ao contrário, cada um deve ser ajudado a compreender, na concreta e dura realidade, o seu mistério profundo. Também a dor e o sofrimento têm um sentido e um valor, quando são vividos em estreita ligação com o amor recebido e dado. Nesta perspectiva, quis que se celebrasse anualmente o Dia Mundial do Doente, fazendo ressaltar " a índole salvífica da oferta do sofrimento, que, vivido em comunhão com Cristo, pertence à essência mesma da redenção ".129 Até a morte, aliás, não é de forma alguma aventura sem esperança: é a porta da existência que se abre de par em par à eternidade e, para aqueles que a vivem em Cristo, é experiência de participação no mistério da sua morte e ressurreição.
98. Em resumo, podemos dizer que a viragem cultural, aqui desejada, exige de todos a coragem de assumir um novo estilo de vida que se exprime colocando, no fundamento das decisões concretas - a nível pessoal, familiar, social e internacional -, uma justa escala dos valores: o primado do ser sobre o ter,130 da pessoa sobre as coisas.131 Este novo estilo de vida implica também a passagem da indiferença ao interesse pelo outro, a passagem da recusa ao seu acolhimento: os outros não são concorrentes de quem temos de nos defender, mas irmãos e irmãs de quem devemos ser solidários; hão-de ser amados por si mesmos; enriquecem-nos pela sua própria presença.
Na mobilização por um nova cultura da vida, que ninguém se sinta excluído: todos têm um papel importante a desempenhar. Ao lado da tarefa das famílias, é particularmente valiosa a missão dos professores e dos educadores. Deles está em larga medida dependente a possibilidade de os jovens, formados para uma autêntica liberdade, saberem preservar dentro de si e espalhar ao seu redor ideais autênticos de vida, e saberem crescer no respeito e ao serviço de cada pessoa, em família e na sociedade.
Também os intelectuais muito podem fazer para construir uma nova cultura da vida humana. Responsabilidade particular cabe aos intelectuais católicos, chamados a estarem activamente presentes nas sedes privilegiadas da elaboração cultural, ou seja, no mundo da escola e das universidades, nos ambientes da investigação científica e técnica, nos lugares da criação artística e da reflexão humanista. Alimentando o seu génio e acção na seiva límpida do Evangelho, devem comprometer-se ao serviço de uma nova cultura da vida, através da produção de contributos sérios, documentados e capazes de se imporem pelos seus méritos ao respeito e interesse de todos. Precisamente nesta perspectiva, instituí a Pontifícia Academia para a Vida, com a missão de " estudar, informar e formar acerca dos principais problemas de biomedicina e de direito, relativos à promoção e à defesa da vida, sobretudo na relação directa que eles têm com a moral cristã e as directrizes do Magistério da Igreja ".132 Um contributo específico há-de vir das Universidades, em particular católicas, e dos Centros, Institutos e Comissões de bioética.
Grande e grave é a responsabilidade dos profissionais dos mass-media, chamados a pugnarem por que as mensagens, transmitidas com tamanha eficácia, sejam um verdadeiro contributo para a cultura da vida. Importa, por isso, apresentar exemplos altos e nobres de vida e dar espaço aos testemunhos positivos e por vezes heróicos de amor pelo homem; propor, com grande respeito, os valores da sexualidade e do amor, sem contemporizar com nada daquilo que deturpa e degrada a dignidade do homem. Na leitura da realidade, hão-de recusar-se a pôr em destaque tudo o que possa inspirar ou fazer crescer sentimentos ou atitudes de indiferença, desprezo ou rejeição da vida. Na escrupulosa fidelidade à verdade dos factos, eles são chamados a conjugar num todo a liberdade de informação, o respeito por cada pessoa e um profundo sentido de humanidade.
99. Nessa viragem cultural a favor da vida, as mulheres têm um espaço de pensamento e acção singular e talvez determinante: compete a elas fazerem-se promotoras de um " novo feminismo " que, sem cair na tentação de seguir modelos " masculinizados ", saiba reconhecer e exprimir o verdadeiro génio feminino em todas as manifestações da convivência civil, trabalhando pela superação de toda a forma de discriminação, violência e exploração.
Retomando as palavras da mensagem conclusiva do Concílio Vaticano II, também eu dirijo às mulheres este premente convite: " Reconciliai os homens com a vida ".133 Vós sois chamadas atestemunhar o sentido do amor autêntico, daquele dom de si e acolhimento do outro, que se realizam de modo específico na relação conjugal, mas devem ser também a alma de qualquer outra relação interpessoal. A experiência da maternidade proporciona-vos uma viva sensibilidade pela outra pessoa e confere-vos, ao mesmo tempo, uma missão particular: " A maternidade comporta uma comunhão especial com o mistério da vida, que amadurece no seio da mulher. (...) Este modo único de contacto com o novo homem que se está formando, cria, por sua vez, uma atitude tal para com o homem - não só para com o próprio filho, mas para com o homem em geral - que caracteriza profundamente toda a personalidade da mulher ".134 Com efeito, a mãe acolhe e leva dentro de si um outro, proporciona-lhe forma de crescer no seu seio, dá-lhe espaço, respeitando-o na sua diferença. Deste modo, a mulher percebe e ensina que as relações humanas são autênticas quando se abrem ao acolhimento da outra pessoa, reconhecida e amada pela dignidade que lhe advém do facto mesmo de ser pessoa e não de outros factores, como a utilidade, a força, a inteligência, a beleza, a saúde. Este é o contributo fundamental que a Igreja e a humanidade esperam das mulheres. E é premissa insubstituível para uma autêntica viragem cultural.
Um pensamento especial quereria reservá-lo para vós, mulheres, que recorrestes ao aborto. A Igreja está a par dos numerosos condicionalismos que poderiam ter influído sobre a vossa decisão, e não duvida que, em muitos casos, se tratou de uma decisão difícil, talvez dramática. Provavelmente a ferida no vosso espírito ainda não está sarada. Na realidade, aquilo que aconteceu, foi e permanece profundamente injusto. Mas não vos deixeis cair no desânimo, nem percais a esperança. Sabei, antes, compreender o que se verificou e interpretai-o em toda a sua verdade. Se não o fizestes ainda, abri-vos com humildade e confiança ao arrependimento: o Pai de toda a misericórdia espera-vos para vos oferecer o seu perdão e a sua paz no sacramento da Reconciliação. Dar-vos-eis conta de que nada está perdido, e podereis pedir perdão também ao vosso filho que agora vive no Senhor. Ajudadas pelo conselho e pela solidariedade de pessoas amigas e competentes, podereis contar-vos, com o vosso doloroso testemunho, entre os mais eloquentes defensores do direito de todos à vida. Através do vosso compromisso a favor da vida, coroado eventualmente com o nascimento de novos filhos e exercido através do acolhimento e atenção a quem está mais carecido de solidariedade, sereis artífices de um novo modo de olhar a vida do homem.
100. Neste grande esforço por uma nova cultura da vida, somossustentados e fortalecidos pela confiança de quem sabe que oEvangelho da vida, como o Reino de Deus, cresce e dá frutos abundantes (cf. Mc 4, 26-29). Certamente é enorme a desproporção existente entre os meios numerosos e potentes, de que estão dotadas as forças propulsoras da " cultura da morte ", e os meios de que dispõem os promotores de uma " cultura da vida e do amor ". Mas nós sabemos que podemos confiar na ajuda de Deus, para Quem nada é impossível (cf. Mt 19, 26).
Com esta certeza no coração e movido de pungente solicitude pela sorte de cada homem e mulher, repito hoje a todos aquilo que disse às famílias, empenhadas em suas difíceis tarefas por entre as ciladas que as ameaçam: 135 é urgente uma grande oração pela vida, que atravesse o mundo inteiro. Com iniciativas extraordinárias e na oração habitual, de cada comunidade cristã, de cada grupo ou associação, de cada família e do coração de cada crente eleve-se uma súplica veemente a Deus, Criador e amante da vida. O próprio Jesus nos mostrou com o seu exemplo que a oração e o jejum são as armas principais e mais eficazes contra as forças do mal (cf. Mt 4, 1-11), e ensinou aos seus discípulos que alguns demónios só desse modo se expulsam (cf. Mc 9, 29). Então, encontremos novamente a humildade e a coragem de orar e jejuar, para conseguir que a força que vem do Alto faça ruir os muros de enganos e mentiras que escondem, aos olhos de muitos dos nossos irmãos e irmãs, a natureza perversa de comportamentos e de leis contrárias à vida, e abra os seus corações a propósitos e desígnios inspirados na civilização da vida e do amor.
" Escrevemo-vos estas coisas para que a vossa alegria seja completa " (1 Jo 1, 4): o Evangelho da vida é para bem da cidade dos homens
101. " Escrevemo-vos estas coisas, para que a vossa alegria seja completa " (1 Jo 1, 4). A revelação do Evangelho da vida foi-nos confiada como um bem que há-de ser comunicado a todos: para que todos os homens estejam em comunhão connosco e com a Santíssima Trindade (cf. 1 Jo 1, 3). Nem nós poderíamos viver em alegria plena, se não comunicássemos este Evangelho aos outros, mas o guardássemos apenas para nós.
O Evangelho da vida não é exclusivamente para os crentes: destina-se a todos. A questão da vida e da sua defesa e promoção não é prerrogativa unicamente dos cristãos. Mesmo se recebe uma luz e força extraordinária da fé, aquela pertence a cada consciência humana que aspira pela verdade e vive atenta e apreensiva pela sorte da humanidade. Na vida, existe seguramente um valor sagrado e religioso, mas de modo algum este interpela apenas os crentes: trata-se, com efeito, de um valor que todo o ser humano pode enxergar, mesmo com a luz da razão, e, por isso, diz necessariamente respeito a todos.
Por isso, a nossa acção de " povo da vida e pela vida " pede para ser interpretada de modo justo e acolhida com simpatia. Quando a Igreja declara que o respeito incondicional do direito à vida de toda a pessoa inocente - desde a sua concepção até à morte natural - é um dos pilares sobre o qual assenta toda a sociedade, ela " quer simplesmente promover um Estado humano. Um Estado que reconheça como seu dever primário a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente da mais débil ".136
O Evangelho da vida é para bem da cidade dos homens. Actuar em favor da vida é contribuir para o renovamento da sociedade, através da edificação do bem comum. De facto, não é possível construir o bem comum sem reconhecer e tutelar o direito à vida, sobre o qual se fundamentam e desenvolvem todos os restantes direitos inalienáveis do ser humano. Nem pode ter sólidas bases uma sociedade que se contradiz radicalmente, já que por um lado afirma valores como a dignidade da pessoa, a justiça e a paz, mas por outro aceita ou tolera as mais diversas formas de desprezo e violação da vida humana, sobretudo se débil e marginalizada. Só o respeito da vida pode fundar e garantir bens tão preciosos e necessários à sociedade como a democracia e a paz.
De facto, não pode haver verdadeira democracia, se não é reconhecida a dignidade de cada pessoa e não se respeitam os seus direitos.
Nem pode haver verdadeira paz, se não se defende e promove a vida, como recordava Paulo VI: " Todo o crime contra a vida é um atentado contra a paz, especialmente se ele viola os costumes do povo (...), enquanto nos lugares onde os direitos do homem são realmente professados e publicamente reconhecidos e defendidos, a paz torna-se a atmosfera feliz e geradora de convivência social ".137
O " povo da vida " alegra-se de poder partilhar o seu empenho com muitos outros, de modo que seja cada vez mais numeroso o " povo pela vida ", e a nova cultura do amor e da solidariedade possa crescer para o verdadeiro bem da cidade dos homens.
CONCLUSÃO
102. Chegados ao termo desta Encíclica, espontaneamente o olhar volta a fixar-se no Senhor Jesus, o " Menino nascido para nós " (cf. Is 9, 5), a fim de n'Ele contemplar " a Vida " que " se manifestou " (1 Jo 1, 2). No mistério deste nascimento, realiza-se o encontro de Deus com o homem e tem início o caminho do Filho de Deus sobre a terra, caminho esse que culminará com o dom da vida na Cruz: com a sua morte, Ele vencerá a morte e tornar-Se-á para a humanidade princípio de vida nova.
Quem esteve a acolher " a vida " em nome e proveito de todos, foi Maria, a Virgem Mãe, a qual, por isso mesmo, mantém laços pessoais estreitíssimos com o Evangelho da vida. O consentimento de Maria, na Anunciação, e a sua maternidade situam-se na própria fonte do mistério daquela vida, que Cristo veio dar aos homens (cf. Jo 10, 10). Através do acolhimento e carinho que Ela prestou à vida do Verbo feito carne, a vida do homem foi salva da condenação à morte definitiva e eterna.
Por isso, " como a Igreja, de que é figura, Maria é a Mãe de todos os que renascem para a vida. Ela é verdadeiramente a Mãe da Vida que faz viver todos os homens; ao gerar a Vida, gerou de certo modo todos aqueles que haviam de viver dessa Vida ".138
Ao contemplar a maternidade de Maria, a Igreja descobre o sentido da própria maternidade e o modo como é chamada a exprimi-la. Ao mesmo tempo, a experiência materna da Igreja entreabre uma perspectiva mais profunda para compreender a experiência de Maria, qual modelo incomparável de acolhimento e cuidado da vida.
" Apareceu um grande sinal no Céu: uma mulher revestida de Sol " (Ap 12, 1): a maternidade de Maria e da Igreja
103. A relação recíproca entre Maria e o mistério da Igreja manifesta-se claramente no " grande sinal " descrito no Apocalipse: " Apareceu um grande sinal no céu: uma mulher revestida de Sol, tendo a Lua debaixo dos seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça " (12, 1). Neste sinal, a Igreja reconhece uma imagem do próprio mistério: apesar de imersa na história, ela está consciente de a transcender, porquanto constitui na terra " o germe e o princípio " do Reino de Deus.139 Tal mistério, a Igreja vê-o realizado, de modo pleno e exemplar, em Maria. É Ela a mulher gloriosa, na qual o desígnio de Deus se pôde actuar com a máxima perfeição.
Aquela " mulher revestida de Sol " - assinala o Livro do Apocalipse - " estava grávida " (12, 2). A Igreja está plenamente consciente de trazer em si o Salvador do mundo, Cristo Senhor, e de ser chamada a dá-Lo ao mundo, regenerando os homens para a própria vida de Deus. Mas não pode esquecer que esta sua missão tornou-se possível pela maternidade de Maria, que concebeu e deu à luz Aquele que é " Deus de Deus ", " Deus verdadeiro de Deus verdadeiro ". Maria é verdadeiramente a Mãe de Deus, a Theotokos, em cuja maternidade é exaltada, até ao grau supremo, a vocação à maternidade inscrita por Deus em cada mulher. Assim Maria apresenta-se como modelo para a Igreja, chamada a ser a " nova Eva ", mãe dos crentes, mãe dos " viventes " (cf. Gn 3, 20).
A maternidade espiritual da Igreja só se realiza - também disto está ciente a Igreja - no meio das ânsias e " dores de parto " (Ap 12, 2), isto é, em perene tensão com as forças do mal, que continuam a sulcar o mundo e a dominar o coração dos homens, que opõem resistência a Cristo: " N'Ele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens; a luz resplandece nas trevas, mas as trevas não a acolheram " (Jo 1, 4-5).
À semelhança da Igreja, também Maria teve de viver a sua maternidade sob o signo do sofrimento: " Este Menino está aqui (...) para ser sinal de contradição; uma espada trespassará a tua alma, a fim de se revelarem os pensamentos de muitos corações " (Lc 2, 34-35). Nas palavras que Simeão dirige a Maria, já no alvorecer da existência do Salvador, está sinteticamente representada aquela rejeição de Jesus - e com Ele a rejeição de Maria -, que culmina no Calvário. " Junto da cruz de Jesus " (Jo 19, 25), Maria participa no dom que o Filho faz de Si mesmo: oferece Jesus, dá-O, gera-O definitivamente para nós. O " sim " do dia da Anunciação amadurece plenamente no dia da Cruz, quando chega para Maria o tempo de acolher e gerar como filho cada homem feito discípulo, derramando sobre ele o amor redentor do Filho: " Então Jesus, ao ver sua mãe e junto dela, o discípulo que Ele amava, Jesus disse a sua mãe: "Mulher, eis aí o teu filho" " (Jo 19, 26).
" O dragão deteve-se diante da mulher (...) para lhe devorar o filho que estava para nascer " (Ap 12, 4): a vida ameaçada pelas forças do mal
104. No Livro do Apocalipse, o " grande sinal " da " mulher " (12, 1) é acompanhado por " outro sinal no céu ": " um grande dragão vermelho " (12, 3), que representa Satanás, potência pessoal maléfica, e conjuntamente todas as forças do mal que agem na história e contrariam a missão da Igreja.
Também nisto, Maria ilumina a Comunidade dos Crentes: de facto, a hostilidade das forças do mal é uma obstinada oposição que, antes de tocar os discípulos de Jesus, se dirige contra a sua Mãe. Para salvar a vida do Filho daqueles que O temem como se fosse uma perigosa ameaça, Maria tem de fugir com José e o Menino para o Egipto (cf. Mt 2, 13-15).
Assim, Maria ajuda a Igreja a tomar consciência de que a vida está sempre no centro de uma grande luta entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. O dragão queria devorar " o filho que estava para nascer " (Ap 12, 4), figura de Cristo, que Maria gera na " plenitude dos tempos " (Gal 4, 4) e que a Igreja deve continuamente oferecer aos homens nas sucessivas épocas da história. Mas é também, de algum modo, figura de cada homem, de cada criança, sobretudo de cada criatura débil e ameaçada, porque - como recorda o Concílio - " pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ".140 Precisamente na " carne " de cada homem, Cristo continua a revelar-Se e a entrar em comunhão connosco, pelo que a rejeição da vida do homem, nas suas diversas formas, é realmente rejeição de Cristo. Esta é a verdade fascinante mas exigente, que Cristo nos manifesta e que a sua Igreja incansavelmente propõe: " Quem receber um menino como este, em meu nome, é a Mim que recebe " (Mt 18, 5); " Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes " (Mt 25, 40).
" Não mais haverá morte " (Ap 21, 4): o esplendor da ressurreição
105. A anunciação do anjo a Maria está inserida no meio destas expressões tranquilizadoras: " Não tenhas receio, Maria " e " Nada é impossível a Deus " (Lc 1, 30.37). Na verdade, toda a existência da Virgem Mãe está envolvida pela certeza de que Deus está com Ela e A acompanha com a sua benevolência providente. O mesmo se passa também com a existência da Igreja que encontra " um refúgio " (cf. Ap 12, 6) no deserto, lugar da provação mas também da manifestação do amor de Deus pelo seu povo (cf. Os 2, 16). Maria é uma mensagem de viva consolação para a Igreja na sua luta contra a morte. Ao mostrar-nos o seu Filho, assegura-nos que n'Ele as forças da morte já foram vencidas: " Morte e vida combateram, mas o Príncipe da vida reina vivo após a morte ".141
O Cordeiro imolado vive com os sinais da paixão, no esplendor da ressurreição. Só Ele domina todos os acontecimentos da história: abre os seus " selos " (cf. Ap 5, 1-10) e consolida, no tempo e para além dele, o poder da vida sobre a morte. Na " nova Jerusalém ", ou seja, no mundo novo para o qual tende a história dos homens, " não mais haverá morte, nem pranto, nem gritos, nem dor, por que as primeiras coisas passaram " (Ap 21, 4).
Como povo peregrino, povo da vida e pela vida, enquanto caminhamos confiantes para " um novo céu e uma nova terra " (Ap 21, 1), voltamos o olhar para Aquela que é para nós " sinal de esperança segura e consolação ".142
Ó Maria,
aurora do mundo novo,
Mãe dos viventes,
confiamo-Vos a causa da vida:
olhai, Mãe,
para o número sem fim
de crianças a quem é impedido nascer,
de pobres para quem se torna difícil viver,
de homens e mulheres
vítimas de inumana violência,
de idosos e doentes assassinados
pela indiferença
ou por uma presunta compaixão.
Fazei com que todos aqueles que crêem
no vosso Filho
saibam anunciar com desassombro e amor
aos homens do nosso tempo
o Evangelho da vida.
Alcançai-lhes a graça de o acolher
como um dom sempre novo,
a alegria de o celebrar com gratidão
em toda a sua existência,
e a coragem para o testemunhar
com laboriosa tenacidade,
para construírem,
juntamente com todos os homens
de boa vontade,
a civilização da verdade e do amor,
para louvor e glória de Deus Criador
e amante da vida.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 25 de Março, solenidade da Anunciação do Senhor, do ano 1995, décimo sétimo de Pontificado.
Fides et Ratio
CARTA ENCÍCLICA FIDES ET RATIO DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II AOS BISPOS DA IGREJA CATÓLICA SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE FÉ E RAZÃO
Venerados Irmãos no Episcopado,
saúde e Bênção Apostólica!
A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio (cf. Ex 33, 18; Sal 2726, 8-9; 6362, 2-3; Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).
INTRODUÇÃO - "CONHECE-TE A TI MESMO "
1. Tanto no Oriente como no Ocidente, é possível entrever um caminho que, ao longo dos séculos, levou a humanidade a encontrar-se progressivamente com a verdade e a confrontar-se com ela. É um caminho que se realizou - nem podia ser de outro modo - no âmbito da autoconsciência pessoal: quanto mais o homem conhece a realidade e o mundo, tanto mais se conhece a si mesmo na sua unicidade, ao mesmo tempo que nele se torna cada vez mais premente a questão do sentido das coisas e da sua própria existência. O que chega a ser objecto do nosso conhecimento, torna-se por isso mesmo parte da nossa vida. A recomendação conhece-te a ti mesmo estava esculpida no dintel do templo de Delfos, para testemunhar uma verdade basilar que deve ser assumida como regra mínima de todo o homem que deseje distinguir-se, no meio da criação inteira, pela sua qualificação de " homem ", ou seja, enquanto "conhecedor de si mesmo ".
Aliás, basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas diferentes, as questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência humana: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta vida? Estas perguntas encontram-se nos escritos sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá; achamo-las tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tze, como na pregação de Tirtankara e de Buda; e assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípides e Sófocles, quer nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem: da resposta a tais perguntas depende efectivamente a orientação que se imprime à existência.
2. A Igreja não é alheia, nem pode sê-lo, a este caminho de pesquisa. Desde que recebeu, no Mistério Pascal, o dom da verdade última sobre a vida do homem, ela fez-se peregrina pelas estradas do mundo, para anunciar que Jesus Cristo é " o caminho, a verdade e a vida " (Jo 14, 6). De entre os vários serviços que ela deve oferecer à humanidade, há um cuja responsabilidade lhe cabe de modo absolutamente peculiar: é a diaconia da verdade. (1) Por um lado, esta missão torna a comunidade crente participante do esforço comum que a humanidade realiza para alcançar a verdade, (2) e, por outro, obriga-a a empenhar-se no anúncio das certezas adquiridas, ciente todavia de que cada verdade alcançada é apenas mais uma etapa rumo àquela verdade plena que se há--de manifestar na última revelação de Deus: " Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa, mas então veremos face a face. Hoje conheço de maneira imperfeita, então conhecerei exactamente " (1 Cor 13, 12).
3. Variados são os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento da verdade, tornando assim cada vez mais humana a sua existência. De entre eles sobressai a filosofia, cujo contributo específico é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta: constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da humanidade. O termo filosofia significa, segundo a etimologia grega, " amor à sabedoria ". Efectivamente a filosofia nasceu e começou a desenvolver-se quando o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê das coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade pertence à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma propriedade natural da sua razão, embora as respostas, que esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que evidencia a complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.
A grande incidência que a filosofia teve na formação e desenvolvimento das culturas do Ocidente não deve fazer-nos esquecer a influência que a mesma exerceu também nos modos de conceber a existência presentes no Oriente. Na realidade, cada povo possui a sua própria sabedoria natural, que tende, como autêntica riqueza das culturas, a exprimir-se e a maturar em formas propriamente filosóficas. Prova da verdade de tudo isto é a existência duma forma basilar de conhecimento filosófico, que perdura até aos nossos dias e que se pode constatar nos próprios postulados em que as várias legislações nacionais e internacionais se inspiram para regular a vida social.
4. Deve-se assinalar, porém, que, por detrás dum único termo, se escondem significados diferentes. Por isso, é necessária uma explicitação preliminar. Impelido pelo desejo de descobrir a verdade última da existência, o homem procura adquirir aqueles conhecimentos universais que lhe permitam uma melhor compreensão de si mesmo e progredir na sua realização. Os conhecimentos fundamentais nascem da maravilha que nele suscita a contemplação da criação: o ser humano enche-se de encanto ao descobrir-se incluído no mundo e relacionado com outros seres semelhantes, com quem partilha o destino. Parte daqui o caminho que o levará, depois, à descoberta de horizontes de conhecimentos sempre novos. Sem tal assombro, o homem tornar-se-ia repetitivo e, pouco a pouco, incapaz de uma existência verdadeiramente pessoal.
A capacidade reflexiva própria do intelecto humano permite elaborar, através da actividade filosófica, uma forma de pensamento rigoroso, e assim construir, com coerência lógica entre as afirmações e coesão orgânica dos conteúdos, um conhecimento sistemático. Graças a tal processo, alcançaram-se, em contextos culturais diversos e em diferentes épocas históricas, resultados que levaram à elaboração de verdadeiros sistemas de pensamento. Historicamente isto gerou muitas vezes a tentação de identificar uma única corrente com o pensamento filosófico inteiro. Mas, nestes casos, é claro que entra em jogo uma certa "soberba filosófica ", que pretende arvorar em leitura universal a própria perspectiva e visão imperfeita. Na realidade, cada sistema filosófico, sempre no respeito da sua integridade e livre de qualquer instrumentalização, deve reconhecer a prioridade do pensar filosófico de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.
Neste sentido, é possível, não obstante a mudança dos tempos e os progressos do saber, reconhecer um núcleo de conhecimentos filosóficos, cuja presença é constante na história do pensamento. Pense-se, só como exemplo, nos princípios de não-contradição, finalidade, causalidade, e ainda na concepção da pessoa como sujeito livre e inteligente, e na sua capacidade de conhecer Deus, a verdade, o bem; pense-se, além disso, em algumas normas morais fundamentais que geralmente são aceites por todos. Estes e outros temas indicam que, para além das correntes de pensamento, existe um conjunto de conhecimentos, nos quais é possível ver uma espécie de património espiritual da humanidade. É como se nos encontrássemos perante uma filosofia implícita, em virtude da qual cada um sente que possui estes princípios, embora de forma genérica e não reflectida. Estes conhecimentos, precisamente porque partilhados em certa medida por todos, deveriam constituir uma espécie de ponto de referência para as diversas escolas filosóficas. Quando a razão consegue intuir e formular os princípios primeiros e universais do ser, e deles deduzir correcta e coerentemente conclusões de ordem lógica e deontológica, então pode-se considerar uma razão recta, ou, como era chamada pelos antigos, orthòs logos, recta ratio.
5. A Igreja, por sua vez, não pode deixar de apreciar o esforço da razão na consecução de objectivos que tornem cada vez mais digna a existência pessoal. Na verdade, ela vê, na filosofia, o caminho para conhecer verdades fundamentais relativas à existência do homem. Ao mesmo tempo, considera a filosofia uma ajuda indispensável para aprofundar a compreensão da fé e comunicar a verdade do Evangelho a quantos não a conhecem ainda.
Na sequência de iniciativas análogas dos meus Predecessores, desejo também eu debruçar-me sobre esta actividade peculiar da razão. Faço-o movido pela constatação, sobretudo em nossos dias, de que a busca da verdade última aparece muitas vezes ofuscada. A filosofia moderna possui, sem dúvida, o grande mérito de ter concentrado a sua atenção sobre o homem. Partindo daí, uma razão cheia de interrogativos levou por diante o seu desejo de conhecer sempre mais ampla e profundamente. Desta forma, foram construídos sistemas de pensamento complexos, que deram os seus frutos nos diversos âmbitos do conhecimento, favorecendo o progresso da cultura e da história. A antropologia, a lógica, as ciências da natureza, a história, a linguística, de algum modo todo o universo do saber foi abarcado. Todavia, os resultados positivos alcançados não devem levar a transcurar o facto de que essa mesma razão, porque ocupada a investigar de maneira unilateral o homem como objecto, parece ter-se esquecido de que este é sempre chamado a voltar-se também para uma realidade que o transcende. Sem referência a esta, cada um fica ao sabor do livre arbítrio, e a sua condição de pessoa acaba por ser avaliada com critérios pragmáticos baseados essencialmente sobre o dado experimental, na errada convicção de que tudo deve ser dominado pela técnica. Foi assim que a razão, sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tensão para a verdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação sobre o conhecimento humano. Em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos.
Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças dum cepticismo geral. E, mais recentemente, ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado. A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto actual, de desconfiança na verdade. E esta ressalva vale também para certas concepções de vida originárias do Oriente: é que negam à verdade o seu carácter exclusivo, ao partirem do pressuposto de que ela se manifesta de modo igual em doutrinas diversas ou mesmo contraditórias entre si. Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião. Dá a impressão de um movimento ondulatório: enquanto, por um lado, a razão filosófica conseguiu avançar pela estrada que a torna cada vez mais atenta à existência humana e às suas formas de expressão, por outro tende a desenvolver considerações existenciais, hermenêuticas ou linguísticas, que prescindem da questão radical relativa à verdade da vida pessoal, do ser e de Deus. Como consequência, despontaram, não só em alguns filósofos mas no homem contemporâneo em geral, atitudes de desconfiança generalizada quanto aos grandes recursos cognoscitivos do ser humano. Com falsa modéstia, contentam-se de verdades parciais e provisórias, deixando de tentar pôr as perguntas radicais sobre o sentido e o fundamento último da vida humana, pessoal e social. Em suma, esmoreceu a esperança de se poder receber da filosofia respostas definitivas a tais questões.
6. Credenciada pelo facto de ser depositária da revelação de Jesus Cristo, a Igreja deseja reafirmar a necessidade da reflexão sobre a verdade. Foi por este motivo que decidi dirigir-me a vós, venerados Irmãos no Episcopado, com quem partilho a missão de anunciar " abertamente a verdade " (2 Cor 4, 2), e dirigir-me também aos teólogos e filósofos a quem compete o dever de investigar os diversos aspectos da verdade, e ainda a quantos andam à procura duma resposta, para comunicar algumas reflexões sobre o caminho que conduz à verdadeira sabedoria, a fim de que todo aquele que tiver no coração o amor por ela possa tomar a estrada certa para a alcançar, e nela encontrar repouso para a sua fadiga e também satisfação espiritual.
Tomo esta iniciativa impelido, antes de mais, pela certeza de que os Bispos, como assinala o Concílio Vaticano II, são " testemunhas da verdade divina e católica " (3). Por isso, testemunhar a verdade é um encargo que nos foi confiado a nós, os Bispos; não podemos renunciar a ele, sem faltar ao ministério que recebemos. Reafirmando a verdade da fé, podemos restituir ao homem de hoje uma genuína confiança nas suas capacidades cognoscitivas e oferecer à filosofia um estímulo para poder recuperar e promover a sua plena dignidade.
Há um segundo motivo que me induz a escrever estas reflexões Na carta encíclica Veritatis splendor, chamei a atenção para " algumas verdades fundamentais da doutrina católica que, no contexto actual, correm o risco de serem deformadas ou negadas ". (4) Com este novo documento, desejo continuar aquela reflexão, concentrando a atenção precisamente sobre o tema da verdade e sobre o seu fundamento em relação com a fé. De facto, não se pode negar que este período, de mudanças rápidas e complexas, deixa sobretudo os jovens, a quem pertence e de quem depende o futuro, na sensação de estarem privados de pontos de referência autênticos. A necessidade de um alicerce sobre o qual construir a existência pessoal e social faz-se sentir de maneira premente, principalmente quando se é obrigado a constatar o carácter fragmentário de propostas que elevam o efémero ao nível de valor, iludindo assim a possibilidade de se alcançar o verdadeiro sentido da existência. Deste modo, muitos arrastam a sua vida quase até à borda do precipício, sem saber o que os espera. Isto depende também do facto de, às vezes, quem era chamado por vocação a exprimir em formas culturais o fruto da sua reflexão, ter desviado o olhar da verdade, preferindo o sucesso imediato ao esforço duma paciente investigação sobre aquilo que merece ser vivido. A filosofia, que tem a grande responsabilidade de formar o pensamento e a cultura através do apelo perene à busca da verdade, deve recuperar vigorosamente a sua vocação originária. É por isso que senti a necessidade e o dever de intervir sobre este tema, para que, no limiar do terceiro milénio da era cristã, a humanidade tome consciência mais clara dos grandes recursos que lhe foram concedidos, e se empenhe com renovada coragem no cumprimento do plano de salvação, no qual está inserida a sua história.
CAPÍTULO I - A REVELAÇÃO DA SABEDORIA DE DEUS
1. Jesus, revelador do Pai
7. Na base de toda a reflexão feita pela Igreja, está a consciência de ser depositária duma mensagem, que tem a sua origem no próprio Deus (cf. 2 Cor 4, 1-2). O conhecimento que ela propõe ao homem, não provém de uma reflexão sua, nem sequer da mais alta, mas de ter acolhido na fé a palavra de Deus (cf. 1 Tes 2, 13). Na origem do nosso ser crentes existe um encontro, único no seu género, que assinala a abertura de um mistério escondido durante tantos séculos (cf. 1 Cor 2, 7; Rom 16, 25-26), mas agora revelado: " Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-Se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cf. Ef 1, 9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina ". (5) Trata-se de uma iniciativa completamente gratuita, que parte de Deus e vem ao encontro da humanidade para a salvar. Enquanto fonte de amor, Deus deseja dar-Se a conhecer, e o conhecimento que o homem adquire d'Ele leva à plenitude qualquer outro conhecimento verdadeiro que a sua mente seja capaz de alcançar sobre o sentido da própria existência.
8. Retomando quase literalmente a doutrina presente na constituição Dei Filius do Concílio Vaticano I e tendo em conta os princípios propostos pelo Concílio de Trento, a constituição Dei Verbum do Vaticano II continuou aquele caminho plurissecular de compreensão da fé, reflectindo sobre a Revelação à luz da doutrina bíblica e de toda a tradição patrística. No primeiro Concílio do Vaticano, os Padres tinham sublinhado o carácter sobrenatural da revelação de Deus. A crítica racionalista que então se fazia sentir contra a fé, baseada em teses erradas mas muito difusas, insistia sobre a negação de qualquer conhecimento que não fosse fruto das capacidades naturais da razão. Isto obrigara o Concílio a reafirmar vigorosamente que, além do conhecimento da razão humana, por sua natureza, capaz de chegar ao Criador, existe um conhecimento que é peculiar da fé. Este conhecimento exprime uma verdade que se funda precisamente no facto de Deus que Se revela, e é uma verdade certíssima porque Deus não Se engana nem quer enganar. (6)
9. Por isso, o Concílio Vaticano I ensina que a verdade alcançada pela via da reflexão filosófica e a verdade da Revelação não se confundem, nem uma torna a outra supérflua: " Existem duas ordens de conhecimento, diversas não apenas pelo seu princípio, mas também pelo objecto. Pelo seu princípio, porque, se num conhecemos pela razão natural, no outro fazêmo-lo por meio da fé divina; pelo objecto, porque, além das verdades que a razão natural pode compreender, é-nos proposto ver os mistérios escondidos em Deus, que só podem ser conhecidos se nos forem revelados do Alto ". (7) A fé, que se fundamenta no testemunho de Deus e conta com a ajuda sobrenatural da graça, pertence efectivamente a uma ordem de conhecimento diversa da do conhecimento filosófico. De facto, este assenta sobre a percepção dos sentidos, sobre a experiência, e move-se apenas com a luz do intelecto. A filosofia e as ciências situam-se na ordem da razão natural, enquanto a fé, iluminada e guiada pelo Espírito, reconhece na mensagem da salvação a " plenitude de graça e de verdade " (cf. Jo 1, 14) que Deus quis revelar na história, de maneira definitiva, por meio do seu Filho Jesus Cristo (cf. 1 Jo 5, 9; Jo 5, 31-32).
10. No Concílio Vaticano II, os Padres, fixando a atenção sobre Jesus revelador, ilustraram o carácter salvífico da revelação de Deus na história e exprimiram a sua natureza do seguinte modo: " Em virtude desta revelação, Deus invisível (cf. Col 1, 15; 1 Tim 1, 17), na riqueza do seu amor, fala aos homens como amigos (cf. Ex 33, 11; Jo 15, 14-15) e convive com eles (cf. Bar 3, 38), para os convidar e admitir à comunhão com Ele. Esta economia da Revelação realiza-se por meio de acções e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens manifesta-se-nos, por esta Revelação, em Cristo, que é simultaneamente o mediador e a plenitude de toda a revelação ". (8)
11. Assim, a revelação de Deus entrou no tempo e na história. Mais, a encarnação de Jesus Cristo realiza-se na " plenitude dos tempos " (Gal 4, 4). À distância de dois mil anos deste acontecimento, sinto o dever de reafirmar intensamente que, " no cristianismo, o tempo tem uma importância fundamental ". (9) Com efeito, é nele que tem lugar toda a obra da criação e da salvação, e sobretudo merece destaque o facto de que, com a encarnação do Filho de Deus, vivemos e antecipamos desde já aquilo que se seguirá ao fim dos tempos (cf. Heb 1, 2).
A verdade que Deus confiou ao homem a respeito de Si mesmo e da sua vida insere-se, portanto, no tempo e na história. Sem dúvida, aquela foi pronunciada uma vez por todas no mistério de Jesus de Nazaré. Afirma-o, com palavras muito expressivas, a constituição Dei Verbum: " Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que são os últimos, através de seu Filho (Heb 1, 1-2). Com efeito, enviou o seu Filho, isto é, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes a vida íntima de Deus (cf. Jo 1, 1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado como homem para os homens, "fala, portanto, as palavras de Deus" (Jo 3, 34) e consuma a obra de salvação que o Pai Lhe mandou realizar (cf. Jo 5, 36; 17, 4). Por isso, Ele - vê-l'O a Ele é ver o Pai (cf. Jo 14, 9) -, com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, e enfim, com o envio do Espírito de verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a Revelação ". (10)
Assim, a história constitui um caminho que o Povo de Deus há-de percorrer inteiramente, de tal modo que a verdade revelada possa exprimir em plenitude os seus conteúdos, graças à acção incessante do Espírito Santo (cf. Jo 16, 13). Ensina-o também a constituição Dei Verbum, quando afirma que " a Igreja, no decurso dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus ". (11)
12. A história torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a acção de Deus em favor da humanidade. Ele vem ter connosco, servindo-Se daquilo que nos é mais familiar e mais fácil de verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do qual não conseguiríamos entender-nos.
A encarnação do Filho de Deus permite ver realizada uma síntese definitiva que a mente humana, por si mesma, nem sequer poderia imaginar: o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no fragmento, Deus assume o rosto do homem. Deste modo, a verdade expressa na revelação de Cristo deixou de estar circunscrita a um restrito âmbito territorial e cultural, abrindo-se a todo o homem e mulher que a queira acolher como palavra definitivamente válida para dar sentido à existência. Agora todos têm acesso ao Pai, em Cristo; de facto, com a sua morte e ressurreição, Ele concedeu-nos a vida divina que o primeiro Adão tinha rejeitado (cf. Rom 5, 12-15). Com esta Revelação, é oferecida ao homem a verdade última a respeito da própria vida e do destino da história: " Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente ", afirma a constituição Gaudium et spes. (12) Fora desta perspectiva, o mistério da existência pessoal permanece um enigma insolúvel. Onde poderia o homem procurar resposta para questões tão dramáticas como a dor, o sofrimento do inocente e a morte, a não ser na luz que dimana do mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo?
2. A razão perante o mistério
13. Entretanto, não se pode esquecer que a Revelação permanece envolvida no mistério. Jesus, com toda a sua vida, revela seguramente o rosto do Pai, porque Ele veio para manifestar os segredos de Deus; (13) e contudo, o conhecimento que possuímos daquele rosto, está marcado sempre pelo carácter parcial e limitado da nossa compreensão. Somente a fé permite entrar dentro do mistério, proporcionando uma sua compreensão coerente.
O Concílio ensina que, " a Deus que revela, é devida a obediência da fé ". (14) Com esta breve mas densa afirmação, é indicada uma verdade fundamental do cristianismo. Diz-se, em primeiro lugar, que a fé é uma resposta de obediência a Deus. Isto implica que Ele seja reconhecido na sua divindade, transcendência e liberdade suprema. Deus que Se dá a conhecer na autoridade da sua transcendência absoluta, traz consigo também a credibilidade dos conteúdos que revela. Pela fé, o homem presta assentimento a esse testemunho divino. Isto significa que reconhece plena e integralmente a verdade de tudo o que foi revelado, porque é o próprio Deus que o garante. Esta verdade, oferecida ao homem sem que ele a possa exigir, insere-se no horizonte da comunicação interpessoal e impele a razão a abrir-se a esta e a acolher o seu sentido profundo. É por isso que o acto pelo qual nos entregamos a Deus, sempre foi considerado pela Igreja como um momento de opção fundamental, que envolve a pessoa inteira. Inteligência e vontade põem em acção o melhor da sua natureza espiritual, para consentir que o sujeito realize um acto no pleno exercício da sua liberdade pessoal. (15) Na fé, portanto, não basta a liberdade estar presente, exige-se que entre em acção. Mais, é a fé que permite a cada um exprimir, do melhor modo, a sua própria liberdade. Por outras palavras, a liberdade não se realiza nas opções contra Deus. Na verdade, como poderia ser considerado um uso autêntico da liberdade, a recusa de se abrir àquilo que permite a realização de si mesmo? No acreditar é que a pessoa realiza o acto mais significativo da sua existência; de facto, nele a liberdade alcança a certeza da verdade e decide viver nela.
Em auxílio da razão, que procura a compreensão do mistério, vêm também os sinais presentes na Revelação. Estes servem para conduzir mais longe a busca da verdade e permitir que a mente possa autonomamente investigar inclusive dentro do mistério. De qualquer modo, se, por um lado, esses sinais dão maior força à razão, porque lhe permitem pesquisar dentro do mistério com os seus próprios meios, de que ela justamente se sente ciosa, por outro lado, impelem-na a transcender a sua realidade de sinais para apreender o significado ulterior de que eles são portadores. Portanto, já há neles uma verdade escondida, para a qual encaminham a mente e da qual esta não pode prescindir sem destruir o próprio sinal que lhe foi proposto.
Chega-se, assim, ao horizonte sacramental da Revelação e de forma particular ao sinal eucarístico, onde a união indivisível entre a realidade e o respectivo significado permite identificar a profundidade do mistério. Na Eucaristia, Cristo está verdadeiramente presente e vivo, actua pelo seu Espírito, mas, como justamente diz S. Tomás, " nada vês nem compreendes, mas t'o afirma a fé mais viva, para além das leis da Terra. Sob espécies diferentes, que não passam de sinais, é que está o dom de Deus ". (16) Temos um eco disto mesmo nas seguintes palavras do filósofo Pascal: " Como Jesus Cristo passou despercebido no meio dos homens, assim a sua verdade permanece, entre as opiniões comuns, sem diferença exterior. O mesmo se dá com a Eucaristia relativamente ao pão comum ".(17)
Em resumo, o conhecimento da fé não anula o mistério; torna-o apenas mais evidente e apresenta-o como um facto essencial para a vida do homem: Cristo Senhor, " na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime ", (18) que é participar no mistério da vida trinitária de Deus. (19)
14. A doutrina do primeiro e segundo Concílio do Vaticano abre um horizonte verdadeiramente novo também ao saber filosófico. A Revelação coloca dentro da história um ponto de referência de que o homem não pode prescindir, se quiser chegar a compreender o mistério da sua existência; mas, por outro lado, este conhecimento apela constantemente para o mistério de Deus que a mente não consegue abarcar, mas apenas receber e acolher na fé. Entre estes dois momentos, a razão possui o seu espaço peculiar que lhe permite investigar e compreender, sem ser limitada por nada mais que a sua finitude ante o mistério infinito de Deus.
A Revelação introduz, portanto, na nossa história uma verdade universal e última que leva a mente do homem a nunca mais se deter; antes, impele-a a ampliar continuamente os espaços do próprio conhecimento até sentir que realizou tudo o que estava ao seu alcance, sem nada descurar. Ajuda-nos, nesta reflexão, uma das inteligências mais fecundas e significativas da história da humanidade, à qual obrigatoriamente fazem referência a filosofia e a teologia: Santo Anselmo. Na sua obra, Proslogion, o Arcebispo de Cantuária exprime-se assim: " Detendo-me com frequência e atenção a pensar neste problema, sucedia umas vezes que me parecia estar para agarrar o que buscava, outras vezes, pelo contrário, furtava-se completamente ao meu pensamento; até que finalmente, desesperado de o poder achar, decidi deixar de procurar algo que me era impossível encontrar. Mas, quando quis afastar de mim tal pensamento para que a sua ocupação da minha mente não me alheasse de outros problemas de que podia tirar algum proveito, foi então que começou a apresentar-se cada vez mais teimoso. (...) Mas, pobre de mim, um dos pobres filhos de Eva, longe de Deus, o que é que comecei a fazer e o que é que consegui? O que é que visava e a que ponto cheguei? A que é que aspirava e por que é que suspiro? (...) Ó Senhor, Vós não sois apenas algo acerca do qual não se pode pensar nada de maior (non solum es quo maius cogitari nequit), mas sois maior de tudo o que se possa pensar (quiddam maius quam cogitari possit) (...). Se não fôsseis o que sois, poder-se-ia pensar algo maior do que Vós, mas isso é impossível ". (20)
15. A verdade da revelação cristã, que se encontra em Jesus de Nazaré, permite a quemquer que seja perceber o " mistério " da própria vida. Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo que respeita a autonomia da criatura e a sua liberdade, obriga-a a abrir-se à transcendência. Aqui, a relação entre liberdade e verdade atinge o seu máximo grau, podendo-se compreender plenamente esta palavra do Senhor: " Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á " (Jo 8, 32).
A revelação cristã é a verdadeira estrela de orientação para o homem, que avança por entre os condicionalismos da mentalidade imanentista e os reducionismos duma lógica tecnocrática; é a última possibilidade oferecida por Deus, para reencontrar em plenitude aquele projecto primordial de amor que teve início com a criação. Ao homem ansioso de conhecer a verdade - se ainda é capaz de ver para além de si mesmo e levantar os olhos acima dos seus próprios projectos - é-lhe concedida a possibilidade de recuperar a genuína relação com a sua vida, seguindo a estrada da verdade. Podem-se aplicar a esta situação as seguintes palavras do Deuteronómio: " A lei que hoje te imponho não está acima das tuas forças nem fora do teu alcance. Não está no céu, para que digas: "Quem subirá por nós ao céu e no-la irá buscar?" Não está tão pouco do outro lado do mar, para que digas: "Quem atravessará o mar para no-la buscar e no-la fazer ouvir para que a observemos?" Não, ela está muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração; e tu podes cumpri-la " (30, 11-14). Temos um eco deste texto no famoso pensamento do filósofo e teólogo Santo Agostinho: " Noli foras ire, in te ipsum redi. In interiore homine habitat veritas ". (21)
À luz destas considerações, impõe-se uma primeira conclusão: a verdade que a Revelação nos dá a conhecer não é o fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razão. Pelo contrário, aquela apresenta-se com a característica da gratuidade, obriga a pensá-la, e pede para ser acolhida, como expressão de amor. Esta verdade revelada é a presença antecipada na nossa história daquela visão última e definitiva de Deus, que está reservada para quantos acreditam n'Ele ou O procuram de coração sincero. Assim, o fim último da existência pessoal é objecto de estudo quer da filosofia, quer da teologia. Embora com meios e conteúdos diversos, ambas apontam para aquele " caminho da vida " (Sal 1615, 11) que, segundo nos diz a fé, tem o seu termo último de chegada na alegria plena e duradoura da contemplação de Deus Uno e Trino.
CAPÍTULO II - CREDO UT INTELLEGAM
1. " A sabedoria sabe e compreende todas as coisas" (Sab9, 11)
16. Quão profunda seja a ligação entre o conhecimento da fé e o da razão, já a Sagrada Escritura no-lo indica com elementos de uma clareza surpreendente. Comprovam-no sobretudo os Livros Sapienciais. O que impressiona na leitura, feita sem preconceitos, dessas páginas da Sagrada Escritura é o facto de estes textos conterem não apenas a fé de Israel, mas também o tesouro de civilizações e culturas já desaparecidas. Como se de um desígnio particular se tratasse, o Egipto e a Mesopotâmia fazem ouvir novamente a sua voz, e alguns traços comuns das culturas do Antigo Oriente ressurgem nestas páginas ricas de intuições singularmente profundas.
Não é por acaso que o autor sagrado, ao querer descrever o homem sábio, o apresenta como aquele que ama e busca a verdade: " Feliz o homem que é constante na sabedoria, e que discorre com a sua inteligência; que repassa no seu coração os caminhos da sabedoria, e que penetra no conhecimento dos seus segredos; vai atrás dela como quem lhe segue o rasto, e permanece nos seus caminhos; olha pelas suas janelas, e escuta às suas portas; repousa junto da sua morada, e fixa um pilar nas suas paredes; levanta a sua tenda junto dela, e estabelece ali agradável morada; coloca os seus filhos debaixo da sua protecção, e ele mesmo morará debaixo dos seus ramos; à sua sombra estará defendido do calor, e repousará na sua glória " (Sir 14, 20-27).
Para o autor inspirado, como se vê, o desejo de conhecer é uma característica comum a todos os homens. Graças à inteligência, é dada a todos, crentes e descrentes, a possibilidade de " saciarem-se nas águas profundas " do conhecimento (cf. Prov 20, 5). Seguramente, no Antigo Israel, o conhecimento do mundo e dos seus fenómenos não se realizava pela via da abstracção, como já o fazia o filósofo jónico ou o sábio egípcio. E menos ainda podia o bom israelita conceber o conhecimento nos parâmetros próprios da época moderna, mais propensa à subdivisão do saber. Apesar disso, o mundo bíblico fez confluir, para o grande mar da teoria do conhecimento, o seu contributo original.
Qual? O carácter peculiar do texto bíblico reside na convicção de que existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão e o da fé. O mundo e o que nele acontece, assim como a história e as diversas vicissitudes da nação são realidades observadas, analisadas e julgadas com os meios próprios da razão, mas sem deixar a fé alheia a este processo. Esta não intervém para humilhar a autonomia da razão, nem para reduzir o seu espaço de acção, mas apenas para fazer compreender ao homem que, em tais acontecimentos, Se torna visível e actua o Deus de Israel. Assim, não é possível conhecer profundamente o mundo e os factos da história, sem ao mesmo tempo professar a fé em Deus que neles actua. A fé aperfeiçoa o olhar interior, abrindo a mente para descobrir, no curso dos acontecimentos, a presença operante da Providência. A tal propósito, é significativa uma expressão do livro dos Provérbios: " A mente do homem dispõe o seu caminho, mas é o Senhor quem dirige os seus passos " (16, 9). É como se dissesse que o homem, pela luz da razão, pode reconhecer a sua estrada, mas percorrê-la de maneira decidida, sem obstáculos e até ao fim, ele só o consegue se, de ânimo recto, integrar a sua pesquisa no horizonte da fé. Por isso, a razão e a fé não podem ser separadas, sem fazer com que o homem perca a possibilidade de conhecer de modo adequado a si mesmo, o mundo e Deus.
17. Não há motivo para existir concorrência entre a razão e a fé: uma implica a outra, e cada qual tem o seu espaço próprio de realização. Aponta nesta direcção o livro dos Provérbios, quando exclama: " A glória de Deus é encobrir as coisas, e a glória dos reis é investigá-las " (25, 2). Deus e o homem estão colocados, em seu respectivo mundo, numa relação única. Em Deus reside a origem de tudo, n'Ele se encerra a plenitude do mistério, e isto constitui a sua glória; ao homem, pelo contrário, compete o dever de investigar a verdade com a razão, e nisto está a sua nobreza. Um novo ladrilho é colocado neste mosaico pelo Salmista, quando diz: " Quão insondáveis para mim, ó Deus, vossos pensamentos! Quão imenso o seu número! Quisera contá-los, são mais que as areias; se pudesse chegar ao fim, estaria ainda convosco " (139/ 138, 17-18). O desejo de conhecer é tão grande e comporta tal dinamismo que o coração do homem, ao tocar o limite intransponível, suspira pela riqueza infinita que se encontra para além deste, por intuir que nela está contida a resposta cabal para toda a questão ainda sem resposta.
18. Podemos, pois, dizer que Israel, com a sua reflexão, soube abrir à razão o caminho para o mistério. Na revelação de Deus, pôde sondar em profundidade aquilo que a razão estava procurando alcançar sem o conseguir. A partir desta forma mais profunda de conhecimento, o Povo Eleito compreendeu que a razão deve respeitar algumas regras fundamentais, para manifestar do melhor modo possível a própria natureza. A primeira regra é ter em conta que o conhecimento do homem é um caminho que não permite descanso; a segunda nasce da consciência de que não se pode percorrer tal caminho com o orgulho de quem pensa que tudo seja fruto de conquista pessoal; a terceira regra funda-se no " temor de Deus ", de quem a razão deve reconhecer tanto a transcendência soberana como o amor solícito no governo do mundo.
Quando o homem se afasta destas regras, corre o risco de falimento e acaba por encontrar-se na condição do " insensato ". Segundo a Bíblia, nesta insensatez encerra-se uma ameaça à vida. É que o insensato ilude-se pensando que conhece muitas coisas, mas, de facto, não é capaz de fixar o olhar nas realidades essenciais. E isto impede-lhe de pôr ordem na sua mente (cf. Prov 1, 7) e de assumir uma atitude correcta para consigo mesmo e o ambiente circundante. Quando, depois, chega a afirmar que " Deus não existe " (cf. Sal 1413, 1), isso revela, com absoluta clareza, quanto seja deficiente o seu conhecimento e quão distante esteja ele da verdade plena a respeito das coisas, da sua origem e do seu destino.
19. Encontramos, no livro da Sabedoria, alguns textos importantes, que iluminam ainda melhor este assunto. Lá, o autor sagrado fala de Deus que Se dá a conhecer também através da natureza. Para os antigos, o estudo das ciências naturais coincidia, em grande parte, com o saber filosófico. Depois de ter afirmado que o homem, com a sua inteligência, é capaz de " conhecer a constituição do universo e a força dos elementos (...), o ciclo dos anos e a posição dos astros, a natureza dos animais mansos e os instintos dos animais ferozes " (Sab 7, 17.19-20), por outras palavras, que o homem é capaz de filosofar, o texto sagrado dá um passo em frente muito significativo. Retomando o pensamento da filosofia grega, à qual parece referir-se neste contexto, o autor afirma que, raciocinando precisamente sobre a natureza, pode-se chegar ao Criador: " Pela grandeza e beleza das criaturas, pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor " (Sab 13, 5). Reconhece-se, assim, um primeiro nível da revelação divina, constituído pelo maravilhoso " livro da natureza "; lendo-o com os meios próprios da razão humana, pode-se chegar ao conhecimento do Criador. Se o homem, com a sua inteligência, não chega a reconhecer Deus como criador de tudo, isso fica-se a dever não tanto à falta de um meio adequado, como sobretudo ao obstáculo interposto pela sua vontade livre e pelo seu pecado.
20. Nesta perspectiva, a razão é valorizada, mas não superexaltada. O que ela alcança pode ser verdade, mas só adquire pleno significado se o seu conteúdo for situado num horizonte mais amplo, o da fé: " O Senhor é quem dirige os passos do homem; como poderá o homem compreender o seu próprio destino? " (Prov 20, 24). A fé, segundo o Antigo Testamento, liberta a razão, na medida em que lhe permite alcançar coerentemente o seu objecto de conhecimento e situá-lo naquela ordem suprema onde tudo adquire sentido. Em resumo, pela razão o homem alcança a verdade, porque, iluminado pela fé, descobre o sentido profundo de tudo e, particularmente, da própria existência. Justamente, pois, o autor sagrado coloca o início do verdadeiro conhecimento no temor de Deus: " O temor do Senhor é o princípio da sabedoria " (Prov 1, 7; cf. Sir 1, 14).
2. " Adquire a sabedoria, adquire a inteligência " (Prov 4, 5)
21. Segundo o Antigo Testamento, o conhecimento não se baseia apenas numa atenta observação do homem, do mundo e da história, mas supõe como indispensável também uma relação com a fé e os conteúdos da Revelação. Aqui se concentram os desafios que o Povo Eleito teve de enfrentar e a que deu resposta. Ao reflectir sobre esta sua condição, o homem bíblico descobriu que não se podia compreender senão como " ser em relação ": relação consigo mesmo, com o povo, com o mundo e com Deus. Esta abertura ao mistério, que provinha da Revelação, acabou por ser, para ele, a fonte dum verdadeiro conhecimento, que permitiu à sua razão aventurar-se em espaços infinitos, recebendo inesperadas possibilidades de compreensão.
Segundo o autor sagrado, o esforço da investigação não estava isento da fadiga causada pelo embate nas limitações da razão. Sente-se isso mesmo, por exemplo, nas palavras com que o livro dos Provérbios denuncia o cansaço provado ao tentar compreender os misteriosos desígnios de Deus (cf. 30, 1-6). Todavia, apesar da fadiga, o crente não desiste. E a força para continuar o seu caminho rumo à verdade provém da certeza de que Deus o criou como um " explorador " (cf. Coel 1, 13), cuja missão é não deixar nada sem tentar, não obstante a contínua chantagem da dúvida. Apoiando-se em Deus, o crente permanece, em todo o lado e sempre, inclinado para o que é belo, bom e verdadeiro.
22. S. Paulo, no primeiro capítulo da carta aos Romanos, ajuda-nos a avaliar melhor quanto seja incisiva a reflexão dos Livros Sapienciais. Desenvolvendo com linguagem popular uma argumentação filosófica, o Apóstolo exprime uma verdade profunda: através da criação, os " olhos da mente " podem chegar ao conhecimento de Deus. Efectivamente, através das criaturas, Ele faz intuir à razão o seu " poder " e a sua " divindade " (cf. Rom 1, 20). Deste modo, é atribuída à razão humana uma capacidade tal que parece quase superar os seus próprios limites naturais: não só ultrapassa o âmbito do conhecimento sensorial, visto que lhe é possível reflectir criticamente sobre o mesmo, mas, raciocinando a partir dos dados dos sentidos, pode chegar também à causa que está na origem de toda a realidade sensível. Em terminologia filosófica, podemos dizer que, neste significativo texto paulino, está afirmada a capacidade metafísica do homem.
Segundo o Apóstolo, no projecto originário da criação estava prevista a capacidade de a razão ultrapassar comodamente o dado sensível para alcançar a origem mesma de tudo: o Criador. Como resultado da desobediência com que o homem escolheu colocar-se em plena e absoluta autonomia relativamente Àquele que o tinha criado, perdeu tal facilidade de acesso a Deus criador.
O livro do Génesis descreve de maneira figurada esta condição do homem, quando narra que Deus o colocou no jardim do Éden, tendo no centro " a árvore da ciência do bem e do mal " (2, 17). O símbolo é claro: o homem não era capaz de discernir e decidir, por si só, aquilo que era bem e o que era mal, mas devia apelar-se a um princípio superior. A cegueira do orgulho iludiu os nossos primeiros pais de que eram soberanos e autónomos, podendo prescindir do conhecimento vindo de Deus. Nesta desobediência original, eles implicaram todo o homem e mulher, causando à razão traumas sérios que haveriam de dificultar-lhe, daí em diante, o caminho para a verdade plena. Agora a capacidade humana de conhecer a verdade aparece ofuscada pela aversão contra Aquele que é fonte e origem da verdade. O próprio apóstolo S. Paulo nos revela como, por causa do pecado, os pensamentos dos homens se tornaram " vãos " e os seus arrazoados tortuosos e falsos (cf. Rom 1, 21-22). Os olhos da mente deixaram de ser capazes de ver claramente: a razão foi progressivamente ficando prisioneira de si mesma. A vinda de Cristo foi o acontecimento de salvação que redimiu a razão da sua fraqueza, libertando-a dos grilhões onde ela mesma se tinha algemado.
23. Deste modo, a relação do cristão com a filosofia requer um discernimento radical. No Novo Testamento, especialmente nas cartas de S. Paulo, aparece claramente este dado: a contraposição entre " a sabedoria deste mundo " e a sabedoria de Deus revelada em Jesus Cristo. A profundidade da sabedoria revelada rompe o círculo dos nossos esquemas de reflexão habituais, que não são minimamente capazes de exprimi-la de forma adequada.
O início da primeira carta aos Coríntios apresenta radicalmente este dilema. O Filho de Deus crucificado é o acontecimento histórico contra o qual se desfaz toda a tentativa da mente para construir, sobre razões puramente humanas, uma justificação suficiente do sentido da existência. O verdadeiro ponto nodal, que desafia qualquer filosofia, é a morte de Jesus Cristo na cruz. Aqui, de facto, qualquer tentativa de reduzir o plano salvífico do Pai a mera lógica humana está destinada à falência. " Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde está o investigador deste século? Porventura, Deus não considerou louca a sabedoria deste mundo? " (1 Cor 1, 20) - interroga-se enfaticamente o Apóstolo. Para aquilo que Deus quer realizar, não basta a simples sabedoria do homem sábio, requer-se um passo decisivo que leve ao acolhimento duma novidade radical: " O que é louco segundo o mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios (...). O que é vil e desprezível no mundo, é que Deus escolheu, como também aquelas coisas que nada são, para destruir as que são " (1 Cor 1, 27-28). A sabedoria do homem recusa ver na própria fragilidade o pressuposto da sua força; mas S. Paulo não hesita em afirmar: " Quando me sinto fraco, então é que sou forte " (2 Cor 12, 10). O homem não consegue compreender como possa a morte ser fonte de vida e de amor, mas Deus, para revelar o mistério do seu desígnio salvador, escolheu precisamente o que a razão considera " loucura " e " escândalo ". Usando a linguagem dos filósofos do seu tempo, Paulo chega ao clímax da sua doutrina e do paradoxo que quer exprimir: " Deus escolheu, no mundo, aquelas coisas que nada são, para destruir as que são " (cf. 1 Cor 1, 28). Para exprimir o carácter gratuito do amor revelado na cruz de Cristo, o Apóstolo não tem medo de usar a linguagem mais radical que os filósofos empregavam nas suas reflexões a respeito de Deus. A razão não pode esgotar o mistério de amor que a Cruz representa, mas a Cruz pode dar à razão a resposta última que esta procura. S. Paulo coloca, não a sabedoria das palavras, mas a Palavra da Sabedoria como critério, simultaneamente, de verdade e de salvação.
Por conseguinte, a sabedoria da Cruz supera qualquer limite cultural que se lhe queira impor, obrigando a abrir-se à universalidade da verdade de que é portadora. Como é grande o desafio lançado à nossa razão e como são enormes as vantagens que terá, se ela se render! A filosofia, que por si mesma já é capaz de reconhecer a necessidade do homem se transcender continuamente na busca da verdade, pode, ajudada pela fé, abrir-se para, na " loucura " da Cruz, acolher como genuína a crítica a quantos se iludem de possuir a verdade, encalhando-a nas sirtes dum sistema próprio. A relação entre a fé e a filosofia encontra, na pregação de Cristo crucificado e ressuscitado, o escolho contra o qual pode naufragar, mas também para além do qual pode desembocar no oceano ilimitado da verdade. Aqui é evidente a fronteira entre a razão e a fé, mas torna-se claro também o espaço onde as duas se podem encontrar.
CAPÍTULO III - INTELLEGO UT CREDAM
1. Caminhar à procura da verdade
24. Nos Actos dos Apóstolos, o evangelista Lucas narra a chegada de Paulo a Atenas, numa das suas viagens missionárias. A cidade dos filósofos estava cheia de estátuas, que representavam vários ídolos; e chamou-lhe a atenção um altar, que Paulo prontamente aproveitou como motivo e base comum para iniciar o anúncio do querigma: " Atenienses - disse ele -, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: "Ao Deus desconhecido". Pois bem! O que venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio " (Act 17, 22-23). Partindo daqui, S. Paulo fala-lhes de Deus enquanto criador, como Aquele que tudo transcende e a tudo dá vida. Depois continua o seu discurso, dizendo: " Fez a partir de um só homem, todo o género humano, para habitar em toda a face da Terra; e fixou a sequência dos tempos e os limites para a sua habitação, a fim de que os homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-Lo, mesmo tacteando, embora não Se encontre longe de cada um de nós " (Act 17, 26-27).
O Apóstolo põe em destaque uma verdade que a Igreja sempre guardou no seu tesouro: no mais fundo do coração do homem, foi semeado o desejo e a nostalgia de Deus. Recorda-o a liturgia de Sexta-feira Santa, quando, convidando a rezar pelos que não crêem, diz: " Deus eterno e omnipotente, criastes os homens para que Vos procurem, de modo que só em Vós descansa o seu coração ". (22) Existe, portanto, um caminho que o homem, se quiser, pode percorrer; o seu ponto de partida está na capacidade de a razão superar o contingente para se estender até ao infinito.
De vários modos e em tempos diversos, o homem demonstrou que conseguia dar voz a este seu desejo íntimo. A literatura, a música, a pintura, a escultura, a arquitectura e outras realizações da sua inteligência criadora tornaram-se canais de que ele se serviu para exprimir esta sua ansiosa procura. Mas foi sobretudo a filosofia que, de modo peculiar, recolheu este movimento, exprimindo, com os meios e segundo as modalidades científicas que lhe são próprias, este desejo universal do homem.
25. " Todos os homens desejam saber ", (23) e o objecto próprio deste desejo é a verdade. A própria vida quotidiana demonstra o interesse que tem cada um em descobrir, para além do que ouve, a realidade das coisas. Em toda a criação visível, o homem é o único ser que é capaz não só de saber, mas também de saber que sabe, e por isso se interessa pela verdade real daquilo que vê. Ninguém pode sinceramente ficar indiferente quanto à verdade do seu saber. Se descobre que é falso, rejeita-o; se, pelo contrário, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito. É a lição que nos dá Santo Agostinho, quando escreve: " Encontrei muitos com desejos de enganar outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado ". (24) Considera-se, justamente, que uma pessoa alcançou a idade adulta, quando consegue discernir, por seus próprios meios, entre aquilo que é verdadeiro e o que é falso, formando um juízo pessoal sobre a realidade objectiva das coisas. Está aqui o motivo de muitas pesquisas, particularmente no campo das ciências, que levaram, nos últimos séculos, a resultados tão significativos, favorecendo realmente o progresso da humanidade inteira.
E a pesquisa é tão importante no campo teórico, como no âmbito prático: ao referir-me a este, desejo aludir à procura da verdade a respeito do bem que se deve realizar. Com efeito, graças precisamente ao agir ético, a pessoa, se actuar segundo a sua livre e recta vontade, entra pela estrada da felicidade e encaminha-se para a perfeição. Também neste caso, está em questão a verdade. Reafirmei esta convicção na carta encíclica Veritatis splendor: " Não há moral sem liberdade (...). Se existe o direito de ser respeitado no próprio caminho em busca da verdade, há ainda antes a obrigação moral grave para cada um de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez conhecida ". (25)
Por isso, é necessário que os valores escolhidos e procurados na vida sejam verdadeiros, porque só estes é que podem aperfeiçoar a pessoa, realizando a sua natureza. Não é fechando-se em si mesmo que o homem encontra esta verdade dos valores, mas abrindo-se para a receber mesmo de dimensões que o transcendem. Esta é uma condição necessária para que cada um se torne ele mesmo e cresça como pessoa adulta e madura.
26. Ao princípio, a verdade apresenta-se ao homem sob forma interrogativa: A vida tem um sentido? Para onde se dirige? À primeira vista, a existência pessoal poderia aparecer radicalmente sem sentido. Não é preciso recorrer aos filósofos do absurdo, nem às perguntas provocatórias que se encontram no livro de Job para duvidar do sentido da vida. A experiência quotidiana do sofrimento, pessoal e alheio, e a observação de muitos factos, que à luz da razão se revelam inexplicáveis, bastam para tornar iniludível um problema tão dramático como é a questão do sentido da vida. (26) A isto se deve acrescentar que a primeira verdade absolutamente certa da nossa existência, para além do facto de existirmos, é a inevitabilidade da morte. Perante um dado tão desconcertante como este, impõe-se a busca de uma resposta exaustiva. Cada um quer, e deve, conhecer a verdade sobre o seu fim. Quer saber se a morte será o termo definitivo da sua existência, ou se algo permanece para além da morte; se pode esperar uma vida posterior, ou não. É significativo que o pensamento filosófico tenha recebido, da morte de Sócrates, uma orientação decisiva que o marcou durante mais de dois milénios. Certamente não é por acaso que os filósofos, perante a realidade da morte, sempre voltam a pôr-se este problema, associado à questão do sentido da vida e da imortalidade.
27. A tais questões, não pode esquivar-se ninguém - nem o filósofo, nem o homem comum. E, da resposta que se lhes der, deriva uma orientação decisiva da investigação: a possibilidade, ou não, de alcançar uma verdade universal. Por si mesma qualquer verdade, mesmo parcial, se realmente é verdade, apresenta-se como universal e absoluta. Aquilo que é verdadeiro deve ser verdadeiro sempre e para todos. Contudo, para além desta universalidade, o homem procura um absoluto que seja capaz de dar resposta e sentido a toda a sua pesquisa: algo de definitivo, que sirva de fundamento a tudo o mais. Por outras palavras, procura uma explicação definitiva, um valor supremo, para além do qual não existam, nem possam existir, ulteriores perguntas ou apelos. As hipóteses podem seduzir, mas não saciam. Para todos, chega o momento em que, admitam-no ou não, há necessidade de ancorar a existência a uma verdade reconhecida como definitiva, que forneça uma certeza livre de qualquer dúvida.
Os filósofos procuraram, ao longo dos séculos, descobrir e exprimir tal verdade, criando um sistema ou uma escola de pensamento. Mas, para além dos sistemas filosóficos, existem outras expressões nas quais o homem procura formular a sua " filosofia ": trata-se de convicções ou experiências pessoais, tradições familiares e culturais, ou itinerários existenciais vividos sob a autoridade de um mestre. A cada uma destas manifestações, subjaz sempre vivo o desejo de alcançar a certeza da verdade e do seu valor absoluto.
2. Os diferentes rostos da verdade do homem
28. Há que reconhecer que a busca da verdade nem sempre se desenrola com a referida transparência e coerência de raciocínio. Muitas vezes, as limitações naturais da razão e a inconstância do coração ofuscam e desviam a pesquisa pessoal. Outros interesses de vária ordem podem sobrepor-se à verdade. Acontece também que o próprio homem a evite, quando começa a entrevê-la, porque teme as suas exigências. Apesar disto, mesmo quando a evita, é sempre a verdade que preside à sua existência. Com efeito, nunca poderia fundar a sua vida sobre a dúvida, a incerteza ou a mentira; tal existência estaria constantemente ameaçada pelo medo e a angústia. Assim, pode-se definir o homem como aquele que procura a verdade.
29. É impensável que uma busca, tão profundamente radicada na natureza humana, possa ser completamente inútil e vã. A própria capacidade de procurar a verdade e fazer perguntas implica já uma primeira resposta. O homem não começaria a procurar uma coisa que ignorasse totalmente ou considerasse absolutamente inatingível. Só a previsão de poder chegar a uma resposta é que consegue induzi-lo a dar o primeiro passo. De facto, assim sucede normalmente na pesquisa científica. Quando o cientista, depois de ter uma intuição, se lança à procura da explicação lógica e empírica dum certo fenómeno, fá-lo porque tem a esperança, desde o início, de encontrar uma resposta, e não se dá por vencido com os insucessos. Nem considera inútil a intuição inicial, só porque não alcançou o seu objectivo; dirá antes, e justamente, que não encontrou ainda a resposta adequada.
O mesmo deve valer também para a busca da verdade no âmbito das questões últimas. A sede de verdade está tão radicada no coração do homem que, se tivesse de prescindir dela, a sua existência ficaria comprometida. Basta observar a vida de todos os dias para constatar como dentro de cada um de nós se sente o tormento de algumas questões essenciais e, ao mesmo tempo, se guarda na alma, pelo menos, o esboço das respectivas respostas. São respostas de cuja verdade estamos convencidos, até porque notamos que não diferem substancialmente das respostas a que muitos outros chegaram. Por certo, nem toda a verdade adquirida possui o mesmo valor; todavia, o conjunto dos resultados alcançados confirma a capacidade que o ser humano, em princípio, tem de chegar à verdade.
30. Convém, agora, fazer uma rápida menção das diversas formas de verdade. As mais numerosas são as verdades que assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação da experiência: esta é a ordem própria da vida quotidiana e da pesquisa científica. Nível diverso ocupam as verdades de carácter filosófico, que o homem alcança através da capacidade especulativa do seu intelecto. Por último, existem as verdades religiosas, que de algum modo têm as suas raízes também na filosofia; estão contidas nas respostas que as diversas religiões oferecem, nas suas tradições, às questões últimas. (27)
Quanto às verdades filosóficas, é necessário especificar que não se limitam só às doutrinas, por vezes efémeras, dos filósofos profissionais. Como já disse, todo o homem é, de certa forma, um filósofo e possui as suas próprias concepções filosóficas, pelas quais orienta a sua vida. De diversos modos, consegue formar uma visão global e uma resposta sobre o sentido da própria existência: e, à luz disso, interpreta a própria vida pessoal e regula o seu comportamento. É aqui que deveria colocar-se a questão da relação entre as verdades filosófico-religiosas e a verdade revelada em Jesus Cristo. Antes de responder a tal questão, é preciso ter em conta outro dado da filosofia.
31. O homem não foi criado para viver sozinho. Nasce e cresce numa família, para depois se inserir, pelo seu trabalho, na sociedade. Assim a pessoa aparece integrada, desde o seu nascimento, em várias tradições; delas recebe não apenas a linguagem e a formação cultural, mas também muitas verdades nas quais acredita quase instintivamente. Entretanto, o crescimento e a maturação pessoal implicam que tais verdades possam ser postas em dúvida e avaliadas através da actividade crítica própria do pensamento. Isto não impede que, uma vez passada esta fase, aquelas mesmas verdades sejam " recuperadas " com base na experiência feita ou em virtude de sucessiva ponderação. Apesar disso, na vida duma pessoa, são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que aquelas adquiridas por verificação pessoal. Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente os inumeráveis resultados das ciências, sobre os quais se fundamenta a vida moderna? Quem poderia, por conta própria, controlar o fluxo de informações, recebidas diariamente de todas as partes do mundo e que, por princípio, são aceites como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrer novamente todos os caminhos de experiência e pensamento, pelos quais se foram acumulando os tesouros de sabedoria e religiosidade da humanidade? Portanto, o homem, ser que busca a verdade, é também aquele que vive de crenças.
32. Cada um, quando crê, confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas. Neste acto, pode-se individuar uma significativa tensão: por um lado, o conhecimento por crença apresenta-se como uma forma imperfeita de conhecimento, que precisa de se aperfeiçoar progressivamente por meio da evidência alcançada pela própria pessoa; por outro lado, a crença é muitas vezes mais rica, humanamente, do que a simples evidência, porque inclui a relação interpessoal, pondo em jogo não apenas as capacidades cognoscitivas do próprio sujeito, mas também a sua capacidade mais radical de confiar noutras pessoas, iniciando com elas um relacionamento mais estável e íntimo.
Importa sublinhar que as verdades procuradas nesta relação interpessoal não são primariamente de ordem empírica ou de ordem filosófica. O que se busca é sobretudo a verdade da própria pessoa: aquilo que ela é e o que manifesta do seu próprio íntimo. De facto, a perfeição do homem não se reduz apenas à aquisição do conhecimento abstracto da verdade, mas consiste também numa relação viva de doação e fidelidade ao outro. Nesta fidelidade que leva à doação, o homem encontra plena certeza e segurança. Ao mesmo tempo, porém, o conhecimento por crença, que se fundamenta na confiança interpessoal, tem a ver também com a verdade: de facto, acreditando, o homem confia na verdade que o outro lhe manifesta.
Quantos exemplos se poderiam aduzir para ilustrar este dado! O primeiro que me vem ao pensamento é o testemunho dos mártires. Com efeito, o mártir é a testemunha mais genuína da verdade da existência. Ele sabe que, no seu encontro com Jesus Cristo, alcançou a verdade a respeito da sua vida, e nada nem ninguém poderá jamais arrancar-lhe esta certeza. Nem o sofrimento, nem a morte violenta poderão fazê-lo retroceder da adesão à verdade que descobriu no encontro com Cristo. Por isso mesmo é que, até agora, o testemunho dos mártires atrai, gera consenso, é escutado e seguido. Esta é a razão pela qual se tem confiança na sua palavra: descobre-se neles a evidência dum amor que não precisa de longas demonstrações para ser convincente, porque fala daquilo que cada um, no mais fundo de si mesmo, já sente como verdadeiro e que há tanto tempo procurava. Em resumo, o mártir provoca em nós uma profunda confiança, porque diz aquilo que já sentimos e torna evidente aquilo que nós mesmos queríamos ter a força de dizer.
33. Deste modo, foi possível completar progressivamente os dados do problema. O homem, por sua natureza, procura a verdade. Esta busca não se destina apenas à conquista de verdades parciais, físicas ou científicas; não busca só o verdadeiro bem em cada um das suas decisões. Mas a sua pesquisa aponta para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se, por conseguinte, de algo que não pode desembocar senão no absoluto. (28) Graças às capacidades de que está dotado o seu pensamento, o homem pode encontrar e reconhecer uma tal verdade. Sendo esta vital e essencial para a sua existência, chega-se a ela não só por via racional, mas também através de um abandono fiducial a outras pessoas que possam garantir a certeza e autenticidade da verdade. A capacidade e a decisão de confiar o próprio ser e existência a outra pessoa constituem, sem dúvida, um dos actos antropologicamente mais significativos e expressivos.
É bom não esquecer que também a razão, na sua busca, tem necessidade de ser apoiada por um diálogo confiante e uma amizade sincera. O clima de suspeita e desconfiança, que por vezes envolve a pesquisa especulativa, ignora o ensinamento dos filósofos antigos, que punham a amizade como um dos contextos mais adequados para o recto filosofar.
Do que ficou dito conclui-se que o homem se encontra num caminho de busca, humanamente infindável: busca da verdade e busca duma pessoa em quem poder confiar. A fé cristã vem em sua ajuda, dando-lhe a possibilidade concreta de ver realizado o objectivo dessa busca. De facto, superando o nível da simples crença, ela introduz o homem naquela ordem da graça que lhe consente participar no mistério de Cristo, onde lhe é oferecido o conhecimento verdadeiro e coerente de Deus Uno e Trino. Deste modo, em Jesus Cristo, que é a Verdade, a fé reconhece o apelo último dirigido à humanidade, para que possa tornar realidade o que experimenta como desejo e nostalgia.
34. Esta verdade, que Deus nos revela em Jesus Cristo, não está em contraste com as verdades que se alcançam filosofando. Pelo contrário, as duas ordens de conhecimento conduzem à verdade na sua plenitude. A unidade da verdade já é um postulado fundamental da razão humana, expresso no princípio de não-contradição. A Revelação dá a certeza desta unidade, ao mostrar que Deus criador é também o Deus da história da salvação. Deus que fundamenta e garante o carácter inteligível e racional da ordem natural das coisas, sobre o qual os cientistas se apoiam confiadamente, (29) é o mesmo que Se revela como Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Esta unidade da verdade, natural e revelada, encontra a sua identificação viva e pessoal em Cristo, como recorda o apóstolo Paulo: " A verdade que existe em Jesus " (Ef 4, 21; cf. Col 1, 15-20). Ele é a Palavra eterna, na qual tudo foi criado, e ao mesmo tempo é a Palavra encarnada que, com toda a sua pessoa,30 revela o Pai (cf. Jo 1, 14.18). Aquilo que a razão humana procura " sem o conhecer " (cf. Act 17, 23), só pode ser encontrado por meio de Cristo: de facto, o que n'Ele se revela é a " verdade plena " (cf. Jo 1, 14-16) de todo o ser que, n'Ele e por Ele, foi criado e, por isso mesmo, n'Ele encontra a sua realização (cf. Col 1, 17).
35. Tendo estas considerações gerais como pano de fundo, é necessário agora examinar, de maneira mais directa, a relação entre a verdade revelada e a filosofia. Tal relação requer uma dupla consideração, visto que a verdade que nos vem da Revelação tem de ser, simultaneamente, compreendida pela luz da razão. Só nesta dupla acepção é que será possível especificar a justa relação da verdade revelada com o saber filosófico. Por isso, vamos considerar, em primeiro lugar, as relações entre a fé e a filosofia ao longo da história, donde será possível individuar alguns princípios, que constituem os pontos de referência aos quais recorrer para estabelecer a correcta relação entre as duas ordens de conhecimento.
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