segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Os Apócrifos Marianos nos Benditos e Acalentos



Tanto pessoas de fé simples e piedosa quanto eruditos se inspiraram na tradição oral apócrifa para cantar a vida de personagens eternos.

Por Frei Jacir de Freitas Faria
Escritor e pesquisador dos apócrifos

A Igreja, ao longo de sua história, proibiu a leitura dos livros apócrifos nas comunidades. Monges, lideranças cristãs e comunidades inteiras, contrariando essa decisão, conservaram muitos deles em potes que foram enterrados e descobertos recentemente.
Quando eu era pequeno, ouvia de minha mãe histórias que sempre começavam assim: “Quando Deus andou no mundo...” Ela se referia, sem saber, aos apócrifos. Deus, isto é, Jesus, fez muitas coisas que os livros canônicos, os considerados inspirados, não registraram. O imaginário popular conservou na música preciosidades apócrifas que ultrapassaram mares. São abordagens de fé, historiográficas e de piedade que se transformaram em poesia, canto, pinturas, músicas e expressões devocionais.
O Brasil acolheu essas tradições musicais européias, mas também criou outras. Assim, a cultura popular, na música, pôde resistir ao modo institucional e canônico de celebrar a fé. Maria, a mãe de Jesus, e Madalena, duas personagens emblemáticas do Cristianismo, foram as que mais inspiraram benditos e músicas que perpassaram séculos de cultura. Tomemos, como exemplo, Maria.
O Bendito de Nossa Senhora da Conceição faz uma menção explícita ao ramo de palmeira que Maria recebeu antes de sua morte, conforme atestam os apócrifos marianos (veja os apócrifos sobre Maria no livro História de Maria, mãe e apóstola de seu filho, nos evangelhos apócrifos. Frei Jacir de Freitas Faria. Ed. Vozes). No apócrifo Descanso de Maria, Jesus, em forma de anjo, vai ao encontro da mãe e lhe dá um ramo de palmeira do paraíso. Já no Bendito citado, é o devoto que se levanta de madrugada para ir ao encontro de Maria, chamada de Nossa Senhora, Aparecida e Conceição. Assim canta o bendito:
“Levantei de madrugada pra varrer a Conceição. Encontrei nossa Senhora com seu raminho na mão. Eu pedi a ela o raminho. Ela me disse que não. Eu tornei a lhe pedir. Ela me deu seu cordão. O cordão era tão grande, que do céu rastava ao chão. Ainda dava sete voltas em redor do coração. Numa ponta tem São Pedro. Na outra, Senhor São João. No meio tem um letreiro da Virgem da Conceição”.
O canto termina oferecendo o Bendito a Maria e a Jesus crucificado. Esse bendito não só menciona a palma de Nossa Senhora, aqui intitulada de raminho, mas reforça outras imagens apócrifas que ligam Maria com o céu, a confirmação do ministério de Maria pelos apóstolos São Pedro e São João. No centro do coração, a inscrição Virgem da Conceição reflete a piedade apócrifa da virgindade de Maria e sua concepção imaculada.

O acalento ou cantiga de ninar Nossa Senhora na beira do caminho, obra datada do século 14, retrata o cuidado de Maria, mulher e mãe, com seu filho. Não falta aqui, além da docilidade maternal de Maria, a teologia da cruz-sofrimento prefigurada pela mãe. Vejamos a letra.
“Nossa Senhora na beira do rio. Lavando os paninhos de seu bento Filho. Maria lavava e José estendia. O menino chorava do frio que fazia. Não chore menino, calai meu amor. Que a faca que corta dá o golpe sem dor. Os filhos dos ricos em berço dourado. E vós, meu menino, em palha deitado. No monte Calvário, avistei uma cruz. É cama e travesseiro de meu Bom Jesus”.
A teologia mariana desse bendito, ao fazer uso da tradição apócrifa, liga o papel de Maria-mãe com o sofrimento de seu filho, Jesus, marcado pelo destino da morte no calvário de Jerusalém. Maria é a mãe do sofrimento. Ser mãe é quase aceitar esta condição de mulher. O devoto acaba criando resignação. O fim último da vida é o sofrimento. Nada há para ser feito. Nem mesmo o menino Jesus precisa chorar, pois “a faca que corta dá golpe sem dor”.
O popular Ofício de Nossa Senhora, cantado de cor por pessoas, comunidades e famílias do interior do Brasil, aos sábados – mas também em diversas circunstâncias da vida, como na hora do parto, mau tempo e queimadas –, muito conservou a tradição apócrifa. Sua data de composição remonta ao ano de 1450. Esse ofício teve a aprovação oficial do Papa Inocêncio XI e está dividido por horas, assim como a oração oficial da Igreja, o Ofício Divino. Destacamos aqui algumas frases do texto que se inspiram nos apócrifos.
“Santa Maria, Rainha dos céus... Florescente vara, a qual escolheu para ser mãe sua e de vós nasceu. Deus vos salve, Virgem... Fostes, Virgem Santa, o ventre ditoso, de Ana concebida. Vós que habitais lá nessas alturas e tendes vosso trono sobre nuvens puras”.
A letra do bendito retoma a tradição apócrifa da coroação de Maria como Rainha do céu, onde ela recebeu um trono, bem como a história da vara de José que floresceu quando da sua escolha para ser o esposo de Maria. Ademais, nota-se a expressão de fé na virgindade de Maria, mencionando também sua concepção virginal no seio de Ana. Deste modo, a fé mariana se perpetuou na linha da virgindade e da realeza.

Interessante é o fato desse ofício ser rezado no momento de um parto, mau tempo e queimadas. O parto diz respeito à concepção. Mau tempo e queimadas são perigos que causam destruição. Invocando a Maria e enaltecendo-a, virgem e rainha do céu, essa releitura apócrifa apresenta um modelo de mulher inacessível, arquétipo de pureza do corpo e da natureza, que deve ser buscado e desejado por todos. Mesmo dando à luz, a mulher deve buscar a virgindade. A queimada logo se extinguirá com a invocação de Maria, de modo que a natureza retome seu estado harmonioso de pureza quase virginal.
Nessa mesma linha de pensamento encontra-se a situação de mau tempo. Na concepção teológica do mundo antigo, invocava-se Deus para controlar os fenômenos naturais. O ser humano vivia em constante pavor diante das intempéries. Aqui, na invocação a Maria, há uma transferência de papéis. Maria é vista quase como uma déia que tem poder de intervir na natureza em favor do ser humano.
Por mais que expressem uma fé amorosa em Maria, os apócrifos marianos, por sinal belíssimos, ocuparam espaços nas músicas de piedade popular para nos inculcar resignação, o que não condiz muito com uma fé libertadora.
Por outro lado, o povo simples delineou sua devoção ao cantar valores de uma fé apócrifa, transformada em benditos, acalentos e músicas. Contudo, a mesma Igreja que proibiu os apócrifos propagou a teologia do sofrimento, condizente com as músicas acima analisadas. Parece contraditório, mas é assim mesmo. O desafio consiste em continuar amando Maria, na sua mais pura fé de mãe do Salvador, e resgatar sua memória de mulher libertadora, mas eternamente mãe.
Assim, gente de fé simples e piedosa, mas também eruditos, se inspiraram na tradição oral apócrifa para cantar a vida de personagens que se tornaram eternos para todos nós. E isso não aconteceu somente com Maria, a mãe de Jesus, mas também com Madalena.
Mas essa é outra história.

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