quinta-feira, 30 de setembro de 2010
A Mariologia Tomista
por Paulo Faitanin - UFF
Mariologia
I. Origem: O vocábulo Mariologia teve o seu aparecimento no século XVII. A criação da palavra mariologia coube ao siciliano Plácido Nigido, que usando o nome do seu irmão Nicolau publicou, em Palermo, no ano de 1602, a Summae sacrae mariologiae pars prima. Antes, os muitos autores que escreveram sobre a Mãe de Deus, referiam-se-lhe em obras, cujos títulos, na maioria das vezes, eram iniciados com o nome Tratado. De certo há a evidência de que nos primeiros séculos da era cristã, na patrística, não houve uma publicação sistemática ou tratamento específico sobre o tema Maria dissociado do da Cristologia. Em geral as referências mariológicas formavam parte da análise das questões cristológicas. Daí a carência ou mesmo inexistência de tratados, nesta época, exclusivamente mariológicos. Por isso, a definição de ter havido nesta época uma Mariologia cristológica. O termo Mariologia, sem sombras de dúvidas, teve o seu uso padronizado e intensificado, a partir da data 08/12/1854. Data significativa, pois, foi nesta época que se deu a declaração, pronunciamento e definição dogmática da Imaculada Conceição de Maria, por Pio IX, na Bula Inneffabilis Deus. Dentre as verdades de fé, deste mistério, esta em particular guarda especial importância e proeminência sobre as outras: maternidade divina, virgindade perpétua, assunção, co-redentora e medianeira, posto que para gozar de todos estes privilégios era ncessário que, desde a concepção, fosse imaculada. Etimologicamente Mariologia ou Marialogia é um termo composto por Maria + o + logia que significa estudo sobre Maria. Apesar da controvérsia acerca da origem etimológica e semasiológica, comumente aceita-se o termo hebraico Miryam [serva, amada] como originário do termo grego Maria e este do latino Maria. Por Mariologia Tomista referimos aqui ao conjunto das doutrinas do Aquinate sobre Maria, nos diversos contextos de suas obras.
II. Breve História: O estudo de Maria pode ser considerado sob diversos ângulos: (a) sob uma Mariologia Cristológica, cujo ponto de referência é a maternidade divina; neste mistério Maria é unida indissoluvelmente a Cristo, pelo ato de amor divino, que fez dela Mãe de Deus. Neste mistério, Maria é parte integrante da ordem hipostática e, por isso, goza dos privilégios que daí decorrem: imaculada conceição; virgindade perpétua; cooperação ativa na obra da Redenção; assunção ao céu em corpo e alma e mediação universal de todas as graças; (b) sob uma Mariologia Eclesiológica, cuja perspectiva é Maria imanente à Igreja, da qual é o protótipo, porque aceita a Encarnação do Verbo e Lhe empresta a carne para Ele se fazer homem [maternidade divina]; à semelhança de Maria, a Igreja concebe em seu seio os cristãos, nascidos virginalmente da água e do Espírito - Jo 3,5 [virgindade perpétua]; Maria como a Igreja é imaculada sem mancha e sem ruga - Ef 5,27 [imaculada conceição]; Maria em sua assunção em corpo e alma é o protótipo da plenitude escatológica da Igreja [assunção ao céu em corpo e alma]; Maria em sua livre aceitação da Encarnação e da Cruz recebe, em si, os frutos da Redenção [cooperação ativa na obra da Redenção] e, finalmente, Maria com o seu sim se tornou depositária de todas as graças salvíficas da Redenção, que seriam dispensadas à Igreja [mediação universal de todas as graças].
1. Prolegômenos: Apresentamos, abaixo, um breve esboço da Mariologia, antes de a considerarmos no Corpus Thomisticum. Consideramos as fontes primárias: o AT e o NT na Bíblia. Logo, veremos a contextualização da Mariologia nas diversas épocas históricas e, por fim, apresentaremos o conteúdo essencial da Mariologia, bem como as doutrinas dogmáticas.
1.1. A Bíblia: A Sagrada Escritura ignora um discurso particular-sistemático sobre Maria e dela só fala em relação ao Messias, Cristo e em função do plano da salvação. (a) O Antigo Testamento não fala explicitamente sobre Maria Santíssima, a não ser naqueles textos que tratam do Messias e referências são feitas à Sua Mãe: Gn 3,15 [protoevangelho ou o primeiro anúncio da Boa-Nova]; Is 7,14 [Profecia de Emanuel] e Mq 5,13 [referência à parturiente]. (b) O Novo Testamento, do ponto de vista quantitativo, as passagens referentes à mãe de Jesus, constituem cerca de 200 versículos, nos 27 livros: Lc 1,2; Jo 2, 1-11; Mc 3,31-35; Mt 1,1-17; Ap 12, 1-17.
1.2. Historiografia Mariológica: Nesta breve historiografia da Mariologia apresentamos somente o modo como em cada período histórico a temática mariológica foi recebida, considerada e analisada. Vejamos, agora, como foi a recepção dos estudos mariológicos nas diferentes épocas da História da Cristandade, sem ainda destacar os seus expoentes. (a) Patrística: A época patrística - compreendida entre o séc. I e VII - é a dos Padres da Igreja, teólogos que contribuíram para a formação correta das verdades de fé contidas de maneira simples e vivencial nos escritos bíblicos. Os testemunhos sobre Maria no Novo Testamento e a preeminência da Cristologia nas disputas teológicas dos primeiros séculos tornaram, também, Maria um tema da Patrística. Do ponto de vista mariológico, a época dos Padres mantém relação de continuidade com a figura de Maria apresentada pela Bíblia, porém, ao mesmo tempo assinala uma inovação metodológica e lexicográfica, pois embora a princípio os Padres não dispusessem ainda dos termos teológicos adequados para expressar o mistério cristológico, a dignidade e o significado salvífico da Mãe de Deus, desde o início os testemunhos da Escritura e da Tradição apostólica foram por eles corretamente interpretados, aplainando o caminho para os sucessivos desenvolvimentos da mariologia. (b) Escolástica: A época escolástica compreendida entre o século VIII e XV - é a da formação de Escolas, em que agora, diferente de antanho, em que os discípulos seguiam os mestres, os discípulos seguem as escolas dos mestres. Os testemunhos da Tradição Patrística e do Magistério Conciliar da Igreja fez da Mariologia um tema muito estudado na Escolástica, pois sob o ângulo de uma Mariologia Cristológica foram escritos muitos opúsculos mariológicos. (c) Modernidade e Contemporaneidade: As épocas moderna e contemporânea compreendidas entre os séculos XVI e XXI são marcadas pelos tratados mariológicos, ampla e logicamente estruturados e organizados. Depois de um período intenso de estudos mariológico, já, mais recentemente, entre 1920 e 1960, instaurou-se certa crise e debates acerca da Mariologia. As críticas podem ser resumidas em (i) crítica dos teólogos inovadores à manualística mariológica por seu aspecto redentorista e triunfalista; (ii) crítica de alguns teólogos à autonomia da mariologia frente à cristologia e a eclesiologia; (iii) crítica aos exageros que poderiam tornar a mariologia uma mariolatria; (iiii) crítica protestante aos tratados sobre Maria, quando crêem que deveriam ser apenas discursos sobre Maria. Passada esta época, nota-se um crescente movimento que pode ser definido como de resgate, estruturação e renovação, alicerçado pelo amadurecido culto mariano. Traçadas brevemente estas análises históricas, passemos agora às considerações sistemáticas.
1.3. Sistematização Mariológica: Apresentamos a seguir as principais questões mariológicas, bem como uma proposta de uma mariologia integral, não só cristológica, mas também eclesiológica. (a) A Maternidade divina: A fé católica na maternidade divina de Maria é professada já desde o começo do século II, de forma equivalente e clara, por Santo Inácio de Antioquia em sua obra Ad Ephesios 18,2;19,1, por São Justino em sua Apologia, 1,33.63, por Santo Irineu em seu Adversus haereses, 3,21,10 e pelos grandes autores do século III. Por isso, a maternidade divina de Maria foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, em 431, na qual foi definida e resumida pela Carta de São Cirilo a Nestório, datada de 22/06/431 a unidade da Pessoa divina de Cristo, com a conseqüente afirmação de que Maria é verdadeiramente Mãe de Deus - Qeotokoj - theotokos. Dois documentos posteriores confirmariam o dogma: a Carta Olim quidem de João II, datada de Março de 534 e a Bula Cum quorumdam de Paulo IV de 07/08/1555. (b) A Virgindade: Afirmada nos Evangelhos a virgindade de Maria foi perfeitamente proclamada pelos primeiros padres da Igreja e inclusive contida no Símbolo dos Apóstolos cuja fórmula foi defendida e proclamada no Concílio de Milão, em 393. Para dirimir quaisquer dúvidas já, no século IV, aparece a expressão sempre virgem aeiparqenoj no Símbolo de Santo Epifânio de Salamina que estabelece a virgindade perpétua, tendo sido tal expressão assumida pelo Magistério universal no II Concílio de Constantinopla, em 553, cuja expressão servia para elucidar a permanência da virgindade na concepção - concepção virginal - [também proclamada no I Concílio de Toledo, em Setembro de 400, no VI Concílio de Toledo de Janeiro de 638, no IV Concílio de Latrão, em Novembro de 1215] e depois da concepção - virgindade no parto - [defendida no Concílio de Calcedônia, em Novembro de 451 e no Concílio de Latrão, em 31/10/649]. (c) A Imaculada Conceição: Desde o século II orientou-se a reflexão da Igreja, radicada implicitamente na Escritura, para a declaração do dogma mariano da imaculada conceição de Maria. Sucessivamente até a Constituição de Sixto IV, Cum praeexcelsa, de 27/02/1477 foi intenso o crescimento da devoção à imaculada conceição. Já no Concílio de Trento com o Decreto Ut fides, de 17/06/1546 reforça-se tal declaração, embora a sua definição só se daria, depois de alguns séculos, decretos e bulas, em 08/12/1854 com a Bula Ineffabilis Deus de Pio IX que pronuncia e define Maria isenta de toda mancha do pecado. (d) A Assunção: Como conseqüência imediata da imaculada conceição em 01/11/1950 definia-se na Constituição Munificentissimus Deus, de Pio XII, a assunção de Maria aos céus em corpo e alma, cuja tradição remotíssima já tratara em seus documentos. (e) A Mediação universal: Maria com o seu sim se tornou depositária de todas as graças salvíficas da Redenção que seriam dispensadas à Igreja. Neste grande mistério de ser depositária de graças inefáveis refere-se à Maria como mediadora universal. Mediação definida na Encíclica Octobri mense de Leão XIII, datada de 22/09/1891. O mesmo repetir-se-ia na Encíclida de Pio X Ad diem illum, de 02/02/1904, na Encíclica Mystici Corporis Christi de Pio XII, de 29/06/1943 e na Constituição Lumen gentium do II Concílio Vaticano, datada de 21/11/1964. (f) O Culto Mariano: O culto mariano emerge do mistério trinitário - Deus Pai que a escolheu como instrumento de Seu desígnio de salvação, Deus Filho Unigênito, que do corpo dela tomou o Seu próprio corpo, Deus Espírito Santo, que operou a nova criação do Redentor em seu seio virginal. Por esta razão a Lumen gentium, a partir do cap. VIII, exorta calorosamente a todos os fiéis, em particular os teólogos e pregadores, a cultivar em profundidade a devoção à Maria, no são e justo eqüilíbrio recomendado pelo ensinamento da Igreja, com mostras de veneração, de amor, de invocação pela recitação do rosário e de imitação das virtudes, abstendo-se cuidadosamente de qualquer exagero.
III. A Mariologia Tomista: Como vimos, na época de São Tomás - Alta Escolástica -, não havia ainda tratados específicos sobre Maria. Toda questão referente a Maria era tratada em Cristologia e, especificamente, no Mistério da encarnação: o Verbo encarnado. Por aquela razão, o estudo mariológico tomista não constitui um sistema a parte. O Aquinate considera o tema em diversas obras, mas em todas subordina a questão à Cristologia. As obras que oferecem uma maior abordagem são: Suma Teológica III,qq.27-35; Comentários aos IV Livros das Sentenças, III,dd. 3-5; Contra os Gentios, IV,cc.44-49; Compêndio de Teologia, cc.221-225 e os Comentários ao Evangelho de Mateus, c.1 e ao de João, c.2,lec.1. Abordamos aqui a Mariologia Tomista, a partir de quatro questões que o próprio Aquinate propusera na Suma Teológica:
1. A Santidade de Maria: Sobre a santidade de Maria o Aquinate procura responder seis perguntas:
1.1. A Bem-aventurada Virgem mãe de Deus foi santificada no seio materno, antes de nascer? A resposta do Aquinate é afirmativa. Tomás de Aquino refere-se de imediato ao fato de que a Igreja não celebraria a festa da Natividade da Bem-Aventurada Virgem se ela não fosse santa desde o nascimento. Portanto, se a Igreja celebra a festa de seu nascimento, significa que foi santa antes de nascer, ou seja, desde o seio materno [STh.III,q27,a.1,sed cont]. Ora, é plausível argumentar racionalmente favorável à santidade de Maria antes de nascer, se se considera o testemunho das Escrituras como, por exemplo, o do Evangelho de Lucas [1, 28], quando o anjo lhe diz: Salve, cheia de graças. Ora, se a outros foi concedido o privilégio da santificação no seio materno como, por exemplo, a Jeremias [1,5] e a João Batista [Lc 1,15], porque não àquela que gerou o Filho unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade [Jo 1,14]. Daí concluir o Aquinate que é razoável crer que a Bem-Aventurada Virgem Maria foi santificada no seio materno antes de nascer [STh.III,q27,a.1,c].
1.2. Foi santificada antes de ser-lhe infundida a alma? A questão poderia também ser colocada deste modo: Maria foi santificada antes de sua animação, isto é, antes que fosse criada e infundida sua alma racional? Tomás de Aquino responde dizendo que Maria foi santificada só depois de sua animação, ou seja, depois da criação e da infusão de sua alma racional no corpo gerado. Por quê? Porque a santificação significa, neste contexto, a purificação do pecado original. Mas a culpa do pecado original só pode ser purificada pela graça. Ora, o sujeito da graça é exclusivamente a alma racional. Portanto, ele conclui que Maria não foi santificada antes que lhe tenha sido infundida a alma racional, senão só depois de recebê-la [STh.III,q27,a.2,c]. Além do mais, acrescenta o Aquinate, se Maria tivesse sido santificada antes de receber a alma racional, ela não teria incorrido nunca na mancha do pecado original e, como conseqüência, não teria tido necessidade da redenção e da salvação trazidas por Cristo, além de não convir que Cristo fosse o salvador de todos os homens, como se diz na Primeira carta a Timóteo [STh.III,q27,a2,c].
A resposta do Aquinate àquela questão coloca em evidência que ele admitia distinção e subordinação entre a geração e a animação: a animação é princípio da infusão da alma racional no corpo [In IISent. d18, q2, a3, r5; CG., II, c57, n14;STh., III, q27, a1, a2; III, q33, a2, ad1 e 2] que ocorre depois de sua geração no ventre materno, mediante processo biológico, cujo nome é concepção [In IV Sent.d14,q1,a2, 1 ad2]. Será pautado nisso que ele dirá que em Maria o que é gerado ou concebido biologicamente precedeu a criação e infusão do espiritual, porque ela foi concebida, entenda-se gerada, primeiro na carne e depois santificada segundo o espírito [STh.III,q27,a.1,ad1].
Baseado em que doutrina o Aquinate admite a distinção e subordinação da animação à geração? Baseado na doutrina biológica de Aristóteles. Segundo o filósofo grego, apesar de o corpo ser gerado a partir da matéria herdada dos pais no ventre materno, a alma racional tem origem divina [Ethica Nich, X, 7, 1177a 15-20] independe do corpo [De generatione animalium, II, 736b 8-30] porque ela não resulta da mescla dos elementos dos corpos [De anima, I, 408ª-409b], pois advém desde fora e só se incorpora nele depois [De animalibus historia, VII, 583b 1-5] por isso, ela não se subordina à corrupção [De anima, I, 4, 408b 18-20; 413ª 4; 413b 25].
Vejamos algumas passagens onde o Aquinate admite a doutrina biológica de Aristóteles para explicar a geração humana: segundo a fé é necessário afirmar que a concepção de Cristo foi simultânea... portanto, que a concepção de Cristo não preceda temporalmente a [disposição] da natureza de sua carne...sendo necessário que a consideremos ter sido simultânea, estabelecendo que ambas [a concepção da alma e da formação do corpo] fossem no instante...ou seja a sua animação. Nos demais, porém, isso se dá sucessivamente, de tal modo que não há a concepção da matéria senão no quadragésimo dia, tal como ensina o Filósofo no nono livro Acerca da geração dos animais [III Sent. d3, q5, a2,c] e: ...nesta geração do homem, em primeiro lugar, ocorre a soltura do sêmen... em segundo lugar, ocorre a conflagração da massa corpórea no útero da mulher. Deste modo se une o sêmen do macho com a matéria que subministra a fêmea, para a geração do homem e o mesmo ocorre com a geração dos outros animais... em terceiro lugar, ocorre a distinção dos órgãos, cuja consistência e o rubor é na verdade, pelos nervos e ossos, que são cobertos por carnes e pele... em quarto lugar, porém, é a animação do feto, especialmente com a alma racional que não é infundida senão depois da organização... e, por último, é porém a consecução da vida tanto no útero materno quanto fora dele, sendo parte desta conservação correspondente aos princípios naturais e parte correspondente aos benefícios que Deus acrescenta à natureza [In Job, c10].
Mas ao admitir esta doutrina biológica o Aquinate teve de superar uma possível dificuldade metafísica de justificar sua tese da unidade da forma substancial na substância corpórea e afastar-se do que se instrui no documento Donum vitae I,1, que pautado no que ensina a biologia moderna, afirma que a concepção humana é instantânea e simultânea à geração do corpo. O Aquinate teve de superar uma possível dificuldade metafísica de justificar sua tese da unidade da forma substancial na substância corpórea, pois se a animação é subordinada à geração do corpo, a infusão da alma racional no corpo se dá somente quando o corpo já esteja formado, o que suporá a existência de alguma forma substancial preexistindo no corpo, do contrário sequer o corpo poderia ter sido formado. Ora, ou a forma do corpo gerado daria lugar a alma racional - que é forma substancial - criada e infundida no corpo, ou todas elas - a que já existia e a forma que foi criada e infusa, depois da geração do corpo - coexistiriam num mesmo corpo. Mas se coexistissem, ao mesmo tempo, no mesmo corpo, cairia por terra a doutrina da unicidade da forma substancial no corpo, tese que o Aquinate sempre defendeu. Do que se segue, que o Aquinate admite que a infusão da alma racional suponha a corrupção da última forma substancial preexistente no corpo [STh I q118 a2 sol], pois é impossível a existência de múltiplas formas substanciais no corpo [STh I q76 a3 sol]. Por isso, afirma Tomás que não é possível que no homem exista outra forma substancial que a sua alma racional [STh I q76 a4 sol].
Ao admitir a doutrina da geração humana aristotélica que estabelecia que a geração fosse anterior à animação do corpo, o Aquinate foi levado a concluir que a santificação de Maria só poderia ter sido posterior à geração do corpo, já que a santificação supunha a animação. Mas e se tivesse sido perguntado ao Aquinate: Maria foi santificada no mesmo instante de sua animação? Qual seria a sua resposta? Sua resposta distanciar-se-ia do publicado na Bula Ineffabilis Deus de Pio IX de 08/12/1854 que declara, proclama e define que a Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante em que foi concebida, foi preservada imune de toda mancha do pecado original, pois o Aquinate sustentara que a Virgem contraíra o pecado na animação e só foi purificada dele antes de nascer do seio materno [STh.III,q27,a2,ad2]. Segundo a resposta do Aquinate, Maria teria sido purificada somente num instante posterior à animação, portanto, não no mesmo instante da criação e infusão de sua alma racional no corpo. E se perguntarmos: em que instante foi santificada? Quanto à santificação o Aquinate não determina se foi no instante imediatamente posterior à animação ou se muitos instantes depois, porque se ignora em que momento foi santificada [STh.III,q27,a2,ad3].
A doutrina Tomista é completamente contrária ao que se definiria no dogma da Imaculada conceição de Maria? Não! A doutrina Tomista não se opõe ao dogma quanto à compreensão de que só é possível a santificação quando da animação. O Aquinate, ao afirmar que a santificação da Bem-Aventurada Virgem só se realizou depois de receber a alma [STh.III,q27,a.2,c], ou seja, no momento em que ele denominou animação, não depôs contra ao que se proclamaria e se definiria no dogma como concepção. Mas distancia-se ao sustentar que a santificação não foi instantânea à animação.
1.3. Em virtude desta santificação terá sido totalmente suprimida nela a inclinação para o pecado? Segundo Santo Tomás, a Bem-Aventurada não foi libertada da inclinação ao pecado, mas tal inclinação ficou atada, em razão desta santificação: a inclinação em si mesma teria permanecido na primeira santificação, mas atada; e teria sido totalmente suprimida no momento da concepção do Filho de Deus [STh.III,q27,a3,c]. Afirmar que teria sido libertada totalmente da inclinação contribui para a dignidade da Virgem Maria, mas diminui de alguma forma a dignidade de Cristo, porque sem o seu poder ninguém foi libertado da primeira condenação, pois assim como ninguém alcançou a imortalidade antes da ressurreição, não alcançou também a libertação da inclinação ao pecado. Em rsumo, o Aquinate concidera dupla purificação da Virgem: uma primeira que a preparou para a concepção de Cristo que atou a inclinação ao pecado e outra foi realizada nela pelo Espírito Santo por meio da concepção de Cristo, que a purificou totalmente da inclinação do pecado [STh.III,q27,a3,ad3].
1.4. Por causa disso teve o privilégio de ser preservada de todo pecado atual? Tomás é contutende e afirma que a Virgem não cometeu nenhum pecado atual, nem mortal nem venial [STh.III,q27,a4,c], pois a inclinação ao pecado atada não produziu nela nenhum movimento desordenado [STh.III,q27,a.4,ad1]. Deus providenciou para que desta inclinação atada não viesse nenhum movimento desordenado. Se houve dúvida nela, referindo-se ao texto de Lc 2,35: uma espada atravessará a tua alma,não é de infidelidade, mas de admiração e de perplexidade ante o que via: por um lado o sofrimento ignominioso do seu Filho, mas por outro, meditava suas obras maravilhosas [STh.III,q.27,a4,ad2].
1.5. Obteve a plenitude das graças? A Virgem Maria, por causa da proximidade da natureza humana de Cristo - autor da graça - a quem deu a natureza humana, obteve de Cristo uma plenitude de graça maior do que as outras pessoas [STh.III,q27,a5,c]. E isso porque a alma humana de Cristo participa necessariamente e sem limite, pela graça, da divindade, em virtude da proximidade ontológica singular que estabelece a união hipostática entre ela e a divindade [STh.III,q.7,a1,c]. De tal maneira que houve na Virgem tríplice perfeição da graça: a) dispositiva, pela qual se tornou idônea para ser a Mãe de Cristo - que é a perfeição da santificação, pela qual foi foi libertada do pecado original; b) presencial, pela qual teve a presença do Filho de Deus em seu seio, mediante, a encarnação, pela qual foi purificada da inclinação ao pecado e c) final, que possui na glória [STh.III,q27,a5,ad2], por cuja glorificação foi libertada de toda miséria humana [STh.III,q27,a5,ad3].
1.6. Ter sido assim santificada foi exclusivo dela? Não quanto à matéria, pois Jeremias e João Batista o foram, mas sim quanto à excelsas forma e finalidade, porque alcançou uma graça de santificação maior do que a do Batista e a de Jeremias, que foram escolhidos como prefigurações particulares da santificação de Cristo [STh.III,q27,a6,ad2].
2. A Virgindade de Maria: Sobre a virgindade de Maria o Aquinate tratou de quatro perguntas:
2.1. A mãe de Deus foi virgem ao conceber Cristo? Por quatro razões a concepção de Cristo não impôs a necessiade de uma relação carnal: salvaguardar a dignidade do Pai que o envia; era conveniente pela dignidade do Filho enviado; era conveniente para a dignidade humana de Cristo, na qual não podia haver lugar para o pecado, pois numa natureza corrompida pela união do homem e da mulher não poderia nascer uma carne sem a contaminação do pecado original [STh.III,q28,a1,c]. Tomás conclui valendo-se das palavras de Santo Agostinho que diz no livro De sancta Virginitate [ML 40, 399]: Era necessário que a nossa cabeça nascesse, segundo a carne, de uma virgem, por um milagre extraordinário, para significar que seus membros deveriam nascer, segundo o espírito, da virgem que é a Igreja [STh.III,q28,a1,c]. Por tudo isso a Mãe de Deus foi virgem ao conceber Cristo.
2.2. Foi a mãe de Cristo virgem no parto? De modo contundente afirma o Aquinate que a mãe de Cristo foi virgem também no parto, por três razões: porque correspondia ao que é próprio daquele que iria nascer; porque era inconveniente que aquele que veio para salvar a carne a corrompesse com o seu nascimento, destruísse a virgindade de Maria e porque era conveniente que aquele que mandou honrar o Pai, não diminuísse a honra da mãe ao nascer [STh.III,q28,a2,c]. Se Deus ao entrar santificou a morada do sagrado, não haveria de corrompê-la ao sair dele [STh.III,q28,a2,ad1]. Por isso, Cristo para mostrar que era humano, nasce de uma mulher, e para mostrar que era divino, nasce de uma virgem [STh.III,q28,a2,ad2]. Assim, pôde entrar quando estavam fechadas, como ao nascer, pôde deixar intacta a virgindade ao sair de sua mãe [STh.III,q28,a2,ad3].
2.3. A mãe de Cristo permaneceu virgem depois do parto? Maria é virgem antes do parto, no parto e depois do parto [STh.III,q28,a3,sed contra]. Por quatro razões permaneceu virgem depois do parto: Cristo é Filho único de se Pai e convinha ser filho único de sua mãe; o seio sagrado pelo Espírito não poderia ser depois profanado; nega a santidade da mãe e seria imputado a José a máxima presunção de manchar o que Deus consagrou. Por tudo isso a mãe de Deus foi virgem ao conceber, ao dar a luz e assim permaneceu para sempre depois do parto [STh.III,q28,a3,c]. A celebração das bodas, depois da concepção, manifesta a existência do matrimônio, não a perda da virgindade [STh.III,q28,a3,ad2].
2.4. Terá feito voto de virgindade a mãe de Deus? Não se crê que a mãe de Deus tenha feito voto definitivo de virgindade antes de estar desposada com José, embora a desejasse e abandonou sua vontade à decisão de Deus, mas depois, uma vez que aceitou um esposo, como exigia o costume daquele tempo, fez voto de virgindade junto com ele [STh.III,q28,a4,c].
3. Os esponsais de Maria: Sobre o matrimônio de Maria o Aquinate responde duas perguntas:
3.1. Cristo devia nascer de uma virgem desposada? Convinha que Cristo nascesse de uma virgem desposada por causa de Cristo: a) para que não fosse rejeitado pelos infiéis como nascido de modo ilegítimo, como de um adultério; b) para poder estabelecer a sua genealogia pela linhagem do homem, como era o costume; c) para proteger o menino recém-nascido, para que o demônio não tramasse danos com maior veemência contra ele, para que seu parto fosse ocultado ao diabo e d) para que fosse criado por José, que por isso foi chamado de pai, como quem o alimentou; por causa de sua mãe: a) para que ela ficasse imune à pena; b) para ficar livre da desonra e c) para que aparecesse a dedicação de José e por causa de nós: a) para comprovar por José que Cristo nasceu de uma virgem; b) para tornar mais digna de fé as palavras da Virgem sobre a sua própria virgindade; c) para não escusar as virgens que não evitam a infâmia e d) porque é um símbolo de toda a Igreja [STh.III,q29,a1,c].
3.2. Houve um verdadeiro matrimônio entre Maria e José? Tomando as palavras de Santo Agostinho Tomás afirma que não é justo que o evangelista, quando chama José esposo de Maria, pensasse que José ter-se-ia separado do matrimônio com Maria pelo fato de ela virgem, ter dado à luz Cristo, sem ter-se unido carnalmente com ele. Com este exemplo se insinua claramente aos fiéis casados que existe verdadeiro matrimônio, mesmo guardando a continência de comum acordo e sem a união sexual dos corpos [STh.III,q29,a2,sed contra]. Houve verdadeiro matrimônio, a exceção da união carnal, porque houve o filho, a fidelidade e o sacramento [STh.III,q29,a2,c].
4. A anunciação de Maria: Sobre a anunciação da Bem-aventurada virgem o Aquinate considera quatro perguntas:
4.1. Era necessário que fosse anunciado à Bem-aventurada Virgem o que iria realizar-se nela? Por quatro razões era necessário que fosse anunciado à Maria o que iria realizar-se nela: a) para que lhe fosse preparado antes o espírito para o que ocorreia no corpo; b) para que fosse testemunha deste mistério; c) para que fosse livre para oferecer os serviços voluntários da sua entrega e d) para manifestar a existência de um matrimônio espiritual entre o Filho de Deus e a natureza humana [STh.III,q30,a1,c]. Destaca o Aquinate que a profecia da predestinação se realiza sem que entre em ação o nosso livre-arbítrio, mas não sem o nosso consentimento [STh.III,q30,a1.ad1].
4.2. A anunciação à Bem-aventurada Virgem deveria ser feita por um anjo? Por três motivos o anúncio foi feito por um anjo: a) para manter a ordem estabelecida por Deus, segundo a qual os mistérios divinos chegam aos homens por mediação dos anjos; b) convinha por causa da reparação da natureza humana que haveria de acontecer por Cristo e c) porque era conveniente à virgindade da Mãe de Deus [STh.III,q30,a2,c]. Embora fosse inferior com respeito ao estado da vida presente, a Virgem era superior ao anjo que lhe anuncia no que se refere à dignidade para a qual fora eleita por Deus [STh.III,q30,a2,ad1]. E foi conveniente que fosse Gabriel - que significa força de Deus - o maior na ordem dos arcanjos, pois era pela força de Deus que devia ser anunciado aquele que, sendo Senhor das potestades e poderoso no combate, vinha para subjugar os poderes espalhados pelo ar [STh.III.q30, a2,ad4].
4.3. O anjo da anunciação deveria aparecer à Virgem numa visão corporal? Era conveniente que o anjo - mesmo enquanto reconhecido como anjo - fosse apresentado à virgem numa visão corporal por tais razões: a) por razão daquilo que vinha anunciar, nada mais conveniente anunciar a encarnação assumindo o que é invisível, uma forma visível; b) em respeito à dignidade da Mãe de Deus, à qual convinha apresentar-se de modo que os seus sentidos percebecem sua presença e se sentissem reconfortada e c) pela certeza que imprime uma apresentação corporal aos olhos humanos [STh.III,q30,a3,c]. Esta aparição corporal veio acompanhada de uma iluminação intelectual, por isso foi a mais nobre e devida forma de aparição corporal [STh.III,q30,a3,ad1]. O anjo em sua aparição ao ser humano antecipa por por remédio ao corração humano para que este não se pertube ante à admiração, por isso o anjo antecipa em dizer-lhe: não temais! Ademais a segurança que se insere na alma pela presença de um mensageiro de Deus faz discernir a presença benigna de um anjo da maligna. Mas se o temor permanece é indício de que se trata de anjo maligno [STh.III.q30,a3,ad3]. Maria não se pertubou por ver o anjo, mas por ouvir o que ele dizia, em sua humilde consideração não se via digna.
4.4. A anunciação se realizou segundo uma ordem conveniente? A anunciação se realizou de maneira ordenadíssima, por cuja se manifestou as três intenções do anjo ao anunciar: a) chamar sua atenção para tão grande realidade; b) instruí-la a respeito do mistério da encarnação e c) induzir-lhe o espírito ao consentimento [STh.III,q30,a4,c].
5. A matéria da qual foi concebido o corpo do salvador: Sobre isso o Aquinate considera duas perguntas:
5.1. Era conveniente que Cristo nascesse de uma mulher? Deus poderia tomar qualquer carne para formar o seu corpo, mas foi conveniente que fosse de mulher por três razões: a) porque desta maneira era enobrecida toda a natureza humana; b) porque garantia a verdade da encarnação e c) porque deste modo se completa todos os modos como o ser humano é gerado [STh.III,q31,a4,c].
5.2. O seu corpo terá sido formado do sangue puríssimo da Virgem? Deus construiu para si do mais casto e puro sangue da Virgem uma carne animada pela alma racional [STh.III,q31,a5, sed contra]. Na geração de Cristo, o modo sobrenatural consiste em que o princípio ativo daquela geração foi o poder sobrenatural de Deus, mas o modo natural consiste em que a matéria da qual foi concebido o corpo fosse igual à que fornecem as outras mulheres para a concepção da prole - a saber - o sangue da mulher [STh.III,q31,a5,c], que é carne em potência [STh.III,q31,a5,ad1]. Cabe aclarar que a concepção do corpo de Cristo não se deu pelo sangue menstrual, que a natureza elimina, mas do sangue puro ao qual a natureza não elimina e cuja eliminação é uma espécie de purificação, o que justifica dizer que o sangue da Virgem do qual foi formado o corpo de Cristo foi puríssimo [STh.III,q31,a5,ad3].
6. O princípio ativo na concepção de Cristo: Sobre isso o Aquinate considera uma pergunta:
6.1. Teve a Bem-Aventurada Virgem Maria papel ativo na concepção do corpo de Cristo? A Virgem não teve nenhum papel ativo na concepção do corpo de Cristo [STh.III,q32,a4,sed contra], mas fornece apenas a matéria, tendo antes da concepção cooperado ativamente preparando a matéria, de modo que fosse adequada para a concepção [STh.III,q32,a4.c].
7. O nascimento de Cristo: Sobre isso o Aquinate considera duas perguntas:
7.1. A Bem-Aventurada Virgem Maria pode ser chamada mãe de Cristo por causa do nascimento temporal? A Virgem Maria é a verdadeira mãe de Cristo segundo a natureza, pois o corpo de Cristo foi gerado do seu sangue puríssimo, o que é suficiente para definí-la como mãe de Cristo [STh.III,q35,a3,c].
7.2. A Bem-Aventurada Virgem Maria deve ser chamada mãe de Deus? A Bem-Aventurada pode ser chamada com propriedade mãe de Deus, pois o Verbo encarnado é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus, pela união hipostática, nascido da Virgem, porque Deus não é o nome só da natureza divina que se une à humana, mas da hipóstase de ambas as naturezas [STh.III,q35,a4,c]. Deve-se afirmar que a Bem-Aventurada é chamada mãe de Deus não porque seja mãe da divindade, mas por ser mãe, segundo a humanidade, de uma pessoa que possui a divindade e a humanidade [STh.III,q35,a4,ad2] e sobremaneira designa-se a Virgem mãe de Deus porque é mãe da humanidade assumida pela divindade do Filho [STh.III,q35,a4,ad3].
8. A circuncisão de Cristo: Sobre isso o Aquinate considera uma pergunta:
8.1. Foi conveniente que a Mãe de Deus se apresentasse no templo para ser purificada? Embora Cristo não estivesse sujeito à lei, sujeitou-se a ela para prová-la e retirar-se-lhe qualquer calúnia por parte dos judeus; do mesmo modo, embora a Virgem não estive subordinada à lei, quis que sua mãe cumprisse todas as observâncias da lei [STh.III,q37,a4,c]. Por isso, embora a Virgem não contivesse nenhuma imperfeição ou impureza, sujeitou-se ao cumprimento da observância da purificação, não por necessidade, mas pela prescrição da lei [STh.III,q37,a4,ad1].
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